Historicamente, uma vasta bibliografia indica que, com o advento da independência nacional, ocorreu um êxodo populacional das minorias do Moçambique colonial, com o maior caudal para Portugal e África do Sul, deixando o País com cerca de 90% da população por alfabetizar. Por erosão, um considerável universo do pessoal especializado seguiria no mesmo sentido, facto que até a data chamaria a atenção dos estudiosos pelas fragilidades causadas nos sectores da indústria, Saúde e Educação, sobremaneira.
Volvidas quatro décadas e meia de independência de Moçambique, acto com registo a 25 de Junho de 1975, surge a necessidade de se analisar os demais sectores, aparentemente negligenciados, embora de magnitude nada desprezível em termos de consequências causadas na sociedade moçambicana. Como forma de contribuição, e ainda por uma questão de interesse particular, debruçar-nos-emos, no presente artigo, sobre o sector das artes, com enfoque à literatura.
Para melhor compreensão das implicações negativas do êxodo na literatura, importa, antes de quaisquer desenvolvimentos argumentativos, estabelecer um breve paralelismo com o desfalque de quadros verificado no sector industrial, em Moçambique, principalmente após a assinatura dos acordos de Lusaka, a 7 de Setembro de 1974. Este facto culminaria com a tomada de posse do Governo de Transição, cujo período de vigência marcaria um átimo de desamores em relação ao futuro da pérola do Índico.
Com a saída massiva de pessoal especializado, depois da independência, Moçambique desaba na necessidade de seguir em frente, contando com os recursos humanos disponíveis. A colocação de nacionais dotados de relativo conhecimento sobre as diferentes áreas fez com que vários incipientes ou funcionários de escalões inferiores no período colonial passassem a exercer postos de capital relevância na indústria, na Saúde ou Educação, a título de exemplo[1]. O meio literário também conheceria uma semelhante trepidação, sobretudo com a saída do País de autores que escreviam para afirmar a ideologia colonial na sua expressão luso-tropicalista. Aliás, de acordo com Mendonça (1988), “aparece neste grupo a maior parte da prosa editada em Moçambique.”[2]
A edificação de um novo edifício literário em Moçambique conduziu à criação da Associação dos Escritores Moçambicanos, AEMO, em Agosto de 1982. Este facto constituiu, de certa forma, um braço mobilizador do Estado para impulsionar o surgimento de uma vaga de escritores engajados na causa revolucionária[3]. Jovens interessados desfruiriam de uma oportunidade histórica: ocupar um território literário quase que vazio, por imperativo das dinâmicas sociopolíticas acima descritas. Importa referir que, intencionalmente, recorremos ao termo território para induzir o leitor à ideia da territorialidade, definida como a conduta ou atitude que instintivamente os animais, incluindo o próprio ser humano, a promover a defesa do território que ocupam. No caso dos seres humanos, esta defesa também está relacionada com a cultura, facto que mais adiante trataremos com algum destaque, na esfera da literatura moçambicana.
A literatura no Moçambique colonial, à semelhança do que sucedia em muitas outras ocupações de âmbito profissional, conferia supremacia a autores de descendência europeia, que para alguns estudiosos configuram o que também Noa (2002), designa por “Literatura Colonial”, destacaremos o que este autor assume como a terceira fase dessa literatura, evocando escritores Fernando Magalhães, Guilherme de Melo, Agostinho Caramelo, João Salva-Rey, Eduardo Paixão e outros. Concomitantemente, através de uma leitura atenta sobre o percurso das letras em Moçambique, concluímos que, com este conjunto de romancistas destacados por Noa, coexistiam poetas como Rui Knopfli ou Eugénio Lisboa.
Porque a Independência Nacional de Moçambique, sob vários aspectos, impôs-se como um processo de ruptura com o passado colonial, a partir do conturbado ano de 1974, assistiu-se igualmente à saída de escritores, casos de Guilherme de Melo, que, em Outubro de 1974, faria as malas para Portugal. Rui Knopfli, em Março de 1975, seguiria o exemplo. Fernando Magalhães, em 1977, apenas para trazer à memória alguns dos autores que avultavam no panorama literário do Moçambique colonial. Aliás, arrebatado ao meio literário de Lourenço Marques, numa recentíssima edição do JL, Eugénio Lisboa, que também deixou Moçambique em Março de 1976, recordaria, marcado por alguma saudade, um dos inusitados momentos de convívio literário, já nesses distantes tempos de Lourenço Marques[4].
Diga-se de passagem que, paralelamente à saída desses escritores de Moçambique, desvaneceu a disponibilidade do livro, facto já sensível nos primeiros anos da independência nacional. Em entrevista inserida no Número 1 da Revista Charrua (1984), Rui Nogar constataria que “agora o que nos distancia da aquisição de conhecimentos literários, da aferição dos nossos próprios valores […]: é apenas a inexistência de livros, é apenas a resultante da situação que se vive em qualquer País, colonizado, subdesenvolvido.” Todavia, para muitos da nossa geração etária, residentes no centro da Cidade de Maputo, abririam as tabacarias, ao estilo da Vitória, para troca de livros, como forma de colmatar essa inexistência de livros.
Como ficou dito, em 1982, quando já se perdia a memória da antiga Lourenço Marques, ora Maputo, nasceu a Associação dos Escritores Moçambicanos. Lado a lado com escritores revelados no período colonial, estes mais engajados ao processo revolucionário, uma nova e influente geração de poetas e prosadores ocuparia o território literário naquele tempo deixado vago pelos cultores da apodada por literatura colonial. Como território, parafraseando Coelho Neto, entenda-se um espaço com limites estabelecidos por fronteiras colocadas [embora nada físicos], onde a questão da exclusividade de apropriação e de uso distingue hoje “nós”, os incluídos, aqueles que integram o território, e os “outros”, aqueles que não fazem parte do território.
Imbuídos desse espírito de pertença, alguns escritores da vaga de autores como Ungulani Ba Ka Khosa, Armando Artur, Juvenal Bucuane, Eduardo White, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Paulina Chiziane, Tomás Vieira Mário, Mia Couto, Suleiman Cassamo, Anibal Aleluia, Nelson Saúte, Calane da Silva, Pedro Chissano, Carlos Paradona Rufino Roque, António Pinto de Abreu, Marcelo Panguana, entre vários outros, adoptariam, alguns, uma conduta ou atitude instintivamente defensiva, para assegurar o território ora ocupado, em consciência, algo agridoce, das circunstâncias próprias do seu surgimento como escritores, e da falta de talento, notório nos textos sem qualquer relevância literária. É preciso evitar-se a romantização dos processos. Aliás, já em 84 do século passado, Fernando Couto, comentando sobre o Número 1 da revista charrua, apontava “como aspectos positivos de realce [na revista] os contos e poemas, mas ressalvando, de modo perítrico, que não todos.”
Hoje, transcorridas pouco mais de três décadas, a distância temporal nos confere a firmeza de elaborar instrumentos de análise, a aferição de quem, nesse grupo de “escritores de circunstância”, de facto foi, ou é, relevante no panorama literário, tendo em vista a obra literária, apenas a obra literária e nada mais. Chamo aqui a todos os escritores nacionais a preencher, individualmente, a tabela a baixo, de modo a que cada um possa aferir a sua relevância como escritor, no seio da sociedade moçambicana, isto atendendo o facto de ser ou não escritor de realce[5].
OBRAS PUBLICADAS | REEDIÇÕES | INSERÇOES EM ANTOLOGIAS | TRADUÇÕES EM LÍNGUAS ESTRANGEIRAS | PUBLICAÇÕES INTERNACIONAIS | ENSAIOS ACADÉMICOS SOBRE A OBRA | MONOGRAFIAS DE CULMINAÇÃO DE ESTUDOS SUPERIORES BASEADOS NA OBRA | LIVROS SUGERIDOS PARA LEITURA NO ENSINO SECUNDÁRIO | PRÉMIOS LITERÁRIOS |
Cientes da falibilidade de alguns itens elencados, se em mais de 35 anos de publicação, um escritor não se ajusta a 75% dos mesmos, a sua relevância como autor é assaz duvidosa. A esses itens podíamos acrescentar adaptações das histórias dos livros para o cinema ou teatro, como acontece com autores como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa e Paulina Chiziane.
Voltando à nossa linha de raciocínio, se no sector industrial, como consequência do êxodo da minoria branca, profissionais de baixa qualificação técnica viram-se na contingência de assumir sectores-chave da produção industrial, na literatura, sem o desdoiro de escritores de relevo surgidos na década de 1980, ocorreu igualmente a ascensão de meros alfabetizados para a classe de literatos[6], possivelmente por exagero de alinhamento na causa. Alinhados, porém, tecnicamente fracos, e/ou de duvidoso talento para o exercício da escrita literária. É certo que parte desses se ajustaria melhor ao lugar de animadores culturais, uns de excelência, tais os declamadores Gulamo Khan, Jaime Santos e Guilherme Mussane, exemplificando.
Por outro lado, a literatura pode ser equiparada ao acto de voar, muitos gostariam de experimentar a sensação, daí que também simples apreciadores de poesia se batem, embora sem algum talento, pela publicação e afirmação no panorama literário, sendo esses facilmente promovidos pelos “escritores de circunstância”, os igualmente sem talento, com o fito único de enturvar as águas e assim lograrem a sórdida empreitada de invisibilização e/ou subalternização[7] dos grandes talentos literários, a destacar Guita Jr., Amin Nordine, Sangare Okapi, Ruy Ligeiro, Lucílio Manjate, Celso Manguana, Chagas Levenne, Adelino Timóteo e, por mera modéstia, detenho-me por aqui.
Tendo falado em voar, ser piloto e escritor marca, nalgum momento da vida, o sonho de muitos adolescentes e jovens. Pouco depois do registo da saída massiva de escritores da literatura colonial, surgiram “escritores de circunstância”, que infelizmente, os medíocres dessa vaga, pela doce condição de continuar a alimentar essa quimera da adolescência em idade adulta adoptaram uma atitude fagocitária, valendo-se do facto de fazerem parte de um movimento marcado pela criação de notáveis revistas literárias, com destaque para a Charrua[8]. Eram os tempos da experiência socialista, de identificação com o espaço literário conquistado, no qual a colectivização da produção constituía a palavra de ordem. Hoje, alguns ainda não conseguiram contemporizar-se, porque mudam-se os tempos, soam novas canções. A obra individual é chamada hoje para advogar o sujeito escritor. Liesegang (1998) refere que se identifica uma pessoa com relação ao seu espaço mais relevante [revistas Charrua, Forja, Xiphefu, ou Oásis], mas o actor continua a ser individualizado.
É claro que estamos certos de que, à luz das mesma circunstâncias que levaram à legitimação de simples alfabetizados como escritores, também surgiram, de facto, escritores merecedores de sê-lo, entre outros, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleimane Cassamo, Eduardo White, Armando Artur, Lília Momplé, Paulina Chiziane e Aldino Muianga, alguns destes sem associação à revista em alusão.
Hoje, estamos remetidos a uma fase de quase conspurcação do espírito literário, cuja consequência é o desejo daquela corrente de alfabetizados que, por força do contexto, se consagrou no meio literário. Esses procuram veneração por parte dos escritores de prossecução, mas isto nada a mercê da criatividade literária, que tenha sustentado a consagração literária de muitos dos “escritores de circunstância”. É notável a qualidade medíocre das suas obras, por isso batem-se por uma constante invisibilidade literária de quem parece ensombrá-los. Conspurcam os cargos político-administrativos que ocupam, como meio de silenciamento e desqualificação do outro na sociedade, quase sempre incauta às dinâmicas literárias no País. Embora alguém se empenhe em demonstrar que depois de si veio o caos, essa dinâmica literária não deixou de trazer à luz novos escritores. Sobre a mediocridade, do texto, “O Medo da Inteligência”, publicado há 41 anos, mas com muita actualidade, José Alberto Gueiros, defende:
Os medíocres são mais obstinados na conquista de posições. Sabem ocupar os espaços vazios deixados pelos talentosos displicentes que não revelam apetite pelo poder. Mas é preciso considerar que esses medíocres ladinos, oportunistas e ambiciosos, têm o hábito de salvaguardar suas posições conquistadas com verdadeiras muralhas de granito por onde talentosos não conseguem passar.
As muralhas de granito incluem, hoje, a desqualificação do outro, que chega a insana atitude de negar que se possa agir, por parte dos escritores emergentes de 2003 a esta parte, e pensar de livre arbítrio[9]. Em todas as épocas nascerá tanta gente medíocre e ambiciosa, dotados do mesmo oportunismo. Hoje, certa continuidade dessa mediocridade se entrega a ovação dos “escritores de circunstância”, julgando que deles encontrarão algum decreto que os legitime como escritores consagrados. A acção da mediocridade de ontem, associada à de hoje, também se traduz na maledicência, que acaba por manter dividida a classe dos verdadeiros escritores. A mediocridade intriguista calunia e envenena o meio literário, havendo necessidade do surgimento de uma nova ordem literária, na qual o extraliterário não interfere, cabendo à crítica literária autorizada, em Moçambique, não atrelar-se a afinidades tecidas no convívio social dos anos 80. Essas afinidades impõem à crítica um exercício nada salutar à própria literatura, pois, através de malabarismos discursivos, perpetuam a vigência hegemónica de “escritores” que se multiplicam em actos fagocitários à aparição e verdadeira afirmação de novos autores.
Os malabarismos discursivos caracterizam-se muitas vezes por arrolar nomes de “enteados” como autores de destaque, algo não fundamentado pela obra. Quando parece que prefaciam as obras dos mesmos, prefaciam não a obra, mas o próprio “autor-afilhado”. Quando parece apresentarem um livro, apresentam o próprio autor-afilhado, não o livro. Essa conspurcação estendem-na ao plano internacional, servindo protegidos literários e amos. Assim, da crítica arriscam-se, num porvir não muito distante, ao crivo da crítica da Crítica, em contraposição ao que actualmente também ocorre de muito bom na reflexão sobre a literatura moçambicana. Entretanto, depois de cimentar-se, a partir dessa década de 1980, uma nova classe de exímios cultores da palavra, ficcionistas, hoje, caberá a outros assumir esse legado, sem quebrar pontes, mas atentos a acção da mediocridade nociva, que conta sempre com o recurso à gazua dos cargos político-administrativos que ocupa, para manter a “visibilidade literária”, mercê da invisibilização de quem muito invejam o talento. Felizmente, não existe como parar o vento com as mãos.
[1] Precisamente a 8 de Março de 1977, depois da realização do III Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel intimaria jovens provindos de vários quadrantes do País a assumirem e trabalharem nos vários sectores da economia, então em estado de defecção.
[2] In: Literatura Moçambicana: a História e as escritas. Faculdade de Letras, 1988.
[3] Na Conferencia Constitutiva da AEMO, em discurso intitulado “Condições Para Mobilizar Obreiros Literários ”, enfatizar-se-ia que “a Associação dos Escritores Moçambicanos (…) é condição de florescimento da nossa literatura, é a via necessária de mobilizar os obreiros da produção literária.”
[4] Jornal de Letras, 6 de Outubro de 2020.
[5] A tabela, de aferição da relevância literária do escritor, descarta o extra literário, do género, cargos político-administrativos, militância partidária, pertença ou não aos serviços de segurança do Estado, etc., muitas vezes usados como factores de legitimação literária.
[6] De Fernando Ganhão registamos “Nós, que somos os mais alfabetizados de um País de analfabetos, temos responsabilidades que penso deverão constituir também uma das preocupações desta Associação.” (In: Memorial. AEMO, 2007)
[7] Razões de percurso podem explicar a necessidade de se ter subalternos literários. Aquando da criação da AEMO, onde muitos alfabetizados tiveram a oportunidade de seguir a carreira de escritor, poetas da gesta libertária, como o coronel Sérgio Vieira, frequentavam o mesmo espaço e, pela atitude trazida da guerrilha, naturalmente arregimentaram “escritores” que não vinham das matas. Muitos, já mentalmente aleijados, acreditam que essa subalternização constitui alguma herança comportamental, que deve passar de geração em geração.
[8] Chamamos aqui atenção para asserção de Gilberto Matusse (1994): “A Charrua marca um momento de redefinição da literatura pós-independência. Por um lado, porque propicia o surgimento em bloco de novos nomes, que viriam a afirmar-se no cenário da literatura moçambicana, contrariamente ao que aconteceu com a quase totalidade dos nomes isolados que procuraram lançar-se no período entre 1975 e 1984.”
[9] O disparate desqualificador procura sempre negar que os novos autores possam pensar de mote próprio, associando qualquer pensamento destes a manipulações, ora que são porta-vozes do fulano ou beltrano. Esta abordagem, associada à questão etária, explorada por muitos como elemento diferenciador do meio literário, procura simplesmente minimizar a pensamento do interlocutor mais novo. Este sentimento deve ter razões do percurso sociopolítico a que alguns foram expostos. Parte desses deixou-se castrar a nível do pensamento, depois absorveram ideias inculcadas a escopro e martelo e, por isso, essa dificuldade em perceber que outros possam gozar livremente da capacidade de pensar e do direito a liberdade de expressão.