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A (im)precisão dos três mil pregos

Mirando, taciturno, os bramidos de um mar que é de per si um habitat natural de peixes e quejandos, espraia-se na incredulidade, partilhada com os seus, de conceber gases liquefeitos nas profundezas do mar mas a chuva de precariedade que lhe cai pelo teto descoberto alia-se à vozearia do seu servo que em cada fim de frase remata um «do mar, trarei três mil pregos» e deposita-lhes, então, uma súbita e religiosa certeza.

De numeracia precária porque dele os tocadores de flautas quinquenais só se recordam no fim de intervalos fechados de cinco invernos, fraturou o lápis porque da escola não mais faturou além do sétimo ano na sua localidade cujo nome não me ocorre (mas isso desinteressa, não é?). Gerada num fim de infância e início de adolescência pela actividade pesqueira e de garimpo, a sua numeracia não definia a exactidão deste três mil em pregos mas reconhecia-lhe a suficiência para cobrir o teto e assim acabar com os des(mandos) da chuva de precaridade absoluta.

«…patrão, ninguém faz tudo sozinho, virão aqui irmãos moçambicanos e estrangeiros para juntos extrairmos três mil pregos. É bom recebe-los com carinho porque iremos aprender muito com eles e poderemos, também, ensiná-los muita coisa…» Para Omar Quionga, de nome de nascença, registo e credo, ser chamado de patrão por quem, no organograma das ordens, está muito acima do régulo a quem presta vénia e um pouco abaixo de Alláh, fora qualquer coisa como uma flor que se agiganta em direcção à abelha para ser-lhe extraída o néctar. Isto, associado a um linguajar corriqueiro que se adentra em Omar numa promiscuidade de amantes consumidos pela volúpia, fita-se-lhe o peito, a alma e os olhos pregando-lhe uma atenção de lobista nesta sua espera por irmãos pretos e brancos que lhe trazem um número tão exacto quanto satisfatório de três mil em pregos.

Ler “Samsung Heavy Industries” num outdoor instalado nas imediações com o letreiro estampado num azul escurecido pelo tinteiro, deixou-lhe o coração liquefeito e mais ainda quando viu Mamadou Hassane pousado com manias de um lord numa viatura em que, dos ocupantes, só o preto da sua pele dava ares de diversidade tonal. Via-se, então, sôfrego em se desfazer da melindrosa vida de ter o teto descoberto e a mercê da chuva de precariedade absoluta.

Deitado de bruços com o olhar absorto num Rovuma que se demora em trazer aquele número exacto de três mil em pregos, que são seus por direito, poderia eu encetar-lhe uma conversa sobre o merecimento e braços para suportar tanta benesse, se Omar fosse matéria capaz de respirar, preencher vazios e se expressar fora do devaneio poético mas isso, também, desinteressa.

Enquanto isso não se materializa, cabe-me dizer-lhe, caro leitor, que Omar está ali deitado de bruços com o olhar num Rovuma que se demora em trazer aquele número exacto de três mil em pregos, com uma tira do caule de um arbusto seco na boca cantando Kihiene de Zena Bakhar e, ao cheio do mar, sobrepõe-se-lhe o da pólvora que, reconhecido pelo seu olfato, escancara o susto que lhe era insuspeito naquele seu estado zen.

«Omar Quionga…» antecipou-se, a treze passos, um dos três homens com armas em punho que em sua direcção se dirigiam e antes que Omar se desfizesse do susto e dissesse uma palavra, vê, ante seus joelhos, três papéis nunca antes vistos de uma só vez, com a imagem de Samora Machel estampada e no canto inferior direito lê-se “mil meticais”. Porque o receptor é também um emissor assintomático, Omar Quionga significou “três mil pregos” em três notas de mil meticais e o martelo que lhe faltava ganhou realização extratextual numa metralhadora AK-47, com pente moldado para uma munição de 7, 62 mm. «Allahu Akbar! Junte-se a nós. A outra parte terás depois do serviço em Macomia» acrescentaram os homens de armas em punho num corro, com o tenor e o baixo devidamente afinados como se tivessem proferido aquela mesma frase para outros 2999 Omares.

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