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ARTIGOS DE OPINIÃO

Cada quantum de luz que trespassa o meu ser

leva sempre consigo uma fracção do meu passado.

in a reinvenção do ser e a dor da pedra, Armando Artur

 

 

Armindo Mathe é poeta e ficcionista. A sua estreia em livro aconteceu em 2017, ao lançar dois livros distinguidos Prémio Literário TDM 2016, designadamente, Romaria: três dimensões do vento (poesia) e (Des)Contos do tempo (contos). Quatro anos depois de se apresentar aos leitores, o autor regressa às publicações com Mito erecto, proposta literária que evidencia a preocupação pelas substâncias indeléveis determinantes na composição do ser/ego.

O novo livro de Armindo Mathe é uma sequência de sobressaltos produtores do que Roland Barthes considera ser ascético, no seu Fragmentos de um discurso amoroso. Ou seja, ao exprimirem sentimentos e, simultaneamente, força anímica, os sujeitos de enunciação de Mito erecto investem numa conduta ascética de autopunição relativamente a quem se revelam. Partindo desta constatação, o lirismo transbordante forma uma declaração que se destina a uma entidade ideal, cuja presença aparentemente intangível concebe emoções desconcertantes.

Em Mito erecto, a interioridade do ser ascético (a colocação também vale no plural) se robustece em situações caracterizadas por alguma ansiedade causada pelo interesse de os eus poéticos concederem acção às palavras. Nesse hiato constante entre o impulso e a iminência, o poeta caminha sensível às reverberações subentendidas do verbo amar. Mas o amor, essa coisa romântica, deveras masoquista, à semelhança da proposição barthesiana, não se reduz ao objecto cantado (corpo/matéria, alma), o amor em si é o princípio, o meio e a finalidade. Logo, ainda que essa entidade invocada nos textos (à laia das velhas musas poéticas) seja ingrata, o exercício lírico tão-somente fortalece a paixão enquanto elemento de fruição.

Os sujeitos de enunciação de Mito erecto não se vêem isolados das impressões do coração que os persuade. Antes assumem um recurso anafórico ao nível do conteúdo textual, utilizando o esplendor da aurora, a quimera, o vento, a alma, o pôr-do-sol e os sentidos na aproximação à voz que se almeja ouvir. Quer isto dizer que, em Armindo Mathe, a poesia está fundamentalmente na possibilidade e na expectativa. O desejo, o sonho e a fantasia integram o substracto de uma aparente prescrição poética. Mas isso não é o que é decisivo na versificação do autor. Não fosse a imprecisão da palavra no sentido pretendido pelos eus poéticos, estas entidades seriam indiferentes quanto ao que Friedrich Doucet, em A psicanálise, designa centro psicológico da personalidade, isto é, o ego. Aí estão sintetizadas as particularidades gerais dos cultores da expressão. É na focalização das propriedades do ser/ego que se fortifica o conceito poético. O verso, em Armindo Mathe, é subterfúgio para se pensar as ocorrências passionais, a oposição e a consequência desses processos sobre ser-se inteiro com o outro.

Entre os registos que compõem o ser/ego no Mito erecto constam a saudade, a súplica e a fragilidade. A força criativa de Mathe revigora-se na fragilidade e no combate à carência. Ora, ao mesmo tempo que se verifica um ensaio contra a carência, percebe-se que com o amor correspondido de todo os sujeitos poéticos não existiriam. A instabilidade emocional é que os favorece. A contrição é sacra na mesma proporção que a idealização do beijo e do que isso significa. Portanto, mais do que amarem o objecto, os sujeitos de Armindo Mathe veneram as complexidades do amor, essas que, no caso, diria Solomon Marcus, tornam a poesia a manifestação de uma contradição entre o carácter flutuante de toda a significação lírica e o carácter discreto de toda a expressão linguística.

Mito erecto é, igualmente, um exercício sobre o instante que dura a separação implícita causada pela partida: “Na hora do adeus/olhos fechados./ Beiços da aurora/ cravada em minha garganta”; “De lábios fechados, vai! Nem adeus nem a Deus/ escreves-me um dia?/ Tenho saudades de ler-te”, (p. 32).

No instante da despedida se convoca o tempo, crucial porque aí os sujeitos poéticos querem se imortalizar, fazendo-se ouvir. O tempo é uma categoria estratégica para alongar a métrica do verso para lá da linha do horizonte, podendo, esse mesmo horizonte, propor o pretérito imperfeito ou o futuro.

Os sujeitos de Armindo Mathe interessam-se com o que não possuem e, sobretudo, por quem não têm consigo. Essa vocação possessiva contribui para a composição do ser/ego envolto à nostalgia, às lagrimas, ao sufoco e à incerteza: “Eis-me, mar! de ouvidos expostos à inquietude do meu eu, irrequieto.”, (p. 52).

Por analogia, Mito erecto é um livro que interpreta relações sociais e opções individuais, estabelecendo paralelismos, causas e possíveis efeitos. O verbo amar é, categoricamente, o centro de tudo, propondo, na verdade, que a composição do ser/ego depende do que os homens cultivam no coração.

Título: Mito erecto

Autor: Armindo Mathe

Editora: gala-gala

Classificação: 14

Li O nome da Rosa, obra de Umberto Eco, faz tempo. É um livro publicado em 1980 e que faz referência à época medieval, séc. XIII. Retrata um acontecimento bastante actual, o de que o saber, que não ocupa lugar e que é sempre necessário à humanidade, é algo que sempre separou águas.

Quem sabe muito, ou é isolado ou é ignorado, para que não sinta o poder que tem, sabemos isso e vemo-lo, em muitos lugares, um pouco por todo o mundo.

Saber é proibido. Sabemo-lo do que já lemos sobre a “Santa Inquisição”. Quem julgava saber, acabava punido a bem punido.

Punidos e imbecilizados foram os nossos antepassados africanos que, sendo os que inventaram a Matemática, criaram a primeira Universidade no mundo e criaram as primeiras técnicas de fundição de metal, entre outras descobertas científicas; em nome do apregoado “progresso industrial” ficaram reduzidos a pedintes e a ignorastes.

Hoje, por mostrarmos que é importante saber e fazer saber, por termos desvendado o véu do famigerado vírus, ficamos isolados do resto do mundo. A ciência é proibida aos africanos , até porque, como sempre se disse que a emoção é negra e a razão é helénica, portanto descobrir Omicron não é para todos. Nós só temos que tocar tambores e dançar ao sabor dos sábios.

Tão elevada é a helenicidade que recua anos e anos de desenvolvimento e de progresso científico, embargando voos, dividindo a humanidade, em nome de desconhecidas mutações de um vírus, ignorando os números de casos activos desses mesmo vírus, em lugares nos quais a helenicidade predomina.

É tal a helenicidade que se coloca de lado a ideia de que qualquer que seja hipótese científica, ela deve ser testada, até que se prove a sua validade, para que se chegue a alguma conclusão.

O saber é proibido aos africanos, tal como ler um livro numa biblioteca num mosteiro, em O nome da Rosa, tenha provocado mortes, por envenenamento, pois descobrir os saberes que estariam em tal Biblioteca, no mosteiro, seria ter poder, ter conhecimento do que não se desejava que fosse conhecido.

E assim é o mundo, quem sabe é castigado, tal como Eva que, tendo descoberto o sabor do fruto da sabedoria, ficou, até hoje, relegada a um ser de segunda categoria e equiparada a uma cobra.

O melhor na vida é ser se ignorante, já o sabemos. Mas o que melhor sabemos é que os medicamentos e a ajuda do ocidente para os países pobres são o melhor da sabedoria da humanidade.

Revolução significa construção, mas também implica sempre demolição.

in Perestroika, Mikhail Gorbatchov

 

A ciência da narrativa comprova que a personagem é um elemento imprescindível no universo da ficção. Definitivamente, cabe àquela entidade a acção da história materializada em determinados espaços. Se, por um lado, não existe um romance sem narrador, por outro, tem de haver personagem a realizar e/ou a sofrer acções.

Conforme entendem Ducrot e Todorov (1998: 210)[1], “a personagem é o sujeito da proposição narrativa. Enquanto tal, reduz-se a uma pura função sintática, sem qualquer conteúdo semântico. Os atributos, tal como as acções, desempenham o papel de predicado numa proposição e encontram-se ligados a um sujeito apenas provisoriamente”. No Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, os dois estudiosos prevêem que, além das várias formas de manifestação, o nome da personagem já anuncia as propriedades que lhe serão atribuídas. Yves Reuter observa que o nome é, realmente, fundamental para personagem, pois realiza várias funções essenciais: “Antes de tudo, o nome dá vida à personagem, fundamenta a sua identidade e a distingue das outras personagens, o nome remete a uma época ou espaço geográfico”, (Reuter, 2002: 101-102)[2], embora isso não seja, muitas vezes, assim tão inteligível.

Em parte, os apontamentos acima condizem com a descrição e a função da personagem Jei-Jei (nome inspirado no trombonista norte-americano J. J. Johnson), em Museu da Revolução, o mais recente romance de João Paulo Borges Coelho. Em Moçambique, a 14ª obra de ficção do escritor foi editada pela Texto Editores e, logo à partida, é um exercício de memória a interligar diversos fenómenos históricos, políticos, culturais e socioeconómicos. Nas 484 páginas do livro lêem-se as linhas do tempo que vão urdindo situações com momentos de avanço e recuo. Atentando o título do livro e os seus silogismos, de facto, fica evidente o contínuo interesse de João Paulo Borges Coelho em trabalhar as trilhas da História, afinal, ainda incipiente.

No livro há, certamente, um Museu da Revolução. No entanto, a exposição analógica entre o discurso ficcional e a realidade sobrepõem-se ao papel de uma infra-estrutura localizada na Avenida 24 de Julho da Cidade de Maputo. O Museu da Revolução, essa construção ideológica a convocar tempos de um stalinismo exacerbado, ao invés de enaltecer actos de coragem, sendo a coragem uma questão igualmente ideológica, precisou de ser restaurado com recurso à narração fictícia. É aí onde se encaixa o poder criativo de Borges Coelho. Pensando a História como uma série de eventos inesgotáveis, o escritor, numa desenvoltura como já não se via desde Rainhas da noite (2013), revigora o passado através de uma visão muito actual sobre os fenómenos. Ou seja, embora recue para lá da independência de Moçambique, o romancista não perde de vista a vocação de pensar o tempo presente, pois “narrar já é ‘reflectir sobre’ os acontecimentos narrados”, (Ricoeur, 2019: 103)[3]. Nesse exercício, claro está, o Prémio LeYa 2009 redefine a sua escrita na qualidade de um evento que se apropria da diversidade construtora de um território nacional.

As histórias de Museu da Revolução passam-se em vários pontos geográficos, começando no Japão. Esse é o país de Toichiro Yamada, condutor de um Toyota Hiace usado para transportar peixe, que, mais tarde, é importado pelo Coronel Boaventura Damião, um importante empresário moçambicano. O veículo chega a Maputo via Durban (África do Sul), para transportar aventureiros estrangeiros desesperados em acertar contas com o passado, como se fossem exploradores de A cidade perdida de Z (realização de James Gray). Entre essas personagens viajam na viatura a sul-africana Elise Fouché, o vietnamita Phuong e os português Artur Candal e Leonor Basto, conduzidos por Bandas Matsolo pelo país adentro. As histórias destas personagens cruzam-se reciprocamente com a de tantas outras e ainda constituem percursos a um imaginário moçambicano. Todas essas personagens são cruciais para o vigor do romance, contudo, há uma que, de longe, se distingue na construção da narrativa: Jei-Jei.

***

O status de Jei-Jei

No universo ficcional, as personagens são essenciais na organização das histórias. Elas não só garantem a realização das acções, como as assumem, as vivem, ligando-as entre si e dando-as sentido. Este posicionamento de Reuter (2002: 42-43) revela que quanto mais importante for a personagem, mais possibilidades tem de aparecer em certos momentos e de se encontrar com numerosas outras personagens. Pois bem, isso é o que acontece com Jei-Jei, em Museu da Revolução, que subverte os padrões de uma personagem tradicional. Em Moçambique, África do Sul ou Alemanha, territórios nos quais se locomove à vontade, acumula conhecimento demiúrgico sobre determinados episódios contados por um narrador homodiegético, isto é, que participa na história como personagem.

Imensuráveis são os eventos cardinais em que Jei-Jei, maroto às vezes, sobrepõe-se ao conhecimento do próprio narrador. Este cenário não deixa de ser curioso, pois, não obstante a importância de Jei-Jei, Museu da Revolução é uma história abrangente, na qual o protagonismo das personagens é continuamente partilhado. Ainda no princípio do romance, Jei-Jei é descrito da seguinte forma, pelo narrador: “Jei-Jei era prestável, boa pessoa, sabia inglês e mecânica, havia estado no estrangeiro. Além disso, talvez precisasse de um emprego. Quem melhor do que ele para o ajudar? Tudo isto contou Matsolo a Jei-Jei, e este contou-me a mim”, (p. 47).

No excerto, o narrador revela que não é omnisciente quanto à sucessão dos eventos à sua disposição. A sua órbita é restrita. Assim, ao introduzir Jei-Jei, esclarece imediatamente como depende da personagem. Por exemplo, na seguinte passagem, Leonor Basto despede-se do namorado, ansiosa em ir procurar e conhecer a mãe abandonada pelo pai algures no Centro de Moçambique:

 

‘A sério, vou viajar’, insistiu ela [Leonor].

‘Para onde?

Pela cabeça dele [o namorado de Leonor] passou alguma razão burocrática relacionada ainda com a morte de Francisco Basto, um assunto da escola, alguém doente que ela se dispusesse a ajudar, coisas assim.

‘Vou a África.’

Jei-Jei protestou, desta vez de viva voz. Leonor já sabia que vinha a Moçambique. Retorqui que era sempre assim, os estrangeiros tinham dificuldade em referir os países africanos um a um, falavam sempre no continente como se fosse uma entidade singular (p. 189).

 

O que se lê nessa passagem denota influência da personagem sobre o narrador. Em outras palavras, quer isso dizer que Jei-Jei é mais do que um sujeito da proposição narrativa, reduzida a uma função sintática, sem qualquer conteúdo semântico. Jei-Jei ultrapassa a extensão do discurso, ora cronológico, ora anacrónico. Destarte, apenas ele tem o grande privilégio de se aborrecer com o narrador, de o contrariar, corrigir, elucidar ou informar sobre situações por ele desconhecidas. O poder ulterior daquela personagem sobre o universo diegético é deveras evidente, de modo a que o narrador não tem receios em anunciar que certas ocorrências foram-lhe contadas ao telemóvel por Jei-Jei. É esta personagem responsável por fornecer a matéria-prima ao narrador que, mesmo estando inserido no tempo e nos espaços da ficção, mal consegue suprir determinadas limitações. Claramente, o narrador homodiegético possui a liberdade no exercício da linguagem, daí a faculdade de manipulação discursiva segundo o seu próprio critério. Graças a essa emancipação, com efeito, o narrador também contradiz Jei-Jei, quando este parece descrever factos “imprecisos”. Portanto, ambas as entidades constroem o enredo em colaboração, com a personagem a aspirar ser narrador e este vestindo a capa de personagem:

 

Posto de outra maneira, a certeza de que Jei-Jei necessitava das histórias que criávamos para explicar tudo aquilo que acontecia foi perdendo força, transformada aos poucos na constatação do seu inverso, que julgo já de alguma maneira ter referido, de que era eu que necessitava dos acontecimentos que ele trazia para alimentar essas histórias (p. 474).

 

Na verdade, embora no fim da história Jei-Jei apareça, de certo modo, desinteressado, ele tanto precisa do narrador quanto este dele. A conexão entre as duas entidades textuais garante ao romance um vigor estético-literário. Não é o enredo em si ou as situações sobre a História de Moçambique o que mais vale, é a criatividade enunciadora em sintonia com a apropriação dos lugares e de figuras históricas. Se Borges Coelho ficciona João Albasini, em O olho de Hertzog (2010) e Samora Machel, em Crónica da Rua 513.2 (2006), em Museu da Revolução chegou a vez de trabalhar os registos de Ricardo Rangel e Eduardo Mondlane. Ao torna-los personagens do seu romance, o escritor, de alguma maneira, combate o esquecimento, reavivando essas distintas personalidades moçambicanas.

Ora, há outras ocorrências do Museu da Revolução em diálogo com obras anteriores de Borges Coelho. Por exemplo, a forma como o espaço social é configurado na alusão à Cidade de Lourenço Marques e, depois, Maputo, é uma continuação do que o escritor faz na novela Hinyambaan (2008). Nos dois casos, Borges Coelho coloca cidadãos estrangeiros a apreciarem a capital moçambicana, considerando dois momentos diferentes: antes e depois da independência de Moçambique. Em Hinyambaan, na avaliação, destacam-se as famílias Odendaal e du Plessis e em Museu da Revolução Artur Candal. Aí estão outros ângulos na apreciação do espaço urbano real, no entanto, com recurso à visão de seres imaginários. João Paulo Borges Coelho investe tanto na configuração do espaço quanto na caracterização das personagens. Logo, as viagens por África, Ásia e Europa internacionalizam o mapa literário do autor.

Voltando ao narrador, o seu estatuto homodiegético e as intrusões permanentes conferem uma pacífica ligação entre quem narra e quem lê, logo, entre os universos ideal e real também. No caso, as intrusões não servem apenas para acrescentar eventos secundários, mas também para refrescar a memória do leitor relativamente a acontecimentos antes enunciados. Em termos de futuro, tão-pouco sobeja o que dizer quanto às intrusões. Afinal, a viagem no Toyota Hiace (uma bela maneira de inventar coerências à volta da importação de viaturas japonesas pelos moçambicanos)  por diversas campanhas sociopolíticas e geográficas de Moçambique acontece ao ritmo de Jei-Jei. Quando esta personagem se farta de contar ao narrador o que se passou com outras personagens no regresso de Tete a Maputo, o narrador percebe que já não há mais nada a dizer. A história fica estagnada nesse exacto momento. O narrador até improvisa, porém não consegue prosseguir. Estando no universo diegético, sai da sua zona de conforto e vai ao Museu da Revolução procurar por Jei-Jei. Ali pede para a personagem iluminar zonas de penumbra. Jei-Jei, gozando do seu status, contraria a ansiedade do narrador e este poe-se a despedir-se sem esconder o desejo de continuar a contar.

Abreviando, Jei-Jei, ao cumprir a função prevista pela narratologia, extravasa a dimensão de personagem comum. Jei-Jei é a fonte, a ligação entre as outras personagens (que, algumas, o narrador nem sequer conhece) e o próprio enunciador do discurso; é a ponte entre espaços geográficos, entre figuras e momentos históricos. É ele o pretexto para a alusão aos percalços dos madgermanes, regressados da Alemanha, ou às excentricidades do Apartheid, na África do Sul. Enfim, se, segundo Benjamim (1987: 54), “escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo”, em Museu da Revolução está claro que João Paulo Borges Coelho valida essa asserção.

 

Título: Museu da Revolução

Autor: João Paulo Borges Coelho

Editora: Texto Editores

Classificação: 17.5

 

[1] Ducrot, Oswald e Todorov, Tzvetan (1998) Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, 3ª ed. São Paulo: Perspectiva.

[2] Reuter, Yves (2002) A análise narrativa. Rio de Janeiro: DIFEL.

[3] Ricoeur, Paul (2019) Tempo e narrativa 2: a configuração do tempo na narrativa de ficção. São Paulo: VMF Martins Fontes.

 

Eu tenho um sonho/ Uma canção para cantar

Que me ajuda a enfrentar/ Qualquer coisa

Se você vê maravilhas/ Em um conto de fadas

Você pode agarrar o futuro/ Mesmo se você falhar.

in “I have a dream”, ABBA.

 

ABBA é o nome do grupo sueco de música pop muito agradável de se ouvir. Fundada por Agnetha Fältskog, Björn Ulvaeus, Benny Andersson e Anni Lyngstad, em 1972, na Cidade de Estocolmo, o quarteto musical conseguiu ultrapassar fronteiras escandinavas e impor-se em vários cantos do mundo, incluindo Moçambique. Quem não vibrou ao som de “Mamma Mia?”. Esta é uma das composições mais conhecidas do grupo, à imagem de “Chiquitita” e “I have a dream” (interpretada pelos Westlife 20 anos depois da versão original), duas músicas que integram a trilha sonora da peça Um almoço simples em Vällingby, com direcção de Manuela Soeiro.

A música dos ABBA é tocada de forma oportuna na peça radiofónica, pois, tem a delicadeza de conduzir o ouvinte a um certo instante do passado, lá onde Eduardo Mondlane se reuniu com Olof Palme. Pode parecer ficção, mas esse encontro entre os dois políticos, realmente, aconteceu na cozinha da casa do político sueco, em Vällingby, subúrbio de Estocolmo. Para muitos, esse é um evento desconhecido, embora se saiba que a Suécia apoiou a independência de Moçambique. Quiçá, por essa razão, Henning Mankell escreveu uma peça que ficciona o encontro entre Mondlane e Palme longe dos habituais holofotes diplomáticos.

Na versão moçambicana, com efeito, a peça radiofónica dura 39 minutos fugazes, suficientes para Eduardo Mondlane (Jorge Vaz) e Olof Palme (Adelino Branquinho) apresentarem lições para a vida política actual – com tanta gente quadrada – e aos homens de todas as cores, sobretudo quando realçam que o que nos une são as semelhanças, e não as diferenças. Este cenário parece utópico, algo desacertado ou surreal. Por isso, o então líder da FRELIMO pergunta ao social-democrata sueco. – Como vamos conseguir unirmo-nos à volta de alguma coisa, neste mundo, quando nem o aspecto do céu estrelado nos une?

A pergunta de Mondlane é feita num ambiente muito informal, imagine-se, Palme fritando salchichas, batatas e ovos, um almoço sueco comum, para servir ao seu hóspede. Durante a cavaqueira, pode-se ouvir o líder da FRELIMO expressando a sua admiração pela Suécia, um país que, no tempo da história (1962), ultrapassou problemas relacionados com analfabetismo. Entre vários pontos de discórdia, ambas as personagens concordam que é possível construir um mundo livre de violência. Logo, Um almoço simples em Vällingby é, também por isso, uma peça onde se cruzam sonhos intercalados com um debate ideológico eloquente. Nesse momento específico da conversa, lá se ouve “I have a dream”, de ABBA, uma composição de esperança a unir os dois políticos numa ideia de futuro. E esse futuro pode ser a actualidade. Logo, a conversa entre Mondlane e Palme, explorando temas como racismo, colonialismo, tradição, identidade, sonhos e, sobretudo, liberdade, é assaz lúcida para construir em cada território humano (interessado) a paz e a concórdia tão ausente num mundo cheio de tensões.

Na peça, adivinha-se um Palme desinibido, talvez por estar em sua casa, e um Mondlane, em alguns momentos, comedido, todavia capaz de expressar os seus propósitos em torno da luta armada pela independência de Moçambique. Nessa questão, Mondlane não deixa de referir ao projecto de justiça ou de sociedade justa para Moçambique.

No entanto, não obstante o respeito recíproco, a conversa na cozinha não esbanja em falsas unanimidades e tão-pouco em vivas ou abaixo. Os dois políticos tanto concordam quanto discordam, sem nunca abandonarem a retórica (e a sensatez), recurso refinado de persuasão/ dissuasão. Por exemplo, numa passagem em que Palme diz que a Suécia está a caminho de uma sociedade justa, Mondlane lembra: “Não nos podes comparar a um país independente há séculos, que nunca teve colónias e que nunca foi colonizado. Vocês não têm uma guerra há 150 anos”. O líder da FRELIMO termina a frase com alguma perturbação. Tácita, é verdade, mas simultaneamente audível. Ora, ninguém se envaidece com isso. Pelo contrário, cada um dos políticos tem o seu momento de oposição.

Depois de Mondlane o ter chamado ingénuo, numa circunstância que humaniza essas duas grandes figuras do século passado, Palme riposta: Nesse caso, o ingénuo és tu, Eduardo. Não acredito que seja possível uma justiça absoluta numa sociedade democrática. Para isso, é preciso imposição, imposição ditatorial. No entanto, é possível atingirmos uma sociedade justa, sem perdermos a liberdade. É nisso que reside a base das minhas convicções políticas. Por isso sou social-democrata. E, por isso, me afastei do comunismo totalitário.

A seguir, Mondlane diz o que não parece um juízo próprio, mas imposto: – Não acredito que haja um futuro para Moçambique sem uma direcção comunista, depois de termos expulso os portugueses, claro. A ser proferida por Marcelino dos Santos, Jorge Rebelo ou Samora Machel, a frase convence. Entretanto, por Mondlane, há uma incerteza que paira no ar. Seja como for, mesmo quando há divergências, a peça radiofónica lembra que o mais importante entre as pessoas é o respeito mútuo. O “revolucionário” e o reformista, durante o almoço, afiam argumentos e não facas e ainda demonstram como a palavra pode ser bonita, quando bem usada.

Na peça estão representados políticos iluminados, viajados, cultos, equilibrados e de mentalidade aberta, tão difícil de encontrar actualmente. E como excelentes políticos, Mondlane e Palme agitam águas sem gerar tempestades inconsequentes. Afinal, como os ABBA, as personagens interpretadas por Branquinho e Vaz acreditam em anjos se assumirmos que os seres celestes personificam tudo de bom em todas as coisas que se vêem ou sentem-se.

Portanto, Um almoço simples em Vällingby é mais do que uma peça radiofónica de ficção, é uma experiência incisiva sobre o passado de Moçambique, sobre as relações entre Moçambique e Suécia, produzida de tal forma verosímil que é impossível o ouvinte não pensar no poder transformador da arte.

Na voz de Jorge Vaz e, principalmente, de Adelino Branquinho – actor de classe mundial num país pobre – Um almoço simples em Vällingby alimenta a alma e o Homem com conhecimento, elegância e arte nas palavras. A peça é radiofónica, certamente, entretanto, cheia de imagens. As personagens, com efeito, conseguem preencher espaços e momentos vazios e dar clima e movimento às coisas. Um almoço simples em Vällingby é uma peça categórica, na qual a simplicidade descodifica os mais complexos fundamentos do mundo contemporâneo. É do melhor que se pode levar à rádio, pois, ao mesmo tempo que a peça enaltece duas figuras históricas pertinentes, reverbera as peculiaridades da arte.

Ouvir Um almoço simples em Vällingby pode ser uma maneira lúdica de pensar Moçambique e o mundo através das memórias de duas figuras políticas que não merecem ser asfixiadas pela História (oficial).

 

Título: Um almoço simples em Vällingby

Texto original: Henning Mankell

Direcção: Manuela Soeiro

Peça radiofónica

Classificação: 17

Recrutamento é um processo da área de recursos humanos que visa a partir de um conjunto de técnicas e procedimentos atrair o candidato ideal para a organização. Embora tenhamos a impressão que seja apenas uma parte ínfima deste departamento, tenho a convicção que o sucesso de qualquer organização depende essencialmente do bom desdobramento deste processo. Quando as organizações recrutam os candidatos compatíveis  com a mesma, o nível de *turnover é relativamente baixo e o nível de motivação dos colaboradores é consideravelmente elevado.

 

Critérios para um recrutamento eficaz

 

Cada recrutador ou organização estabelece seus próprios critérios para atrair os melhores candidatos que o mercado oferece. Os critérios variam e não acredito que uns critérios sejam melhores do que os outros, pois dependem do tipo de candidato que se pretende recrutar mas também da organização que o pretende recrutar.

 

De uma forma geral diria que para atraírem candidatos as organizações utilizam frequentemente as famosas ofertas de emprego clássicas, onde os anos (cinco, dez anos) de experiência num domínio específico, o nível acadêmico (ultimamente mestrado) são os critérios de destaque e por vezes exigência de conhecimento de um software específico comprovado. Para muitos recrutadores as ofertas clássicas de trabalho constituem a base única para atrair e selecionar os melhores candidatos. A minha experiência me permite dizer que  estes critérios servem para eliminar prematuramente potências bons candidatos. Não obstante o facto de também continuar a utilizar, em certa medida, tenho me apercebido que a maior parte das ofertas de trabalho descrevem um modelo de candidato ideal para ocupar um certo posto indicando o que o candidato deve ter e não necessariamente o que o candidato deve fazer para  atingir os resultados esperados. Acredito que nada garante que mestrado ou dez anos de experiência possam trazer resultados pretendidos pela organização. Mestrado é apenas um título, não uma competência. E no que concerne a anos de experiência; não será mais experiente o candidato que em  dois, três anos passou por duas grandes organizações, efectuou tarefas distintas e que foi liderado por dois gestores com modelos de gestão completamente diferentes, em detrimento do candidato com dez anos de experiência na mesma organização, com conhecimento de apenas um ano repetido dez vezes? Acredito fortemente que sim. Praticamente a mesma reflexão sobre conhecimento de um software determinado, se um candidato já tenha trabalhado com algum software (similares) no passado, aprender o funcionamento de um novo não poderá ser assim complicado. Pois não?

 

Não estou aqui a dizer que experiência e formação acadêmica não são critérios a serem tomados em conta, acredito apenas que a presença destes critérios  nas ofertas de trabalho impedem  automaticamente certos  potenciais candidatos ideais as organizações de se candidatarem. As organizações não (deviam) procuram(r) candidatos com mestrado, as organizações (deviam) procuram candidatos capazes de fazer o trabalho desejado de modo a atingir os seus objetivos. Colocar mestrado na oferta de trabalho como critério de seleção é uma suposição de que os candidatos com este nível acadêmico reúnem condições para fazer o trabalho corretamente. Mas cá entre nós, sabemos que nem sempre é o caso. Sendo assim, porquê então não se dá oportunidade a outros candidatos?

 

Ofertas de trabalho clássicas que indicam frequentemente o que os candidatos devem “ter” para atingir os resultados esperados e não o que devem “fazer” para atingir os resultados.  

 

Imaginemos um Director de Recursos Humanos de uma grande organização (STV por exemplo), que durante sua carreira tenha feito parte do conselho de administração da organização, tenha representado a organização em vários encontros de negócio internacionalmente, tenha sido um dos conselheiros do CEO na tomado decisões ligadas à saúde financeiras da organização e que simplesmente porque não tenha Mestrado em Gestão de Negócios não possa concorrer a uma vaga como CEO da mesma organização ou de uma outra organização. Não será um absurdo? Dizemos muitas vezes que é difícil encontrar certos quadros para certas áreas, mas eu acredito que são muitas vezes os nossos critérios e a nossa fraca qualidade de recrutamento que nos impedem de os desenterrar.

 

Meu sobrinho Yuri disse outra vez, tio quero me formar em óleo e gás, quero mesmo fazer mestrado nessa área. A minha pergunta foi, o que é se formar em óleo e gás? Porquê escolher essa área? A resposta foi, porque é o que está a “bater”.  Não acredito que seja este tipo de candidato (com mestrado) que as organizações procuram. “Claro que depois de alguns conselhos do tio sobre orientação profissional, o jovem optou por outra via mais adaptada à sua personalidade e competência”.  

 

                                               Como detectar os melhores candidatos

 

Muitas vezes acreditamos que os candidatos são os únicos que devem estar preparados para as entrevistas de trabalho. Pois os recrutadores devem estar mais preparados do que os candidatos para a entrevista.  Certamente que o caro leitor já esteve em entrevistas de trabalho e que pela fraca qualidade do recrutador, o caro leitor tenha perdido interesse em fazer parte da organização ou mesmo tenha se apercebido que não aprendeu nada durante o encontro. Estes são alguns dos sentimentos que temos quando  os recrutadores não se preparam para o encontro.

 

Um recrutador mal preparado causa uma má impressão da organização e pode ser motivo para que alguns candidatos não queiram continuar com o processo, um recrutador mal preparado não faz as melhores perguntas para tirar o melhor do candidato. Uma boa preparação para detectar o melhor do que o mercado oferece é primordial. Para começar devemos enquanto recrutadores estar emocionalmente preparados para não nos deixar influenciar pela primeira impressão: acreditamos geralmente que a primeira impressão é que conta, pois não. Esta pode ser enganadora. E o que normalmente fazemos quando nos baseamos na primeira impressão é nos comportarmos com o candidato para confirmar essa primeira impressão. Fazemos perguntas difíceis para confirmar que o candidato não é qualificado ou fáceis para confirmar que o candidato se encaixa. Organização do espaço:  a ideia deste meeting (prefiro chamar assim ao invés de entrevista)  é poder tirar o melhor do que o candidato possui, daí que o mesmo deve se sentir o mais à vontade possível. Para isso temos de preparar o espaço de modo que estejamos ambos em pé de igualdade, de preferência numa mesa de formato  redondo. Meeting e não entrevista: devemos preparar as nossas questões de modo que o candidato não se sinta num interrogatório, mas sim em uma conversa amigável. Descrever o trabalho e o funcionamento da organização: uma descrição mais detalhada do trabalho por parte do recrutador ao candidato, lhe permite ter uma ideia mais clara das tarefas e assim poder responder as perguntas com melhor conhecimento, mas também lhe permite trazer elementos novos que o recrutador não imaginava questionar.

 

Para selecionar o candidato ideal capaz de fazer o trabalho e atingir os objectivos da organização, o recrutador deve preparar perguntas que o permitam detectar o Talento: que é a habilidade para fazer o trabalho, não me refiro aqui apenas a saber fazer exatamente o que a organização quer que faça, mas a habilidade comprovada em tarefas similares; Auto-gerenciamento: que é a capacidade de gestão de tempo, disciplina, capacidade de organização e planificação, cumprimento de prazos acordados;  Inteligência emocional: que é a capacidade de trabalhar e se relacionar com os outros; Habilidade de pensar: que é a capacidade de percepção e de resolução de problemas; Motivação: para fazer o trabalho; Cultura organizacional: significa que o candidato deve estar alinhado com os princípios, ritmo, ambiente, missão e valores da organização; Adequação ao gestor: permite aqui perceber se o candidato poderá facilmente trabalhar e se adaptar ao estilo do seu superior hierárquico. (matéria a desenvolver num posterior artigo “recrutamento 1.2”)

 

Bem preparado o encontro com vista a obter estas informações, o recrutador estará no final, em condições de tomar a melhor decisão sobre o candidato ideal para organização. Os diplomas, experiência, assim como conhecimento de um software específico podem servir para reforçar a decisão. Podem indicar em certa medida que por ex: o candidato se projeta no sector pelo facto de adquirir o mestrado no domínio ou mesmo que seja apaixonado pelo trabalho pelo facto de permanecer no mesmo sector de actividade por muitos anos. São nesta altura, dois critérios a serem tomados seriamente em conta na tomada de decisão sobre o candidato ideal. No entanto, quando servem de critério de eliminação, impedem candidatos potencialmente ideais de se apresentarem e consequentemente perdemos a longo prazo o melhor que o mercado oferece em termos de Recursos Humanos por desmotivação. EU ACREDITO EM NÓS.

 

* Turnover- Termo da língua inglesa que significa “renovação” frequentemente utilizado na área de Recursos Humanos (RH) para designar a rotatividade de colaboradores em uma organização.

Recomendação de livro para o mês de Setembro 2021: Poder da Mente  – “Agostinho Leveique”

Samuel Gerson Andrisse

Especialista Internacional em Recrutamento

Autor do livro “Be ready for your next job interview”.

www.kensyle-recruitment.com

Escrever é um acto solitário (excêntrico, talvez): todos sabemos. O autor na sua poltrona de criação artística cria imagens, sentidos, visões e faz uma desconstrução da palavra para exorcizar fantasmas individuais que podem ou não ser do seu tempo e meio.

Jeconias Mucumbe toma este apanágio da arte de escrever e o interioriza como quem deu ouvidos aos apelos de Nicanor Parra no seu poema “cartas do poeta que dorme numa cadeira”[1] em que é possível ler:

“Jovens

Escrevam o que quiserem

No estilo que acharem melhor

Já correu sangue demais por baixo das pontes

Para continuar acreditando – acredito

Que só se pode seguir um caminho:

Em poesia tudo é permitido.”

 

É esta apropriação de “tudo” que Jeconias Mocumbe faz na sua nova proposta literária intitulada “Calvário e a cruz _ antologia híbrida”. Diga-se, contudo, que a leitura que Heribelto Yépez faz do contributo de Parra na literatura chilena (e não só) segundo a qual “através deste poeta, o sarrafo para algo ser considerado poesia ficou mais baixo” não se aplica na escrita de Mocumbe porque há neste último uma exploração da imagem até a exaustão e uma metaforização algo surreal que voltaremos a fazer menção nas próximas linhas.

Por ora, saibamos que Jeconias Mocumbe, pseudónimo de Edilson Sostino Mocumbe, nasce em Xai-Xai, província de Gaza, e reside em Inhambane Céu. É co-mentor do Projecto Tindzila, um conjunto de jovens oriundos de diversas zonas do país, com sede em Inharrime (Inhambane) cujo principal objectivo é unir fazedores e/ou entusiastas das artes (com maior destaque para a literatura) para a promoção da cultura de leitura, do livro e dos seus fazedores. Na qualidade de membro deste agrupamento, Mocumbe exerce funções de Secretário-geral e administra o blog com a mesma denominação. Formou-se em Ciências Policiais pela ACIPOL (Academia de Ciências Policiais em Moçambique). É co-editor e revisor do Jornal Missão do Agente-Inhambane. Estreou-se em livro numa co-autoria com Joel Caetano no livro “Espiritualidade Poética” publicado pela Editora Kulera, em 2020.

Dividido em três cadernos, a saber: (1) o humano sob a máscara, (2) caderno de premonições e (3) geografia da folha híbrida,“Calvário e a cruz _ antologia híbrida” apresenta-se como um exercício de exploração dos limites da metáfora, havendo, nesse processo, momentos em que ela própria (a metáfora) são lhe apresentados os seus vícios enquanto forma de codificação discursiva. De facto: se por um lado existem livros que tomam o leitor como imbecil a ponto de fornecerem informação desnecessária e que se resvala pela prolixidez, por outro, livros há que ou sobrevalorizam o leitor ou o seu autor não liga a mínima para uma possibilidade de haver alguma interatividade entre o leitor e a obra, correndo assim o risco de se tornarem incompreensíveis.

Uma parte destas reticências pode observada em:

Escrevo-te. Papá. Não como escrevi à mamã.

Escrevo-te na sombra dum arbusto qualquer. Com o rabo dolorido. Acho que padeço de dores de bunda. En­trincheirado. E cheirando a rato. O bronze do sol a pe­sar sobre o bucho do ombro. Estou nesta dimensão da carnificina húmida e é fétida que zumbi como a urina de um alfinete. (p.13)

 

De uma forma ou de outra, Mocumbe dá sinais do seu engajamento com a estética e anseios da geração que começa a publicar depois do ano 2000 por pretender experimentar outras texturas e outras cores que dão ao leitor a possibilidade de fazer uma leitura mais universal e atemporal daquilo que se escreve em Moçambique. Sobre este aspecto, refira-se que não é totalmente novo no cenário literário de Moçambique porque poetas como Luís Carlos Patraquim, Rui Knopfli, Glória de Sannt’Anna, por exemplo, já se tinham posicionado neste sentido, havendo, porém, algum sentimento de descompasso ante os anseios literários da altura, o que chega a ser exorcizado em poemas tal como Knopfli o fez no seu “cântico negro”, no qual lê-se:

“Não submeto a dureza agreste do que escrevo

Ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.

De alguns. De poucos. De um só se necessário for.

Tenho esperança porém; um dia compreendereis

o significado profundo da minha originalidade”

Ao seu jeito e modo, Mocumbe, como se estivesse nutrido do mesmo sentimento de descompasso, diz:

E ninguém entende este sotaque de poemas. Que fede. Um horror para os críticos da minha época. Estou a ser adiado nos convéni­os de lançamentos de novos génios. E não fico triste. É para o futuro que escrevo. (p: 12)

 

Indiscutivelmente, inscreve-se aqui um intertexto que mesmo não sendo intencional aproxima dois textos e dois poetas de gerações distantes (uma da outra). Diferente deste caso (quiçá) involuntário, nota-se em “Calvário e a cruz _ antologia híbrida” uma alusão aos contemporâneos de Mocumbe com que deve partilhar espaços, tempos e, talvez, vivências: é o caso de David Bene, Oscar Fanheiro, João Baptista Caetano Gomes e Hirondina Joshua. Para esta última, cabe dizer que a alusão ocorre através da menção ao seu livro “os ângulos da casa” que embora tenha sido de forma subtil, o facto de a construção sintáctica que intitula o livro estar patente em dois textos (o da página 25 e o da 42, respectivamente) já é um indicador assintomático de um diálogo com esta jovem poeta. Ainda no texto da página 42, notabiliza-se a premissa segundo a qual o intertexto não só ocorre entre textos literários: a referência que se faz do filme “Cinquenta tons de cinza” de Sam Taylor-Johnson e ao saxofonista e flautista Kenny Garret são prova disso. Mais adiante, na página 49, revela-se a evidência de que o autor, em algum momento, lera o texto autopsicografia de Fernando Pessoa ao parodiar a célebre frase “o poeta é um fingidor” através do acréscimo do adjectivo “inútil” e passa-se a ler “o poeta é inútil fingidor”.

Portanto, nesta escrita híbrida que se inscreve(u) _ no meu exercício de leitura _ numa metaforização do self mocumbiano nota-se também um questionamento existencialista que desdiz o maior argumento de todas as religiões: Deus e vida após a morte, como se pode ler em:

Agora rezo a ela como um Deus que não con­heço, não apalpo, não o sinto. Dogmático. E terrorista. No outro plano. Nem inferno, nem paraíso me esperam. Alguém contra? Levante a mão quem já esteve lá. Di­ga-me como é que é a máquina opressora por lá. Pois do pouco que sei, no além, existe apenas o indizível. (p: 30)

 

É, no entanto, curioso e revelador da prova de fé que devemos votar à frase popular que diz “ainda que seja questionado, Deus é chamado em horas de aflição”, o facto de no texto da página 30 apresentar-se-nos um sujeito poético questionador e que duvida da existência divina e, em contrapartida, ler-se nos textos das páginas 62 e 64, respectivamente, os seguintes versos:

meu Deus, se te escrevo

o amuo se inscreve na sombra (p. 62)

 

meu Deus! Tenho que aniquilar

o poeta em mim primeiro. (p: 64)

 

A despeito deste sujeito poético com um lirismo votado ao questionamento, à expurgação da alma, ao retrato dos próprios devaneios poéticos e não só, denota-se neste livro que na alma do poeta cabe o amor e a contemplação do esplendor que a natureza e a vida dão. Vejamos este aspecto em:

Em todas manhãs, mamã, que lhe cai­ba uma teia de euforia para adornar os teus seios de quietude intranquila. _ Que seja. Também amo a cor-de-rosa que me ensin­aste a contemplar no perfume das tuas vest­es. Amo o vermelho das rosas que nunca as tiveste. E é por esses cardumes que afio a es­perança do país. (p: 9)

 

E nada é tão aterrorizante que saber que a lua hoje não desce a cascata. (p:15)

 

A estrela por vezes galga o mar. A mulher às vezes é ap­enas uma sombra que se esconde no próprio terror. (p:16)

 

Embora Mocumbe faça um exercício metapoético no já aludido texto da página 12 em que olha para os “outros” de soslaio como quem “não está alinhado”, há neste seu “Calvário e a cruz _ antologia híbrida” uma característica que o aproxima profundamente desses “outros” e do que actualmente se escreve e se publica em Moçambique que é a escrita aforística. Vejamos:

 “o zíper da calça esconde segredos de origem” (p: 23)

“a nu­vem que chora torna o piso dos objectivos mais mole.” (p: 23)

“o passado é a trilha sonora do presente” (p: 25)

“a vida é assim, uma vez a outra, tens uma saudade oculta nos ombros” (p:67)

“o que inscreve o tempo na parede não passa de um arrasto de silêncios” (p: 97)

 

Em linhas gerais, de si para si e de si para os seus, Mocumbe dá asas à imaginação para descrever a profundidade do sentimento, a ligeireza da plenitude da vida e as oscilações da alma que não cabem no verso e se promiscuem com a prosa. Afinal, já o disse Baudelaire na sua carta ao Arsène Houssaye no livro “Pequenos Poemas em Prosa”:

“qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”

Este exercício que se materializa neste “Calvário e a cruz _ antologia híbrida” de Jeconias Mocumbe é bastante útil para os poetas do ponto de vista de expurgação dos seus próprios devaneios e, por outro lado, para um leitor que se encanta com uma leitura pré-textual porque esta metaforização do self, ainda que seja involuntária, dá sinais de outra promiscuidade, mas desta vez, entre o homem e o poeta.

[1] Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet

Enquanto o Pablo entretinha-se a esmurrar fantasmas aproximava-se a época do carnaval. Era um momento por que a maioria dos habitantes da cidade e dos subúrbios ansiava. Organizavam-se bailes nos grandes clubes da capital, como nos pavilhões do Sporting e da Malhangalene, sem falar noutras agremiações de não menor estatuto, como o Clube dos Engraxadores, o Centro Associativo, a Casa do Porto, a Associação de Auxílios Mútuos Gazense e a Casa dos Funcionários. Era, enfim, mais um pretexto para novos convívios e outras confraternizações.

Outros não iriam aos clubes, mas aglomerar-se-iam nos passeios da Avenida de Angola que, nessa época, se engalanava para receber forasteiros provenientes doutros bairros.

Os passeios e os terrenos adjacentes à Avenida de Angola ainda acusavam a severidade das chuvas recém-caídas. O chão acusava aqui e ali algumas poças de água que o calor de um sol tímido procurava secar.

O baile da pinhata no pavilhão do Sporting foi o toque de chamada ao início das festividades.

Naquele sábado de carnaval era só ver cortejos de gente, compactos  e alegremente ruidosos a despontarem de todos os caminhos em direcção ao bairro Indígena que, curiosamente, se transformara no epicentro das celebrações. Era a sacristia onde muitos iriam tributar a sua homenagem à amizade, onde iriam iniciar-se novos relacionamentos. Foliões trajados de coloridas vestimentas passeavam a sua classe nas pistas do areal. Uns vestiam-se palhaços, de almirantes-marinheiros a navegar em docas secas; piratas de espadachins de madeira e chapéus caprichosos a dar tréguas aos marinheiros de mar alto;  de diabos que desceram à  terra  em missão de justiça. Outros tinham os rostos ocultos por máscaras; eram Zorros elegantes e corajosos, Mandrakes prestidigitadores de varinha mágica e cartola para transformar o destino dos mortais; outros ainda coloriam as peles com aguarelas multicores, arco-íris  ambulantes a colorir a tarde de festa. Outros mais, sem as mesmas porque já nada tinham para esconder ou imitar. Todos; porém, presentes na roda partilha da alegria comum dum tagarelar descontraído, de trocar historietas do quotidiano, ao encontro dalgum elo de unidade entre os residentes dos diferentes bairros. Camiões  cedidos à borla pelos cantineiros _o tempo era de generosidade, e também o orgulho do seu bairro em competição com os demais_ carregavam grupos de foliões, bandas musicais de ocasião muito ruidosos, e cantores de vozes sofrivelmente timbradas, mas nem por isso menos alegres, espalhavam notas de canções ensaiadas durante meses para abrilhantar a festa. Sobre a bagageira do camião cedido pelo cantineiro Suzarte, a rolar lento no asfalto, o grupo da Mafalala, do qual se destacavam o vocalista  “Bode” Mordicai que, com aquela voz de caprino muito característica, alucinava as multidões; o Antoninho “Gaita” na harmónica de boca, o Habibo “Gargalhada” no tamborete, o Hassane “Esqueleto Humano” no pandeiro, o Gulamo “Coiote” no violão e, finalmente, o guitarrista-mor Salimo “Makhôfu”, executava o sempre presente hino dos carnavais:

 

   Madureira chorou **

   Madureira chorou de dor

   Quando a  voz do destino

   Obedecer ao divino

   A sua estrela chorou…

 

O agrupamento do Xipamanine, “Os Jovens do Guro”, cujos elementos desfilavam mascarados, na viagem de volta para o Alto Maé, tocava o seu samba predilecto:

 

Quando passo pela rua

    Todo o mundo me vê

   Todo o mundo dia bondia

   Todo o mundo menos você

 

Ao longo das bermas da estrada os foliões esperneavam passos de samba, genuínos bi-modais, à moda brasileira.

As multidões envolviam em círculos os executantes de diversas habilidades. Aquelas fervilhavam desde o Jardim Gouveia até ao cinema Império, passando pelo restaurante Vasco da Gama, pela cantina do Suzarte, pelo forno crematório e pelo “Justo Menezes”. Cada um transportava e lançava ao ar serpentinas multicores, as crianças assopravam em balões que faziam de trompentas e borrifavam-se com jactos de água de pistolas de plástico. Era a folia no seu auge, o júbilo duma populaçaão que se desacorrentava das tensões. Aplaudiam os números de chigubo dos agrupamentos de Marracuene, as nghalangas da Manhiça, a makarita de Inhambane, os tufos de Nampula e de Vila Cabral executadas por mulheres da Mafalala. E que gosto dava ver as residentes do Matlotlomane e das Lagoas, temporariamente esquecidas das necessidades dos clientes, a executarem números de marrabenta ao som de violas de axímios tocadores. Os marimbeiros de Zavala punham os espectadores em estado de delírio. Os elementos do grupo  provinham de Zavala e migraram para a cidade onde eram a mão-de-obra favorita dos Serviços de Salubridade. Nas letras das suas canções exaltavam o poder antigo dos reis e a valentia dos combatentes perecidos durante as guerras de penetração colonial e cantavam as virtudes da honra e do trabalho honesto, e eles sabiam qual esse era.

O sol da tarde derramava um calor tépido, numa cumplicidade curiosa de partilha pela euforia do momento. Vozes de cantores, o coro aos estribilhos das canções e notas dos instrumentos enchiam a atmosfera do ambiente. Todos ali eram brasileiros porque as suas mentes evadiam-se dos infortúnios quotidianos e protagonizavam momentos da liberdade efémera que lhes proporcionava o dia do carnaval. As mensagens iam ao encontro das vozes dos escravos, porque reciprocamente, africanos eram também muitos brasileiros. Estavam todos na sintonia da saudade das origens, na telepatia que tange emoções ocultas nas raízes da cultura, daqui arrancada e transladada para lá; viva lá, mas regressada ao solos maternos cá. Era o lugar de reencontro de toda duma civilização, a confluência de uma cultura fragmentada. Era isso o carnaval.

A tarde declinava, mas não esmoreciam os ânimos. Sobre a bagageira de um camião engalanado de serpentinas, balões multicores e figuras alegórias, atrasada na marcha, vinha a banda do Chamanculo, o “Chamanculo Stars”, o conjunto do Alfredinho (já nosso conhecido). Como que a pretender anunciar o fim próximo das celebrações do dia, o grupo entoava, os artistas já roucos, a senha principal que resumia o sentimento de um verdadeiro carnaval:

 

   Tristeza não tem fim / Felicidade sim…***

   A felicidade é como a pluma / Que o vento vai levando pelo ar

   Voa tão leve / Mas tem a vida breve

   Precisa que haja vento sem parar.

   A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval

   A gente trabalha o ano inteiro /Por um momento e sonho

   P’ra fazer a fantasia  /De rei, ou de pirata, ou jardineira

   E tudo se acaba na quarta-feira

 

   Tristeza não fim /Felicidade sim…

   A felicidade é como a gota / De orvalho numa pétala de flor

   Brilha tranquila / Depois de leve oscila

   E cai como uma lágrima de amor

 

   Tristeza não tem fim

   Felicidade sim…

 

A fechar o cortejo, seguia um outro camião, o mesmo que transportava o Rei Momo.  Como era da praxe, na bagageira, vinha um outro agrupamento, “Os Imortais” do bairro do Cemitério, a executar um samba corrido. Umas bailarinas energéticas sacudiam-se e esperneavam uns passos a marcar o ritmo da  canção.

O acolhimento foi total, incondicional.

Sentado sobre um “trono”, que nesta ocasião era um sofá em idade de reforma, “Sua Magestade” sorria. Com uma mão exibia o ceptro, símbolo do seu poder real, e com a outra acenava para as multidões. Qualquer que fosse o troço da estrada onde o veículo rolasse, ovações e gargalhadas redobravam de intensidade, ensurdecedoras. Lá ia aquele imaginário soberano, redondo, a ufanar-se todo, trajado de túnicas, coroado de ouro falso, adornado de anéis e pulseiras, a desfilar a falsidade da sua magestade, uma caricatura assumida de quão ridículos podem ser a presunção, a vaidade e a ostentação.

As sombras do crepúsculo foram companheiras da retirada dos foliões pelos caminhos, de regresso aos lares, ao reencontro com o real da vida.

 

in Caderno de Memórias, Volume II.

É curioso como às vezes a memória da morte vive muito

mais tempo do que a memória da vida por ela roubada.

in O deus das pequenas coisas, Arundathi Roy.

 

Há duas semanas, recebi uma chamada do meu amigo Celso Muianga. Nada alarmante. Eu e ele falamos com alguma regularidade: de literatura, de política e de tanta coisa que se passa pelo mundo fora. Felizmente, somos críticos um do outro e o Celso é um dos editores que mais aprecio em Moçambique. No entanto, dessa vez, a chamada não era para nenhuma cavaqueira, tratava-se de uma imposição: – San José, em nome da Fundação Fernando Leite Couto, quero-te convidar para seres um dos apresentadores do novo livro do Mia, O caçador de elefantes invisíveis, de que te falei. Depois disso, o silêncio dos dois lados da linha prolongou-se por uns sete segundos. – San José, estás comigo ou aí na Tenda dos Milagres? Tenda dos Milagres é a maneira como o Celso trata ao tribunal que julga o afamado “caso das dívidas ocultas”, precisamente, numa tenda montada na Cadeia de Máxima Segurança da Machava, lá pertinho de casa, no Bairro Infulene. Ao invés de qualquer resposta, contra-ataquei: – Ó, Celso, que convite é esse, meu, como é que se apresenta um livro do Mia? Talvez pela amizade, o editor deixou de ser delicado e respondeu ríspido: – Não sei. Veja isso com o Pila. Liga-lhe. Ele será o outro apresentador.

A chamada durou mais ou menos três minutos. Quando terminamos de falar, fiquei meio nefelibata, tentando juntar sentidos à volta daquele convite. Poxa… tentei ligar de volta ao Celso para lhe dizer que aquilo não iria funcionar. Não via lógica nenhuma em apresentar o que quer que fosse do Mia. Mas fiquei calmo. Convencido de que aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto, resolvi descontrair-me, até porque a qualquer altura receberia uma chama do mesmo contacto a dizer-me: – Estou a gozar contigo. Descansa, camarada. Na verdade, pretendo saber se consegues vir cobrir o lançamento do livro. Como temos muita restrição no espaço, estamos a confirmar com todos os potenciais presentes. Isso foi o que imaginei. Todavia, entre a imaginação e a realidade, há uma margem mínima às vezes significativa.

O Celso não me ligou novamente – teimoso ele. Eu fiquei quieto, tentando esquecer o convite. Dois dias depois, Elton Pila é que me liga: – Dos Remédios, o Celso falou contigo? Pronto. Compreendi que não havia nenhuma brincadeira ali. – Sim, ligou-me há dois dias. Então é mesmo a sério a cena do Mia? O Pila respondeu que sim. – Mas como é que a malta apresenta o livro do Mia, man? O meu colega jornalista não teve dúvidas. – Ó, Dos Remédios, não sei. Mas o segredo é começar com um agradecimento.

Então pronto, seguindo o conselho do meu amigo Elton Pila, aqui ao meu lado, antes de falar deste novo livro do Mia, O caçador de elefantes invisíveis, primeiro quero agradecer ao Celso Muianga e à Fundação Fernando Leite Couto por este desafio. Para mim, é um enorme privilégio estar aqui a dizer algumas palavras sobre este conjunto de contos de um autor que tanto admiro. Cresci lendo Mia Couto. Primeiro, na célebre revista Tempo e, mais tarde, nos livros. Mia é dessas pessoas que os meninos da minha geração via pela televisão e dizia: – Quando eu crescer, quero falar tão bem e ser como aquele senhor com nome de mulher. Então, quando fui convidado a estar aqui convosco,  percebi, já agora Pila, que é possível estarmos com os nossos heróis da palavra cá terra.

Indo ao que realmente interessa, quando penso na escrita miacotiana, observo que a guerra é um fenómeno recorrente. Por exemplo, em Terra sonâmbula, em O último voo do flamingo ou neste O caçador de elefantes invisíveis. A pergunta que acho oportuna é: porquê? No lugar de uma resposta assertiva, vêm-me à memória um pensamento de Francis Fukuyama, no seu O fim da história e o último homem. Nesse livro, o intelectual norte-americano defende que “a experiência demonstra que, se os homens não puderem lutar por uma causa justa por esta ter triunfado numa geração anterior, acabarão por lutar contra ela. Lutarão por lutar”. Em outras palavras, Fukuyama sugere que a humanidade é instável e que no dia em que a paz for dada como adquirida, os homens são capazes de saírem à rua para se manifestar a favor da guerra. Se calhar, assim seria porque, segundo Thomas More, no seu Utopia, “os príncipes preferem a arte da guerra às artes benfazejas da paz”. E todos nós podemos ser príncipes, nesse sentido atroz referido por More e por Maquiavel.

Em grande parte, O caçador de elefantes invisíveis aparece a lembrar o talento que o Homem tem em semear guerras e instabilidades daí subsequentes. Logo, com a paciência de quem caça uma presa, Mia Couto captura do seu país e, sobretudo, da realidade humana, essa volubilidade interior, já denunciada por Fukuyama, para ficcionar uma realidade em si catastrófica. O escritor recusa ser uma ilha no seu território. Por isso mesmo, a sua ficção traz do Norte de Moçambique as dores e os dramas para quem a vida, depois do terror, é um milagre quotidiano.

Naquela noite dormimos todos de pé, apertados uns contra os outros, por entre as quatro paredes do edifício da administração. Edifício é um modo de dizer: um espaço vazio, sem tecto, sem portas nem janelas. As paredes, todas esfarrapadas, eram o que restava da única casa de alvenaria da nossa aldeia. Ali nos refugiámos, as famílias todas de Kalimbué, tentando escapar a mais um ataque dos terroristas (p. 51).

A passagem acima é do conto “A fumadora de estrelas”. No enredo, as personagens deixam-se contaminar, sem hipótese, pelo medo na mesma proporção que perdem o chão da sua existência.

Lá fora, escutavam-se os disparos. Cada tiro resgatava os olhos de Esmeraldino, as pálpebras cerradas como se não quisesse voltar a ver o mundo. E fomo-nos espremendo de tal forma que ninguém se podia mover. Sorte a nossa não haver tecto, caso contrário teríamos morridos asfixiados (p. 52).

No universo da história os disparos não constituem apenas um conjunto de sons, são imposições ao silêncio, à fatalidade geradora de incertezas colectivas. O pior é quando naquela pequena repartição da administração, noite sombria, com os terroristas a espalhar ódio pela aldeia, Kadira entra em serviço de parto. Como impedir o bebé de chorar e assim salvar a vida de toda gente escondida? Nesse instante, o possível choro que tão bem anuncia a vitalidade dos recém-nascidos rapidamente transforma-se num símbolo de morte: “A pobre Kadira continha as lágrimas, mordia as dores, engolia os gemidos. No fundo, ela sabia: uma mulher pode parir em silêncio, mas ninguém pode impedir o choro de um bebé que nasce. As contas eram fáceis de fazer: a vida daquela criança iria acabar com a vida de todos nós” (p. 55).

Entre os gritos subentendidos das vítimas do terrorismo em Cabo Delgado, Mia Couto vai além da superfície para ficcionar histórias que ajudam a compreender o trauma dos deslocados. Ao escritor não interessam, necessariamente, histórias dos que partiram, isto é, a memória da morte – conforme diria Arundathi Roy –, mas o efeito dessas partidas nos sobreviventes. Veja-se, por exemplo, o caso de “O vestido vermelho”. No conto, a guerra arranca da protagonista o marido e o seu unigénito. Desesperada em voltar a ser mãe, a mulher resolve correr o risco de ir à procura do filho, porém, pelo caminho, soldados armados a impedem de reconquistar todos os significados auspiciosos à volta da maternidade.

“O vestido vermelho” é mais um conto no qual se observa o interesse do escritor pela memória da vida, afinal efémera e, muitas vezes, muito circunstancial. Além disso, no universo diegético Mia Couto introduz o que é evidente em “A culpa”, enredos sobre relações familiares repreensíveis. Não é difícil encontrar um pai que humilha ou coarcta a liberdade da esposa ou do filho. Em muitos contextos, o lar familiar, em O caçador de elefantes invisíveis, é um lugar de ressentimentos. Ao longo dos contos, há quem opte em escutar mal, de modo a evitar conflitos com o pai autoritário e de difícil trato. Este cenário até propõe um paralelismo entre episódios domésticos e o quotidiano social. Mia parece propor uma relação quase umbilical entre os dois contextos, como se as suas narrativas também pretendessem sublinhar a reciprocidade entre o ambiente doméstico e o meio circundante. Ou seja, como ter uma sociedade saudável se no sentido mais particular a casa é um lugar feito de tantas outras instabilidades?

Não obstante a fronteira que separa os laços de afecto, O caçador de elefantes invisíveis é um lugar cheio de sinceridade, onde a inocência se desencontra com a realidade crua. Gustavo, em “Um país sem nome”, depois de perder a mãe ainda imberbe, recusa-se a voltar a ser criança, como se houvesse escolha para essa condição. O pai faz o que pode para o menino se divertir com os filhos dos vizinhos. Sem dar hipótese à iniciativa paterna, o miúdo responde: “Os meninos da minha idade fazem-me triste”, (p. 167). A fim de contornar essa tristeza, Gustavo ainda evita ver programas televisivos infantis e, no ápice da evasão, inventa um país, no qual o abraço é algo tangível, mensurável.

Através da posição surreal de Gustavo, ao distanciar-se da realidade que o magoa, o narrador tece uma convicção que é visivelmente assumida por Mia Couto. Isto é, à semelhança do país inventado por Gustavo, Moçambique precisa de sonhos enquanto dimensão produtora de discernimento. A ficção miacotiana, com efeito, é uma experiência oportuna e necessária para quem se interessa (com profundidade) nos vários países existentes no interior de Moçambique. Aqui a ficção é um farol exposto ao lusco-fusco, potente na iluminação e na reinvenção dos espaços sobre os quais a narrativa inevitavelmente assenta.

Assumindo que a palavra tem o poder de fazer desaparecer e reaparecer as coisas, como adianta Maurice Blanchot no seu O espaço literário, no caso de Mia Couto, esse reaparecimento refere-se a substâncias e a eventos presentes, mas ainda desconhecidos. A proposta é simples: ampliar o campo visual do leitor acomodado na sua própria monotonia, dando relevância a eventuais insignificâncias. Desse modo, não se fica no mesmo lugar ao lê-lo. O caçador de elefantes invisíveis é um movimento cíclico e, às vezes, tenebroso. No livro, a humanidade é posta em diálogo e nem sempre a boa comunicação é um dado conquistado. Pensemos, por exemplo, no primeiro conto, “Um gentil ladrão”. Aí o diálogo é uma coisa difícil porque as personagens são incapazes de compreender uma a outra. Um enviado dos serviços de saúde vai a uma presumível aldeia para testar a temperatura de um homem habituado a perder ente queridos para a morte. Ambos falam a mesma língua, mas até a língua torna-se um monstro quando a realidade que separa os interlocutores é abismal. Consequentemente, num acto que deveria contar como medida preventiva contra a COVID-19, o protagonista da história vê-se num iminente assalto. O homem não sabe de pandemia nenhuma, daí adivinhar nos gestos do visitante iniciativas de um ladrão. Nesse belíssimo exercício literário, Mia é sarcástico ao incitar que a gentileza é tão rara no mundo que já não é normal cuidar do outro. Logo, “depois de anos de tormento, reconcilio-me com a humanidade: um ladrão tão desajeitado só pode ser um bom homem”, (p. 16), afirma o protagonista.

O carácter afável do agente da saúde, embora destrambelhado, faz com que o anfitrião anseie por uma segunda visita, para o premiar por lhe ter arrancado da solidão. Sempre dura. Que o diga Bernardo, escritor que, cumprindo a prerrogativa “fique em casa”, vê-se incapaz de sobreviver sem gente por perto. Habituado a isolar-se na escrita, Bernardo aprende a valorizar as relações humanas e nós com ele. Para sobreviver à “Imortal quarentena”, terá de ter por perto a sua empregada doméstica Esperança Maluane.

Portanto, não há nos contos do livro super personagens ou distantes do dia-a-dia. As personagens das histórias são produto do plano real, concorrendo para tornar as realidades moçambicanas, com a devida amplitude, inteligíveis.

De facto, O caçador de elefantes invisíveis é um movimento em câmara lenta, suficientemente lento para quem não abdica de pensar o espaço através da sua posição no tempo. Com a paciência de quem sabe esperar pelo momento ideal, Mia capta cenários agora deslocados daquele trabalho sobre a reconstrução da língua portuguesa tão comum em Vozes anoitecidas ou em Cada homem é uma raça, outros livros de contos. Ao escritor, neste O caçador de elefantes invisíveis, já não interessa a oficina sobre a morfologia da palavra, mas sim a estrutura do pensamento das personagens, às vezes, ilógico aos olhos dos mais precipitados.

Sem dúvidas, há aqui um interessante trabalho sobre a emoção, a dor, a expectativa e a incerteza. As histórias de Mia são fortes pretextos para pensarmos o contexto doméstico, comunitário e desse país que urge reinventar, pois, de outro modo, irá desaparecer do mapa-mundo como calha no seu O último voo do flamingo ou em Nação pária, de Adelino Timóteo.

Finalizando, pode ser que se divirtam e aprendam durante a leitura deste livro. Seja como for, nestas histórias encontrarão um ficcionista que ascendeu para uma outra dimensão na forma como gere a força anímica das personagens e no modo cristalino com que trabalha a sintaxe e a semântica das coisas.

Muito obrigado por me ouvirem!

 

*Texto resultante da apresentação feita na cerimónia de lançamento d’O caçador de elefantes invisíveis, de Mia Couto, dia 13 de Outubro de 2021. Aqui redigido de cor e ampliado.

Gostava, antes, de fazer uma declaração de interesse: sou advogado e professor da Faculdade de Direito da UEM (sem regime de exclusividade), ou seja, para além da docência, posso prestar serviços enquanto advogado.

Não sou advogado no processo das dívidas ocultas, nem em qualquer processo autónomo a ele relacionado. Em face dos argumentos da exclusão do Colega Alexandre Chivale por, alegadamente, ser colaborador do SISE, entendi que deveria tomar posição. Não estou impedido de o fazer não só porque o artigo 80 do Estatuto da Ordem dos Advogados (adiante EOA) não me proíbe, como também porque esta questão ultrapassa a decisão de impedimento do Dr. Alexandre Chivale no julgamento que está em curso na 6.ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo. Aliás, essa decisão vale, apenas, para esse processo e não para qualquer outro processo, mas sendo um julgamento com grande impacto público, há-que tomar posição pública.

Se nesse processo for definitiva a decisão de que nenhum membro das forças de defesa e segurança (e, também, funcionário público, agente ou contratado de um serviço público) não pode patrocinar causas contra o Estado, caberá ao Conselho Nacional da Ordem dos Advogados, no âmbito do que determina o seu Estatuto, determinar, para valer para todos os casos em que ele intervenha, a situação do Dr. Alexandre Chivale enquanto advogado – e, na verdade, o sentido daquela norma -, sem prejuízo, como é natural, de em qualquer processo judicial essa questão ser suscitada e decidida, pois, são os tribunais que decidem em último lugar.

Antes de tomar posição, gostaria de explicar rapidamente a razão porque foi consagrado o regime das incompatibilidades relativas constante do Estatuto. A posição da Comissão que, em 2007, elaborou a proposta dos Estatutos que, com algumas poucas alterações, foi aprovada – da qual, com a Colega Fernanda Lopes, fiz parte – era a de proibir, em absoluto, que os funcionários públicos pudessem ser advogados no activo.

Pretendia-se promover advogados a tempo inteiro e não, como até então ocorria, advogados de fim de tarde, como muitos, como eu, chamava os advogados funcionários públicos ou de empresas ou instituições públicas.

As razões eram várias: não tendo escritórios para além de onde trabalhavam para o Estado, pensava-se que estivessem em vantagem perante os demais colegas, pois não suportavam as despesas logísticas para o exercício da profissão e, muitas vezes por causa da sua indisponibilidade, se julgava que estavam susceptíveis de incumprir os seus deveres profissionais, para além de que estavam sujeitos a uma dupla subordinação:  disciplinarmente à Ordem e ao Estado, seu empregador, o que poderia perigar a sua independência e dignidade. E era lembrado o exemplo do, na altura, Bastonário Carlos Alberto Cauio que tendo se iniciado como funcionário público, foi dispensado dos serviços para cuidar da Ordem dos Advogados.

Até então o regime das incompatibilidades era mais simples, sendo apenas o das incompatibilidades absolutas, ao que se acrescia o dos impedimentos. E nessa sessão a maioria dos que estavam contra essa posição eram notários e conservadores, que, depois de uma primeira sessão inconclusiva, se organizaram para a segunda sessão onde, em conjunto com outros advogados, foram muito claros no que eram estavam dispostos a fazer.

Foi depois desse (explosivo e inesquecível) debate, que a Comissão apresentou a proposta das incompatibilidades relativas, tendo se concluído que se deveria manter o regime anterior:  impedir que os funcionários públicos pudessem litigar contra os respectivos serviços como até então ocorria, como resulta do n.º 2 do então art. 47 do Estatuto.

O exemplo que foi dado foi o dos notários, que deveriam estar impedidos em causas que envolvessem os seus serviços porque, dizia-se, estariam em vantagem, pois poderiam usar informação interna ou fornecida por seus colegas para ter vantagem (v. nesse sentido Gilberto Correia, no comentário que, em 2016, pela W Editora,  fez ao Estatuto). Por isso, para além das incompatibilidades absolutas, optou-se pelas incompatibilidades relativas, em que se obsta que os advogados e advogados estagiários indicados no n.º 3 do art. 69 do Estatuto possam patrocinar causas contra o Estado, autarquias locais e todas as instituições públicas. Podemos discutir o que seja patrocinar causas contra o Estado, por exemplo se a defesa apresentada num processo é ou não um patrocínio contra essa pessoa. Podendo, não vou entrar nesse ponto, que me parece suplementar, porque antes disso o regime das incompatibilidades deve ser harmonizado com outras disposições do mesmo Estatuto.

Tendo em conta a motivação que norteou a introdução das incompatibilidades relativas, foi mantido o regime dos impedimentos para o exercício da advocacia, ou seja, existe a necessidade de harmonizar as incompatibilidades e os impedimentos pois, em bom rigor, as incompatibilidades são sempre absolutas, sendo que no caso das relativas estamos em face de impedimentos de exercício em certas situações.

É por isso que o n.º 5 do art. 69 do Estatuto estabelece que as incompatibilidades – sejam elas absolutas ou relativas – não se aplicam a quantos estejam na situação de aposentados ou de inactividade e dos contratos em regime de prestação de serviços, como é o caso de um militar na reserva, um docente ou outro profissional em regime de prestação de serviços contratado por uma instituição pública. Aliás, se assim não fosse, o advogado contratado por uma instituição pública, estaria, por ser contratado da instituição pública, impedido de advogar noutras causas, o que seria um contrassenso.

Para além disso, o n.º 2 do art. 70 do Estatuto estabelece que estão impedidos de exercer a advocacia os advogados – tendo se omitido os advogados estagiários – que sejam funcionários ou agentes administrativos no activo ou na situação de inactividade, em quaisquer assuntos em que estejam em causa os serviços públicos ou administrativos, devendo entender-se tratar dos serviços a que estão ligados.

Também nessa base, o n.º 3 do art. 70 estabelece que estão igualmente impedidos de exercer o mandato judicial os membros dos órgãos representativos, como autores, nas acções cíveis contra o Estado.

Imagine-se um membro de um órgão representativo (deputado ou membro da assembleia provincial ou municipal), que seja funcionário público. Pelo n.º 3 do art. 70 ele está impedido de exercer mandato judicial como autor nas acções cíveis contra o Estado, pelo que pode exercer esse mandato como réu nas acções cíveis e como autor e réu em acções de qualquer outra natureza, pois só está impedido de ser autor nas acções contra o Estado. É, aliás, importante sublinhar que o regime das incompatibilidades e impedimentos dos advogados existe para salvaguardar dois valores maiores da profissão, nomeadamente a dignidade e a independência profissional, de modo a que o exercício da defesa não seja efectivado em situações que pareçam indignas para o próprio Advogado e a advocacia.

Para além disso, tal visa ainda, e sobretudo, impedir que o advogado intervenha numa situação em que o conflito de interesses afecte a sua independência e, deste modo, acabe afectando a possibilidade deste defender plenamente o seu constituinte.

Um exemplo que me ocorre é o de um advogado que seja contratado para assessorar a PGR e que aceite um caso em que o seu constituinte intente uma acção de responsabilidade civil contra o Estado moçambicano que será representado pelo Ministério Público.

Logo à primeira, sem necessidade de muitas explicações, a actuação deste advogado pareceria indigna. Aconselha o PGR, que é quem actua como líder do Ministério Público, Advogado do Estado, recebendo remuneração por essa actividade profissional, mas de seguida vai receber honorários para litigar contra quem lhe paga.

Pior do que isso, devido ao vínculo com a PGR esse advogado pode estar condicionado no uso de todos os meios legais ao seu alcance para defender o seu constituinte.

Visto que a sua ligação com o Estado pode conduzi-lo a não querer desagradar a contraparte com quem tem um vínculo, o seu constituinte corre o risco de, naquele caso, não ter um adequado patrocínio judicial, em virtude deste não dispor de total independência naquelas circunstâncias. Explicando a estranheza da solução legal – que, afinal, ilustra, pois, que a incompatibilidade não é tão grave e não pretende defender o Estado –, Gilberto Correia (2016:151) refere que o regime de prestação de serviços determina apenas um regime diferente de vinculação que, ao contrário da aposentadoria e da inactividade, mantém o respectivo titular no activo, isto é, em pleno exercício de funções.

Assim, o maior risco da perda de independência é para o constituinte do advogado e não para o Estado, por isso, foi para defender o constituinte do Advogado e a dignidade profissional que esta incompatibilidade relativa foi escolhida e legalmente proclamada.

É aqui que se deve encontrar a respectiva ratio legis e o elemento teleológico que deve ajudar na subsunção da norma jurídica em causa aos casos concretos, sob pena de uma aplicação que não toma em conta todo o sistema dos impedimentos e incompatibilidades. Assim, se a natureza e especificidade do vínculo com o Estado perigar uma actuação indigna daquele Advogado no exercício profissional numa acção contra o Estado ou existir o risco de, por causa desse vínculo, o Advogado não puder realizar a melhor prestação profissional possível para patrocinar o seu constituinte, então ele deve ser considerado impedido.

Com efeito, a norma impeditiva de que falamos não foi erigida para defender o Estado que estará sempre muito bem representado pelo Ministério Público. Deste modo, entendo que qualquer interpretação da referida norma que vise defender o Estado estará fora da sua ratio legis e da respectiva teleologia, pelo que, em geral, não vejo nenhuma incompatibilidade relativa ou impedimento para que um funcionário público possa ser advogado de um réu num processo contra o Estado, seja de que natureza for, sendo que tudo terá de ser analisado casuisticamente.

No chamado caso das dívidas ocultas era importante verificar se, em face daquela situação concreta, o alegado vínculo existente entre o Advogado e o Estado moçambicano colocaria em causa a dignidade da advocacia e se reduzia a sua independência para a defesa plena do seu constituinte, pois, em princípio, um aposentado, inactivo ou prestador de serviços ao Estado não está impedido de advogar contra o Estado. Esta é a minha opinião.

 

Tomás Timbane

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane

Advogado

“a literatura, tal como a concebemos,

distingue-se pelo investimento na linguagem

e não pelo conteúdo por mais nobre que o julguemos.”

Lembro-me desta frase em epígrafe como se me tivesse sido dita ontem quando, afinal, remonta o ano de 2004. Li-a numa recensão publicada na Revista Proler, em que o seu autor dissecava sobre o livro Nikitche cuja autora adicionou recentemente ao título de primeira romancista moçambicana, o de primeira mulher africana a ganhar o prémio Camões. É obra.

No auge da minha formação em ensino de línguas cujo plano curricular incluía o estudo de alguma teoria de literatura e uma busca por noções de literaturas de países de língua oficial portuguesa, foi-me apresentado o texto em alusão como um exemplo do exercício da crítica e recensão literárias. É, decerto, um belo texto que aborda a obra literária nas suas mais diversas componentes.

O que me faz revisitar este momento particular é exactamente o facto de Paulina Chiziane ter sido agraciada recentemente com o prémio Camões 2021. Inda que haja muito de extraliterário por se dizer sobre os prémios, uma certeza é irrevogável: (1) eles singularizam o autor no seu meio, (2) canonizam a sua obra e (3) atraem leitores.

Sobre o primeiro e último elementos, respectivamente, pouco se pode dizer porque é evidente que mesmo no meio moçambicano, onde há um número relativamente reduzido de leitores e o seu reconhecimento no meio académico ainda resta a desejar, a escritora carrega uma gama de leitores que conhecem a sua obra e a tem como referência.

Ora, quanto à questão do cânone dir-se-ia com alguma certeza que esta divide opiniões de tal modo que, ela própria, assumira, o título de “contadora de estórias” quiçá para se desfazer das interpelações que nos corredores da academia se procura fazer à sua obra relativamente ao que ela significa quando contraposta com o que se apregoa como eminentemente literário naqueles meios em que uma obra só o é pela forma como diz o que diz.

Desfeita dessas amarras e movida pelo ímpeto de contar, reflectir ou representar as estórias do seu povo através da ficção, foi fazendo escola e já lá vão 31 anos de uma contribuição regular e activa na literatura moçambicana. E, como diria Salvato Trigo, o que é importante é que o escritor busque uma forma artística, moldada nos cadinhos estético e ético do povo que ele procura representar literariamente.

O que a mim chama atenção no horizonte além da celebração do prémio para uma escritora da minha pátria com que já tive a honra de privar, é o facto de, como já o disse, os prémios terem este condão da canonização da obra (e inegavelmente do seu autor) numa literatura em constante processo evolutivo onde as novas vozes tendentes à “paulinização” da narrativa são interpeladas com frase que epigrafa o presente texto. Daí a questão: “e agora, o que se dirá aos contadores de estórias”.

Se por um lado, pesará a balança da crítica incessante em prol de uma narrativa que respeita a gramática do texto na perpectiva mais clássica, por outro, pesará o argumento de uma escrita mais progressista sedenta de novas cores (exóticas, talvez) e que encontrará na “paulinização” uma boia que a sustente rumo à margem dessa viagem que, afinal, é o deleite, a reflexão, a catarse, etc.

Conforme dirão os mais atentos, este prémio é, enfim, a repetição de vários eventos na estória secular da literatura em que determinados autores não foram devidamente acolhidos pela crítica do seu meio e tempo mas a memória comum de outros meios, outros tempos, outras convicções os tomaram como canónicos e cujo contributo é incontornável. A mim, a estas alturas, basta um “parabéns a Paulina Chiziane e a literatura moçambicana”. É obra.

Falar da vida e obra de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos é, e será sempre um exercício que exige elevada capacidade de abstração para narrar todo um percurso e uma trajectória (caracterizados por suas incansáveis lutas, suas vitórias e porque não suas derrotas), e todos eventos que caracterizaram a odisseia religiosa, educacional e humanística desta que é uma figura incontornável na história do nosso vasto Moçambique. Para não pecar por soberba, e não perder de vista o objectivo deste texto de agradecimento, enaltecimento e despedida, focar-me-ei apenas no cerne – Um Homem ao serviço de muitas causas.

A Época Medieval é cronologicamente considerada o período mais longo da História da Humanidade (com mais de 1000 anos). Período este que viu florescer o surgimento das primeiras Universidades no mundo. Nesta época, a Filosofia e a Teologia viveram de forma única a rivalidade entre a fé religiosa e a razão científica; um conflito que opunha a religião à ciência e desafiava a cada instante a tentativas de conciliação e harmonização destes dois domínios do saber sem necessariamente anulá-los, numa fórmula traduzida na fé alicerçada na razão e, na razão que ajudaria a perceber a fé. (Intellectus quaerens fidem, et fides quarens intellectum.

Um dos mais brilhantes e notáveis pensadores da época em alusão foi São Tomás de Aquino – (figura que desempenhara tremenda influência na cosmovisão teológica e educação de Sua Eminência O Senhor Cardeal Dom Alexandre), que durante o seu percurso académico foi instruído por Alexandre Magno (Ou Alexandre o Grande). Curiosamente, o nome Alexandre, mestre de Tomás de Aquino é o nome de baptismo do Senhor Cardeal – Aproximações e coincidências que corroboram para ideia da grandeza do nome em referência.

De certo, nestas breves linhas será complicado trazer o espelho dos 103 anos em que o Cardeal viveu e fez viver, disseminando a fé, espalhando a esperança, semeando amor, educando o seu povo e proliferando ensinamentos. E nesses 103 anos teve o prazer de colher os primeiros frutos da sua incansável luta por uma sociedade mais capaz, mais justa e intelectualmente emancipada. E são esses frutos que devem se encarregar de assegurar e alargar o escopo do outrora iniciado.

Dom Alexandre foi muito mais do que uma figura religiosa e eclesiástica destacada, e comprometida na causa do bem estar social, do crescimento, da coesão no seio da Igreja Católica e do catolicismo em Moçambique, do Ecumenismo vibrante e da difusão da mensagem de Deus por todo o lado e em várias línguas. Para ele a fé tinha o poder de quebrar barreiras e unir povos (sejam eles considerados civilizados ou indígenas), e para isso as línguas nativas serviram de veículo e ferramenta estratégica de penetração e evangelização nas comunidades.

Foi um incansável peregrino da paz; astuto e apaixonado amante pela ideia de uma educação para todos e em todos níveis. Sua filosofia e ideia transformadora era clara – somente investindo mais e expandindo a educação se poderia criar bases sólidas para emancipar e desenvolver a nação, e consequentemente sonhar com um Moçambique mais inclusivo e mais próspero. Daí a sua luta assaz contra a pobreza absoluta e o seu compromisso vincado com a formação sistemática do Homem.

Sua grandeza transcende a imagem que muitos de nós temos – Patriarca da Igreja, primeiro Sacerdote e Bispo moçambicano. Na verdade Dom Alexandre foi um cultor, um educador visionário e um humanista douto com visão ampla da realidade do país e com cega convicção de que a educação do homem conduziria à libertação e à emancipação das mentes dos moçambicanos.

Dos vários momentos de partilha, fossem eles na Universidade, na Igreja e nos Seminários bem como em eventos vários públicos e privados, algo deliberadamente se repetia, entre a preocupação presente e os sonhos futuros: o paradoxo entre a riqueza do país e a incapacidade de transformar essa riqueza em algo útil para os moçambicanos. Segundo ele, Moçambique não é um país pobre; muito pelo contrário, é muito rico e mal explorado. O problema reside na falta de preparo e no défice enorme de conhecimento e precisa de mentes para transformar sua riqueza no bem-estar de todos.

As lentes visionárias do futuro, a crença na mudança de paradigma social, económico e educacional, e a transversalidade primeiro do seu pensamento, e depois da sua acção fizeram de Dom Alexandre José Maria dos Santos uma das figuras de Moçambique Contemporâneo de maior destaque, com projectos e obras transgeracionais que vão desde a formação de Padres dentro e fora do país, passando pela intermediação do conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), à formação de vários quadros superiores em várias áreas e domínios do saber.

Dom Alexandre, fora um dos mais sagazes impulsionadores das artes liberais e ciências do espírito no país, e desafiou centenas de jovens estudantes universitários e seminaristas (fazendo uso de ferramentas éticas, teológicas, filosóficas, e humanísticas) a pensarem com liberdade intelectual, e de forma crítica e analítica contribuírem para edificação de um Moçambique melhor. Fora um cultor do saber Ser, saber Estar e saber Fazer. Fora acima de tudo alguém muito preocupado com as questões éticas e com a dimensão da dignidade humana– ditames estes herdados da Filosofia Escolástico-Medieval de São Tomás de Aquino.

E é sobre estes e outros feitos de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre, que nós, a geração do hoje devemos assentar a nossa reflexão e acção. Replicar vivamente sobre as gerações vindouras e incutir a necessidade permanente de pensar no Outro; Uma reflexão centrada no homem concreto como um fim e não como um meio. Viver e ensinar a criação de modalidades e estratégias de desenvolvimento do que fora iniciado por Dom Alexandre.

A coragem para iniciar novos e ambiciosos projectos, a ideia viva e prática do altruísmo, o espírito de criar e buscar novas realidades, e o desejo de ver um país mais educado, desenvolvido e próspero são algumas das licções práticas que Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre nos deixa. Foi mais de um século de um Homem talhado para a vida do bem estar do próximo. Saibamos viver e honrar os seus feitos, os seus ensinamentos e imortalizar sua obra fazendo do nosso país uma referência no rendezvous civilizacional. Obrigado e até sempre Cardeal Dom Alexandre

Por: Hélio Guiliche (Filósofo)

Digressão pelos recessos de identidade sonegada é o que encontro na poesia de Noémia de Sousa.

A busca obsessiva de “uma porta de saída” nos textos da poeta é a nota que marca o compasso dos esforços pelo flanqueamento dos caminhos para a liberdade. O sentimento de angústia pelo cerceamento de direitos, seus e de seus concidadãos, deixa extravasar um contínuo caudal de protestos que se reverberam nos poemas. O eco das palavras trepida na alma de quem os lê e torna cúmplice de revoltas que fluem na sua obra.

A sua peregrinação pelo mundo, desde as margens da baía de Lourenço Marques, na Catembe, seu berço natal, a sua passagem pelo Brasil, França e finalmente Portugal, onde morreu, encontra um paralelo no universo da sua poesia. Na sua essência, esses poemas- monólogos – diria efabulações – encontramos combinados elementos de exaltação dos valores tradicionais, culturais e sociais da eterna Mãe-África, subscritos em poemas vários, os brados de convocação para o engajamento com as culturas locais, de incitamento pela ruptura com a ordem premiada pelo colonialismo. Fazem, (fez) de Noémia de Sousa uma nacionalista carismática e singular nas Letras moçambicanas. Pela sua coragem de questionamento, pela frontalidade e denúncia dos machos socias de então, conquistou por mérito próprio um lugar cimeiro no pedestal dos poetas-combatentes, dos heróis-poetas e inscreveu o seu nome no historial dos mais consagrados Escritores e Poetas desta nossa à beira do Índico.

Com a sua obra, Noémia de Sousa, mãe-poeta, poeta-mãe, conquistou uma dimensão universal e deixou profundas marcas nas percepções sobre a escravatura, sobre os malefícios do colonialismo e da opressão.

“Sangue Negro” constituiu-se como um alicerce duma Poesia que foi (e ainda é) o baluarte como moçambicanos, africanos e duma luta pelo reconhecimento da nossa identidade entidades pertencentes a um mundo global pela justiça colectiva e pela emancipação nacional.
Minha homenagem sincera e incondicional.

*Nota do editor
No próximo dia 20 deste mês, se estivesse viva, Noémia de Sousa completaria 95 anos de idade. A “mãe dos poetas moçambicanos” faleceu em 2002, mas a sua obra continua actual e importante para o país e para o mundo. Como forma de a homenagear, convidamos o escritor Aldino Muianga, que vive e trabalha em Pretória, na África do Sul, para partilhar o que a célebre obra Sangue negro (editada no dia 20 de Setembro de 2001, portanto, há 20 anos) e a sua autora representam para toda uma literatura. Na verdade, a homenagem começou há alguns meses neste jornal e vai continuar nos próximos dias.

Fui convidada como oradora no 10º evento do “Raias Poéticas”, a mesa que abordaria o tema “Leitura, poesia e edição: laços e pontes que unem o leitor, poeta e editor”.

Para mim, falar em Literatura pressupõe incluir na “casa literária” todo o tipo de intervenientes: autores, leitores, livreiros, editores, dinamizadores literários, entre outros, sem excluir, actuando de modo holístico. Se é verdade que fundamentados por ideias de Gilles Deleuze, encaramos o conceito “dobra”, como coexistência, verdades, abertura para diferentes tipos de debate ou de actuação, não é menos verdade que a ideia de dobrar, sugere ocultar o que fica dentro dobra. E, se não houver cuidado ou atenção, incorre-se no erro de passar por cima do outro.

Se por um lado, podemos colocar coisas dentro de uma dobra, para as resguardar, também podemos nos esquecer delas. Então, é mesmo válida a ideia a construir a partir de Deleuze de que “dobra” implícita agir de modo diferente. Eu diria holístico ou inclusivo.

Quando fui convidada a participar do evento “Raias poéticas”, mesa que abordaria a temática “Leitura, poesia e edição: laços e pontes que unem o leitor, poeta e editor”, as primeiras perguntas que me fiz foram: que laços é que unem diferentes tipos de “leitores” à editores? À poesia?; como integrar alunos e leitores excluídos do contexto educativo numa literatura excludente?; como unir leitores excluídos a editores excludentes?; Como ter uma ”casa literária” inclusiva?; como solucionar o desfasamento entre os pressupostos para a educação inclusiva e a edição de livros inclusivos?

Antes de responder a essas perguntas, recordo o contexto moçambicano, a partir do qual verifiquei existirem algumas soluções e desafios para esse quesito. Moçambique é um país multicultural, com onze grupos étnicos-culturais. Tem também recenseadas, cerca de 23 línguas, algumas das quais já com dicionários, gramáticas, textos ficcionais e didácticos, num universo no qual, a língua oficial é a língua portuguesa.

Lembro ainda que as línguas moçambicanas foram interditadas na época colonial, facto reiterado em 1975, após a proclamação da independência, no qual o português foi escolhido como língua oficial. Entretanto, até hoje, para uma população nacional de 30.832.244 de habitantes, da qual 14.885.787 são homens e 15.946.457 são mulheres, onde 34,02% são população urbana e 65.08%, população rural; cerca de 65%, que é habitante de zonas rurais, é falante do português como língua segunda.

Falar sobre “casa literária”, nesse contexto, deve ser e saber integrar todos os seus intervenientes: autores, leitores, livreiros, editores, dinamizadores literários, entre outros. Pressupõe ainda integrar, nesse grupo a Escola, esta que é instituidora e disseminadora do cânone literário.

Nesses termos, convêm lembrar que segundo a Lei nr.18/2018, de Dezembro o Sistema Nacional de Educação deve integrar crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais em escolas regulares. Para as escolas de educação especial vão alunos em casos de extrema necessidade. Até aí, está tudo bem.

O problema que se coloca é que a maioria, senão todos os professores das escolas regulares não estão habilitados a lidar com a deficiência. Além disso, segundo me constou, a partir de um programa radiofónico, c.f <https://youtu.be/VWnk6smvqCE> existem, no país, cerca de “728 mil pessoas com deficiência; 115 mil crianças, em idade escolar, têm deficiência e existem, apenas, 10 escolas especiais, num contexto no qual 66.4% dos 5 aos 24 anos estão fora do sistema de ensino”.

Não havendo como lidar com a deficiência em contexto de aulas regulares, certamente que, também, não haverá como lidar com determinado tipo de pessoas com deficiência em determinados programas de dinamização literária, como por exemplo os cegos, os surdos, os que têm deficiências mentais e os que tenham como língua primeira, uma língua moçambicana, porque, nem todas as escolas utilizam a modalidade de ensino bilingue e a produção de materiais de literatura em línguas moçambicanas é escassa.

O ensino bilingue é um tipo de ensino no qual, democraticamente, por escolha realizada dos pais, os alunos são matriculados na Escola, e submetidos a um ensino no qual, nos seus três primeiros anos de escolaridade, a língua de apreensão do saber é uma língua moçambicana e o português aparece como disciplina. E nesses anos, poucas crianças têm acesso à literatura produzida nas suas próprias línguas.

Junta-se aos problemas mencionados o facto de moçambique ter cerca de 30 editoras e apenas algumas sobre as quais falarei mais adiante, se dedicarem a ser inclusivas. São as seguintes, as editoras existentes no país: Trinta Zero Nove; Kuvaninga; Progresso; Plural; Fundza; Escola Portuguesa de Moçambique (Braço editorial); Fundação Fernando Leite Couto, Alcance; Selo Jovem; Índico; Xidjumba; Kuphaya; Oleba; Cavalo do Mar; Ethale; MOLIJU, Literatas (Movimento literário, que tem obras editadas); AEMO; JV; Escolar; Texto; Kwiri; TPC; Kulera; Atiko; Imprensa Universitária; Kwandika; AT; Marimbique; Capicua; Arquivo Histórico de Moçambique – AHM; “FUNDAC” (instituição cultural que publica as obras resultantes dos concursos literários que promove).

Entrevistada Sandra Tamele, fundadora da editora Trinta Zero Nove, referiu que a instituição foi criada a 30/09/2018, em celebração ao dia da tradução. Tem como missão traduzir e publicar obras em formato impresso, áudio-livro e em braile; privilegiando mulheres, narrativas actuais, pessoas com deficiência e minorias. Esse trabalho é feito com obras de autores moçambicanos e de autores de outros países. A editora tem também dado primazia a obras infanto-juvenis. No seu catálogo já existem cerca de 30 trabalhos, que incluem poesia, romances, contos. Esta instituição tem realizado saraus culturais de poesia, com tradução em língua de sinais.

Falei também com Elcídio Bila, representante da editora Kuvaninga, que me informou que esta foi criada em Maio de 2012, em Maputo. Tem utilizado capas de cartão (papelão reciclado, retalhos de tecido e outros) para cobrir o miolo dos livros que produz, unindo as folhas através de uma linha. É um trabalho artesanal.  Tem no seu catálogo cerca de 27 títulos publicados, nos géneros poesia, contos, drama, crónicas e ensaios de autores moçambicanos e estrangeiros. A sua missão é estimular novos escritores. Além disso, têm se dedicado a levar a consciência dos seus leitores à preservação do meio-ambiente.

É no âmbito do trabalho dessa editora que surge, em 2020, num formato misto: à tinta e em braile, a obra Sonolência e alguns rabiscos, da autoria de Énia Lipanga, poetisa e escritora moçambicana. Quando entrevistada à propósito da matéria neste artigo, referiu que o seu livro tem sido utilizado pela Associação de Pessoas com Deficiência Visual como exemplo do que se espera da arte. Da conversa tida com ela, destaco que dinamizado a literatura, declamando poesia em eventos com intervenção simultânea de interpretação em língua de sinais.

A literatura infanto-juvenil, começou a ser publicada em 1979, em Moçambique, entretanto, é um género com menos produção do que a produzida para um público mais adulto e que, ao longo do tempo foi sofrendo interrupções no âmbito da sua publicação. Mas, com a actuação da Associação Progresso, fundada em 2001, abriu-se uma etapa em que aumenta a produção desse género e inaugura-se uma etapa na qual a produção nesse género é também feita em algumas línguas moçambicanas.

Essa associação tem desenvolvido o seu trabalho em áreas rurais, nomeadamente: Niassa, Cabo Delgado, Maputo, Tete, Nampula e Zambézia; produz materiais impressos para apoiar o Ensino Bilingue.  Têm, também, produzido textos para serem utilizados na alfabetização de adultos, cujas temáticas incidem sobre habilidades para a vida. A editora desta Associação já tem produzidas mais do que cem obras.

A Plural Editores iniciou a abordagem à temática dos livros em línguas moçambicanas em 2013. Tem contribuído para o Ensino Bilingue e de registo de contos da tradição oral, através do projecto “Moçambique: todas as línguas, um país”. A primeira edição desse projecto foi realizada em Abril de 2014.  Como resultado desse trabalho, existem, actualmente, materiais, nas seguintes línguas: xichangana, emakwa, cinyanja, cisena, cicopi, cisena, gitonga, citsua, ciyao, elomwé e shimakonde.

Fundada em 2015, a Associação Literária Kulemba, cujos responsáveis pertencem à editora Fundza, tem organizado festivais infantojuvenis sobre o livro, feiras, declamação de poesia e concursos literários que têm resultado na produção de livros para esses públicos. Em 2016, a associação iniciou a produção de uma colectânea de contos intitulada À Volta da Fogueira, desta colecção já foram publicados três volumes; um em 2016, outro em 2017 e um terceiro em 2018. A Associação tem dialogado com os seus públicos, através do festival literário infanto-juvenil, designado Flik.  Em 2019, após ciclone Idai, a Associação publicou livros sob o lema “Livro também sara Feridas”.

Escola Portuguesa de Moçambique, especificamente o seu braço editorial tem, desde 2010, desenvolvido com escolas moçambicanas, um projecto de dinamização da leitura e da escrita, através de um programa denominado “Mabuku ya hina”. Desse trabalho têm surgido a publicação de obras infantojuvenis. Esta Escola tem um outro programa designado “projecto ler para aprender”, que teve início em 2012, através do qual estimula crianças das escolas moçambicanas ao gosto pela leitura e pela literatura. Para além desses projectos, a Escola tem publicado obras infanto-juvenis, resultantes da adaptação e do reconto de obras da literatura oral, por autores moçambicanos consagrados ou não.

A Fundação Fernando Leite Couto, fundada em Abril de 2015, tem no seu catálogo 32 obras, entre poesia, romance, conto e literatura infanto-juvenil é chamada a este convívio pelo facto de já ter publicado livros de literatura infanto-juvenil e de criar oportunidades para a tradução em peças de teatro alguns livros desse género e da autoria de diferentes autores na praça moçambicana. É um modo de se fazer dinamização literária que, para além de destacar um público muitas vezes excluído, têm dramatizado textos que, por sua vez são interpretados (em parte) em linguagem de sinais, para serem difundidas para um público infanto-juvenil. Há, também, um trabalho de estímulo para que crianças escrevam histórias e as contem a outras crianças, em modo dramatizado ou de conversa. Essencialmente, esta Fundação funciona como uma Escola de formação de novos autores ou de estímulo de jovens autores para o aprimoramento do seu trabalho.

Num país como Moçambique, abordar a temática da existência de laços que unam editoras aos seus leitores, deveria pressupor abrir a mente e falar sobre todo o tipo de leitores. Só assim é que a “casa literária” ficaria completa. Pressuponha ainda, que poucas editoras existentes se predispusessem a criar noas formas de diálogo com os seus públicos. Só assim é que haveria justiça social e justiça científica, feitas à medida da dobra de pensamento preconizada por Gilles Deleuze, que inspirou o movimento Raias Poéticas.

*Sara Jona Laisse. Docente na Universidade Católica de Moçambique. Colaboradora na Fundação Fernando Leite Couto. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

Uma senhora, funcionária do Estado, ficou envergonha quando sua filha menor disse, na maior das inocências, respondendo a uma pergunta de uma sua colega, que quando crescida quer ser marhandza como sua tia. Entenda-se marhandza como uma mulher interesseira.

A resposta foi motivo de riso às gargalhadas para o embaraço da mãe que esperava por algo melhor que lhe deixasse orgulhosa, a sair da boca da menina. Que tivesse dito, por exemplo, que quer ser médica, engenheira, bióloga ou outra profissão, menos essa de marhandza.

As senhoras riram-se porque não entenderam o que está por detrás da resposta. Ridicularizaram a criança e, por tabela, os seus pais, porque não compreenderam a gravidade do assunto.

Consideraram-na perdida em termos de futuro que se pode esperar dela porque não tinham a ideia do que o sonho da criança significa para elas mesmas, como mães, para os pais da menina e para a sociedade em geral.

Mas, afinal, o que há de mal na escolha do que a menor quer ser quando atingir a idade de adulta? Onde está a graça no que a criança disse?

O ponto é que por detrás daquilo que a menor disse está uma forte e crua mensagem. A questão da transmissão de valores geracionais. Para a criança, a tia é uma referência, o seu ídolo, impressionada com boa vida que ela leva. A possibilidade de poder ter o que quer, nomeadamente dinheiro, telefone caro, cabelos postiços, roupas e outras coisas.

Acha que para atingir aquele nível de satisfação não é preciso fazer nenhum esforço. Basta ser marhandza, tudo fica resolvido. O resto cai que nem uma fruta madura e pronta para consumir. Que não é preciso ir à escola para sonhar com uma boa qualidade de vida no futuro.

É assim como as coisas acontecem na sociedade. As crianças buscam referências dos mais velhos. De pessoas mais próximas que tanto podem ser primos, tios, avôs e pais, como amigos da família.

Vezes sem conta, os petizes caem na tentação de constituir ídolo uma pessoa que não tem uma conduta exemplar na sociedade impressionados com algumas fantasias ou vida fácil que ostentam, como é o caso vertente.

Por isso, no lugar de rirmo-nos da criança que escolheu ser marhandza quando adulta, devíamos ficar muito preocupados porque se há um culpado nisto, não é a criança, mas, isso sim, o núcleo familiar onde ela está inserida. As pessoas que estão à sua volta e que, ao longo da vida, se transformam em ídolos, cujos actos são vistos como exemplo a seguir, neste caso concreto a tia da menina.

Devia ser motivo de muita preocupação para todos nós porque a sua escolha não reflecte propriamente o seu verdadeiro sonho, o sonho da infância que qualquer criança tem. Representa o que é a sociedade de hoje. O rosto de uma sociedade que perdeu por completo os seus valores.

Uma sociedade que antes era educadora mas que hoje precisa de ser educada para educar melhor os seus constituintes. Para reassumir as suas responsabilidades nesse campo perante os mais novos.

A sociedade em que vivemos já foi melhor. As crianças eram educadas quer em casa, quer na comunidade. Um pai era sempre pai no seu lar e na comunidade. O mesmo em relação a uma mãe. As duas figuras granjeavam muito respeito, simpatia e consideração no seio de todas as crianças.

O seu conselho, a sua chamada de atenção em caso de algum desvio comportamental era de cumprimento rigoroso e sem qualquer tipo de contestação por parte das crianças. Hoje, isso é impossível. Qualquer tentativa de um adulto de corrigir a uma criança por práticas erradas pode resultar em insultos ou humilhação do estilo “quem és tu para me chamares atenção?”.

Naquela altura, não havia espaço para recusar ser educado por um adulto só porque ele não é seu pai ou mãe biológica. Os avôs eram sempre avôs para todos os petizes. Os adultos estavam em sintonia na educação dos mais novos. Cada um deles tinha autoridade perante uma criança, igual a dos seus pais. Podiam, se bem entendessem, castigá-la em caso de mau comportamento.

Nessa altura, a sociedade transmitia outro tipo de valores, nomeadamente o respeito mútuo e pela vida, honestidade, amor ao trabalho e outros. Era uma sociedade que tinha muito para dar em termos da educação. Produzia ídolos diferentes dos que temos hoje. Ídolos que eram um exemplo na comunidade.

Se alguém fizesse a mesma pergunta que foi colocada à futura marhandza a uma criança desse tempo e nessa altura, teria tido uma resposta que orgulharia os seus pais. Que quer ser professor, inspirando-se no seu de lá da aldeia; médico(a) ou enfermeiro(a), à semelhança da titia ou do titio que cuida dele(a) quando doente, no pacato centro de saúde da comunidade; agricultor, espelhando-se no patrão do seu pai, tio, avô, primo ou irmão com grandes machambas de cultivo de milho, mandioca, feijão e outros produtos.

Infelizmente, hoje em dia a sociedade em que vivemos produz alguns ídolos da vergonha. Gente que ostenta riqueza ou bem-estar na sociedade sem um histórico. Gente que ganha dinheiro através de esquemas criminosas, mas infelizmente tido como referência para os mais novos pela qualidade de vida que levam em que não têm falta de nada. Os “ricos” de actualdade que a sociedade se encarrega de os venerar, admirar e, mesmo, aplaudir pela sua rápida ascensão na vida, ao invés de os questionar como era no passado.

Existem duas correntes que se ocupam de definir o conceito de nação. Os objectivistas, que sublinham a geografia, a raça, a língua e as culturas. Por outro lado, existem os subjectivistas, que recorrem e valorizam a vontade colectiva, face a um determinado presente e destino comum. Os artistas, sempre mais sublimes e filósofos na sua asserção, procuram e descodificam novas fórmulas e outros horizontes para redefinirem os eles que nos unem como moçambicanos, como irmãos e como humanidade. Reencontros da nação pela arte, pelos tons e pelo amor.

Magafusso, esse artístico plástico registado em Inhambane céu, como Diogo Luís Daniel, oriundo da terra moçambicana mais próxima do Paraíso, céu da terra de boa gente, encontrou as suas próprias formas de filosofar à nação, colocando, amiúde, as aporias e as vicissitudes como mote maior da criatividade. Magafusso, sabe bem, com todas as letras do seu alfabeto artístico, que faz parte da responsabilidade dos intelectuais e criativos das artes, pensar, reflectir e participar, sempre que possível, na redefinição da construção deste país e desta nação. Usa as artes e telas, como terapia e bálsamo para minimizar a dor do drama, do conflito da morte e da tragédia, e maximiza a esperança de um novo dia, de um amanhecer mais colorido e de um sol que ilumine a todos com a mesma tonalidade e indisfarçável arco-íris.

Não temos e nunca teremos a capacidade para modificar o passado. Todavia, isso não nos impede de, com rigor, retomar o presente, com outras racionalidades e paradigmas, para que o futuro se aporte de outros ritmos e sentimentos. Magafusso faz parte desse naipe de artistas que imagina um futuro menos ilógico, inapreensível e irracional. Ele aprendeu a sofrer no período da guerra dos 16 anos, ou será guerra dos 45 anos, quando olhou para as pinturas de Jacob Macambaco e Bento Mukeshuana, que viveram esses dilacerantes e perturbadores momentos, como se tivesse sido à catarse de uma apocalíptica epopeia.

Conhecido por poucos e referenciado como “talento lapidado”, Magafusso retoma as consequências, as perplexidades e o estado de aporias de um Moçambique contemporâneo, com limitados e intermitentes períodos de paz, impregnando nas telas as cores monótonas e pálidas que reabrem as feridas de uma nação que almeja uma identidade sonhada pelos moçambicanos. Magafusso reinventa uma reconciliação através de uma linguagem paradoxal.

Com as cores mais quentes, encontra na mulher e mãe, o equilíbrio da família e do dom da divindade. Por um lado, essa mesma mulher e família, são substratos e símbolos antimilitaristas. Símbolos da concepção autoritária e excludente. Mas, por outro lado, os seus traços revelam uma hermenêutica que faz jus ao conhecimento e a verdade. Então, não importam as cores e os disfarces, nem as ideias restritivas que suavizam a realidade, pois, o sentido mais completo desta nação está ali reflectido e não requer intelectualidade para ser descortinado.

Magafusso é um artista consagrado. Uma voz silenciosa e didáctica que deixa suas marcas dentro e além-fronteiras. Com frequência, algumas das suas obras são transportadas para a Europa. Compradores que fazem leituras mais trabalhadas e requintadas dos seus traços, mas, por outro lado, deixa sua marca para instruções nacionais, regando a esperança de uma reconciliação que tarda e que pode ser uma tela onde, todos nós, somos chamados a pincelar.

Magafusso abstém-se dos holofotes e da ribalta. Vive enfático da calmaria e do “low-profile”. Participou em colectivas na casa de cultura do Alto-Mae, de 1995 a 1999. Parece ser seu terreno de reconciliação. Em 1999 e 2001, participou na magna exposição da SADC, esse órgão regional que deveria ser mais dos artistas e fazedores de cultura, dos empresários, do povo, do que dos políticos. Caminhos certos e seguros de uma génese regionalista, mas nunca regional.

Para esta exposição individual de 2021, ameaçados pela pandemia e pela fragmentação da essência da humanidade, fomos convocados para revisitar povo, a sua arte e espiritualidade. Fazer uma introspecção das suas quatro individuais realizadas em Inhambane, (1992,1994,1999 e 2003). Um Magafusso que vai muito para além das obras expostas, incluindo as exposições feitas em Maputo, entre 2001 e 2003, na galeria Shanti Graf e no Centro de Estudos brasileiros, em 2004.

Em boa verdade, fomos impelidos a rever as imagens que repousam próximas dos tectos e dos murais das igrejas, das escolas e faculdades e, sobretudo, pela beleza que conferem às mentes dos fiéis, do clero e da santidade eclesiástica, os alicerces das bênçãos. As congregações católicas reencontraram nos seus traços, a forca da espiritualidade e da fé. Os crentes, de todas as idades, credos e raças, buscam essa esperança que parece inatingível, incansável e negada pelos tempos. Mas, são estas as imagens que conferem a Magafusso a possibilidade de embrenhar pelas mentes dos acólitos, das almas sofredoras e dos devotos praticantes, a força da razão, que os leva em busca dos subterfúgios e das racionalidades que os humanos ofuscam.

Magafusso não conviveu com Malangatana e nem com Naguib. Porém, retira do Pai da pintura moçambicana, o pendor de uma marca firme e lustrosa, enquanto bebe do Mestre, o nudismo de um povo que se quer indumentar e não desfaz os caminhos desses reencontros. Nem teve contacto com Samate Mulungo. Mas, conhece Noel e Mankeu. Não tem argumentos para seguir as linhas de todos. Tem a obrigação de recriar e incutir, nas suas telas, a sua identidade e marca. Fala com apreço e carinho de outros pintores, dos mais jovens e que procuram a sua linha identitária.

Pinta desde 1983, como resultado de sua inspiração e da vontade de conferir a este país a meritocracia da arte, a sagacidade da cor e dessa veia genética de seus pais, devotos religiosos e amantes de cultura. Nas várias exposições das quais participou, dois títulos nos sugerem a sua forma de conceber Moçambique; “No futuro haverá sono, para homens e mulheres” muito condicente com seu ideal maior e “o futuro é um barco que nos conduz a Deus”. Quem sabe estes os títulos de sua própria vida e talento. Isto é Magafusso.

Para quem não o conheça, porém que tenha a oportunidade de contemplar suas telas, fica a nítida sensação de que o autor tem alguma afinidade para com a obra “Guernica”, de Pablo Picasso, pintada a óleo em 1937, descrevendo as consequências de um bombardeamento aéreo, sobre a população civil desta cidade, na Espanha. Todavia, rapidamente, desviamos a linha do horizonte para pensarmos na espiritualidade. Diga-se, revemos  a pintura de Kandisnky, o famoso fundador do suprematismo, com um recorte acentuado sobre os diálogos entre a arte abstracta e a filosofia. Para Magafusso, a filosofia africana.

Esta noção de espiritualidade em Magafusso, reflecte e expressa, inequivocamente, esta sufocante e incompreensível dor e sofrimento do seu povo e seus contemporâneos. Estes são os espaços alternativos de clamor por uma outra ordem, um novo humanismo e pelas valências da democracia tão propalada como a salvação do mundo. Simultaneamente, parece pedir a divindade e a força de todos os Deuses, aos quais Moçambique venera e se ajoelha, para aliviarem estes destinos e pobreza.

 

Dizem que o mundo só anda/ tendo à frente um capataz.

in “Os índios da meia-praia”, Zeca Afonso

 

A História de Moçambique é um lugar onde flutua o poder criativo de Licínio Azevedo. Depois de a ter ficcionado de diversas formas, por exemplo, em Coração forte – relatos do povo armado (histórias, 1982), Virgem Margarida (filme, 2012) e Comboio de sal e açúcar (filme, 2016), com efeito, mais uma vez o realizador regressa ao passado para de lá retirar emoções de uma época que teima em emitir mensagens ao presente. A curta-metragem Nhinguitimo, adaptada do conto de Luís Bernardo Honwana, expressa essa vocação do cineasta olhar para trás como quem pensa o seu tempo no espaço onde habita.

Na versão da Ébano Multimédia e Mahla Filmes, Nhinguitimo é uma série de narrativas interligadas, curtas, mas profundas. No centro da história encontra-se Vírgula Oito (António Sitoi), uma personagem tão sonhadora quanto inconformada com as adversidades impostas a si e a sua gente. No seu futuro cabem N’teasse (Silvana Pombal) e os fartos campos verdejantes que vaticinam uma vida conjugal confortada. No entanto, no auge dos seus vaticínios falíveis, eis que a ambição de um comerciante ordinário, Rodrigues (António Cabrita), corrompe o Administrador do lugar (Luís Sarmento), convencendo-o a arrancar as terras aráveis do pobre camponês. Aí logo se forma uma ficção que coloca a justiça apenas ao benefício dos mais fortes (os colonos portugueses), fazendo com que, como afirma Pepel, personagem de Albergue nocturno, de Máximo Gorki, a honra e a consciência sejam coisas boas para quem tem autoridade.

Em termos da sinopse, Nhinguitimo não é uma história surpreendente. Logo se vê, as questões ligadas às excentricidades coloniais em Moçambique exploradas na curta-metragem já foram ficcionadas em livro, além de Luís Bernardo Honwana, por autores como Isaac Zita, João Dias, Guilherme de Melo, Orlando Mendes ou Lília Momplé. Ainda assim, interessa ver como as cenas do filme de Licínio Azevedo estão encadeadas e como através de diálogos (às vezes apaixonados) entre as personagens se projectam as relações de afinidade ou hostis. Nesses diálogos, claro está, facilmente se destaca Vírgula Oito, pela precisão e acutilância interpretativa. Aliás, Vírgula Oito é de longe a personagem mais interessante da história, graças à performance de um actor que soube interpretar o papel em todos os momentos da ficção. António Sitoi soube de todo se colocar ao nível da tão exigente personagem instável, quer ao nível da expressão corporal (a envolver tiques, gestos, movimentos), quer ao nível da expressão oral. Que dicção rhonga/changana! De facto, no uso da fala, Sitoi permite a Vírgula Oito concretizar o entendimento de Roman Jakobson sobre a palavra (enquanto signo verbal): a união do som e do sentido, no caso do filme, muito dependente da emoção que move a enunciação da personagem.

No capítulo das performances dos actores, vale ainda destacar as convincentes aparições de António Cabrita e Luís Sarmento. A espontaneidade do primeiro e austeridade do segundo contribuíram para a concretização de uma boa cena hilariante no interior do bar de Rodrigues, onde ficam clarificados os contrastes linguísticos de uma sociedade bem bipolarizada.

A curta-metragem de Licínio Azevedo pretende ser uma película na qual se reúnem a acuidade de recontar a História de Moçambique através de eventos marginais, ocorridos numa pequena aldeia algures em Lourenço Marques. Do mesmo modo, a ficção tem a particularidade de relançar esse debate sobre o racismo, afinal ainda actual. Todo a preto e branco, Nhinguitimo atravessa a época colonial de forma transversal, quando cristaliza as possíveis reacções de uma sociedade que se farta da arrogância dos que, para enriquecerem, não se importam de chupar os desfavorecidos até ao tutano. Rodrigues não é apenas um homem branco, igualmente, é o eufemismo de uma quizumba sem tonalidade de pele, que desterra gente, apropriando-se dos seus recursos na tentativa de expandir o seu império fel.

Não obstante as situações perniciosas à volta de um poder ilegítimo, a actuação de Vírgula Oito serve para protestar contra essa velha ideia que Zeca Afonso ironiza na música “Os índios da meia-praia”: “Dizem que o mundo só anda/ tendo à frente um capataz”. Apenas Vírgula Oito compreende a falsidade da afirmação. Os outros, casos de Maguiguane (Jorge Vaz) e Machumbutana (Ivan Barrama), cegos pelo medo, vacilam e lá abandonam o camponês contrariado.

Quem for a ver o filme, primeiro, deve aproveitar cada segundo. 22 minutos (com ficha técnica) passam num ápice e quando isso acontece até custa acreditar no final do filme. Segundo, quem for a ver o filme irá conectar-se com a outra margem da História de Moçambique (sem heróis nacionais), lá onde se cruzam a realidade e a delicada arte da representação. Seguramente, o telespectador irá deixar-se impressionar por uma excelente direcção de fotografia (Pipas Forjaz) e pela selecção/ misturas musicais protagonizadas por Joni Schalwbach. A trilha sonora cumpre no filme a função importantíssima na sedimentação de tudo o que não pode ser descrito através das falas das personagens. Nhinguitimo é tudo isso: um filme no qual Moçambique se reencontra, de alguma maneira.

 

Título: Nhinguitimo

Realizador: Licínio Azevedo

Produtoras: Ébano Multimédia e Mahla Filmes

Director de fotografia: Pipas Forjaz

Produtor-Executivo: Jorge Ferrão

Classificação: 15

George Perry Floyd Jr. um cidadão norte-americano, negro,  assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020, estrangulado pelo “policia branco Derek Chauvin, que ajoelhou-se sobre o seu pescoço durante uma abordagem por supostamente ter tentado usar uma nota falsa de vinte dólares em um supermercado.

Foi assim que o mundo descobriu este novo episódio dos polícias BRANCOS qualificados de racistas. Quando fui levar meu filho Kensyle na escola, ele me falou que um BRANCO havia morto um PRETO porque o tal branco é racista. Eu como não sabia e ainda não sei se é verdade ou não que um branco matou um preto, porque é racista, perguntei a kensyle. Filho, mas como sabes tu que ele é racista? O puto olhou para mim e disse é o que todos dizem. Eu na verdade vi um ser humano covarde matar outro ser humano indefeso, disse-lhe.

Das várias vezes que me deparei com situações envolvendo racismo duas me marcaram particularmente, a primeira foi em Moçambique, quando um amigo do meu irmão mais velho vendo que a minha ex-esposa era estrangeira perguntou “Os pais da tua mulher enviam dinheiro todos os meses?” Essa pergunta surgiu quando ele soube que eu era o único a trabalhar na altura. A segunda foi a quando da minha chegada a Bélgica, um preto de nome Jean-Pierre diz para mim numa conversa, “É melhor ires ao CPAS (assistência social), não te metas em ser empreendedor”.

Nestes dois casos podemos ver dois indivíduos que sofrem de graves problemas de complexo de inferioridade e que é o nível mais elevado de racismo. Nós fomos condicionados a pensar  e nos vermos de uma forma. Embora alguns ainda queiram culpar a escravatura, hoje nós pretos somos os principais promotores desse racismo. Nós somos corajosos o suficiente para que em cada Telejornal digamos aos nossos filhos que assistem que para construirmos nossas estradas, escolas e mesmo para as nossas doenças precisamos que o BRANCO (estrangeiro) seja a solução. Depois de anos e anos a  “auto educar” desta forma, não é surpreendente que tenhamos pessoas a pensarem como os dois exemplos acima citados, não?

Para os que acreditam que brancos são racistas, gostava de dizer que tal como pretos, brancos têm sentimentos, são humildes, bons, maus, susceptíveis de serem manipulados, sentem frio, amam, detestam. Neste caso, se eles são racistas então nós também somos. Tal como preto está sendo manipulado a se ver inferior, o branco também está sendo manipulado a se ver como superior.  Pouco tempo após ter-me instalado a Charleroi (Bélgica), estava sentado no terraço de um café Turco, quando vem um jovem branco e diz-me: “Na boa? Eu te conheço, te vejo aqui na zona. Olha, quando me vires não exite, podes me dizer bom dia, eu não sou racista”. Olhei para ele e respondi, “Eu sou muito racista e não aprecio gente de raça branca. Os proprietários do café,  que já me conheciam, explodiram de rir e o tipo ficou a olhar para mim como se eu tivesse dito que sou Bill Clinton. Aqui temos um exemplo de alguém que sofre do mesmo problema de “mediatização racial”, este jovem sofre do mesmo problema de racismo que os dois pretos que mencionei acima. Ele foi ensinado que é superior, mas ao mesmo tempo acha que deveríamos ser tratados de forma igual. Não sabe lidar com a situação.

 

Emancipate yourselves from mental slavery. None but ourselves can free our minds.” – Bob Marley

Porque as potências descobriram que esta emancipação é difícil de ser implementada, decidiram tirar proveito dela. Os verdadeiros promotores do racismo (uma pequena minoria de raça branca) compreenderam que os seres humanos têm dificuldade em pensar, preferem que lhes seja dado tudo já pensado e concluído. Então, eles usam seu poder (mídia) para passar o pensamento que eles querem que as pessoas tenham. A mídia ocidental diz que um BRANCO matou um PRETO e branco é racista. É assim como eles querem que racismo seja apercebido. Gostava de voltar para o caso de George Floyd e perguntar aqueles que dizem ou pensam ainda que o policia é racista. Afinal, como sabem que ele assassinou George Floyd porque é racista? Pode ser um psicopata, não? Porquê racista então? Alguém esta(va) na cabeça do policia para saber o que realmente o motivou? Eu não digo que é uma ou outra coisa, apenas sei que não sei porque ele fez o que fez. sei também que não me posso guiar pela opinião de pessoas que procuram sem descanso elevar uma raça  em detrimento da outra.

Como é possível nunca termos visto ato de racismo de um preto contra branco a ser mediatizado? Será que preto não pode ser racista? Para os que preferem ficar condicionados, como é o caso do homem do café Turco, sim. Para ele preto não tem nível para ser racista. Para o amigo do meu irmão idem, preto não tem capacidade para sustentar um branco. É assim como ambos foram condicionados. É por esta razão que Bob Marley diz na música “Redemption song” que devemos nós mesmos nos livrarmos do complexo de inferioridade e/ou superioridade.

Black Lives Matter

Caro leitor, já se perguntou porque é que nenhum grupo de direitos cívicos nos EUA e no mundo tem a mesma mediatização que este? Eu creio que a força deste slogan serve os interesses dos verdadeiros promotores do racismo. Este slogan diz “Vidas Negras Importam”. Sem nos apercebermos nós estamos a dizer, olha raça superior, nossas vidas “também” são importantes. Podem vocês nos dar direito a existência? E essa tal raça superior conseguiu ver aqui uma forma de lembrar a raça inferior que para vossa existência vocês tem de nos pedir autorização. Imagine a vergonha que sente o universo (Deus) quando olha para nós (pretos) nos humilharmos dessa forma? É com olhos incrédulos que vejo pais a levarem seus filhos para manifestações e dizerem, venho aqui mostrar meu filho que ser preto é duro. como quem diz, venho lhe mostrar o que te está destinado.

Por incrível que pareça, este complexo de inferioridade é confortável, razão pela qual não o queremos abandonar. Ser vítima é excelente, não requer nenhum esforço, motivação e nem uso da inteligência. Reparem que, de todas as vezes que saímos para reclamar sobre o racismo, acusamos os ditos racistas de explorar as nossas riquezas, de nos negarem oportunidades e fingimos acreditar, ou ainda acreditamos mesmo, que se o tal racismo desaparecer o mundo será melhor para nós. Neste caso, como eles é que são racista só eles é que estão em posição de acabar. Veja que aqui atribuímos a eles (os tais racistas) a responsabilidade sobre nosso futuro e sendo assim, nós não podemos fazer mais nada senão sentar e esperar pelo fim do racismo. No entanto, se decidirmos agir como Bob Marley sugere, aí temos de trabalhar, daí nossa dificuldade, por isso que é confortável ser vítima do racismo.

Antes mesmo de ter sido descoberto o primeiro caso de COVID19 em Moçambique, o presidente Francês diz em conferência de imprensa: “Temos de nos organizar para ajudarmos os nossos irmãos africanos”. Essa é uma mensagem clara que vocês pretos não precisam pensar. Deixe que nós vamos fazer por vocês. É disto que nós gostamos.

No Jornal O País, do dia 10 de Agosto 2021, na rubrica económica, Ernesto Martinho fez um artigo sobre o trabalho nefasto da fundação Bill Gates em África, precisamente sobre as consequências para a segurança alimentar em África, do lobbying para alteração das leis sobre sementes. É a este grupo de gente que a promoção do racismo  interessa. Por outro lado, será que não seria este um sério motivo para sairmos as ruas e defendermos nossos interesses. Aqui estamos a falar, talvez mesmo de modificações no nosso sistema imunitário. Mas é evidente que não vamos fazer nada, como não nos foi dado nenhum pensamento e nem conclusão sobre o assunto e nem está sendo mundialmente mediatizado, tudo fica como está e certamente que a lei para alteração de sementes defendida pela fundação em África vai ser aprovada.

Cultura / Racismo

O maior medo dos seres humanos quando vêem pessoas diferentes chegarem na sua comunidade é de perder sua cultura. Não necessariamente medo da raça. A Bélgica é um país que ilustra bem esse exemplo, duas comunidades (Flamenga e Francófona) numa luta frequente para preservarem as suas respectivas culturas. Embora essa diferença, ambos decidiram se unir e criar riqueza para o seu país. A comunidade negra é na minha opinião a mais rica neste momento, que sejam em termos culturais, de recursos naturais e mesmo em termos de capital humano. É nossa responsabilidade  perceber que racismo é apenas uma ideia e uma visão de exploração que está sendo muito bem mediatizada (por uma minoria) e que pessoas brancas no geral não são racistas como nos pretendem fazer pensar. A partir do momento que compreendermos que a diferença cultural é o único problema que realmente diverge os seres humanos, vamos nos aperceber que nossa raça não é um problema. Nosso problema é ignorância com relação a nossa inteligência e potencialidade. Precisamos concentrar nossas energias no que realmente nos interessa. Educar os nossos filhos com a nossa história, traçarmos planos de desenvolvimento econômico e sobretudo pararmos definitivamente com o espirito de vitimização. Temos de ter vergonha desse sentimento.  EU ACREDITO EM NÓS.

 

Recomendação de livro para o mês de Setembro 2021: Imparável – “Bento Mário”

Samuel Gerson Andrisse

Especialista Internacional em Recrutamento

Autor do livro “Be ready for your next job interview”.

www.kensyle-recruitment.com

Reformar- Research for Mozambique

A violência nas prisões é o símbolo de uma crise global dos direitos à saúde e a viver em um ambiente prisional que respeite a dignidade humana. Enquanto um dos Princípios Básicos das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos afirma que todos os reclusos devem reter os direitos humanos e as liberdades fundamentais estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos com as excepções inerentes ao encarceramento, este princípio está longe de ser respeitado. Diariamente há reclusos que sofrem abusos e outros tipos de violência.

A violência sexual é definida pela Organização Mundial da Saúde como todo “acto sexual, tentativa de consumar um acto sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou acções para comercializar ou uso de qualquer outro modo, a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho”. A violência sexual abrange o abuso sexual considerado como o envolvimento em actividades sexuais, físicas ou psicológicas, de uma pessoa incapaz de compreender e de dar consentimento informado seja porque está sujeita a restrições físicas e / ou psicológicas, e / ou porque não está ciente das suas acções (em razão da idade, de uma determinada condição psicofísica, etc.).

No mundo inteiro, midia relatam que, na maior parte dos casos, o abuso sexual nas prisões é perpetrado pelos funcionários, as mesmas pessoas responsáveis ​​por manter os reclusos em segurança, outras vezes são os mesmos reclusos. Seja cometido por funcionários da prisão ou por reclusos, o abuso sexual e outras formas de violência na prisão são reconhecidos internacionalmente como formas de tortura. É responsabilidade absoluta dos governos proteger a segurança dos reclusos e previnir a ocorrência do abuso sexual na prisão, independentemente do autor, representa o fracasso dos governos em cumprir esta responsabilidade.

Não existem estudos oficiais sobre a prevalência do abuso sexual na prisão e as formas de violência perpetradas, e poucos são os reclusos que se apresentam para relatar que foram abusados. No entanto, a maioria dos que estudam as prisões reconhecem que a falta de queixas formais não significa que as prisões sejam seguras. Pelo contrário, ex-reclusos e defensores dos direitos humanos em todo o mundo concordam que a maioria das vítimas de abuso sexual na prisão ainda se abstêm de falar sobre suas experiências por sentimentos de vergonha, medo de retaliação ou simplesmente porque acredita que nenhuma ajuda está disponível para eles/as (Bloom, Owen & Convington 2003).

Como o abuso sexual e a violência, a sexualidade nas prisões não tem sido, historicamente, objecto de pesquisas. Entretanto para analisar o abuso sexual nas prisões é necessário compreender os comportamentos sexuais dos reclusos e o ponto de partida é que o recluso não abandona a sua sexualidade com o encarceramento. As poucas investigações internacionais sobre a sexualidade nas prisões são apenas fenómeno dos últimos anos e mostram que existem diferentes formas de comportamento sexual nas prisões (Pardue, Arrigo & Murphy 2011).

A literatura considera o comportamento sexual menos agressivo por natureza aquele reprimido, visto como uma resposta adaptativa do recluso ao ambiente prisional. A segunda forma de comportamento sexual é o autoerotismo. A masturbação tem uma história longa e turbulenta, duramente tratada não apenas pela sociedade, mas também pela religião e medicina. Em muitos países, nos Estados Unidos de América, por exemplo, masturbar-se em privado, na prisão, é considerado crime.

A terceira forma de comportamento sexual nas prisões é a homossexualidade. Como a masturbação, a homossexualidade tem sido e é uma questão fortemente debatida pelos governos, tanto nas sociedades quanto nas prisões. Entretanto, nas prisões, podem verificar-se dois tipos de homossexualidade: a verdadeira e a situacional. São considerados verdadeiros homossexuais aqueles/as cuja orientação sexual antes do encarceramento era a homossexualidade e homossexuais situacionais aqueles cujo comportamento homossexual teve origem na prisão. Enfim, a quarta forma de comportamento sexual é a heterossexual.

Tanto os comportamentos homossexuais como os heterossexuais podem ser consensuais e forçados e dar origem a abusos sexuais. Mais que para os homens, para as mulheres encarceradas, os comportamentos sexuais podem ser forçados através manipulação, obediência e coerção (Herberle & Grace 2009). A manipulação ocorre quando o sexo serve como uma ferramenta de troca de bens (por exemplo, drogas, cigarros) e / ou serviços (por exemplo, brigada de trabalho especial, favorecimentos para obter liberdade condicional). A obediência ocorre quando uma mulher participa de um relacionamento sexual com outra reclusa ou funcionário da prisão por medo, necessidade de segurança ou protecção. A coerção sexual inclui comportamentos que variam de pressão tácita ou aberta para se envolver em contacto sexual e até estupro forçado (Struckman-Johnson & Struckman-Johnson 2002).

Pesquisas mostram que a violência sexual nas prisões femininas também se manifesta entre reclusas e que funcionários homens e mulheres podem ser submetidos a formas de violência sexual perpetrada, por mulheres encarceradas, por prazer, comércio, transgressão, procriação, segurança e amor (Hensley et al. 2002, Smith 2006). Como já dito, os desejos sexuais e as necessidades emocionais não se extinguem quando uma pessoa é encarcerada “especialmente porque a intimidade sexual é um dos poucos aspectos de suas vidas que eles [os reclusos] ainda podem controlar…” (Smith 2006, p. 192).

O abuso e outras formas de violência sexual, quer cometidas em casa, na comunidade ou na prisão, têm graves consequências emocionais e físicas. Embora a experiência de cada vítima seja única, existem muitas reacções comuns, incluindo medo, vergonha, raiva e ataques de ansiedade. Para os reclusos, esses sintomas são exacerbados pela ausência de privacidade, falta de controle sobre seu ambiente e, muitas vezes, pela presença contínua na prisão da pessoa que os abusou e/ou abusa. As vítimas são também expostas ao HIV e a outras doenças sexualmente transmissíveis que podem ser mortais. Muitas vítimas de abuso sexual também sofrem lesões físicas. As reclusas podem estar em risco de gravidez e podem ser forçadas a abortar. Embora o aconselhamento e cuidados médicos imediatos – incluindo tratamento para prevenir infecções sexualmente transmissíveis – possam ser úteis, poucas reclusas têm acesso a tais serviços.

Em todo o mundo, a grande maioria dos reclusos acaba sendo libertada da prisão, trazendo todas as suas experiências – incluindo traumas – de volta para suas famílias e comunidades. Sem ajuda, as vítimas de abusos na prisão correm alto risco de desenvolver problemas crônicos de longo prazo, como depressão, sentimentos suicidas e dependência de álcool ou drogas. Por causa da vergonha e do estigma, os reclusos preferem não contar a ninguém, incluindo seus cônjuges ou parceiros sexuais, sobre o que aconteceu com eles – aumentando assim o risco de transmissão do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. Muitas vítimas de abuso sexual na prisão desenvolvem comportamentos que prejudicam a si mesmas, suas famílias e suas comunidades. Vítimas que não aprenderam a lidar efectivamente com sua dor emocional têm muito mais probabilidade de voltar a um comportamento de risco ou criminoso, são vulneráveis ​​à pobreza e enfrentam um alto risco de retornar à prisão (Just Detention International).

Em Moçambique, comportamentos sexuais nas prisões foram historicamente vistos com descrença, objecto de controvérsia e desaprovação. A distribuição de preservativos nos estabelecimentos penitenciários, por exemplo, é facto recente. O governo tem negado, por décadas, a existência de relações homossexuais entre os reclusos, abordagem que pode ter afectado o número de reclusos que contraiu HIV/SIDA dentro das penitenciárias. Victor Madrigal-Borloz, Especialista Independente da ONU sobre a Protecção contra a Violência e a Discriminação com base na Orientação Sexual e Identidade de Gênero escrevia, depois da sua visita em Moçambique:

Homens homossexuais são particularmente vulneráveis na prisão. Eu ouvi muitos testemunhos concordantes de homens gays sendo estuprados e submetidos à pressão de outros reclusos e agentes penitenciários para permanecerem em silêncio. Como em qualquer outra prisão do mundo, alguns reclusos têm relações sexuais consensuais. Apesar da alta prevalência de SIDA e alto nível de infecção por HIV, as autoridades prisionais não fornecem preservativos, pois consideram que isso “encorajaria” as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

Alguns meses antes da visita do Especialista Independente da ONU, em Abril de 2018, uma força especial do Serviço Nacional Penitenciário conduziu uma busca na ala feminina do Estabelecimento Penitenciário Preventivo de Maputo. O incidente ocorreu à noite, quando todos os internos estavam dormindo. Os agentes procuravam telefones e outros objectos ilegais. Segundo informações confirmadas pelas reclusas e reportadas pela midia: “os agentes, todos de sexo masculino, forçaram algumas internas a tirar a roupa e se curvar enquanto um dos agentes introduzia a mão nas vaginas em busca de objetos proibidos, usando uma única luva para todas” (Club of Mozambique). Alguns anos antes, em Março de 2014, o renomado jornal Sul-africano Mail & Guardian relatava que mulheres sul-africanas reclusas em Moçambique eram abusadas sexualmente e os agentes penitenciários exigiam sexo em troca de sabão ou pão.

A recente investigação do Centro de Integridade Publica (CIP) sobre a exploração sexual de mulheres encarceradas no Estabelecimento Penitenciário (EP) Especial para Mulheres de Ndlavela traz novamente à luz, um dos símbolos da crise global dos direitos humanos: o abuso sexual nas prisões. Abusos que foram também confirmados pela Comissão de Inquerido instituída pelo Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos. A investigação jornalística e o inquérito sublinham o envolvimento de guardas e homens externos ao sistema penitenciário; a troca de sexo em por comida, droga ou promessa de tratamento diferenciado; uso de maus-tratos e outros tratamentos degradantes e desumanos; gravidezes e abortos forçados. O problema do abuso sexual nas prisões existia, continua real e poderá continuar e não apenas no EP de Ndlavela.

Entretanto, em primeiro lugar, precisamos pesquisar os comportamentos sexuais nas prisões para identificar as consequências positivas e negativas de tais comportamentos para mulheres confinadas. Uma vez que uma compreensão mais abrangente da sexualidade na prisão tenha sido desenvolvida, políticas devem ser formuladas para abordar a conduta problemática que de outra forma ameaça mulheres encarceradas e que falha em garantir um ambiente correcional seguro. As pesquisas não devem ignorar a correlação entre a violência sexual na sociedade em geral e a violência sexual dentro da prisão. Pesquisas sobre o assunto tendem a considerar a violência de mulheres nas prisões como diferente da violência a mulheres na comunidade (Eigenberg 2000). Em vez, o abuso sexual na prisão reflecte e reforça a perpetuação de construções de gênero e a cultura da masculinidade que existem na sociedade.

A liderança das prisões e a formação dos agentes são elementos cruciais. Educar os directores de prisões e todos os funcionários sobre comportamento sexuais e a violência nas prisões pode ajudar a resolver alguns dos problemas que surgem da falta de consciência ou percepção do assunto. As formações devem ser incluídas na formação inicial da Escola Prática de Lhembe e na formação contínua.

Directores dos EPs e todos os funcionários assim como guardas penitenciários devem estar sujeitos a uma estrita supervisão e monitoria. Para proteger a segurança dos reclusos, as prisões devem adoptar fortes sistemas de monitoria interna e estar dispostas a submeter-se a auditorias regulares por agências externas. O Protocolo Opcional à Convenção contra a Tortura foi ratificado por Moçambique em 2014 e a Comissão Nacional dos Direitos Humanos é o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura que deve realizar visitas regulares às prisões com o objetivo de prevenir a tortura.

Prisões para mulheres devem apenas ser geridas e monitorada por um director e funcionários e agentes de sexo feminino para eliminar o abuso sexual dos homens com as mulheres. A Regra 81 das Regras de Mandela afirma que estabelecimentos prisionais e ou alas destinados a mulheres devem ser colocados sob a direcção de um funcionário do sexo feminino. A Regra também afirma que nenhum funcionário do sexo masculino pode entrar na parte do estabelecimento destinada às mulheres sem ser acompanhado por um funcionário do sexo feminino e que a vigilância das reclusas deve ser assegurada exclusivamente por funcionários do sexo feminino. É notório quanto complicado seja, pela administração penitenciaria poder respeitar essas regas, considerando o número exíguo de funcionários e agentes de sexo feminino. Entretanto esforços devem ser feitos para que o respeito dessa Regra seja uma regra e não uma excepção.

Perpetradores de abuso sexual devem ser responsabilizados. O artigo 194 do novo Código Penal (Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos) afirma que “é punido com a pena de prisão de 2 a 8 anos quem, tendo por função a guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa, a torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana”. No novo Código Penal, espancamentos, eletrochoques, simulacros de execução ou substâncias alucinatórias ou infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave, entre outros actos, são considerados torturas. O número 4 do mesmo artigo afirma que “se dos factos resultar suicídio ou morte da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 16 a 20 anos”.

Os reclusos devem também ter a possibilidade de falar regular e livremente sobre os seus comportamentos sexuais para que possíveis abusos sejam interrompidos. Debates que valorizam a segurança e dignidade dos reclusos, tornam mais fácil para as vítimas falarem sobre seu abuso e, em última instância, ajudarão a impedir outros abusos na prisão. Junto com um quadro legal e políticas aprimoradas, uma mudança nas atitudes podem ajudar os governos para que os reclusos retenham todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais estabelecidos no Direito Internacional dos Direitos Humanos, incluindo os direitos à saúde e a viver em um ambiente respeitoso da sua dignidade humana.

O corpo do defunto Bigwana poderia sugerir, para quem o visse passar, que ele era um indivíduo associado ao pugilismo. Isto é, aquele físico era o mais apropriado, o melhor talhado para aquele género de modalidade desportiva. Alto, espadaúdo, com os braços longos e musculosos, e umas queixadas taurinas outra coisa não poderia ser senão um verdadeiro gladiador. Até alguns, muito mais franzinos do que ele, eram lutadores de renome. Ele poderia ser um campeão incontestável no ringue do pavilhão da Malhangalene.

Outra linha de pressão provinha lá da empresa. Um colega sugeriu:

“ Olha lá “Bigwana”, porque razão não praticas boxe? Tens um corpo para seres um campeão”.

“ Com aquilo que tenho cá dentro de mim, era capaz de matar aquela malta toda. Isso não dá para mim. Para ser campeão na Malhangalene nem precisava de treinar”, assim ele respondia, a encolher os ombros com indiferença.

Essa conversa vinha a propósito de um espectáculo que, manhã após manhã, se oferecia aos moradores da zona, a dum pugilista de nome “Pablo Sam”, que gozava de fama de ser um lutador como poucos havia em todo o subúrbio. Em fama e habilidade só era superado pelo Carlos Fonseca “o Gato” e pelo Francisco “Cicatriz” Bila. Eram estes os baluartes do boxe nos ringues de boxe da capital, as figuras de referência dos desportistas de todo o subúrbio. Se o primeiro era notório pela eficácia dos seus golpes e pela graça dos seus passos em desnortear os adversários, para depois liquidá-los com upper-cuts e jabs, o segundo só sabia fazer uma coisa: bater, bater mais e bater cada vez mais, para subjugar os adversários à força dos seus punhos. Era uma temeridade subir ao ringue e desafiar adversários deste calibre.

O “Pablo Sam”, de nome verdadeiro Paulo Samuel, adquirira, ou assim se intitulava porque o apodo era sonante e mais à altura de um pugilista de reputação internacional, como esses cujas imagens se publicavam em magazines desportivos da África do Sul. O seu palmarés era impressionante. Na sua carreira oficial de vinte e três combates, com adversários que_ diga-se em abono da verdade_ até nem eram uns paraplégicos, somara já vinte vitórias, das quais dezoito por knock-out, dois nulos e uma derrota. Esta foi unanimemente atribuída à batota de um árbitro que concedeu a vitória a um boer, com o qual aquele fizera prévios arranjos. Vários empresários abordaram-no por muitas vezes para com ele estabelecerem contratos dos quais ganhariam receitas muito compensadoras. O “Pablo”, porém, não era pedra mole, não, mas sim dono do seu talento, recusava-se a vender-se por meia dúzia de centavos. Tinha de amadurecer, ganhar experiência. Depois, ver-se-ia. Também conhecia histórias de colegas que prematuramente se expuseram nos ringues, com a pressa de ganhar fama e dinheiro. As aventuras foram-lhes fatais. Uns ficaram definitivamente incapacitados, não só fisicamente, como também intelectualmente. Hoje não passam de farrapos humanos que não conseguem valer-se a si próprios. O tempo para vôos mais altos virá. E esse não estava assim tão distante. A fama granjeada dos combates subia, as notícias sobre as suas capacidades eram manchetes nos jornais. Ganhou muito proveito sim, deu muita surra e apanhou outras mais. Juntou mais medalhas e honras do que dinheiro. E nisto, como em qualquer outra actividade, quanto mais se perde mais obstinado se fica em vencer, naquele ciclo vicioso dos desesperados.

O “Pablo” era muito bem quisto entre as raparigas. Famoso e bem falante, não havia rapariga da zona, e até doutras bandas além-Chamanculo, que não suspirasse só de ouvir pronunciar o nome dele. E assim, às tantas, ficou noivo. Esse foi o preço de ter engravidado uma admiradora, uma jovem chamada Rabeca, filha de pais muito conservadores e exigentes: Estes exigiram casamento, e sem demora! Dinheiro para o lobolo e para as cerimónias do casamento não abundava nos cofres do atleta. Abundava sim a vontade de levar avante o sentido de responsabilidade, o sonho de ser um esposo exemplar e um pugilista de renome internacional. Era a pressão da necessidade que se cruzava com interesses desportivos.

E chegou o dia aprazado para o título de campeão na categoria de pesos médios do pugilismo na província de Moçambique.

O “Pablo” era figura de cartaz que deixara no tapete contendores como o lustroso Carlos Fonseca; conseguira resistir à contundência dos punhos do Francisco “Cicatriz” Bila, terminara a carreira do célebre “Surdo-Mudo”, o Ximbevevana, um lutador bravo que emergiu dos becos do bairro Thlavana, surdo-mudo no real da vida, que não escutava queixumes de dor dos oponentes, nem aos mesmos dirigia palavra. As únicas destas que conseguia balbuciar eram …KO!!!…KO!!!…KO!!! Diziam que quando começasse a sovar não sabia parar, ou porque não escutava os sons do apito do árbitro ou porque se encontrava possesso dalguma ferocidade animal. Mas o “Pablo”, numa contenda oficial, conteve-lhe os ímpetos e colocou um ponto final àquela carreira com uma “patada” na testa que devastou o oponente e mergulhou-o numa inconsciência total e profunda; um punho demolidor, um verdadeiro coice de mula que acrescentou um largo lanho no rosto já maltratado do “Surdo-Mudo”.

A esposa do “Pablo” ia no fim da gravidez que precipitou aquele matrimónio. Formavam um casal feliz e equilibrado, com todos os sonhos, e alguns mais, que todos os jovens casais podem ter.

Ia no auge a carreira do nosso herói. Foi com toda a ansiedade que todos aguardavam o resultado daquele combarte, de que já se faziam parangonas nos jornais desportivos da capital. Era, nem mais nem menos, um duelo de campeões: Mapepa “A Serpente do Chiveve” versus “Pablo Sam”. Cartazes a cores anunciavam o histórico encontro e mostrava os opositores, frente a frente, com os punhos enluvados cruzados. Era uma festa desportiva que prometia muita emoção.

O Mapepa era, por assim dizer, a revelação do momento, um fenómeno raro no pugilismo provincial. Residia na cidade da Beira, onde era aclamado como o vencedor antecipado daquele combate. Deixara derrubados sobre o tapete adversários de grande gabarito, célebres figuras do boxe regional e expoentes máximos do pugilismo da Confederação das Rodésias, nomeadamente, o campeão malawiano Joe “The Killer” Banda, o consagrado zambiano Black “The Mutilator” Skukuma e o poderoso John “Wounds” Ncube, de Salisbúria, na Rodésia. E aqueles não lutavam, eram feras humanas soltas nos ringues. Mapepa, com as suas técnicas de defesa e estratégicamente rápidos contra-ataques, conteve os ânimos dos oponentes e levou os troféus para casa. Era o herói do centro da Província.

Naquela noite o pavilhão do Grupo Desportivo da Malhangalene superlotou de espectadores. Assistência assim nunca se vira antes, mesmo em dias de luta-livre tamanha presença de gente era uma raridade. O que as pessoas queriam era assistir dois homens à pancada, e não embrulhar-se um no outro a fingir que se golpeavam, como faziam o El-Grego, o António El Índio Apache, o Cowboy Thompson, o Yul Breyner, o Daydone e outros. Mesmo boxeurs brancos de renome como  o Beny Levy, o Carlos Gomes, o Larsen, o temido Luis Eugénio “Xangai”, estavam lá entre os espectadores para ver e crer. “Não!_diziam_ aquele será um terçar de punhos a sério, à verdadeira moda antiga”. Aclamações de apoio romperam a surdina das conversas. Fizeram-se apostas: Mapepa!!!… Mapepa!!!.. .Pa-blo!!!, Pa-blo!!!…

A mesa do júri deu o gong para o início da contenda.

Tentar descrever o que foi aquele encontro histórico é o mesmo que metermo-nos na aventura impossível de resumir em duas palavras as rivalidades entre dois grupos étnicos. Os historiadores diriam que aquela era a reedição dalgum encontro entre gregos e troianos, entre ngunis e portugueses, entre lusitanos e castelhanos, eu sei lá! Era dar e apanhar. Os punhos de cada um dos contendores – que não eram nenhuns berlindes – desabavam no corpo do adversário como se fossem os projécteis de catapultas de guerra. Estes grunhiam a cada golpe; porém, sempre avançavam ao encontro do adversário, como se as dores fossem as fontes doutros ânimos.

A violência da luta no recinto do ringue transbordou para as bancadas. Cenas de pugilato começaram a registar-se em alguns focos. Disseminaram-se por outros pontos. Era o contágio do instinto de violência reprimido que se soltava. A barafunda foi total: todos agrediam a todos, e cada qual por si, todos os meios eram úteis para infligir ao vizinho de lado o “castigo” que merecia e puni-lo por não apoiar o seu favorito boxeur.

O combate durou os dez assaltos regulamentares, entremeados de muita animação na assistência.

Os rostos tumefactos dos opositores eram transfigurações, máscaras disformes cobertas de crostas de sangue, irreconhecíveis.

O momento final foi o gesto do juiz de colocar-se entre os opositores e erguer no ar o seu braço esquerdo. E com este, o punho direito do…” Pablo Sam”!

A ovação que se seguiu foi a de aclamação da vitória do lourençomarquino! A multidão invadiu o ringue e levou aos ombros o seu herói e gritava pelo seu nome.

Uma cantiga ecoou na atmosefra do pavilhão para dar por finda aquela que foi uma das mais empolgantes e sangrentas sessões de boxe que jamais se registaram no ringue da Malhangalene.

Sedimentadas as emoções, sigamos o percurso do herói, porque dos vencidos não reza a História. O Mapepa – só uma linha a seu respeito, e conforme o que depois se propagou nos jornais – pediu desforra, uma jornada para tirar-teimas e pôr cada pedra no seu lugar. Porque, segundo ele, campeão da categoria havia um só: ele próprio.

O reencontro não chegou a consumar-se pelas razões que em seguida se expõem.

*

            Logo a seguir àquela batalha no ringue da Malhangalene, os dois contendores foram encaminhados ao Banco de Urgências do Hospital Miguel Bombarda, porque assim era por rotina e porque os clínicos que assistiam aos pugilistas assim o entenderam. Assim entenderam porque ambos os protagonistas, o Mapepa e o Pablo não se encontravam em condições de regressar aos respectivos domicílios, dada a gravidade das lesões que mutuamente se infligiram.

“Pablo” era o mais contundido dos dois, razão porque foi admitido na Sala de Reanimação. O seu estado inspirava mais cuidados. Durante o internamento a sua condição deteriorou-se. Entrou em delírio, num estado de confusão mental. Exaltava-se, o corpo convulsava como se estivesse em pleno ataque de epilepsia. Pronunciava nomes e proferia frase incoerentes. No fim daquela madrugada entrou num estado de coma profundo. Depois de confereciarem os neurologistas diagnosticaram-lhe uma “comoção cerebral pós-traumática”.

Foi longa e tortuosa a viagem do “Pablo Sam” aos recessos da sua vida, às trevas dum universo cheio de imagens de pessoas transfiguradas, silhuetas que, por umas vezes identificava, outras não, mas que o cercavam e aplaudiam a sua dança num palco montado no quintal da sua habitação. Nessa representação tinha por parceiros gigantes de braços semi-amputados que desferiam os cotos no ar, e de cujas bocas invisíveis entoavam estribilhos onde abundava o seu nome… Pablo!!!… Pablo!!!… De repente fazia-se luz nos sonhos, abria os olhos. O que descortinava da neblina era a figura da esposa Rabeca e do filho Paulinho, ambos a fugirem de si em correrias desenfreadas. Ele perseguia-os, ansioso; corria atrás das suas sombras que se esfumavam paulatinamente à distância.

E durou uma semana o coma do “Pablo”. Dele emergiu como se ingressasse num universo cujos horizontes desconhecia. As imagens que detectava assemelhavam-se  às dos pesadelos durante , as mesmas que vira durante a treva da inconsciência. Aquelas, porém, eram concretas. Via e reconhecia as feições das pessoas, escutava as suas vozes, o choro do filho, os lamentos da Rabeca e dos familiares que o rodeavam no quarto da residência, entravado naquela cadeira de rodas que, desde que teve alta do hospital passara a ser o seu meio de locomoção.

O mundo que enxergava era distorcido, as pessoas reais, mas os objectos ao redor, o saco cheio de areia pendurado ali no ramo da mafurreira, era o símbolo do que fora o sonho transportado naquela viagem para a glória. E essa terminara no ringue da Malhangalene, tão curta a viagem, como tão efémero fora o sonho.

Protegido pela sombra da árvore e paralisado da cintura para baixo, simulava golpes no ar… jab… upper-cut… esquerda… direita..; balbuciava, com a língua entaramelada de formigueiro. Diante dos olhos embaciados vislumbrava a figura do adversário, o Mapepa, e “esmurrava-o”… jab… upper-cut… jab… esquerda… upper-cut…

Pablo Júnior, o Paulinho, era um espectador diário, atónito à execução dos truques e à cadência dos passes do pugilista que era o seu pai, o senhor Paulo Samuel Langa, o ícone do pugilismo suburbano “Pablo Sam”.

 

 

A inteligência marca nítidas fronteiras entre o animal e o homem,

sugere o carácter divino deste último, e, em certo grau,

substitui a sua imortalidade, que não existe.

Anton Tchekov

 

“A ave que queria ser ave”, “O ilusionista”, “Escondidos na luz”, “Mundos cruzados”, “Insónia”, “Conhece-te a ti próprio”, “O sotaque da luz?” e “Ilusão à vista” são os títulos dos oito textos que compõem Histórias do outro mundo, de Carlos dos Santos. No seu estilo peculiar, uma vez mais, o escritor traz narrativas que exploram a origem e a evolução das coisas.

Em termos temáticos, as histórias estão irmanadas, afinal os narradores, em geral, desenrolam eventos que se passam no hiato entre a perplexidade e a hesitação. Essa ocorrência, com efeito, exige de certas personagens perspicácia e uma elevada capacidade argumentativa. Por isso é que nas histórias a inteligência marca nítidas fronteiras entre os que buscam a eternidade do raciocínio e os que apenas se abstraem de pensar, porque condenar é bem mais fácil.

O mais recente livro de Carlos dos Santos confirma essa paixão que o escritor tem de fazer dos seus protagonistas entidades desassossegadas, insatisfeitas, em permanente movimento, pois sabem que “só aos viajantes são permitidos os prazeres da viagem” (p. 47). A lucidez, acto contínuo, garante uma diferença destacada no discernimento das personagens, opondo as sonhadoras às que apenas se recusam a compreender o lado mais omisso das circunstâncias. É como afirma uma personagem de “Escondidos na luz”: “as melhores coisas para se contemplarem são aquelas que não se conseguem compreender. Porque nos fazem pensar” (p. 48).

Estimular o pensamento num contexto em que as personagens se transmutam e tentam ser mais do que a matéria permite é o grande propósito de Carlos dos Santos. Logo, no primeiro texto, não admira uma ave querer ser árvore ou um alienígena apresentar-se materialmente, no segundo. Pelo contrário, o escritor atravessa o plano arredondado da terra para, como um explorador, captar outras dimensões do pensamento despersonalizado.

Não obstante, ao mesmo tempo que Histórias do outro mundo recupera o debate sobre a existência ou não de vida em outros planetas ou de outras vidas na terra, como é habitual em Carlos dos Santos, com personagens que desaparecem e assumem múltiplas formas, confronta a inteligência humana, na trama, espécie tão presunçosa. Um exemplo, numa passagem em que uma personagem humana julga exibir o seu conhecimento sistematizado, um alienígena afirma, aparentemente desapontado: “O que me espanta são as certezas que tu tens, a rapidez com que as formulas e a ligeireza com que acreditas nelas!” (p. 33). Isto diz muito do que o Homem é?

No seu novo livro, Carlos dos Santos cria um cruzamento de mundos e, consequentemente, as histórias tornam-se o palco onde se confrontam a lei dos homens e o estranho/ maravilhoso. Nesse mesmo cruzamento, a fronteira entre a inteligência e a loucura adivinha-se estreita, invisível até. Claro está, Histórias do outro mundo é uma interrogação aos fenómenos (im)possíveis, uma forma de se compreender o que está para lá dos sentidos, das emoções e do sentimento.

Portanto, a ficção de Carlos dos Santos volta a cumprir essa “missão” de trazer outros conceitos, igualmente indispensáveis na regência da percepção sobre as causas e os efeitos. Aí não faltam eventos relativos ao drama psicológico das personagens muitas vezes acossadas por alguma coisa; não falta a vulgarização da figura do herói e a permanente busca por um lugar onde a inteligência sugere o carácter demiúrgico do Homem e a sua imortalidade. Eis o mundo possível nas histórias de Carlos dos Santos.

 

Título: Histórias do outro mundo

Autor: Carlos dos Santos

Editor: Alcance Editores

Classificação: 14

 

 

“São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência”, Milan Kundera

Derreado! Estarrecido! Com o nó na garganta! É como se estivesse numa redoma que mais ninguém compreende.

Afinal, o silêncio ensurdecedor em torno da mensagem que lhe enviei na sexta-feira (a desejar-lhe melhoras) prenunciava o adeus de um ícone.

Lá do gélido planalto de Manica, uma voz embargada de Carlitos, o Cadangue, confirmava domingo o  que não estava nem tão pouco preparado para ouvir: “Sambo partiu para sempre”!

Mas com aura de glória, pois claro.  Foste, sem sombra de dúvidas, dos mais impactantes treinadores da história do futsal em Moçambique.

Assimilaste, desde logo, personalidade e mentalidade de campeão, carisma e capacidade anotadora.

A tua proeminência potenciou o desenvolvimento pleno  de uma  geração de praticantes que maravilhou no “Grande Prix” do Brasil e Campeonato Africano de Futsal.

Internacionalizaste a modalidade, deste uma “grande mão” como assessor técnico para que Moçambique se qualificasse,  pela primeira vez na sua história, para o Mundial de futsal da Colômbia, em 2016.

Sambo, és enorme!  Ficará, por isso e tantos outros êxitos, gravado em letras garrafais  aquela vitória sobre o Egipto que quebrou um ciclo de dez anos sem derrotas dos “faráos”.

Pelo meio, o que assombrou a modalidade  com a interrupção da disputa dos campeonatos nacionais por um período de três anos (2010 e 2012), fez-te mais forte ainda.

Cerraste os punhos, foste buscar forças onde não existiam e contribuiste para que o Campeonato Nacional de Futsal se realizasse em 2012, no Chimoio.

O futsal entrou em estado de coma profundo, mas nunca desististe!  A capital é o eldorado, certo. Mas,  Oh Sambo,  não fizeste disso uma marca. Desafiaste as fronteiras, foste te instalar no Chimoio, em 2011, onde desenvolveste um excelente trabalho de lapidação de novos valores de futsal.

Sempre interventivo, e sem compromissos, bateste na mesa pela valorização dos principais actores da modalidade!

Disseste, claramente e estavas certo, que não fazia sentido chegarmos a um extremo em que os atletas entram em greve por falta de pagamento de ajuda de custos para participar numa prova internacional.

Fizeste o que era certo: aproximar-se das partes. Acalmaste os ânimos, até porque sempre percebeste que os verdadeiros artistas não eram tão pouco culpados por tamanha azia. E falta de sensibilidade por parte dos dirigentes desportivos.

Bem, é duro perceber, senhor futsal, que não mais o teremos na vertical a desfiar as suas ideias maduras e seguras para a consolidação da modalidade.

Neste exercício doloroso de rebobinar a nossa ligação profissional, Sambo, torna-se-me difícil aceitar que não mais poderei beber dos teus ensinamentos.

É fundamental ter figuras à perna em alguns dos seus feitos para resgatar o futsal e colocá-lo novamente na rota do sucesso.

É, pois, o que sempre sonhaste: uma modalidade com grande visibilidade. Vivenciaste os momentos áueros do fusal  com jogos de encher os olhos no pavilhão da Liga Muçulmana, testemunhaste a consagração de Mauro Sales, Farukito (hoje seleccionador nacional), Carlão, Canhoto, entre outros craques.

Treinador mais titulado do futsal moçambicano, granjeaste respeito pelo bom trabalho realizado na Somotor, Manica, Padaria Azize e  Desportivo Maputo.

Com um olhar “clínico”, fizeste  o “scouting” na então “Liga VIP”   da modalidade para alimentar  o Desportivo Maputo, um dos clubes pelos quais campeaste.

Mesmo depois de te retirares do activo, continuaste a contribuir com ideias para o futsal em programas televisivos e radiofónicos.  Criticaste quando necessário, elogiaste sempre que possível.

“Mister”, é  mister dizer que mesmo incompreendido em algum momento, criticaste sempre a forma como (não) pensamos o desporto em Moçambique.

Precisamos resgatar e produzir mais desportistas comprometidos com a causa, tal como o foste anos a fio com o futsal.

Sambo, há um legado que deixas! Resta-nos, agora, celebrar o mesmo. Cientes, claramente, que somente com trabalho, entrega, dedicação e humildade é que podemo-nos agigantar no concerto das Nações.

Para trás, amigo e companheiro de jornadas, ficam as abordagens dos temas candentes do desporto moçambicano no programas televisivos da Stv, estação que colaboraste desde sempre.

Nós, que ao longo destas jornadas de trabalho tanto aprendemos contigo, curvamo-nos perante a memória de vulto de um grande desportista.

Mas…a pergunta que não quer calar: por que os grandes homens caem e a vida é tão curta?

Cai o pano da I Feira Internacional do Livro de Quelimane, essa primeiríssima edição que  homenageia o poeta Armando Artur, tocando assim, com os dedos, a alma da poesia moçambicana. Quelimane e os seus munícipes  propuseram-se alargar o horizonte das letras nacionais, e ousar alcançar um estágio de interacção disposto acima dessa condição de sermos estrangeiros de nós próprios.

Prémio de Literatura José Craveirinha 2020, Armando Artur consagrou-se entre os maiores poetas, não pelo galardão, mas como um facho que lega tradição às novas  gerações de escritores  moçambicanos, entre os quais, reconhecidamente, Sangare Okapi, elucida: “para mim, Armando Artur é, definitivamente, o maior poeta moçambicano da contemporaneidade.”

Na mesma pele que reveste a alma poética arturiana, respira um outro ser, um amigo, com quem se pode partilhar a vida, um hábito que já transcende as manhãs para o coração da noite, num afago telúrico dos dias em riste.

É a esse ser tangível, que vão  essas breves linhas em papel, para que, com toda a profundidade, junte-me às vozes que de Quelimane, celebram os 35 anos de publicação do Poeta, cuja imortalidade, ora, se vislumbram os contornos.

Orlando Mendes (também Osvaldo Mossuril e Zeferino A. Nhacale), de nome Orlando Marques de Almeida Mendes, nasceu na Ilha de Moçambique, a 4 de Agosto de 1916, e morreu em 1990, em Maputo. Mendes foi um eclético escritor, tendo publicado poesia, romance, teatro, crítica literária, ensaios e infanto-juvenis. A sua imensa e diversificada produção literária, influenciada, no início, pelo pragmatismo do neo-realismo do movimento de Presença, é caracterizada ideologicamente pelo esforço de instauração de um espaço literário nacional, como constata Agostinho Goenha.

Em Lourenço Marques (agora Maputo), Orlando Mendes frequenta até o sétimo ano do Liceu. Até 1944, é funcionário dos Serviços de Fazenda, quando segue para Portugal, onde licenciou-se em Ciências Biológicas, pela Universidade de Coimbra. Exerceu, ainda na universidade, funções de Assistente de Botânica. Regressado a Moçambique, em 1951, passa a pertencer ao quadro de funcionários dos Serviços de Agricultura de Moçambique, e depois, a exercer funções de investigador de medicina tradicional, no Ministério da Saúde. Nos últimos anos de sua vida, foi redactor na revista Tempo.

A estreia de Orlando Mendes acontece em 1940, com Trajectória (edição de autor), tendo depois publicado Clima (1951), Carta do Capaz da Estrada (1960), Depois do 7º Dia (1963), Portanto Eu vos Escrevo (1964), Portagem (1966), Véspera Confiada (1968), Um minuto de Silêncio (1970), Adeus de Gutucumbui (1974), A Fome das Larvas (1975), País Emerso I (1975), País Emerso II (1976), Produção Com que Aprendo (1978), Lume florindo na forja (1980), Sobre Literatura Moçambicana (1982), Papá Operário mais Seis Histórias (1983), As faces visitadas (1985), O menino que não crescia (1986), Telefonemas a calhar e outros contos (1995) e Minda (2001), publicado postumamente pela Associação dos Escritores Moçambicanos.

Orlando Mendes teve colaboração literária dispersa em jornais e revistas como Itinerário, Tempo, Voz de Moçambique, A Tribuna, Caliban, Notícias, Charrua e Forja, de Moçambique; e Vértice, O Diabo, Mundo Literário, Seara Nova, Colóquio/Letras e África, de Portugal. Está, também, representado em inúmeras antologias de poesia e prosa. Recebeu, durante o seu percurso, o “Prémio Fialho de Almeida”, dos Jogos Florais da Universidade de Coimbra, em 1946, e o primeiro prémio de poesia no Concurso Literário da Câmara Municipal de Lourenço Marques, em 1953.

Depois da Independência e até a sua morte, Mendes promoveu a literatura moçambicana, dirigiu a Associação dos Escritores Moçambicanos e teve sempre uma participação cultural muito activa.

Hoje, se estivesse vivo, Orlando Mendes completaria 105 anos.

 

“Nacionalismo e literatura”

A extensa produção literária de Orlando Mendes não se insere, como aponta a crítica, no proto-nacionalismo de Noronha ou Noémia, no “elogio da moçambicanidade”, por assim dizer, e muito menos no movimento de “ex-colonização da literatura”, preocupação de Rui Nogar e José Craveirinha, entretanto, ela [a produção] é, de certo modo, de denúncia e de revolução, então, uma produção continuadora. Embora seja imensamente associado ao neo-realismo português, Mendes – que durante a sua estada em Portugal terá tido contacto com escritores como Afonso Duarte, Armindo Rodrigues, Miguel Torga, Fernando Namora, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Érico Veríssimo, etc. – recusava-se a pertencer a uma corrente, afirmando que a sua literatura era uma “expressão anticolonialista”.

A obra de Orlando Mendes é, quase toda ela, “assombrada” por um engajamento e exaltação com/do nacional, ele insurge-se, busca “contundir o inimigo” com o seu levantamento social, vertentes que, aliás, compõem o que Agostinho Goenha chama de “concepção marxista do fenómeno literário”.

O seu projecto poético, ideológico nos últimos anos, é tenso, e no dizer de Alfredo Margarido, uma mescla de “denúncia de alienação do Homem” – negro ou branco (vide. Portagem) – e o enganchamento dos grupos étnicos moçambicanos. A obra de Mendes (poesia e prosa) é também identificada pelos traços de oralidade, ele funde o português elegante com o português local, ajuntando os chamados moçambicanismos.

Para vários pesquisadores, a obra de Orlando Mendes é indispensável para o desenvolvimento e para o estudo da literatura em Moçambique.

 

Textos de Orlando Mendes

Exortação

Jovem, se tens exercícios de literatura

escritos há mais de um mês, destrói-os.

Rasga-os ou queima-os de preferência

(consta ser universalmente mais ortodoxo)

e se a chama te chamuscar unhas e pele

e as sujar a cinza, não queixes a dor

e lava-te. Destrói-os. Guarda-os todavia

fiéis na memória, palavra por palavra,

para que possas transmiti-los a um amigo

quando depois do venal acto de amor

forem também vender a irresistível suspeita

da tua voz trémula e dos teus outros actos.

Mas não deixes de escrever. Peço-te que não.

In: Adeus de Gutucumbi, p. 25

 

 Em África

Quantos de nós

andam por aí ensimesmados

e medem o tempo e o comprimento dos passos que dão

sabendo o princípio e o fim

da sua própria caminhada imutável

e meneiam de vez em quando a cabeça

pelo sim ou pelo não.

 

Quantos de nós

exaltam o delírio dum poema

e o dizem entre dentes

deixando circular tranquilamente o sangue nas veias.

Mas ainda é preciso denunciar

os cantos das imagens virtuais

e desenraizar com o gume da palavra nua

as últimas consequências sentimentais

embandeiradas dentro das verdes searas

já é preciso colher e distribuir novas sementes

e lançá-las por mãos proletárias à terra comum

e conhecer o mecanismo da arma que se empunha

e rigorosamente apontar ao alvo

não estando sós.

[…]

Quantos de nós

têm que reaprender as distâncias e acertá-las

à custa do timbre da sua voz

para que todos cantem e accionem

a luta de libertação e a liberdade conquistada

com o impacto de balas.

In: Lume Florindo na Forja, 1980

 

Excerto de Portagem (1966)

A velha negra sai da palhota e fecha os olhos doridos pela luz crua do sol. Depois abre-os lentamente e a boca encarquilha-se-lhe num sorriso aparentemente sem sentido. No terreiro não há ninguém que lhe faça lembrar coisas do mundo que está esquecendo. Tudo quanto ela entende do exterior é aquele ranger medroso dos ramos nus da árvore mirrada, sacudidos pelo vento quente e vagaroso que passa e se esconde na terra.

Tremem-lhe as mãos secas agarradas ao bordão nodoso. Quer alongar a vista para lá do capim ressequido que balouça cadenciadamente, mas abana a cabeça, desiludida. Dia a dia, a vista se limita mais nas expressões para os seus afectos. Amarfanha a capulana até à coxa enrugada e, traçando as pernas, deixa cair mansamente o corpo magro para o chão.

Alima geme de cansaço. Ou de tédio? Nem ela saberia dizer. Ajeita-se encostada à paliçada da palhota. A sonolência começa a perturbá-la. Todos os dias, à mesma hora da manhã, a velha vem ali sentar-se e promete sempre não se deixar adormecer. Também agora tenta fugir ao sono inimigo, que ela tem medo de perder de vez a contemplação da planície mordida pelo sol. De ano para ano, a planície diminui de extensão diante da fadiga dos seus olhos. E ela pensa que lhe vão roubando misteriosamente o mundo de ano para ano.

Dormita uns instantes sem tempo, para logo acordar sobressaltada. Reconhece o chão pisado por três gerações de negros. Fixa os olhos mortiços nos ramos descarnados do cajueiro plantado pelo avô, o escravo Mafanisse, no dia da sua libertação. Recordando, é depois o mar que lhe aparece, um mar de ondas bravias que foi a fronteira da imigração dos negros para o sul, na grande seca do ano em que lhe nasceu a filha Kati. Kati casou com o capataz dos mineiros do Marandal, depois de ter gerado e parido um filho de branco. Aí começou a solidão enorme da velha Alima. Solidão do simbólico cajueiro entre a erva rasteira e os galhos agrestes das micaias. E é na planície que fica o mundo moribundo da vida toda da negra Alima.

A velha ainda se lembra de que, lá longe, a planície se esvai no sopé da serra do Marandal. Vieram os brancos com as suas máquinas para abrirem os grandes buracos na terra e tirar o carvão que os negros carregam para as vagonetas. Mas Alima nunca saiu da planície senão no ano longínquo da grande emigração. Os negros mudaram as palhotas para a nova povoação fundada no Marandal. E tentaram levar a velha. Ela, porém, é já a única pessoa viva que ouviu da boca dos escravos a história recontada do mundo da planície. E recusa-se a abandoná-la. A planície quase despida não atrai sequer as feras e ninguém já por ali passa, que o transito para a mina se faz pelo caminho da berma da serra. Solitária, a velha Alima tornou-se dona humilde e incontestada da planície que não tem préstimo para mais ninguém.

 

Estávamos justamente em frente ao tribunal na avenida Vlademir Lenine na Cidade de Maputo em direção a baixa da cidade, quando ele olhou ligeiramente para baixo do seu ombro direito e disse “Gerson, pensar é um exercício muito complicado”. Suficiente para que eu ficasse sem dizer nem mais uma palavra e continuasse a andar até a feira popular onde íamos jogar bilhares. “Para piorar” fiquei sem saber se era eu que não sabia pensar ou as pessoas que criticava. Este diálogo aconteceu quando criticava por mais de uma hora os nossos dirigentes, governo isto e mais aquilo.

Pensar é um processo de combinação de ideias utilizando um espírito crítico, fazendo uso da razão para despertar, julgar de forma lógica para se chegar a uma conclusão próxima da realidade.

Passam mais de 17 anos que este episódio teve lugar, embora tenhamos ambos aprendido a dizer bonjour* com sotaque Francês e good morning* com sotaque de Mississippi, viajado um pouco pelo mundo e acumulado alguns títulos profissionais e acadêmicos, eu e o meu amigo de infância, Leo, nos apercebemos até que ponto somos dois seres ignorantes. Chegados a essa conclusão, nos últimos anos decidimos passar a desenvolver conversas de maneiras a minimizá-la. Hoje, as nossas longas e regulares conversas pela madrugada via WhatsApp, vídeo chamadas no Skype ou Zoom, não mais são  de conclusões, acusações e muito menos de crítica, mas sim de questionamento. Porquê achas? Não achas que poderia ser diferente? Como? Achas mesmo que eles possam pensar assim? O que os leva a pensar desta ou daquela forma? Será que não somos nós os culpados?

Há poucos meses atrás os representantes do povo (“RP”) da Assembleia da República de Moçambique (“AR”) pensaram e chegaram à conclusão que as suas regalias não eram suficientes e aprovaram uma nova lei que aumentava consideravelmente os subsídios, regalias e outras benesses para os funcionários da AR. Jovens estudantes decidiram que “desta vez é de vez” e organizaram manifestações na nossa capital. Nas redes sociais pude ler “agora o pessoal abriu o olho”; “já não somos mais matrecos”; “estes gajos pensam  que o povo é o que?”. Finalmente depois de alguma pressão os RP tiveram de recuar.

Estive a analisar e disse para mim mesmo,  nós povo somos na verdade muito invejosos. Sim, escrevi invejosos. Vou repetir, somos muito invejosos. Afinal qual é o problema que os representantes do povo tenham regalias que possam aumentar seu poder de compra? Poder de compra é bom para a economia do país, não? Então porque fomos manifestar? Só fomos confirmar o que temos dito de nós mesmos “Preto quando vê outro preto evoluir procura distruir”. Por estas alturas, já devo ter “despertado” alguma animosidade…sou corajoso e vou continuar…continue a ler, por favor. Risos…

Nós fomos à rua reclamar que os RP não deviam ter regalias, mas eu acredito que o nosso problema não são as regalias dos RP, o nosso verdadeiro problema é outro.

Jim Rhon coloca a seguinte pergunta em um dos seus podcasts. Como obter o que precisas? E a resposta que ele dá é simples, peça. Acrescenta dizendo, peça com inteligência. Mas antes de pedir, pense bem para saber exatamente quais as suas necessidades.

Acredito que é aqui onde reside um dos nossos maiores problemas, não sabemos o que queremos ao certo, como obter e/ou demandar. Imaginem que tivéssemos uma taxa de desemprego de 10% e que os nossos salários fossem suficientes para fazermos poupanças. Teríamos saído às ruas reclamar das regalias dos RP? Não creio!!!. Nestas alturas já devem estar a dizer, claro Gerson, eles só devem resolver os problemas do povo e o resto não nos importamos. Aí está, eles nunca vão fazer isso se nós não soubermos pedir ou exigir. Contudo, não será em bloquear estradas, fazer greves ou esperar que eles aumentem seus subsídios para sairmos as ruas que nós vamos melhorar nossa situação. Reparem por exemplo que assim que as regalias foram canceladas, a única coisa que fizemos foi voltar às redes sociais e dizer, “o pessoal é F***dido”; “não conseguiram nada os gajos”. Mas no entanto nada melhorou.

PODER DO PENSAMENTO POSITIVO

Minha mãe dizia “samito utxikhó dhitsiku nidhitsiku uku txikwembu nilava ti ni ti. txikwembu txinaku xamula, mwanangu”². Ao mesmo tempo que batia o seu dedo indicador contra o média da sua mão direita.

Eu defino pensamento positivo como desenvolvimento de ideias que nos ajudem a melhorar em todos os domínios, olhando para o lado bom das coisas do passado, ignorando as que não deram certo, olhar para o presente ao mesmo tempo que para o futuro com esperança e confiança cega que as coisas vão ser melhores “SE” fizermos o melhor de nós. Nós, seres humanos, fomos programados para pensar mais vezes negativo que positivo “por defeito de fábrica”. Por isso que é mais fácil criticar do que aconselhar, se lamentar que tomar responsabilidade sobre a nossa situação, destruir que construir. É  por esta razão que um exercício constante pessoal para manter em todas as circunstâncias um estado de espírito positivo é importante.

Seria na minha opinião pensar positivo se exigissemos  leis que nos punem quando não enviamos um email profissional na hora combinada. Esta atitude custa milhões à nossa economia. As regalias dos RP representam apenas uma gota no oceano ao lado desses milhões que perdemos. Seria pensar positivo se exigissemos aos RP casas de cultura em cada bairro que não só iriam criar empregos como também educar os nossos filhos. Sei que alguns devem estar a dizer, mas olha Gerson, isso eles deviam fazer sem exigência alguma. Claro, mas contrariamente ao que muitos de nós sabemos, a maior parte dos nossos dirigentes agem “na mais pura ignorância”, de certa forma (exagerada) poderia argumentar que não sabem o que fazer e nem como fazer certas coisas. Por isso que sou da opinião que devemos discutir e trocar ideias e não criticar e nem partir para ignorância.  Para lhes dar alguns exemplos, estive outra vez numa praça em Bruxelas com um ex-alto dirigente cá da terra quando ele/a vira-se para mim e diz “repare, ninguém deita nada na rua aqui”. O que ele/a não sabe é que não é porque ninguém não deita nada que as ruas são limpas, é porque para além das latas de lixo espalhadas, existe a polícia municipal que passa regularmente para limpar, guardas à paisana  em campanhas constantes de consciencialização e, em conclusão, manter a cidade limpa é matéria de estudo nas escolas. Já estive também na preparação de uma viagem empresarial a Moçambique em que um representante da Embaixada pegou num papel para ler que Moçambique tem mar, tem tanto de comprimento e largura, têm aquela ou esta riqueza, toda a informação que qualquer pessoa encontra na internet e que teria de princípio consultado antes do encontro. O representante não disse nada relevante que seja incentivo a investimento e, ainda pior, partiu assim que terminou de ler,  sem deixar tempo para perguntas e respostas. Este representante não sabe que empresários têm pouco tempo para blablabla e não sabe o que necessariamente estes empresários procuram neste tipo de encontro. Isto apenas para citar alguns exemplos.

Estas experiências me fizeram chegar a conclusão que não é por mal que muitas vezes as coisas não avançam. Tenho dificuldades em aceitar a ideia de que os nossos dirigentes não se  importam com o povo. Claro que se importam. Eu e o leitor não podemos amar nossa nação mais do que qualquer outro moçambicano no mundo. Não acha?

Vamos lá analisar um pouco os nossos objectivos como nação: “luta contra pobreza”; “combate a corrupção”. Se homo sapiens já foi programado para pensar negativo, como é que podemos nós mesmo usarmos slogans com conotação negativa e esperarmos resultados positivos? E por outro lado, nós homo sapiens temos aquilo que chamamos de inteligência superior e essa inteligência superior não se deixa facilmente enganar.  Essa inteligência  superior sabe que nós não somos pobres e nem corruptos. Podemos até estar nessa situação, mas nós não somos isso. A nossa inteligência superior sabe que temos rios, terras, ela sabe também que os nossos ancestrais foram agricultores e não corruptos. Neste caso dificilmente vamos agir pois o nosso ego está sendo atacado quando nos chamamos de corruptos e pobres. Nenhum chefe de família se sentirá motivado a dizer ao seu filho antes de sair de casa “filho, hoje vou lutar contra corrupção”  mas tenho a certeza que o mesmo chefe de família diria antes de sair de casa “filho, hoje vou construir um país melhor para si”. Lutar contra a pobreza/ corrupção significa reagir a uma ameaça e é uma atitude passiva e negativa, enquanto sair para construir significa agir e é uma atitude activa e positiva. Nós estamos mais dispostos e motivados a agir em situações positivas. Deixa dar mais um exemplo para elucidar melhor o poder do pensamento e das palavras. Imagine que o caro leitor chegue à casa de um amigo/a e ele/a diga “não te vou tratar mal em minha casa” e na casa do outro/a ele/a diga “sinta-se em sua casa”. Em qual das casas passaria uma refeição agradável? Os nossos pensamentos e a verbalização dos mesmos resultam nas nossas atitudes. Acho que devíamos passar tempo de qualidade a debater assuntos deste, que são para mim a base antes de qualquer acção. Temos nossa parte de responsabilidade. Não?

Por volta do meio-dia, de 20 de janeiro de 1961, em Washington, D.C. por ocasião da sua tomada de posse John F. Kennedy disse, “meus companheiros americanos, não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país”.

É o que tem feito o jovem Moçambicano Bruno Pinto, jovem que sem nenhum recurso inicial, soube  utilizar o poder do pensamento para ultrapassar obstáculos e conseguir tornar-se um grande empresário e hoje tenta com sua história inspirar outros moçambicanos a partir da sua obra “Construí meu futuro” e das conferências que tem dado na Europa para que sejamos a melhor versão de nós mesmos.  No final temos o mesmo objectivo,  independentemente da etnia, localização, partido político, religião. Vamos trocar nossas experiências e ideias de forma a despertar nossa inteligência colectiva e fazer com que esta trabalhe a nosso favor e não contra nós, pois se Bruno Pinto sozinho e em terra desconhecida conseguiu, então nós juntos também podemos. EU ACREDITO EM NÓS.

 

*Bonjour Bom dia (língua francesa)

*Good morning – Bom dia (Língua inglesa)

² Samito, se todos os dias rogares a Deus que quero isto e aquilo, Deus vai te responder meu filho.

Recomendação de livro para o mês de Agosto 2021: Sea Loves Me – “Mia Couto”

“Gratidão por ser contemporâneo destes

tempos em que a esperança sobrevive na

lonjura dos caminhos”. Armando Artur,

escritor moçambicano.

 

Celebro os anciãos, ou “velhos”, tal como são chamados na minha terra, lembrando o prestigioso lugar que lhes tem sido dado. Grande parte deles, têm sido o exemplo do conhecimento transmitido nas famílias, nomeadamente, porque: sabem escutar; sabem como dirigir uma prece a Deus; sabem como dirigir diferentes cerimónias da vida das pessoas – do nascer, até o morrer, a saber: o nascimento, o baptismo, o casamento e a morte em si; são experientes na execução ou a dar andamento ao dia-a-dia da vida na comunidade. Para nós, quem tem um(a) avô(ó) tem tudo, porque tem automaticamente quem o encaminhe em todas as esferas da sua vida social.

Não é por mero acaso que, na cultura bitonga (vatonga) lhes é dedicado o ligoci, um ritual de agradecimento pela sua existência. É uma cerimónia da qual participam avôs e netos. Inicia-se através de um anúncio que é enviado aos avôs maternos, a informá-los sobre a data do evento a que se chama guya ningheya ligoci, ie, ir entregar o ligoci, que consiste na oferta de prendas, em agradecimento ao facto de os avós terem concebido a sua mãe e esta, por sua vez, tê-los dado à luz e criado.

Nesse ritual, os avós recebem os seus netos com cânticos e uma grande festa na qual são partilhadas iguarias da terra entre todos. É um dia de muita alegria, porque, para além de gratidão, em alguns casos, é ansiosamente esperado, porque os netos só o realizam, depois de poderem gerar as suas próprias rendas. Devo destacar que, não existindo os avôs, as prendas são entregues aos irmãos da mãe. A celebração não deixa de existir, por morte dos avôs. É realizada em sua honra e em sua memória.

Tudo o que acabei de mencionar funciona de modo linear no campo, onde as comunidades ainda conservam, com muita facilidade, os valores tradicionais. Nas cidades, estas práticas vão acontecendo cada vez menos, dado o contacto com outro tipo de vivência; pelo que há algum relativismo que se deve ter em conta, quando se fazem generalizações. Mas devo alertar, no entanto, que jovens há que se têm tentado ocidentalizar, no entanto, quando algo corre mal, voltam atrás, para consultar os anciãos, porque sabem que têm alguma palavra a dizer que pode melhorar a situação. E isto acontece, precisamente, porque os africanos ainda são, na sua maioria, povos cuja religiosidade ocupa o centro das suas vidas. E quem tem a palavra no âmbito religioso são os avós, pela sua experiência e pelos exemplos de “proximidade à santidade” que são capazes de dar.

Vivemos tempos nos quais estes valores, em convivência com outros diferentes, criam alguma ambiguidade na nossa actuação diária. É por causa disso que os cientistas sociais têm alertado para a importância de se educar para o estímulo da convivência entre culturas, a interculturalidade, a partir da qual as pessoas troquem os seus valores culturais, sem que nenhum se sobreponha sobre o outro, a ponto de umas julgarem imprescindível adoptar a cultura do outro.

Ezio Lorenzo Bono é um cientista social, padre, docente e pesquisador, que viveu alguns anos na Maxixe, cidade da província de Inhambane, em Moçambique. Consta-me que há cerca de tês anos, regressou à Itália, sua terra e que, há alguns meses, vivia em Bergamo. Conheci-o há cerca de cinco anos e, para mim, ele é um exemplo de interculturalidade “ao vivo”. Não passou os seus dias em vão, em Maxixe, leccionou, pesquisou e falava muito bem o gitonga, uma das línguas daquela província.

Nestes últimos tempos conturbados e de pouca esperança no que concerne ao intercâmbio de valores humanos, foi das pessoas/autores que mais me marcaram, mais recentemente, dada a actividade de fomento e de pesquisa sobre a interculturalidade na qual tenho estado envolvida há quatro anos. Conto a história em primeira pessoa, não por vaidade, mas para fazer crer nos valores de interculturalidade que pude aprender do padre Bono, por tê-lo visto nesse papel e por tê-lo lido como autor.

E foi com fundamento nos seus ensinamentos que este texto incidiu sobre a importância que tem a entidade avô/avó, na cultura o gitonga, em particular, e na africana, no geral. Bono teve consciência de que os anciãos são uma instituição. E, ao escrever a sua obra Muntuísmo: a ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea, não os descurou.

Para Bono a cultura africana é personalista, por assentar os seus fundamentos de vida na pessoa, na comunidade e em Deus. O indivíduo não existe como uma personalidade virada apenas para si. Ele vive em extrema correlação e em partilha com a sua comunidade e todos eles tementes a Deus. São pilares que, segundo ele, já desmoronaram no ocidente; dado que a contemporaneidade valoriza o individualismo, sem a dimensão transcendental e a comunidade tornou-se um lugar para a reivindicação de direitos individuais.

Muntuísmo é um neologismo criado pelo autor que temos vindo a referir e tem origem na palavra muntu (pessoa) e, segundo o que se pode apreender pela obra, significa a construção de valores humanos, a partir do relacionamento entre eles. Para escrever a obra de que venho a falar, o autor realizou um trabalho de cariz etnográfico, mas é importante destacar o lugar de relevo no qual ele colocou os anciãos. E um aspecto digno de realce nessa obra é o facto de que, na contracapa, o autor ter feito questão de escrever: “Os velhos da terra de Sewe (Inhambane, Moçambique) contam que, a 10 de Janeiro de 1498, o famoso navegador português Vasco da Gama, a caminho das Índias, chegou com as embarcações à baía de Inhambane. Era um dia muito chuvoso […].

Essa frase marca um distintivo da cultura oral, sobretudo, demonstra o respeito que o pesquisador julgou fundamental e constatou ser a condição primária para o bom decurso da sua investigação: falar com os velhos. Além disso, o autor abordou o essencial da filosofia africana sobre o ser pessoa, ou seja, o ser muntu, que ontologicamente se sintetiza em “eu sou, porque tu és”, ou seja “I am, because you are”.

Independentemente do nosso estatuto social ou habilitações literárias, nós consideramos os velhos as nossas bibliotecas. É por isso que, no âmbito do ensino sobre “os saberes locais”, no programa curricular das escolas públicas moçambicanas, eles têm uma palavra a dizer. Eles têm sido consultados. É um dever falar com eles sobre essa matéria.

Nós somos, porque acreditamos em Deus e respeitamos a nossa colectividade, parafraseando o padre Bono, na sua obra Muntuísmo: a ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea: I am (munthu) because I believe (Deus) and I love (Comunidade).

 

*Sara Jona Laisse, docente na Universidade Católica de Moçambique, em Maputo. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

 

 

 

 

No fim do nosso caminho está a liberdade.

Ascêncio de Freitas”

 

Num país atravessado por tantas intempéries, as histórias continuam sendo um pretexto imprescindível para se repensar o sentido da vida. Apercebendo-se ou não disso, Suzy Bila escreveu uma história cheia de asas, onde a técnica narrativa é o substracto de um voo para múltiplas dimensões.

Lamura começa por ser uma história para sonhar, feliz e com um universo diegético cheio de luz. No princípio, o enredo desenrola-se na aldeia de Bogoro, se acreditarmos no narrador, onde outrora morou África e a sua essência. Talvez para destruir essa essência ou, pelo menos, para mostrar como tem sido continuamente destruída, Suzy Bila ficcionou uma realidade atroz, pintando-a com sangue, suor e lágrimas. Assim, o que parece ser uma história auspiciosa e um sorriso iminente, rapidamente desemboca num caos, porque “Um dia, o vento que atravessou a aldeia trouxe o medo… Tudo começou a mudar. As famílias em desassossego cessaram as estórias à volta da fogueira. A aldeia emudeceu, adormecendo em silêncio. Até os pirilampos deixaram de luzir!”, (p. 13).

A situação que irrompe em Bogoro corrompe o contexto das personagens e, com isso, a violência se instaura. Desconhecidos homens armados chegam à aldeia, invadem casas e crianças são arrancadas dos braços das mães para irem servir a ganância dos vilões numa mina horrível. É um cenário muito idêntico ao que se passa em Cabo Delgado. Sem saberem porquê, aldeões vergam-se ao desespero e pais, humilhados, nem sequer conseguem proteger os seus próprios filhos. A diferença com Cabo Delgado é que o silêncio na aldeia de Bogoro não é causado pelos que partem, mas pelo pavor dos que ficam: “No lugar onde a aldeia se reunia à volta da fogueira e se contavam estórias, estava uma multidão de homens armados rodeando crianças desprotegidas”, (p. 17).

Submersa na crueldade, Bogoro vê a humanidade que sempre a definiu esfumar-se. Vê os filhos partirem para as minas de Cobalto e com eles uma perspectiva de coexistência. Lamura e o amigo Lwandle, por exemplo, quase se perdem no percurso a um futuro que os condena à morte. Mas Lamura encontra nas histórias contadas pelo pai a força interior que o permite sobreviver.

No livro de estreia de Suzy Bila, quem tem histórias possui conhecimentos, e, consequentemente, uma percepcao positiva sobre as coisas. Ao contrário de Lwandle, Lamura adapta-se às circunstâncias nas metamorfoses das mariposas, um sinal de esperança. Na verdade, a esperança é a base da liberdade e responsável por introduzir na ficção a vitalidade diferenciadora do protagonista.

Ora, mais do que uma denúncia dedicada às crianças que perderam a infância e a vida nas minas de Cobalto, Lamura é uma história escrita com muita autenticidade. É um lugar de confluência, no qual os conceitos de coexistência, liberdade, esperança e metamorfose são invocados através de uma personagem imberbe. Esta história de Suzy Bila é um confronto entre a ordem e o caos, a força e a subtileza, a morte e a superação. Lamura também é um pretexto para repensar um país, um continente ou um mundo atravessado por tantas adversidades. Nem mais, é a casa que merecemos e podemos construir em oposição à desordem que nos ronda, sempre por combater.

Numa sequência de eventos nucleares bem encadeados, com cor, atmosfera, movimento e acção, Suzy Bila sintetizou em 60 páginas o possível universo da liberdade. Não o preencheu de fantasias e nem se deixou levar pela necessidade de um desfecho justo. Pelo contrário, seguiu as trilhas do seu protagonista e emancipou-o da dor e do medo. Por isso Lamura sobrevive. A gruta onde é forçado a trabalhar não é um lugar para morrer, mas, fundamentalmente, um pêndulo onde se projectam outros princípios da vida. Eis o que nos diz Suzy Bila nesta história que pode ser infanto-juvenil e outras coisas: a liberdade não de deve calar com a intimidação das armas. Portanto, Lamura também é uma afronta ao silêncio.

 

Título: Lamura

Autora: Suzy Bila

Editora: Escola Portuguesa de Moçambique

Classificação: 16

 

Ex-pesquisador da Faculdade de Direitos Humanos da Universidade Edouardo Mondlane

 

As observações feitas por funcionários e meios de comunicação na região da África Austral têm sido enganosas e contraproducentes na sequência do destacamento de tropas ruandesas para Cabo Delgado. Curiosamente, isso explica porque o povo de Cabo Delgado recebeu escassa assistência durante anos, durante os quais foi assediado por terroristas e grupos islâmicos. A situação precária de Cabo Delgado parece ser uma preocupação secundária, diante da preocupação sobre que país deve liderar a força de intervenção para socorrer Moçambique.

Alguns países dizem que não confiam nos comandantes moçambicanos, outros insistem que a África do Sul deve comandar porque tem o exército maior, delegado pelo Botswana; outros ainda dizem que a África do Sul e Moçambique deveriam primeiro resolver a questão dos oficiais de inteligência sul-africanos, que foram presos em Moçambique, ou que o ex-ministro moçambicano das finanças exilado na África do Sul deveria ser extraditado primeiro, enquanto a papelada da SADC para implantação, parece, ainda não estar à altura.

Já os meios de comunicação, por outro lado, não perdem a oportunidade de proclamar que Cabo Delgado é um local estratégico, por concentrar enormes reservas de gás natural, rubis e pérolas do fundo do mar.

Em meio aos conflitos, cidadãos inocentes de Cabo Delgado continuam a morrer sequestrados ou passando graves necessidades em campos para refugiados.

Só isso explica exactamente por que motivo o exército ruandês foi enviado em peso, antes de qualquer outra força militar. Quando aconteceu o genocídio contra os tutsis no Ruanda, nas Nações Unidas em Nova York, especialistas e diplomatas debatiam semântica sobre, como o que estava acontecer no Ruanda deveria ser nomeado com precisão, políticos aconselhavam cautela ao chamá-lo de genocídio, pois isso implicaria uma ação imperativa por parte da comunidade internacional. Um milhão de pessoas inocentes foram massacradas enquanto aqueles debates estéreis continuavam, e assim por diante.

Portanto, ao se deslocar para Moçambique, Ruanda está meramente a cumprir a norma internacional de “Responsabilidade de Proteger” e passo a esclarecer: A Responsabilidade de Proteger – conhecida como R2P – é uma norma internacional que visa garantir que a comunidade internacional nunca mais deixe de intervir para travar crimes e atrocidade em massa como genocídios, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Lembremos que o conceito surgiu como resposta ao fracasso da comunidade internacional em responder adequadamente às atrocidades em massa cometidas no Ruanda e na ex-Jugoslávia durante a década de 1990.

Ruanda está em paz agora, mas acreditamos que nossa paz não será completa se a paz de nossos semelhantes, os africanos, não estiver segura. É nesse contexto que Ruanda convidou o mundo, em sua capital, Kigali, a assinar os “Princípios de Kigali sobre a Proteção de Civis”, que são um conjunto não vinculativo de dezoito (18) compromissos para a implementação efetiva e completa da proteção de civis na manutenção da paz da ONU.

Não é a primeira vez que tropas ruandesas se deslocam para fora da região da África Oriental. Ruanda é atualmente o quarto maior contribuinte de tropas para as operações de manutenção da paz da ONU e o segundo maior país contribuinte da Polícia.

Antes do destacamento para Moçambique, havia cerca de 6.550 militares uniformizados do Ruanda servindo na ONU, a maioria deles em pontos críticos como o Sudão do Sul, a região de Darfur no Sudão e a República Centro-Africana (CAR).

Nos últimos 15 anos, mais de 7.700 policiais de Ruanda participaram de tarefas de manutenção da paz em todo o mundo, dos quais mais de 1.400 são mulheres. A Polícia Nacional de Ruanda participou do restabelecimento da paz e da segurança na Costa do Marfim, Mali, Libéria, Sudão do Sul, Haiti e tem destacamentos na Sede das Nações Unidas em Nova York.

As tropas ruandesas não ‘avançaram’ para a SADC para se destacarem em Moçambique. Essa é uma das falácias decorrente do conflito prolongado. O fato de um exército de uma região africana diferente ser solicitado a entrar em uma zona de guerra para resgatar civis inocentes, quatro anos após o conflito estar em andamento, é uma acusação ao órgão regional relevante, sobre sua verdadeira disposição de intervir naquele conflito.

Mas essa não é a questão relevante. A verdadeira questão é: o que as tropas ruandesas vão fazer? Eles vão para resgatar civis! Se tiverem sucesso, essas mulheres, crianças, os idosos que estão em perigo, não se importar o com quem veio primeiro, quem veio em segundo lugar, quem comanda as tropas.

Durante o genocídio contra os tutsis, aqui no nosso país, poderíamos ter aceite qualquer um que se importasse em vir resgatar-nos …Não importa quem!

É importante não perder o foco. Em uma situação humanitária, as pessoas em perigo devem estar no centro de todas as decisões políticas e devem determinar a urgência com que tal decisão deve ser tomada. Quem chegou primeiro ou por último, quem comanda e quem substitui as tropas são tecnicismos segundarios. O que importa é continuar com o trabalho de salvar vidas inocentes.

Dito isso, embora não seja dito, os ruandeses não são estrangeiros, eles são africanos. Está na ordem das coisas que eles se preocupem com o sofrimento de outros africanos. Imagino que aqueles que lutaram pela libertação de Moçambique ainda se lembram de jovens ruandeses que costumavam aprender a fazer guerrilha em seu país no final dos anos setenta, início dos anos oitenta. Esses jovens, agora comandantes ruandeses reformados, ainda partilham com os jovens soldados, as suas boas memórias de Moçambique e do falecido Samora Machel. Recorde-se que a FRELIMO foi fundada na Tanzânia e os jovens ruandeses também cresceram com a canção revolucionária de Miriam Makeba: “A luta Continua”. Seria impróprio então que a casa dos revolucionários africanos fosse sitiada pelo terrorismo enquanto outros exércitos africanos ficam a olhar.

O rápido deslocamento das tropas ruandesas está de fato em linha com o sonho dos pais fundadores de uma força pan-africana para defender o nosso continente sem ser impedido por fronteiras coloniais ou “blocos” regionais. Em vez de especular, todas as nações de boa vontade deveriam apoiar as tropas ruandesas desdobradas em Cabo Delgado, afinal, não há nada de novo sobre a vinda de um irmão para ajudar outro irmão.

No entanto, para que uma operação seja bem-sucedida, todas as tropas precisam ter clareza sobre a missão. Nesta operação, todos os exércitos intervenientes têm um inimigo comum: os terroristas. Eles têm uma missão comum: resgatar civis e restaurar a paz e a segurança em Cabo Delgado. Que eles não se enganem sobre quem está de que lado e quem não está.

Entrevistado por Denny Ripanga, MC Roger, um dos gurus da comunicação em Moçambique e sem dúvidas um dos maiores “activistas da auto-estima” e da moçambicanidade que o país jamais conheceu, disse acerca de alguns apresentadores, que tem inundado as nossas televisões nos últimos tempos, o seguinte: “falta humildade a alguns comunicadores; falta cultura geral; não sabem que a televisão mais do que informar deve formar; temos mais apresentadores do que comunicadores; a pessoa pode até falar mas sem comunicar.” Não poderia ter sido mais directo e correcto, ao ponto de inspirar este artigo.

Comunicar é uma actividade essencial para a vida em sociedade, é através da comunicação que os seres humanos e os animais partilham diferentes informações entre si que são essenciais para sua sobrevivência. A comunicação é uma ferramenta de integração, instrução, de troca mútua e sobretudo de desenvolvimento.

“A televisão mais do que informar deve formar – Disse MC Roger”

O nosso país apresenta infelizmente graves problemas de educação extra- escolar, o que faz com que a televisão se torne um dos meios, senão o único meio de ocupação, diversão e mesmo de aprendizado dos jovens. Sem avançar estatísticas reais, diria que o moçambicano em média passa diante da televisão mais tempo do que na escola de música, dança, teatro, a praticar desporto ou outra actividade de desenvolvimento intelectual. Daí que concordo plenamente com o MC Roger. As televisões têm a responsabilidade de criar programas e contratar apresentadores com um mínimo de cultura, dicção, postura, vocabulário e conhecimento que possam ser uma mais-valia para a nossa sociedade.

A comunicação consiste em transmitir informação entre um emissor e um receptor. A comunicação pode ser verbal assim como não verbal. A comunicação é um processo de troca do conhecimento através da fala, de gestos, actos e omissões, através da maneira de vestir, sentar, olhar e sons.

Quando alguém vai a uma entrevista de trabalho, aconselho sempre a adaptar a sua indumentária à cultura da empresa em causa. Esta é uma forma de dizer ao recrutador, eu me identifico com a sua organização. Este é o primeiro acto de comunicação que estabelecemos com os candidatos. O candidato que se apresenta para uma entrevista de trabalho para posto de Jurista vestido de uniforme militar, está a dizer que não tem postura para representar a empresa, assim como o carpinteiro que se apresenta em uma entrevista de fato e gravata.

Outra vez assistia televisão e pude ver um apresentador com camisola do Futebol Clube de Porto, este apresentador está a dizer a milhões de jovens e crianças que estão a assistir apreciem e amem clubes estrangeiros. Inaceitável para essas figuras que têm a missão de formar a sociedade. Já que estamos a falar de desporto lembram que Reinildo foi campeão a poucas semanas? Claro que sim…orgulho para todos nós. Recebi no grupo de WhatsApp “Brothers 4life” um vídeo de um apresentador muito conhecido na praça a aconselhar o atleta, dizendo “não vem jogar nos Mambas”, “vão te partir pernas aqui”, “não estraga teu negócio com os Mambas”, “este país não valoriza ninguém”. Vi e ouvi uma apresentadora dizer ao seu colega, “você peidou” num programa em directo. Pude ver em um programa de televisão um artista com duas caixas de cerveja e a dizer sucessivamente “mother f*cker”.  Pude assistir e ouvir também uma apresentadora a dar estatísticas irrealistas e sem nenhum fundamento sobre traições entre casais em Moçambique.

A origem das atitudes destes jovens está na pura inocência. São apenas muito ignorantes com relação ao poder e a chance que a vida lhes concedeu de influenciar positivamente a sociedade que pertencem. Infelizmente eles não são formados e nem instruídos sobre o impacto nefasto dos seus actos sobre a juventude moçambicana. Certo, temos os nossos problemas, não podemos fingir sua existência. Não pagamos bem os artistas, futebol pouco competitivo, somos transportados em MyLoves*, entre vários outros problemas. Não seja por isso que tenhamos de perder amor próprio. Penso que somos muito jovens e fortes para perdermos nossa dignidade.

Minha mãe costumava dizer, Samito, ungave m’dgindo*.  M’dgindo é uma árvore com largos ramos, que em tempos de vendaval usa seus longos ramos para limpar todas as árvores ao seu redor, mas que, no entanto, debaixo da mesma o espaço permanece sujo ao ponto de ser habitada por serpentes. Mamã usava sempre esta analogia dos machopes para dizer, limpe sua casa antes de limpar a casa do vizinho, samito, ame teu irmão antes do teu amigo, elogie e admire seu país (apesar dos problemas) antes de falar bem dos outros países, use camisete de Textáfrica antes de usar de Porto, não fale mal dos teus governantes no estrangeiro, grite que os Mambas são a melhor equipe o mundo mesmo quando esmagada, não fale mal da sua esposa na presença da sua amante.

Viktor E. Frankl diz no seu livro “Découvrir un sens à sa vie” que mesmo no corredor da morte, no Campo de Concentração de Auschwitz, ele e seus companheiros de infortúnio acordaram que não deviam perder sua dignidade, que se tivessem que morrer, seria com dignidade. É essa herança que estes prisioneiros deixaram a comunidade Judaica que continua a prosperar no mundo inteiro até hoje.

A vida em sociedade materializa-se por meio de um compromisso entre os cidadãos, o contrato social. Em certos momentos devemos sacrificar nossas opiniões e convicções em prol da sociedade. Os que por fruto do azar ou de muito esforço alcançam a celebridade, assinam um compromisso com a sociedade. Compromisso este que é o de servir a sociedade usando sua influência e celebridade. Portanto, as suas opiniões e os seus pontos de vista, emitidos em público devem ser partilhados de modo a influenciar positivamente a sociedade. Em circunstância alguma estes devem dar publicamente opiniões que sejam contraprodutivas aos objectivos sociais sob pretexto de que “é minha opinião”. Não façam isso porque infelizmente os vossos seguidores vos darão ouvidos e tenho a certeza que vocês não têm objectivo de fazer “um Moçambique pior”. Se por um lado a  FMF* está a juntar esforços para que tenhamos uma boa equipe nacional não podemos ter do outro lado influenciadores que aconselham aos nossos atletas para não se juntarem a esse esforço. Este país não valoriza ninguém, diz o apresentador. “Quem é” este país? Este país é cada um de nós. Alice Mabota disse numa entrevista que deu recentemente, que “os jovens não sabem que eles é que são o estado”. E acredito que quem tem oportunidade de valorizar publicamente as nossas estrelas são exactamente os apresentadores que tem espaço de antena. Não?

Poder da comunicação

A comunicação e a mídia ditam a moda e as tendências de comportamento a seguir, destroem reputações, derrubam políticos e governos, o poder da comunicação levou o homem à lua, reconciliou nações, criou empresas, mantêm casamentos e desenvolve sociedades.  Os detentores deste grande arsenal devem ter noção do presente que o universo lhes responsabilizou e utilizarem para o bem e não para o mal.

No seu filme, que pudemos ouvir pela primeira vez sua voz, que sai em 1940 “The Great Dictator”, nos últimos 4 minutos do filme, Charlie Chaplin realiza um último discurso (The final speech from the great dictator). Discurso este que foi copiado em partes para músicas, podcasts de desenvolvimento pessoal e reeditado por vários líderes a nível mundial pela sua importância e pertinência. Devido ao contexto que se vivia na altura, Charlot usou da sua celebridade, dinheiro e arriscou sua própria vida e carreira para influenciar as pessoas a distanciarem-se dos regimes ditactoriais e agirem positivamente uns com os outros, disse no seu discurso, e passo a citar: “Sinto muito, mas não quero ser um imperador. Isso não é da minha conta. Eu não quero governar ou conquistar ninguém. Eu gostaria de ajudar a todos se possível, judeus, negros, brancos…”. Em Moçambique também temos os nossos Charlot ‘s: Neyma; Dr. Severino Nguenha; Galiza Matos Jr; Carlos Serra; Gabriel Junior, João Chissano, Victor Reis e com o mesmo poder (celebridade e possibilidade de influenciar). Utilizem este arsenal positivamente e façamos todos juntos um Moçambique melhor para cada um de nós. EU ACREDITO EM NÓS.

 

*MyLove- Transporte público (denominação adotada recentemente para designar transporte público em Moçambique).

*Samito, ungave m’dgindo – Samito, não sejas m’dgindo (Cicopi/Xichope/Chope – língua do sul de Moçambique).

*FMF – Federação Moçambicana de futebol.

Recomendação de livro para o mês de Julho 2021:  Eu tenho um sonho – “Tico-Tico”

   A TeresaMaheu” adivinhou que a demora do Mbate em regressar para casa era o augúrio doutra catástrofe na sua vida. Onde aquele passara a noite já sabia, e com quem. E o que sucedera durante a mesma. Assim avisada, preparou-se para o que desse e viesse.

    Ela aprendera que a felicidade é afinal um sentimento passageiro, uma ilusão com que a vida nos entretém. Quase poderia jurar que aquela relação com o Mbate estava destinada a terminar como adivinha que iria terminar: o regresso dele ao lar, aos braços da esposa. A sua sina não era a de ser esposa matrimonial dalguém, mas de concubina, mulher secundária em cujo ombro esse homem viria para carpir mágoas passageiras e frustrações de ocasião. Solucionada a crise, vê-lo-ia regressar ao ponto de partida. A realidade abriu-lhe os olhos e mostrou-lhe que estava do lado da razão, que fora derrotada na sua tentativa de, como mulher, encontrar um parceiro com quem partilhar o quotidiano da vida. Mbate era já uma miragem na sua existência, algo que se movia apenas na imaginação, disforme e imaterial. Desfeito o sonho, havia que reconstrui-lo; dos pedaços em que ficaram os seus sentimentos, colar as peças dessa experiência, uma ao lado doutra, e fazer delas o sustentáculo onde inspirar-se para vencer outros desafios.

   Tivera a sorte de, naquela mesma casa, coabitar com o primeiro homem que conhecera, o Aurélio “Bigwana”_ que Deus o tenha sob sua protecção. O destino, todavia, não quis que se consumassem os rituais que selariam a união pelo matrimónio que ambos projectavam. Dele nem sequer chegou de ficar grávida. Provinham da zona de Nkovene, na Manhiça. Ela  encontrara nele o homem certo que os deuses poderiam ter colocado nos seus caminhos. Os mesmos deuses retiraram-no com aquela brevidade e aquela violência de que ainda guarda memórias. Ele foi esmagado pelas rodas de um camião em pleno meio-dia na baixa da cidade. No momento, com certeza que algo o cegou e teve aquela morte instantânea que causou pasmo e consternação no bairro. Ainda recorda-se dele, com uma saudade longínqua, mas impagável. O “Bigwana” fora um homem jovial e robusto, mais até do que o Mbate. Era mesmo um gigante. E por causa desse seu físico avantajado os patrões ingleses da companhia Breyner & Wirth alcunharam-no “Aurélio, the Big One”, daí “Bigwana”.

  O defunto “Bigwana” levou consigo toda a esperança por um futuro estável à Teresa. Ficaram as rendas do fogo para pagar, o comer tinha de desenterrá-lo dalgum lado, o dinheiro para as roupas também. Sem instrução nem habilidades ela achou prudente iniciar um negócio de venda dalguns produtos nas ruas da cidade. Foi aí onde o Mbate a conheceu, aos portões da capitania do Porto a vender amendoim torrado, fruta e maheu. Os fregueses admiravam e apreciavam a qualidade da sua bebida. Por brincadeira deram-lhe a alcunha de Teresa “Maheu”.

   Assim viveu durante anos, a sustentar-se à custa daqueles negócios, até àquela tarde fatal em que fraquejou e aceitou a proposta de juntar-se ao Mbate e abandonar as actividades de vendedeira nas ruas da cidade. Ainda amaldiçoa-se pela cegueira e pela ilusão duma vida repousada ao lado dum homem que dizia amá-la.

   Com o desaparecimento do Mbate tudo voltou ao princípio. Era a roda da existência a girar e a mostrar as suas diferentes faces, as verdadeiras cores da vida.

   Sozinha e retirada da rua restava-lhe apenas fazer o que muitas mulheres da sua idade faziam: mercar molhinhos de carvão, fruta e bolos caseiros como tifiosse, matortor e mabadjia, à porta do quintal da casa. Assim fez. Os clientes afluíam com regularidade. Da receita ganha ia vivendo como podia.

   As noites, inimigas dos solitários, convertiam-se em momentos de tormentos. O seu corpo de trintona ardia e sufocava sob labaredas de desejos de ter um companheiro ao lado. Entontecia e rebolava na cama. Imaginava cenas de intimidade, ora com o Mbate, ora com o defunto Bigwana, as mesmas que a transportavam para as fronteiras da felicidade. As madrugadas eram testemunhas das suas insónias. Tudo escrutinava: o cantar dos galos, a surdina das pessoas que ao largo do caminho dirigiam-se aos seus locais de trabalho. Não voltou a escutar a voz grave dum homem a seu lado, jamais escutou a surdina de passos a transpor o piso do seu quarto, jamais voltou a sentir o calor duma mão que a descobrisse dos lençóis e a afagasse, ou a despertasse com o contacto do seu corpo. A sua companheira era a solidão. Seu esposo era aquele xindotana com que a casaram os avôs, o mesmo que, segundo os magos lá de Nkovene, planeara e causara a morte do Aurélio “Bigwana”.

   Depois de recolher as sobras dos produtos das vendas de cada dia a Teresa deslocava-se ao bazar do Diamantino para adquirir outros para o dia seguinte. Passava pela cantina do Mário e aí comprava os ingredientes para confeccionar os produtos destinados à venda. E qual o melhor remédio para as insónias do que uma garrafa de vinho “Matateu”? Assim, a Teresa iniciou-se no consumo de bebidas alcoólicas.

   Não havia noite em que ela não bebesse. Para ela isso tornou-se uma necessidade imperativa, irresistível. Com o tempo, e como o custo de vinho fosse superior à sua capacidade para o adquirir, baixou de escalão na qualidade das bebidas que consumia. Já enviava as crianças da vizinha à bhanga da Tia Cacilda para comprar para si um mu-cinco de uputso. Aí contraiu dívidas, créditos não cobertos. A proprietária da bhanga, embora fosse sua amiga, cortou-lhe os favores. De sede não iria morrer. Do uputso derivou para o xidangwana, que até era mais barato e de melhor efeito no combate às insónias. Estas deixaram de ser um problema, porque a Teresa dormia até ao meio das manhãs, negligenciando os negócios e as limpezas da casa. Comia o que calhava e quando calhava. Centavo que lhe caísse às mãos, investia-o imediatamente no ntho-ntho-ntho ou no xidangwana. Ao anoitecer era rotina vê-la a regressar à toca, a cambalear, em ziguezagues muito caprichados.

    Mulher-viúva, noiva abandonada na cratera da paixão, a “Maheu”, já mais afectuosamente conhecida por “Xicanicana”, naquelas viagens entoava a mensagem da única canção que conhecia:

 

   Tai, eu fiz tudo p’ra você gostar de mim *

   Ai meu bem não faz isso comigo não

   Você tens que me dar o teu coração 

   Meu amor não posso esquecer

   A minha vida foi sempre assim

   Só chorando as mágoas que não tem fim

   Você tens

   Você tens que me dar teu coração

 

   Ela nunca o revelou a ninguém, ou nunca pôde fazê-lo. A quem dedicava aquela mensagem de amor? Ao defunto Aurélio “Bigwana” ou ao senhor Jaime Mbate?

 

 

in Caderno de Memórias, Volume II

Foi num dia como este, há 37 anos, que um pequeno grupo de jovens sonhadores revirou o curso da história da literatura moçambicana, dando-lhe um novo brilho, ainda que de forma acanhada, com o lançamento da primeira Revista Literária moçambicana pós-independência – CHARRUA.

Era o renascimento da nossa literatura, pois, naquele dia de sol esquivo, por conta de um intermitente chuvisco, o desejo mais profundo daquele punhado de jovens, forçou o astro-rei a luzir de outra forma, através de uma, se calhar ainda imperceptivel Revista, mas motivo suficiente para lustrar o dia. A nossa literatura adquiria com aquele manifesto de ousadia, novo vigor, novo impulso, renovava-se.

Nascia, pois, no dia 24 de Junho de 1984, a CHARRUA, depois de um turbilhão incessante de “trabalhos de parto”, uma semana antes, na arrumação dos chumbos nas plaquetas das rotativas da Imprensa Nacional, com o velho Sábado Tembe no comando das operações gráficas.

Surgia sem imponência, primeiro, pelo descrédito que lhe votavam os cépticos, não poucos; segundo, pelo dia que a natureza quis que nascesse com aquele intimidatória semblante, mas nos peitos dos arautos da nobre acção, residia a esperança do reflorir de uma literatura durante longo tempo aprisionada nas brumas da noite colonial, já com outras roupagens.

A CHARRUA, sem obliterar o curso imbuído de amor, ternura, vontades originais, mas, sobretudo sensibilidade e coragem, dos escritores que, no seu escrínio, esta terra guardava, descobria o manto negro do medo e de uma coragem disfarçada nas metáforas atordoantes para a atenção opressora, na incompletude titubeante da acção que a independência significava para o povo moçambicano e para o mundo, e mostrou, à luz do dia que embora nada mudasse tudo se transformava e que, nada nem ninguém tinha força competente para o impedir.

Nascia, pois, naquela véspera da celebração do 9º. Aniversário da Independência Nacional, uma nova visão de encarar a literatura moçambicana na sua então actualidade e fazer surgir uma literatura, como que um botão de flor que explode e espalha o seu aroma, perfumando o ambiente, pelo punho, embora ainda inexperiente, mas túrgido de vontade de transformar.

A partir de 24 de Junho de 1984, o país e o mundo viram uma nova luz reflectida nas letras moçambicanas, lá já vão 37 anos, renascia a literatura moçambicana, pelo nascimento do mais novo repositório da intelectualidade moçambicana – CHARRUA.

Aqueles jovens transpuseram as barreiras que até então impediam a marcha normal de uma literatura que se pretendia brilhante: o conservadorismo, apegado a formas e sentimentos de um passado então recente, os medos do futuro, enfim, açoites que barravam uma visão futurista ampla, sobre a marcha de um povo que lutava para se reerguer, já livre de grilhões e aberto para um abraço largo, livre e voluntário com o mundo; aquela juventude, sem apagar o ontem das nossas letras, abria os caminhos do amanhã, convicto da força do seu querer, da sua vontade de limpar a fuligem que deslustrava o cantar do povo moçambicano.

Novos poetas e escritores surgiram naquele “fósforo a pavio” que despertou o país de um sono profundo.

Aquele lugar da AEMO passou a ser a alma mater, onde o então berçário das nossas letras – a CHARRUA – apurava e fazia crescer o engenho e a arte da juventude literária moçambicana.

A CHARRUA foi o fósforo das novas formas de conceber o fogo da literatura no nosso país. O que se seguiu, àquele ígneo dia, foi o trabalho do pavio que nunca mais se apagou.

Não quer, esta reflexão, forçar conceitos, fazer crer que tudo o que hoje se faz em torno da literatura do nosso país tenha aquela matriz iniciática da primeira metade da década dos anos 80, mas quem fez acreditar que, na verdade, “nada muda mas tudo se transforma” foi aquele punhado de jovens corajosos que Rui Nogar, contra todas as forças conservadoras da época, acreditou e protegeu.

Hoje, a gesta renascentista da CHARRUA faz-se sentir em cada pulsar da verve literária da juventude.

O que sentem os jovens de hoje, sentiram, há mais de 37 anos, os jovens da CHARRUA.

A CHARRUA foi a primeira revista literária moçambicana pós-independência nacional, criada por seis jovens que constituíam o pilar sustentador – o Conselho de Coordenação: Juvenal Bucuane (Coordenador), Pedro Chissano, Francisco Ezau Cossa, Hélder Muteia, Eduardo White (citado em memória) e António Idasse Tembe, a que se juntaram: Tomás Vieira Mário, Armando Artur, Marcelo Panguana, Aníbal Aleluia (citado em memória), e, logo de seguida, transformada em Movimento Literário Charrua em que outras figuras de relevo nas nossas letras despontaram, como, por exemplo, Aldino Muianga, Nelson Saúte, António Pinto de Abreu, Guilherme Afonso (citado em memória), Afonso Santos, Carlos Paradona Rufino Roque, Suleimane Cassamo, Filimone Meigos e tantos outros.

Nova, pura, aparentemente ingênua, nascia a Revista Charrua, num ambiente de incredulidades, mas cheio de certezas encriptadas na sagacidade dos jovens que a davam à luz do dia!

Como tudo o que nasce traz consigo a sua vida própria, a CHARRUA nasceu a 24 de Junho de 1984, cresceu, brilhou e teve o seu ocaso no mês de Dezembro de 1986. O seu brilho foi meteórico, mas o bastante para despertar o que estava na modorra, para cumprir o seu papel e deixar marcas indeléveis a serem sempre referenciadas ao longo do curso da literatura moçambicana.

Como dos fracos não reza a história, pela eternidade afora, ela cantará os feitos de coragem dos jovens da CHARRUA, na gesta literária moçambicana. Contra factos não há argumentos!

 

Maputo, 23 de Junho de 2021

 

 

 

 

Pelo fim das manhãs quem se dirigisse ao mercado do Diamantino não poderia esquivar a vista duma figura que era singular. Tratava-se duma dama a quem o povo alcunhou de “Xicanicana”, o que traduzido à letra significa “a avó da latinha”, porque era em vazilhame de alumínio, de tamanho miúdo, que se servia o xidangwana, fermentado à base de farelo e doutros ingredientes, todos igualmente e altamente, tóxicos. Provinha do Muvumbi, não tão distante da casa da Eva.

Pelo cestinho que costumava trazer em mão dir-se-ia que ia às compras. Em vez de fazê-lo no bazar do Xipamanine, onde a oferta de produtos era maior e, por essa razão, mais baratos, contornava este mercado e esgueirava-se pelos labirintos dos caminhos que conduziam até ao Chamanculo. Aí vivia parte da equipa constituída por dignitários como o senhor Issufo, vice-presidente do Clube Desportiva da Beira Mar, alguns vogais desta agremiação, todos ocupados em fazer nada, ou quase nada; algumas damas de feições que se alguma vez tiveram uma certa formosura esta desvaneceu-se com a frequência e a violência das bebedeiras.

O lugar de encontro dos distintos membros deste colégio de ébrios era o “Bar Estrela”, a sé-catedral do “copo”, lugar onde o vinho tinto, as “catembes” e a cerveja “Laurentina” da Reunidas, corriam como as águas do rio Incomáti. O próprio dono da loja, o senhor Pacheco, ingressava nas rodas de consumo e nela introduzia a sua colaboração de pedaços de frangos, de fígado trinchado, de tremoços e outros petiscos com que renovava as sedes e os apetites da clientela.

Qual era a fonte do dinheiro para tantos gastos, nem Deus que sabe tudo e tudo vê poderia afirmá-lo com precisão. O das damas, via-se logo, era o mesmo que os respectivos esposos deixaram sobre as mesinhas das cabeceiras para a aquisição de víveres para as refeições do dia. Daí que, em estes regressando das estafas dos empregos, não encontravam à espera as ansiadas saudações, muito menos as delícias dos jantares. Sobrevinham então as cenas de espancamento, as chicotadas com cavalo-marinho que, com frequência, tinham lugar em algumas já conhecidas residências. Alguns esposos, já subjugados pelas reincidências das consortes, deglutiam o sofrimento e adiavam as recriminações, sinal de uma rendição total e incondicional.

Esse era o caso da “Xicanicana”. De todas as correligionárias era a que mais vezes protagonizava episódios de vária índole, dentre os quais se citam o despir-se em público, fazer necessidades menores em pé, também em público, para de seguida, sem nenhum pudor, sacudir a capulana _ gu-bu! gu-bu!_ e limpar os calcanhares molhados com as mãos. E, vai daí, o deixar-se arrastar por alguns oportunistas para as sombras dalgum becos e aí reproduzirem a passagem bíblica que custou o Paraíso a Adão e Eva era conversa de um minuto. E muitas vezes nem conversa havia.

Ao anoitecer ela regressava a casa a cambalear. Ziguezagueava que até parecia um barco à vela arrastado por uma forte tempestade que, de minuto a minuto, mudasse de sentido. Trocava os passos, o pé direito muito à esquerda, o esquerdo muito para a direita; o corpo inclinava-se ora para frente, ora para trás, em sucessivas tentativas de equilibrar-se para, no instante seguinte, cruzar a largueza dos caminhos em linhas quabradas. Efectuava estas marchas de olhos cerrados, como se estivesse adormecida, ou de cor conhecesse a rota do seu destino. Da boca emanava a surdina duma cantiga melancólica:

“Taí, eu fiz tudo p’ra você gostar de mim

Ai meu bem não faz isso comigo não

Você tens que me dar o teu coração

Meu amor não posso esquecer

………………………………………….

A minha vida foi sempre assim

Só chorando as mágoas que não tem fim

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Se me ajudasse Nosso Senhor

Eu não pensaria mais no amor”

 

O eco da voz tangia o coração sofrido da “Xicanicana”. Muitas vizinhas, igualmente com os corações quebrantados por amores não correspondidos, faziam seus os versos da canção da Carmen Miranda. E juntavam-se no canto:

 

…só chorando as mágoas que não tem fim…

…você tens que me dar o teu coração…

 

Não consta na história da “Xicanicana” que vez alguma tenha-se equivocado nas rotas. A bússola do instinto era a única garantia de que chegaria a bom porto sem se extraviar. Numa mão segurava sempre um cesto de verga vazio ou parco de compras. Quem vasculhasse o interior deste acharia apenas uma meia dúzia de folhas de mbowa murchas e amolecidas ou algumas magumbas desidratadas a exalar os aromas das lixeiras. Em dias mais felizes aí poderia encontrar-se o exemplar tristonho e solitário de um pão amolgado, seco e queimado, daqueles que se vendiam por um escudo nos postos de venda das padarias ou à porta dos quintais.

O verdadeiro nome da “Xicanicana” era Teresa. Antes de ser “Xicanicana” fora Dona Teresa, mulher de dotes físicos como poucas tinham no bairro. O seu companheiro era um estivador que sofria de autismo, pessoa de ar distante, sempre a magicar coisas que não segredava a ninguém. De físico era de boa envergadura, possante como um búfalo, porque de contrário não poderia trabalhar na Estiva, a carregar sacos e tambores cheios de produtos.

A história dela é uma de amores tripartidos, de um triângulo de amor que se rompeu e que se resume do seguinte modo:

O companheiro da Teresa, o senhor Mbate residia no bairro da Maxaquene, nas proximidades da zona do Vieira, com a esposa dona Maria Rosa Nwa-Mbate, uma senhora recolhida, anémica e com voz de falsete, muito infantil. Viviam felizes, isto é, cada um vivia a sua vida, a qual comungavam apenas na esteira. Dessa comunhão na esteira nasceram dois filhos que se não prometiam cidadãos honrados e bem sucedidos, sempre a pensar no futebol, na bisca e noutros jogos de azar. A dona Maria Rosa sentia-se impotente para dar corda curta aos filhos que, conhecendo-lhe as fraquezas, riam-se dela e afastavam-se para longe das recriminações, tímidas e pouco convincentes.

O esposo, na maioria do tempo ausente na Estiva, dava pouca conta dos comportamentos dos filhos. E estes tresmalharam de vez. Acabaram ambos presos na cadeia do “Djamangwana” por assalto a um estabelecimento comercial no centro da cidade, no qual, placidamente degolaram o respectivo guarda-nocturno.

A tristeza abalou o lar Mbate. A mãe emudeceu de vez. O marido sofreu de um ataque de melancolia que o remeteu a um silêncio e a uma solidão quase sepulcral. Mas como um homem é sempre um homem, às vezes tentava algumas abordagens, acanhadas, é de se ver, na esteira com a consorte. Esta afastava-o com a suavidade da sua mão frágil e murmurava pretextos para evadir-se das intimidades. Ele sabia que estava no seu direito obter a bem o que desejava; todavia, optava pela complacência. Bem podia, porque assim é que um homem deve proceder, mandar um berro ou dar-lhe um bofetão, ou mesmo apertar-lhe o gasgante, porque não?, para obter o que lhe era de direito. Mas esse tempo já lá vai desde que fracturou a mandíbula a um colega na Estiva por causa de uns desentendimentos profissionais. A sua mão era pesada demais. Assim, à esposa limitava-se a voltar as costas e engolir a humilhação em silêncio. Ela também sabia que se se deixasse ir na conversa do esposo, com aqueles jejuns prolongados era capaz de perecer na esteira, em pleno cumprimento das obrigações conjugais. O fosso matrimonal alargou-se, as relações entre ambos esfriaram e azedaram-se. Era a premonição do fim do matrimónio. Nada os unia e nada parecia vir em seu socorro.

Conforme diz aquele adágio shangane “cabrito solto come em machamba alheia”, o senhor Mbate, pressionado pela rejeição da esposa, era acometido de pesadelos durante o sono e alucinava durante as vigílias. Via-se rodeado de mulheres que se despiam das capulanas e rodopiavam à sua volta, cobertas de uma nudez que o torturava. Via-lhes as missangas multicores cintadas sobre os púbis, as tatuagens nas coxas com figuras hieroglíficas a lembrar sexos, os seios dançarinos a peneirarem-se sobre os peitos: a tortura de Tântalo no seu quarto e nos seus caminhos!

Como tudo o que não tem remédio remediado está, o dono da casa começou a atrasar os regressos para casa depois das jornadas de trabalho. A princípio, e de um modo tímido e furtivo, visitava as “tembas” das Lagoas. Aí demorava-se com algumas “madalenas” escolhidas a dedo, embora soubesse que corria o risco permanente de ganhar o bónus de um esquentamento. Do que ele necessitava era duma mulher que lhe fizesse companhia, trocar conversa, intimidades pessoais. O que tinha em casa era aquela afónica da esposa, sempre embrulhada em silêncios, uma fracota quebradiça como um caniço, desconectada da esteira e do mundo.

Conheceu a Teresa aos portões da capitania, popular e oficialmente conhecida por Cais Gorjão. Ela aí vendia amendoim torrado e maheu. Era disso que sobrevivia. Já se conheciam porque ele frequentava o lugar da venda para adquirir uma mão cheia de grão salgado, para “ajudar a salivação”, e maheu para se refrescar do calor e enganar a fome.

Se a Teresa era abstinente como ele, o senhor Mbate não poderia afirmá-lo com a devida precisão. Mas quando, naquele fim de tarde, ele acercou-se dela e propôs-lhe escoltá-la para casa, as dúvidas sobre a sua disponiblidade desvaneceram-se. Mulher que viva na rua a vender produtos daquela natureza há-de ter as suas carências, pelo menos de um esposo que lhe garanta alguma estabilidade e conforto. Não lhe disse que era rico, nem prometeu o outro mundo, cheio de esplendores, véus, grinaldas e sapatos de salto alto. Não! Só disse: “se me autorizares posso frequentar a tua casa”. Ao que ela anuiu sem pestanejar. A ciência da vida ensinara-lhe que “a sorte só bate à porta uma vez” e que “o pescador que deixa passar à sua frente um peixe porque é pequeno corre o risco de não pescar nada, nem grande nem pequeno, nem pescadinha nem tubarão”.

Esse foi o início daquele romance entre a Teresa “Maheu”, futura “Xicanicana” e o senhor Mbate. Relação de tristes recordações cujo relato prossigo nas linhas que se seguem.

 

 

in Caderno de Memórias, Volume II

Eu tinha 56 anos de idade lá no início dos anos 2010, altura em que me foi exonerado do cargo de Director Nacional da Agricultura. Eis que recebo uma chamada do Presidente recentemente eleito.

Foi uma conversa muito longa. O Presidente não falava coisa com outra. Falámos do tempo em que eu fiquei em Manica, quando ele era o Secretário Permanente do distrito com o mesmo nome. Houve muita risada, mas, no fim, desligou a chamada.

Eu estava frustrado. Não me perguntou nada sobre as minhas aspirações. Não falou nada sobre pastas que estavam vazias. Até àquela data, eu sabia que as pastas de Agricultura, do Desporto e dos Combatentes estavam disponíveis. É o que estava nos corredores do partido.

Duas semanas passaram. O Presidente ligou-me novamente. Desta vez, foi muito grosso, sem gargalhadas e sem recordações. Disse que eu teria de preparar uma roupa formal, porque, depois dele, eu teria de tomar posse como Governador de Manica. E, de seguida, desligou o celular. Não passaram dois minutos antes que ele ligasse outra vez e com uma mensagem mais curta ainda. “Terás de dar a vida pela pátria”.

Esta última mensagem, para mim, tinha um valor simbólico, mas não tinha nenhum alcance real. Depois da tomada de posse, a pátria iria dar-me a vida. Os meus dias de glória estavam próximos.

Naquela noite, eu chamei a Suzana para a sala junto de Carlitos e Marlene. Contei-lhes que teríamos de sair de Maputo para viver em Manica. Os meus filhos mostraram-se assustados. Logo, eu acalmei-os e fi-los compreender que seríamos “a família real da província”.

Eu sabia que Carlitos não se seguraria e contaria aos amigos para ganhar popularidade. Aliais, nem o Presidente pedira sigilo. E eu não fazia questão de esconder. Mudei tudo para garantir que a minha vida se adequasse a de um Governador.

Passaram-se algumas semanas e o dito aconteceu. Foi-me chamado a tomar posse. A minha esposa e eu estávamos muito bonitos, modéstia à parte. Aliás, não é por ser a minha esposa, mas a Suzana é uma mulher que, até hoje, se veste como se nunca se tivesse casado.

Depois de tomar posse, foi-me apresentado ao povo de Manica. Tive uma receptividade muito interessante. Todos olhavam para mim com admiração. A minha passagem, nos tempos de secretário do Governador, tinha sido marcante.

Então, marquei o primeiro evento público dirigido por mim. Seria a entrega de títulos de Direito de Uso e Aproveitamento de Terra. Antes de ir ao pódio, chamei o Gervásio, meu Ajudante de Campo, e pedi-lhe que garantisse que a fotografia do Presidente estivesse num lugar de destaque.

Quando cheguei, havia gente em todo o lado. Tocavam uma música popular e os jovens, alguns meio pálidos, outros estilosos a tentarem merecer destaque nas raparigas, todos olhavam para mim com respeito. Olhei para baixo fingindo humildade. Fez-se um palco onde eu ficaria e acompanharia, antes de tudo, todo o espetáculo de grupos culturais.

Levantei-me para dar alguns passos de dança também. Todos aplaudiram… não que eu me tivesse saído melhor que os profissionais, mas era a crença de que, na minha posição, as pessoas não precisavam de saber dançar, bastava tentar que era destaque. Chefe não precisa de saber dançar, mas mesmo assim tenta.

Não podia transpirar muito, senão daria muito trabalho à minha equipa de higiene governamental. Voltei à poltrona governamental. Olhei para a Suzana que sorriu charmosa e governamentalmente. Virei-me para o traseiro governamental. Vi a foto do Presidente. Sorri e agradeci pela confiança governamental. Aquele primeiro dia em público estava a ser aquilo que eu sempre sonhei, governamentalmente falando.

De repente, ouvi um som assustador do lado de trás. Quando virei, não podia acreditar. Com as mãos, as duas, tentei segurar a cabeça que não mais cabia no pescoço. Um menino tinha atirado uma pedra na foto do Presidente.

Chorei tanto, mas tanto que vi que aquilo não fazia sentido se a pessoa que me mandara para este lugar fora tão desrespeitada em público. O que eu ficaria naquela província a fazer, se a pessoa a quem eu representava tinha tido a sua fotografia partida com uma pedra misteriosa?

Naquele dia, eu desisti de absolutamente tudo. Foi como se alguém me dissesse que a vida não passa de uma ilusão e o que é verdade é aquilo que eu ainda não sei, a morte. Fui à minha suíte governamental, abri o cofre governamental e tirei dali uns calmantes que eu sempre tomava sempre que o nervosismo me honrasse com a sua visita.

Naquele dia, tomei tudo aquilo que restava… e nunca mais pude tomar mais nada. Dei a vida para recuperar a honra do meu Presidente. Dei a vida pela pátria. Sei que me foi julgado, mas se eu fiz o que fiz, é que era proporcional ao lugar que aquela foto tinha ocupado na minha vida governamental, sendo que a minha vida já se tinha transformado, toda ela, em governamental.

Durante aquela sessão de consumo de xikadju na residência da Eva o Valgi andou um tempinho meio ensimesmado, de boca fechada, como se algo no ambiente o confundisse e preocupasse. Parecia enfadado. Não sorvia os goles da bebida com a celeridade dos outros convivas, mas sim, gole-a-gole, a degustar a leveza e a doçura da mesma. Outros que o vissem naquele estado apostariam que era o receio de que aquela cerimónia fosse um pretexto para apresentá-lo à pequena comunidade como o noivo oficial da dona da casa.

Da veracidade sobre uma ou outra especulação só o próprio Valgi poderia apontar a razão verdadeira por detrás da sua aparente tristeza. E essa foi por essa razão que fez aquela pergunta ao amigo:

“ Garrincha, quem é aquele sujeito maluco que se pôs a lamber o chão quando os polícias partiram os garrafões de cajú?”.

Eu aqui tomo a responsabilidade e a honra de intervir, porque emprestada me foram a voz e a vez pelos protagonistas destas histórias. E a do sujeito que lambeu o chão  encontra-se firmada no cadastro do meu caderno de memórias, tal e qual ela aconteceu.

“Houve um tempo, desde há dois anos talvez, que as ruas do bairro de Maria Caldeira andavam assombradas. Já não se podiam cometer as audácias de frequentar os caminhos, menos ainda os becos entre as cercas dos quintais, sem se correr o risco de um cruzamento com aquele espectro. Sim, porque atendendo ao que se dizia, deambulava por lá um homem avantajado, alto como um poste, estreito de corpo e de andar curvado. Pessoas houve que lhe colocaram no rosto umas barbas frondosas, como as copas das árvores das florestas, que lhe cairiam até ao peito e que se cobria de um sobretudo esfarrapado e comprido que lhe chegava até aos pés. Outros discordavam e diziam: “…como é que isso pode ser?…eu vi bem que ele é bem baixinho como aqui o compadre…que barbas tem-nas longas, ah nisso concordo…”. E mais  destas asserções, todas atoardas  alimentadas pelo temor e pela imaginação.

O curioso das histórias que dele se contavam não consta que, até àquela data, ele tenha agredido ou morto algum residente das redondezas, ou cometido alguma atrocidade que alarmasse a comunidade. Era cordato e caminhava o seu passo com a lentidão dos caracóis. Espreitava sempre os movimentos doutros com olhares esguelhados, carregados de alguma suspeita.

A sua verdadeira identidade e proveniência ninguém conhecia com acerto, embora alguns jurassem tê-lo visto nas cercanias dos bazares de Xipamanine, do Diamantino e mesmo do Vulcano, lá para as bandas do Cemitério de Lhanguene. Sobre os motivos do seu aparecimento na zona aventava-se que o trouxera àquele lugar o aroma e a abundância dos desperdícios do mercado, porque neste tempo de canícula, à falta de frescura e refrigeração, as vendedeiras desfaziam-se dos produtos, como investimentos sem valia, inúteis mesmo para venda ao desbarato a clientes carecidos. As sobras delas eram seus banquetes.

Qual poderia ser a habitação do homem das barbas longas senão aquele morro espesso por detrás do Entreposto, denso de trepadeiras, abrigado à sombra daquela mphama gigantesca, sobrevivente dos tempos de antanho no cruzamento daqueles caminhos que atemorizavam os habitantes? Por via de segurança, estes contornavam aquele bosque à distância: não vá o Diabo tecê-las e num repente, destacarem-se das sombras aparições ou figuras de fantasmagoria, _que as havia naquele cerração, segundo testemunhas de idoneidade acima de toda a suspeita.

O que mais intrigava em toda a figura daquele homem era o facto de sobraçar nos sovacos livros volumosos, calhamaços enodados e cadernos encardidos pelo tempo e pelo uso.  Foi já visto a rabiscar arabescos em sebentas, sentado sobre um pedregulho  junto à entrada da toca. Ou, destacado nos cruzamentos dos caminhos, proferia discursos em voz de ser escutado, que acompanhava com gestos dos braços e dos dedos a desenhar esquemas e situações abstractas no ar. Dir-se-ia que se tratava de um intelectual que pretendesse transmitir alguma mensagem a uma audiência atenta e numerosa. Porque, segundo se diz, estes sábios, à custa de muito estudar e raciocinar, na maioria das vezes acabam num manicómio, aturdidos e embriagados pela ciência ou pelas filosofias que com tanta avidez absorveram dos compêndios”.

“ O que é que esse monstro barbudo da tua história tem a ver com o Sebastião?”, perguntou o próprio Garrincha, que deveria ter uma versão diferente da minha.

“ Tem e muito, porque o monstro barbudo e o “Sebastião” são a mesma e única pessoa”, esclareci. “Cada história tem o seu começo. Estou ainda a fazer a introdução. Tem calma porque o resto vem depois”.

A audiência sossegou, arrebitou os tímpanos e da minha boca escutou:

“ O nome verdadeiro do “Sebastião” é Massinga, Carlos Massinga. Desconheço a razão de lhe terem dado aquela alcunha. Ele era professor na Missão de São Roque em Ricatla. Era viúvo e vivia com duas filhas menores, a Martinha e a Minda, respectivamente de seis e oito anos de idade, um manancial de travessuras. Possuía a algumas propriedades e gozava de muito pristígio na zona, como sucedia com muitos professores e enfermeiros, um assimilado.

Durante o tempo das férias daquela Páscoa enviou as duas crianças à cidade Lourenço Marques para a casa duma irmã sua, que vivia aqui perto da Missão de S. José.  Com isso pretendia que as crianças da família se conhecerem e se habituassem umas das outras. A irmã do professor Massinga, a mana Isabel, tinha a sua, por sinal uma menininha chamada Ginoca, da mesma idade que a Minda. Durante as férias da quadra festiva anterior a Ginoca passara momentos empolgantes, a cometer toda a sorte extravagâncias em casa das primas em Ricatla. Era o clã que se alargava em paz, numa harmonia que augurava uma continuidade sólida  e unidade na família.

As crianças de Ricatla trouxeram uma nova alegria para a casa da tia Isabel. É como se lá uma nova luz irradiasse e com esta outro calor inundasse o lar.

“ Sim, um lar sem crianças é como um dia escuro e cinzento”, disse a Eva, não se sabe com que intenção.

“ A meio daquela manhã a mana Isabel deu algumas moedas à filha para adquirirem algumas guloseimas, cadernos e lápis-de-cor na cantina do Muchina, doutro lado da Avenida do Trabalho, justamente no ponto oposto à Escola da Missão de S. José. Aquele era um lugar de travessia com muito tráfego de viaturas e de pessoas que da Missão iam ao Birbilha, à Serração Mecânica ou ao Hospital, e vice-versa. As viaturas cruzavam-se nesse ponto, umas para tomarem a Estrada Nacional Número Um, outras provinham de Marracuene, da Manhiça e dos distritos de Gaza e Inhambane. Havia muito colorido por ali, os negócios das cantinas prosperavam.

As três primas deram-se as mãos. “…nada de deixares as tuas primas atravessarem a estrada sòzinhas…”,  fora a recomendação da mana Isabel. Assim procederam. Olharam para direita e para esquerda. Deixaram passar alguns camiões conduzidos por motoristas apressados. E estrada estava livre para a travessia. Depois de se certificarem da ausência de perigo e sem hesitações, fizeram-se à estrada de mãos dadas, numa corrida que as levaria à outra berma da via.

Mas eis senão quando, um camião dasarvorado, vindo do lado da Brigada Montada surgiu e, como um monstro agigantou-se diante das crianças no meio da via e colheu-as com uma violência tal que as arremessou ao ar como bonecos de palha. Tombaram no asfalto da via com muito estrondo. O camião prosseguiu a sua viagem para a tragédia. Galgou o passeio e embateu no muro da vedação do edifício do Entreposto e esmagou duas mulheres que vendiam amendoim torrado e tangerinas.

“Que coisa”, Deus do céu!””, suspirou a Eva, escandalizada.

“Aquele foi um espectáculo difícil de crer que fosse uma realidade. Os corpos das três primas jaziam no piso da estrada, sem vida, mergulhadas em poças do seu próprio sangue, Aquelas mulheres morreram sem terem percebido porque razão a morte as levou assim tão de súbito. O motorista saiu ileso, como é costume acontecer nestas situações”.

“Parece que começo a compreender o desespero do “Sebastião”, disse o Garrincha, a abrir uma pausa na audição.  Levou um copo cheio de sumo de cajú aos lábios, beijou-o e deitou umas gotas do mesmo ao chão e completou, “ Paz à alma daquelas pobres crianças!”.

“E daquelas mulheres inocentes. Também tinham família, ora essa! Mas porque razão haviam elas de estar ali naquele momento exacto? Sem dúvidas que Deus tem os seus caminhos para chamar os Seus filhos para perto de Si”, disse uma outra mulher no meio do ajuntamento, a benzer-se.

“A notícia do atropelamento mortal daquelas crianças abalou o Chamanculo e outros bairros adjacentes. Acreditava-se que algum feitiço entrara no seio das famílias das mesmas. Outros diziam que aquilo aconteceu por causa da negligência da mana Isabel, “…como é que uma mãe responsável deixa três crianças de tenra idade atravessar estradas sòzinhas, só para comprar bolachas e rebuçados?”.Outros acreditavam na fatalidade dos nossos destinos “…aquilo foi o destino delas…mesmo em casa teriam morrido, ou  num incêndio ou doutra coisa qualquer…”.

“ Como é de se ver o pai Carlos Massinga julgou alucinar quando a notícia da morte das filhas lhe chegou aos ouvidos. Como crer que isso fosse verdade se cinco dias antes estivera com elas em tagarelices sem fim, a pularem dum lado para o outro, a reclamarem por uma visita à casa da tia na Missão para se juntarem à prima Ginoca? Com crer que a morte da esposa, aquando do nascimento da Minda, naquele parto de tristes memórias, fosse o prelúdio da desgraça que acabaria por destruir a sua família? Já não fora suficiente a morte da esposa amada, agora a das filhas, num golpe, a esteira da tragédia ainda a desenrolar-se no seu lar?

O professor Massinga entrou num processo de um esgotamento nervoso. O seu estado deteriorava-se que dava mesmo muita pena vê-lo assim. Começou por deixar de comer. Já era visto a falar para si próprio aí pelos caminhos. De Ricatla transferiu-se para a casa da irmã para ter de perto a memória das filhas. Calcorreou os caminhos destes bairros todos. Frequentou a Avenida do Trabalho, e por ela vagueou, para cima e para baixo. E parava à beira da estrada, no passeio, naquele ponto onde as filhas e a sobrinha perderam as vidas. Aí orava em voz alta e amaldiçoava-se, condenava a Deus pelo acto injusto de lhe furtar toda a felicidade, de todo o bem que possuía, que era o amor das suas filhas. Abrigou-se naquele morro por detrás do Entreposto. Da toca fez a sua habitação. Ostracizou-se do mundo e da sociedade. Hoje em dia, na clausura desse universo compulsa compêndios, regista notas, à busca duma explicação para a tragédia que é a sua vida”.

“Quem não ficaria assim depois de tamanha desgraça?”, interveio a Eva, “Muitas vezes julgamos as pessoas por aquilo que vemos nelas, mas não por aquilo que elas são ou por aquilo que passaram”.

“Essa é que é a verdade. Por dentro desses vagabundos que vemos por aí, há um homem ou uma mulher com uma história de um grande sofrimento”, concordou o Valgi.

“Hoje é o que resta daquele pobre professor. Hoje vemo-lo a deambular pelas estradas, pelos caminhos, a fazer discursos, a rir-se de si próprio, para si próprio, mas ninguém compreende quanta dor habita no seu coração, ou quanto sofrimento carrega no seu espírito”.

“Tristezas não pagam dívidas. À nossa saúde, companheiros!”, era o Garrincha, animador, a erguer um copo cheio de sumo de cajú no ar, num convite para o retorno à vida real.

“ À nossa!… tchim-tchim!…”, responderam todos em coro.

 

  * Hê wene, xaka la mina

   Hê wene, xaka laminôôô!

   Ussama uvona a xikhova

   Xi kina bayelôôô!…

 

O senhor Pachorro, porque era essa a sua função principal, puxou pela guitarra e dela arrancou as notas daquela cantiga popular para diluir da atmosfera a nuvem de tristeza que ameaçava ensombrar a festa.

E, numa só voz, todos aderiram ao estribilho:

 

 Ussama u vona a xikhova

    Xi kina bayelôôô!…

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

Este é um tema complexo, uma vez que acaba sempre por nos remeter para a velha questão: Escrever para quê? Ou seja, para que serve a literatura? Ou ainda, o que é a literatura? Na minha opinião, qualquer resposta ou definição será sempre incompleta, dado que a literatura, em si mesma, encerra componentes diversos, como os de ordem estética, ideológica e também espiritual. Por isso mesmo, o processo de escrita, como tal, está intimamente ligado à sua motivação e, por conseguinte, à finalidade da própria literatura.

Começaria, então, na minha perspectiva, por tentar definir a literatura como sendo uma forma de introspecção, de questionamento, de desassossego, de inconformismo, de conhecimento, de arquivo, de retrato da realidade interior e exterior, de crítica e intervenção social, de liberdade, de sonho, de amor à vida, de complemento e aperfeiçoamento do mundo, ou mesmo de transformação da realidade que nos rodeia.

Tal como refere Isabella Lígia Moraes, “A literatura, ainda que tenha o poder de aplacar momentaneamente nossa sensação de descontinuidade e incompletude, não traz paz ao espírito, mas indagações e angústias. A arte, de modo geral, não traz certezas e respostas, pois elas mesmas são manifestações da incerteza humana.”

Mas para que seja realmente literatura, tal como a conhecemos, todas estas formas têm de estar revestidas daquele manto que sempre a caracterizou, e que chamamos de Estética. Portanto, em poucas palavras, diria que literatura é a problematização da realidade interior e exterior, usando recursos estéticos.

Pela minha experiência pessoal, e olhando para aquilo que é a nossa história recente, não posso conceber nem aceitar uma literatura que não tenha, na sua essência, uma função social. Um texto que seja simplesmente lúdico e desprovido de algum poder provocador ou transformador, então não pode ser literatura. Aliás, ainda que seja apenas lúdico, por isso mesmo, esse texto terá sempre uma função social, desde que reúna requisitos literários.

Olhemos então para o nosso caso. Todos nós sabemos que a literatura moçambicana, tal como o nosso País, são recentes. Não têm sequer cem anos de existência. Tanto é que temos ainda vivos alguns dos seus precursores. Refiro-me concretamente ao nosso prosador-mor Luís Bernardo Honwana. Eu tenho dito que a literatura moçambicana, como tal, nasce justamente com a independência nacional, assumindo que antes desta independência éramos simplesmente cidadãos dum País que ainda não existia, parafraseando o poeta José Craveirinha.

A literatura produzida no período da resistência colonial, a par dos temas transversais ao tempo e espaço, como o amor e as questões existenciais, teve o condão de denunciar a opressão colonial, criando e alicerçando assim uma consciência nacionalista e africanista, por escritores como Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, entre outros, por sinal precursores da literatura moçambicana.

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!

Eu sou o teu carvão, patrão.

(José Craveirinha)

Durante a luta de libertação nacional, uma vez mais a literatura configurou-se como um dos instrumentos de luta contra o colonialismo, de denúncia e também de diplomacia, angariando apoios internacionais para a causa dos moçambicanos, através de textos e da poesia de Combate, com autores como Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, Jorge Rebelo, Sérgio Vieira, Rafael Magune, entre outros.

AS TUAS DORES

As tuas dores

mais as minhas dores

vão estrangular a opressão

 

Os teus olhos

mais os meus olhos

vão falando da revolta

 

A tua cicatriz

mais a minha cicatriz

vão lembrando o chicote

 

As minha mãos

mais as tuas mãos

vão pegando em armas

 

A minha força

mais a tua força

vão vencer o imperialismo

 

O meu sangue

mais o teu sangue

vão regar a Vitória.

 

(Armando Guebuza)

 

No período pós independência, o País testemunhou o surgimento da geração 80, pontificada pelo movimento literário Charrua que, face à realidade do seu tempo, e movida pelo sentido patriótico, ensaiou rupturas com o seu tempo, introduzindo na literatura moçambicana novas formas e novos conteúdos, em contraposição ao texto panfletário e laudatório em voga, em relação ao sistema político então instituído no País. Por outro lado, porque herdeira de uma tradição de luta, a Charrua produz uma literatura também de denúncia, desta feita, da guerra civil e das atrocidades dela consequentes, da fome e da precariedade generalizadas no seio da sociedade moçambicana, dos excessos e abusos de poder, entre outros males associados ao processo. Mas mais do que isso, é realmente a geração Charrua que lança as sementes daquilo que é a literatura produzida hoje em Moçambique.

Homoíne
[fragmento]

Os nossos mortos são muitos,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns

e há um enorme pássaro que se encanta,
é o pássaro lento do esquecimento,
pássaro de sangue, pássaro que se levanta
dos vermes que estão comendo os nossos mortos por dentro

(…)

(Eduardo white)

A geração de escritores posterior à Charrua e outras subsequentes, herdeiras também de uma tradição de rupturas com o seu tempo, (aliás, esta é uma característica da génese da própria literatura) tem sabido dar continuidade, com sentido patriótico, a toda esta herança literária recebida das gerações anteriores, despertando consciências para causas colectivas, preocupando-se com uma identidade nacional, alicerce da nação ora em construção.

A terra a saudade sobre o meu terraço.

Aço azul do céu. Seta certa perto do peito.

Emakhuwa é como onda no asfalto.

Lembra-nos a casa, a cana, o caniço

ou bambu. Nosso barco encalhado com terra,

transportando marítimo o silêncio da Ponta da Ilha.

(Tufo mudo na cicatriz da tarde).

Onde em Maputo  porque circuncisos garotos somos

nossas garotas o rosto de m’siro maquilham?

(Sangare Okapi)

Em síntese, podemos então concluir assumindo que o processo de escrita, ainda que seja um acto individual e solitário, é consequente da experiência vivida ou presenciada, pessoal ou colectiva, que decorre num espaço e num tempo determinados em que  o escritor está inserido, e donde este capta os problemas existenciais, a realidade e os dilemas sociais, processando-os através da criação literária, a fim de propor novos caminhos, novos paradigmas, novos mundos igualmente possíveis.

 

*Texto introdutório da conversa com escritores e leitores no quadro da feira internacional do livro de Quelimane.

Por: Jeremias Langa

 

Livro 1

Quando, sem nos conhecermos, por via do watssap, a Cláudia me pediu para ler o rascunho do seu primeiro livro e fazer os meus comentários, estava longe de imaginar o fascínio que me causaria a qualidade discursiva que encontraria neste “Vidas, paixões e o oculto”.

Recorrendo a técnicas discursivas que fazem escola nas modernas teorias literárias, como a analepse e a prolepse, a autora alia, como diria Roland Barthes, a inteligência crítica com a sensualidade verbal.

Uma temática que perpassa por toda a obra da autora é a do “realismo”, isto é, da possibilidade e das condições da representação da realidade na arte.

Muitos dos temas que perpassam neste livro são essa representação da realidade.

Muitos de nós nascemos e crescemos com esse imaginário dourado da África do Sul, seja por influência directa de familiares, seja por vizinhos. A Manuela é apenas mais uma vítima deste sonho por uma vida melhor que naqueles tempos só se conseguia na terra do rand.

Mas também temas como o tráfico sexual, exploração laboral nas plantações, as idiossincrasias das crianças que, na ausência dos pais, são educadas pelos avós… são temas que preenchem o nosso o nosso imaginário quotidiano.

Barthes lembra-nos que o realismo é uma ideia moral”, na medida em que é uma escolha do escritor quanto ao modo de representar o real.

A nossa autora fez está escolha consciente de trazer para os seu livro está forma peculiar de narrar estórias.

A Cláudia decidiu enveredar pelo romance para a sua estreia em livro. É uma ousadia tremenda. Os nomes maiores do panteão da nossa literatura notabilizaram-se na poesia (como são os casos da Noémia, do Craveirinha, Rui Knoplfli, Rui Nogar, Nelson Saute, entre muitos outros) e muito poucos se atreveram no romance (ou será antes um conto grande?).

A matriarca da nossa literatura, Paulina Chiziane, tem-se desafiado no romance e com sucesso estrondoso.

Não é comum a incursão no romance na nossa literatura e só por isso a Cláudia entra para um lugar privilegiado na galeria dos nomes da nossa escrita. O romance é um género literário para os eleitos. Exige criatividade, competência linguística e capacidade discursiva notáveis.

Este romance “Vidas, paixões e o oculto” não é evidentemente uma obra perfeita. Denúncia aqui e ali a inexperiência e algum domínio incipiente das modernas técnicas literárias. Mas isso aprenderá a autora na estrada na criação. Afinal, ninguém nasce perfeito.

O mais importante é que temos que celebrar a entrada triunfal desta nova voz nas nossas letras, que nos traz um discurso pujante, uma estória cativante e que nos toca a todos nós.

A Manuela, a Cristina, a Rebeca, a tia Bia, a avó Rapoi, a Glorinha, o Xitlhango, antes de serem personagens do livro, são personagens do nosso próprio quotidiano e cruzamos com eles amiúde nas nossas vidas.

A ingenuidade da Manuela na procura da vida fácil, o amor genuíno de Xitlhango, a matreirice de Gloria para tirar proveito de meninas incautas… a tudo isto é a nossa sociedade.

Veja-se o desfecho da Rebeca, que tanto se esforçara para ter uma carreira sólida e bem-sucedida; que tinha apostado na escola, termina a estória bem-sucedida mas bem só, com vários Meticais em vários bancos, sem ter ninguém com quem desfrutar o que amealhara.

E este romance nos levanta esta necessidade de reflexão auto-fágica: para que vivemos? Qual a noção do sucesso?

Por isso, este livro somos nós todos aqui, nas nossas perfeições e imperfeições. Leiamo-nos!

 

Livro 2

Os mendigos de uniforme

Diferentemente do que fiz no primeiro livro, não me alongarei não apresentação deste segundo livro de tao furto que ele é. Os mendigos de uniforme é Fotografia do nosso social com todas as suas imperfeições.

Satira da nossa distopia comum como país, do nosso desassossego social; da nossa perturbadora existência, o livro convoca-nos para a nossa de (Deus)valores.

Personagens emblemáticas:

. Cossa:: representa o passado idílico de honestidade e valores – os valores do desvalor

Basílio: A nossa vergonha com as origens, corrupção, bajulação, puxa saquismo e lambe botismo sem limites, arrogância e falta de escrúpulos – esta ideia de alienação sem precedentes que guia orgulhosamente as nossas vidas- Basílio

O Basílio é muita da nossa elite que venceu na vida sem olhar a meios.

Na esteira da anterior, a autora começa por nos alertar que esta obra retrata retalhos da nossa realidade individual e social de tal forma que vários episódios lhe parecerão muito familiares.

 

*Texto apresentado na cerimónia de lançamento dos livros Vidas, paixões e o oculto e Mendigos de uniforme.

Demitir um colaborador é uma das experiências mais desagradáveis que líderes, engajados em desenvolver talentos no seio das organizações que dirigem, tem que viver. Por outro lado, este acto cria uma sensação agradável para os boices* que encontram nestas ocasiões motivação  para satisfazerem seus egos ou justificar sua própria incompetência no que concerne à gestão do capital humano.

 

As razões pelas quais os líderes engajados são menos propensos a despedir seus colaboradores incluem, de entre outras, o facto destes lideres consagrarem boa parte do seu trabalho a criarem condições para que os colaboradores tenham melhor desempenho; estes estão (também) engajados em criar mudanças positivas na vida profissional e pessoal dos seus colaboradores; estes questionam-se frequentemente sobre as suas competências enquanto líderes e assumem como sua a responsabilidade pelo fraco desempenho dos seus colaboradores.

 

Embora seja uma tarefa complicada a ser cumprida e nem todos estejam preparados para a executar, demitir um colaborador é por vezes necessário. Os motivos que levam a demissão de um colaborador podem ser vários, dentre eles, são frequentes: baixa produtividade, mudanças ao nível da gestão, mudança de tecnologia, fraca assiduidade do colaborador ou comportamento do colaborador.

Para este artigo gostaria de fazer o convite para que nos focalizássemos na demissão por fraca produtividade.  Vamos a isso…?

 

Nos últimos anos, entre meados 2016 e princípios de 2021 vimos passar 3 treinadores pela nossa seleção (carinhosamente apelidada de “Mambas”). Se não contarmos com o ano de 2020 que foi atípico e improdutivo, ficamos com aproximadamente 4 anos, período em que pela gestão da selecção passaram 3 treinadores e todos foram despedidos por alegada fraca produtividade. Antes da chegada de Abel Xavier em 2016, os resultados dos Mambas já eram maus o que leva a acreditar que sua contratação visava desenhar um projecto e construir uma equipe que pudesse trazer resultados positivos a médio e longo prazo. Ora vejamos, todo projeto tem no mínimo fases de planejamento; execução; avaliação e por fim encerramento ou continuidade. Tendo em conta que os jogadores de seleções passam mais tempo nos seus clubes do que ao serviço dos treinadores nacionais, o período de execução e avaliação do projeto torna-se neste caso mais longo comparativamente a projectos clássicos.

 

É um facto de conhecimento comum que o nosso campeonato nacional não é suficientemente competitivo de modo a produzir talentos num período muito curto. Por outro lado, que condições colocamos a disposição não apenas do treinador, mas também dos atletas e da equipe técnica para que tais resultados sejam alcançados nestes períodos relativamente curtos?  Esta análise leva a conclusão de que 4 anos é um período curto para exigirmos que um treinador, mesmo da craveira de “um José Mourinho”, traga resultados para uma selecção como a nossa.

 

Demitir um colaborador nunca foi e nunca será a solução para resolução de problemas de produtividade de qualquer organização que seja.

 

No seu livro “Getting to yes”, os autores Roger Fisher e William Ray dizem: É importante separar as pessoas do problema.

Antes de pensar em demitir um colaborador os líderes devem ter certeza de ter tomado em conta alguns dos seguintes aspectos: Avaliar as competências do colaborador para o exercício das tarefas que lhe foram incumbidas; Dar-lhe autonomia e confiança para que se sinta parte da equipe; Desenvolver uma boa política de comunicação que permita ter feedback constante sobre como o colaborador aprecia seu trabalho e como ele se vê na própria organização; Reconhecimento é outro aspecto a ser tomado em conta (os colaboradores precisam saber que são úteis para a organização); Fornecer ao colaborador todos os equipamentos, infraestruturas e tecnologias necessárias para o bom exercício das suas funções; Remuneração (as organizações devem ter em conta que a remuneração que oferece ao colaborador está dentro dos padrões aceitáveis de acordo com as suas responsabilidades).

 

Depois de terem sido verificadas e colocadas à disposição do colaborador algumas destas condições ou outras aqui não mencionadas, e mesmo assim os resultados esperados não correspondam, aí sim o líder poderá cogitar a ideia de uma demissão por fraca produtividade.

 

Consequência de demissão de colaboradores

 Custos inerentes ao recrutamento e formação de novos colaboradores; instalação de um clima de medo no seio da organização, principalmente quando as demissões são recorrentes; custos inerentes a indemnização; a demissão pode afetar drasticamente no moral do colaborador despedido, e em casos extremos, chegando mesmo a suicídio; dificuldade em contratar bons candidatos quando o despedimento é injustificado.

 

Durante um processo de recrutamento, algumas das questões que os bons candidatos colocam aos recrutadores são: Esta vaga já existia ou está sendo criada; quanto tempo ficou a última pessoa que ocupou o cargo; porquê a pessoa decidiu sair; porquê foi demitida?. Estas questões servem para medir o clima organizacional. Os bons candidatos sabem que não se pode produzir a solo e o índice de turnover* é um indicador de instabilidade numa organização. Quando a percepção do candidato é de uma organização cujo fluxo de turnover é elevado, este crê que não poderá ficar por muito tempo na organização à semelhança dos seus predecessores. Nestas situações, os bons candidatos recusam a oferta. Caso aceitem, será apenas para satisfazer suas necessidades financeiras imediatas, sem expectativa de longa carreira na organização, o que pode resultar num fraco nível de produtividade. Esta é a razão pela qual as grandes organizações estão nos últimos tempos engajadas em criar ambientes de trabalho de qualidade de modo a atrair e manter bons candidatos (Marketing Interno).

 

Voltemos para caso dos Mambas e tomemos como exemplo o que antecedeu o jogo contra Rwanda, notamos que algumas das condições acima referidas não foram tomadas em conta, como por exemplo o facto de se mudar o dia do jogo (voo) sem consultar o principal responsável e motivador dos atletas, neste caso o treinador. E que no final foi sacrificado por falta de resultados. Se publicamente um CEO mostra desrespeito aos seus gestores, é pouco provável que estes últimos tenham motivação ou autoridade perante a equipe que dirigem. Outro aspecto importante a ser tomado em conta e que joga um rol importante no resultado das organizações, e neste caso especial dos Mambas, é a questão da autoestima. O que quero dizer, nós gostamos de trabalhar em organizações que prosperam, em que os seus PCAs fazem parte de grupos empresariais importantes, organizações que têm atenção à questão da preservação do meio ambiente, organizações que patrocinam e estão engajadas em programas de responsabilidade social. É motivador, o nosso ego agradece, nos sentimos parte de uma organização com influência positiva na sociedade e, por consequência, nos leva a dar melhor de nós pela organização. Imaginemos por alguns instantes a moral dos nossos atletas, quando sabem que terão almoço/ jantar pago por terceiros (leia-se despesas arcadas pela FMF), que terão de sacrificar o período de descanso que é primordial para atletas de alto nível para beneficiarem em troca de hospedagem mpwerrule*.

 

Penso que uma mudança de atitude pode nos ser de grande valia se quisermos ter melhores resultados. Dizem os autores Roger Fisher e William Ray, no seu livro acima referido, que “Se perguntarmos a duas pessoas porque estão discutindo, a resposta normalmente identifica uma causa, não um propósito.”

Esta é uma atitude que temos tido frequentemente, seja nas organizações ou mesmo nas nossas vidas privadas. Não procurar soluções para os nossos problemas, mas culpados. E quando se trata de uma organização o colaborador mais fraco é substituído pelo problema e paga pelos maus resultados que são geralmente fruto da má gestão.

 

Foi nomeado recentemente um Secretário do Estado do Desporto em Moçambique, o senhor Gilberto Mendes, dinâmico, jovem, ambicioso e com certa experiência no que concerne ao desporto moçambicano no geral. Temos jogadores a fazerem parte de campeonatos competitivos como é o caso de Mexer, Zainadine ou Renildo, temos um povo que ama aos Mambas assim como treinadores nacionais capazes como é o caso de Artur Semedo. Resta-nos desenhar um plano inclusivo, traçarmos metas a serem alcançadas e atribuirmos responsabilidades. Estou confiante que este exercício vai nos ajudar a trazer bons resultados a médio e longo prazo e evitar demissões recorrentes de treinadores na nossa seleção nacional. EU ACREDITO EM NÓS.

 

*Mambas – (Serpente) – Nome ligado a mascote que representa, e carinhosamente usado para apelidar a selecção nacional de Futebol 11 de Moçambique.

*Boices – Líderes (maneira recentemente desenvolvida no sul de moçambique de designar um superior hierárquico).

*Mpwerrule – De borla (Macua – língua falada no norte de Moçambique – Provincias de Nampula e Cabo Delgado).

* Turnover- Termo da língua inglesa que significa “renovação” frequentemente utilizado na área de Recursos Humanos (RH) para designar a rotatividade de colaboradores em uma organização.

 

Recomendação de livro para o mês de Junho 2021: De Emprego á Empresário– “Kátia Vanessa”

Samuel Gerson Andrisse

Especialista em recrutamento

Autor do livro “Be ready for your next job interview”

www.kensyle-recruitment.com

 

Naquela sessão de consumo de sumo de caju em casa da Eva o grupo em convívio era diversificado. Dele faziam parte personalidades da vizinhança e convidados doutros bairros, acompanhados pelas respectivas damas, todos ansiosos em passar momentos diferentes, senão inéditos. Cada qual trazia a sua contribuição de um garrafão de bebida. As senhoras esmeraram-se na preparação de nhangana, à qual adicionaram um nadinha de piri-piri sacana. Outras fritaram e trouxeram magumba e pescadinha para variar a ementa. Doçuras de petiscos! Na mesma compareceu um sujeito de nome Nhamposse, dado a galã e que residia na zona do Vieira, nas proximidades da Praça de Touros. Era um contador de histórias nato e prolixo, o que atraía largas audiências à sua volta para escutá-lo.

Foi com agrado que o galante Nhamposse recebera do “Garrincha” _ amigo de longa data _ o convite para a abertura oficial da época de caju em casa da Eva.  Na sua área não era muito bem quisto, em virtude de uns guiza-guizados com os maridos dalgumas damas um pouco liberais nos seus relacionamentos com homens. Receava que algum dia, se se juntasse aos mesmos naquelas sessões, acabaria envenenado por algum ciumento. Sentia-se bem e seguro longe daqueles fracassados que eram os esposos das suas amantes.

Ele tinha a sua habitação nas adjacências da Escola Primária da Malhangalene, no centro de um aglomerado de fogos de madeira e zinco. A sua era a mais próxima de uma fontenária para onde afluíam rapariguinhas adolescentes à busca de água. Rapariguinhas e não só; mesmo mulheres adultas e solteirões escolhiam aquela como a fonte predilecta para se abastecerem.

Dava-lhe imenso gosto postar-se à varanda da sua habitação e assistir àquelas escaramuças entre o mulherio que ia carretar água naquela fonte. Fazia-o com um ar superior, as mãos metidas nos bolsos e um sorriso permanente entre os lábios, como se ele fosse o proprietário daquela obra.

Por vezes refastelava-se numa cadeira de lona, os braços muito abertos, um aqui outro ali, a gozar as emoções das trocas de olhares com as mulheres e as raparigas que por ele passavam. Dia não havia em que se não registassem brigas entre grupos que rivalizavam na urgência em abastecer-se. Quando o faziam nem sempre era pela mesma razão. Muitas vezes eram apenas rivalidades pelo gosto e pelo hábito de rivalizar. Porque contradições é costume sempre havê-las entre pessoas que habitam os mesmos bairros. Outras, essas já melhor fundamentadas, tinham a ver com divisões  por questões de invejas e de ciúmes, “…porque disseste que…porque a Jorgeja é que me disse que disseste que…”, de competições por causa de namorados, eu sei lá.

Em momentos de alguma paz o Nhamposse convidava uma e outra rapariga ao seu reduto “para toma uma chávena de chá”. Em outras ocasiões era alguma mulherzinha, respeitada mãe de família que se não coibia de abrir tréguas na abstinência forçada pela ausência prolongada do esposo e aceitava de bom gosto os convites para as ditas sessões de “tomar um chá” com o galante Nhamposse.

Naquele fontenário eram notórios os grupos da Teresa “Nkadjuíne” e da Quitéria “Xiguindlana”. O cerne das contradições entre estes grupos fora o próprio Nhamposse que, pela Nkadjuíne  preterira a Xiguindlana. Como é uso e costume nessas situações, esta não se fez rogada na cobrança do desforço. Ao pretenso namorado não iria bater, porque para isso não possuía nem força nem competência. Descarregou, porém, o tanque do fel sobre a rival. Pegaram-se na fontenária, nos caminhos, no mercado e nos seus próprios domicílios. Onde quer que uma se cruzasse com a outra invariavelmente tomavam lugar verdadeiras batalhas, verbais e físicas, que se prolongavam por horas e terminavam sem vencedora. Se a “Xiguindlana” chegasse primeiro à fonte, nenhuma filiada ao grupo rival tinha o direito a servir-se, tivesse ou não urgência, porque essa deixara de existir para qualquer elemento do campo adversário. E por detrás da lata ou tambor que marcasse “vez” as filiadas alinhavam os seus recipientes, e abasteciam-se até a noite fazer-se escura. E o inverso sucedia-se a  “Nkadjuine” aportasse à fontenária antes da segunda. E longas filas aí se formavam, para desespero doutros residentes que assim se viam privados ou atrasados em abastecer-se.

Ao redor da fontenária havia sempre riachos de aguadilhas a correr, formados pelo jorro contínuo das torneiras negligentemente fechadas. Os que iam buscar água outra solução não tinham senão mergulhar os pés nesses lodaçais de solo negro.

O Nhamposse, naquela sessão de cajú em casa da Eva não se poupou a narrar histórias presenciada na fontenária da Malhangalene e outras mais, nas quais o protagonista principal era um hipotético e imaginário senhor Zunguza, um barba-azul que “não podia ver uma saia abanar à sua frente”. E, como era para esse efeito que para ali se juntaram, os presentes arregalaram-se com a frescura do caju, com as delícias dos petiscos, com a empolgância das narrações, com graça das conversas e a prolixidade dos narradores.

Com a noite as línguas entaramelaram-se, as cabeças aturdiram-se com a força dos vapores do fermentado. Todos falavam alto e riam-se ao mesmo tempo, mas entendiam-se. E, como não poderia deixar de ser, entoaram-se cantigas próprias para a ocasião.

O senhor Pachorro, que era um guitarrista que nunca primava pela ausência nesses ajuntamentos, desmontou a viola das costas e executou aquele número musical. À sua voz fundiu-se a do Nhamposse. E ambos, em dueto improvisado, elevaram aos ares as notas daquela canção que era, a um tempo, uma mensagem de paixão, de nostálgica melancolia por amores perdidos:

 

Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora ****

E conta logo a tua mágoa toda para mim

Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora

Que não vai embora, que não vai embora

Amor, eu quero o teu carinho

Porque, vivo tão sozinho

Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora

Se ela vai embora

Porque gosta de mim!  

 

E todos entoaram em coro:

 

…se ela vai embora…

… porque gosta de mim!…

 

O Nhamposse, de olhos cerrados, uma mão espalmada sobre o peito, e outra no ar, era o próprio Almir Sater, no transe do canto. A voz apaixonada, o timbre ondulante e a expressão facial sofrida conferiam-lhe a imagem do homem enamorado, abandonado o seu profundo amor ao desdém dalguma mulher insensível e caprichosa.

A ovação que se seguiu foi o convite inevitável para o prosseguimento da exibição. Outros números foram executados e entoados, com a questionável perfeição que seria de esperar de bardos improvisados e embriagados.

A noite também embebedou-se com o calor das festividades. Com estas as mentes toldaram-se. Os becos entre as cercas das casas testemunharam as marchas cambaleantes dos consumidores que iam entoando cantigas de nostalgia pela felicidade breve ainda há momentos vivida.

E tudo silenciou no bairro do Chamanculo. A noite voltou a cobrir os fogos com o seu manto escuro. A madrugada sobreveio com outras novidades. As mesmas que abalaram a paz da época, esfriaram o calor das celebrações e trouxeram uma lição renovada de que o respeito pelas coisas ou pela propriedade alheia é uma norma fundamental para que reine a paz e a harmonia na comunidade.

Os residentes nas vizinhanças da cantina do Mário acordaram sobressaltados com aquela notícia: um homem jazia morto e descoberto junto ao muro traseiro do estabelecimento. Era o de um indivíduo desconhecido na zona, que pela aparência devia ser de meia-idade. Um ajuntamento de curiosos formou-se ao redor do malogrado, sem que ninguém, pela surpresa _ diria_ não cometeu a temeridade de dele aproximar-se para melhor identificação; ou, movido por algum sentimento samaritano, o envolvesse com uma capulana para cobrir-lhe o pudor.

A manhã de Domingo ia no começo, eram dez em ponto, quando o “Garrincha”, sobressaltado pelo burburinho causado pela presença dum homem morto ali nas redondezas, sacudiu-se da lazeira e foi testemunhar. Uma brigada da Polícia Judiciária já lá se encontrava a colher evidências, a tirar fotografias e a questionar eventuais testemunhas do evento.

E eis senão quando, para seu espanto e incredulidade, o “Garrincha” descortinou as feições daquele indivíduo e testemunhou a tragédia que fora a morte daquele seu amigo. Porque era, nada mais, nada menos, o corpo despido do seu convidado da véspera, o Nhamposse da Malhangalene! Tinha os órgãos genitais expostos, esmagados, envolvidos por coágulos de sangue já escurecidos, à mistura com uma massa escurecida e disforme de tecidos macerados e pedaços de peles esmagados. O rosto sem expressão era uma máscara cruzada de escoriações e hematomas. Do resto do corpo distinguiam-se com nitidez marcas de lanhos, sinais de que o malogrado fora vítima de uma violenta agressão e que, provavelmente, fora morto algures e deixado ali ao relento.

“ Este teve o que merecia”, disse um mirone no ajuntamento de curiosos, a apontar para aquele corpo sem vida.

“ Você não tem mesmo alma. Como pode dizer que a morte duma pessoa é coisa boa?”, protesto duma mulher, comiserada com aquele infeliz.

“ Digo isso porque vê-se que ele foi surpreendido em flagrante na cama doutro”, esclareceu o primeiro. “ Já vimos casos como este aqui o bairro. Não é a primeira vez que isto acontece. Procurou e encontrou o que procurava. Aqui entre nós é assim, e doutro modo não pode ser. A nossa justiça funciona desta maneira. Morreu por onde pecou”, desabafo daquele justiceiro, a ranger os dentes.

Ao Nhamposse custara a vida a aventura da última noite. O fim daquela sessão de consumo de caju terminara como muitas outras. Embevecidos uns pelas delícias da bebida e outros pelos apelos espirituais das melodias entoadas, libertaram-se das amarras da inibição e deram asas a desejos não confessados. Recolheram ao abrigo das cabanas cujas sombras foram cúmplices de actos de amor proibidos. E esse fora o seu caso com aquela dama de lábios tenros e carnudos, dona de uns olhos grandes que vertiam ternuras a mirarem-no com lascívia e _ só podia ser_ a transmitir-lhe uma clara mensagem de convite para outros encontros, em outros lugares, para outras finalidades. E o esposo dela., que afinal não estava no piquete da Estiva, regressou a casa, a tempo de presenciar a sua esposa legítima em flagrante acto de adultério, na sua cama, na sua palhota. O Nhamposse rendeu-se à evidência de que cometera o mais pecaminoso dos actos dos que em toda a vida cometera. E teve lugar aquela que foi a sua luta pela sobrevivência. Manietado pelo medo a sua resistência foi mínima. O dono da casa era um sujeito afeito a lutas, das quais travara muitas, e longas, lá na aldeia donde provinha. Em pouco tempo neutralizou e subjugou o adversário. Remeteu-o à inconsciência com um estrangulamento e, na presença da própria esposa_ paralisada de temor e culpa_ esmagou-lhe os órgãos genitais com um martelo e um bloco de cimento. Sorte semelhante teve a adúltera. Morreu estrangulada na mesma cama onde cometera a infracção matrimonial.

Consumados aqueles actos, o esposo enganado carregou às costas o corpo do Nhamposse e depositou-o nas traseiras da cantina do Mário para pasto de cães. Regressou à cabana e aí enforcou-se sem deixar mensagem.

 

 

O jornal “O País” completa esta semana 16 anos de existência, 16 anos construídos, dia após dia, e edificados pedra a pedra. Ao longo destes 16 anos, nasceu e foi-se consolidando a lealdade e até a cumplicidade entre pessoas que não se conhecem e talvez nunca se encontram fisicamente durante a sua vida (jornalistas, editores e leitores).

Não é possível descrever o papel da mídia na democracia moçambicana sem referir o jornal “O País”, que é precisamente um dos frutos dessa democracia.

O jornal moçambicano &quot;O País&quot; surgiu num contexto democrático e de abertura política que possibilitou a emergência de uma imprensa independente, investigativa, séria e combativa, não ao serviço dos interesses de um único partido, mas livre para reportar aos moçambicanos a sua interpretação dos factos de forma transparente e imparcial.

Pautando-se por um compromisso de responsabilidade e pensamento crítico, este periódico laureia-nos com histórias do presente e de futuro, histórias que nos tocam de perto. “O País” é uma das casas, uma das avenidas, uma das instituições onde passam, vivem e trabalham muitos dos seus leitores, sempre promovendo o gosto pela leitura.

O grande desafio do jornalismo, em todos os tempos, consiste em libertar-se das amarras partidárias. Resistir com firmeza ao ódio e ao medo que os sistemas antidemocráticos sempre semeiam. Por inerência, a mídia integra o sistema odiado e perseguido pelos sistemas autocráticos – e consequentemente “O País” fez parte desse sistema, mas cabe também aos mídias o papel de tentar melhorar tal situação e promover a liberdade, funcionando como contrapoder, dentro das regras de equilíbrio das instituições democráticas, mau grado os constrangimentos que, nestes dias, o regime tenta reerguer com uma inesperada proposta lei de imprensa.

Ao longo dos 16 anos, “O País” tem estado ombro a ombro e de mãos dadas com o povo moçambicano na denúncia do mal e no anúncio da harmonia e concórdia entre todo o povo moçambicano. Tem, tenazmente, combatido vários casos de injustiças e mesmo de corrupção, procurando corajosamente a interligação de factos e, bem assim, a revelação do que pretende manter-se oculto. O jornal O País é exímio na construção de pontes de amizade e não de muros de separação. É importante que o jornal “O País” prossiga o seu trabalho, praticando um jornalismo de saber ouvir, perscrutar as verdades, acima de todos os constrangimentos, para que os que governam se sintam obrigados a estar à altura de quem os elege e escolhe e para que os leitores sejam correctamente estimulados a decidir as suas próprias preferências e orientações políticas e sociais.

A mídia desempenha um papel de suma importância na manutenção e consolidação da democracia, criando, com a apresentação da verdade, o

caminho para uma sociedade democrática mais robusta. E “O País” tem sido, de facto, um elemento estabilizador dos poderes públicos, sempre atento a divulgar factos, a disseminar informações com rigor e rapidez, garantindo o imprescindível primeiro lugar aos direitos à informação e a liberdade de expressão.

A luta pela manutenção da democracia deve ser uma constante. E ao Estado deve caber, naturalmente e acima de qualquer interesse, garantir a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça ao seu povo. Por sua vez, os órgãos de comunicação social, devem promover a concretização, de uma forma mais completa de participação política, fortificando os ideais democráticos, constituindo um verdadeiro instrumento de defesa aos direitos dos cidadãos.

Com a presença de “O País”, temos, de facto, testemunhado o exercício pleno da cidadania, uma vez que, ao garantir o acesso à informação, o jornal sempre se demarcou de uma linha segundo a qual os jornalistas devem exercer as suas funções a mando dum determinado partido político, designadamente o partido no poder.

Este jornal, como acima referido, enobrece e engrandece o orgulho de ser moçambicano, e encaixa-se nos princípios universais da liberdade de imprensa, porque contrariamente a alguns jornais públicos, nomeadamente Notícias e Domingo, cujas linhas editorais seguem  e representam o pensamento do governo do dia e como diriam alguns são ate controladas, senaocensuradas pelo governo, “O País” consegue mostra-se vertical, imparcial e transparente, proporcionando aos leitores uma opção editorial de alta qualidade e isenta de amarras politicas, sejam de que origem for.

Ao Daniel David, a quem tenho a ousadia e o privilegio de chamar de amigo quero recordar-lhe  um momento impar em que demonstrou estar onde esta por merito proprio e com os pes bem assentes no chao. Estavamos numa recepcao alusiva a recepcao do entao Primeiro Ministro Adjunto da Gra Bretanha e Irlanda do Norte, na residencia da Alta Comissaria, na altura a senhora Kuensberg, que fez questao de nos apresentar ao ilustre visitante. No seu gesto caracteristico a senhora Kuensberg ao apresentar o DD, como lhe chamamos fora das horas normais de expediente, fez questao de dizer que ele era o PCA da SOICO e para dar uma ideia ao Deputy PM da importancia de DD na sociedade mocambicana comparou-o ao … senhor Murdoch, na altura dono dos mais importantes jornais na Inglaterra e se não me engano na Australia, de onde e originario. E disparou a Alta Comissaria Kuensberg: He is the Rupert Murdoch of Mozambique! 

Quando menos esperavamos e para aquilo que eu considerava um super elogio da parte da Alta Comissaria, DD respondeu: I am not Rupert Murdoch of Mozambique, I am Daniel David from Soico! Para bom entendedor meia palavra basta!

Um segundo encontro inesquecivel foi em terras lusas, durante um dos Mozefos na diaspora. Recebi um convite para estar numa das edicoes do Mezefo em Cascais, no Casino Estoril e quando la chego estava uma naipe finissima da elite bancaria, academia e politica portuguesa para não falar das presencas do Presidente da Republica Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, do Paulo Portas, da mana Luisa Diogo, do PCA do BIM, do mano Namburete do Banco BIG entre outros. Recolhi-me a minha insignicancia e perguntava a mim proprio, no regresso a Lisboa o que e que eu fazia naquela sala!

Face a todo o exposto, auguramos sucessos nesta vossa dignificante e já longa marcha rumo ao progresso económico, social e cultural dos moçambicanos, visto que é através de jornais como “O País” que os moçambicanos, acedendo a informações plurais, podem alicerçar as suas opções de natureza social, económica e política.

Pois, na verdade, apenas actuando, como é unanimemente reconhecido, com total isenção relativamente a correntes políticas, é que “ o País”, pode ser um relevante pilar do progresso social, económico e político do nosso país.

Nessa conformidade, saudamos “O País” na efeméride dos seus 16 anos, formulando e reiterando votos de prossecução desse desígnio e missão. O desafio que lanco e que não desistam na expansao as provincias e que Quelimane esta aberto para ser a sede de uma delegacao da Soico na zona centro.

Em tempo de tempestade no alto mar, sois uma das poucas bussulas…

Um abraco,

Manuel de Araújo

28 de Maio 2005 é um dia ímpar. Um dia sem comparação, que o futuro não ousará repetir. Ainda que tentasse, a magia da criação do jornal O País tem aroma único e a fórmula perdeu-se na imensidão das partículas do tempo. No presente, só nos é permitida a viagem pelos anos passados e, em todas as estações, escalpelar as emoções euforicamente vividas, por quem produziu e por quem consumiu este produto.

São 16 anos que hoje celebramos, 16 anos de um produto que, de forma indelével, escreve nos anais da história do país, uma parte significativa da história de Moçambique no contexto da democracia multipartidária. Aqui, orgulha-nos saber que contribuímos para a edificação deste pilar, que ainda procura solidez na esfera pública.

Rasgando memórias e perscrutando as milésimas páginas de história produzidas e publicadas, regozijamo-nos por saber o quão importante fomos ao informar e contribuir, com matéria-prima, a essência do pensamento crítico, elemento fulcral para dialética que gera o desenvolvimento. Tudo fizemos num claro compromisso com a verdade, com rigor e com responsabilidade.

Hoje, vivemos novos tempos, nos quais mudar ou se adaptar é condição sine quo non de sobrevivência. A estas imperiosidades, respondemos com tranquilidade, como resultado da resiliência que as turbulências nos proporcionaram. Eram muitos os cépticos que auguravam o nosso fracasso quando, há 16 anos, surgimos, mas vincamos. O golpe da penhora também ressuscitou o prognóstico de falência, porém ultrapassamos. Na passagem para o diário, chamaram-nos de aventureiros que entravam na mata densa sem protecção, contudo desbravámos e criámos caminhos. Na migração para a publicação digital, os amantes do papel resistiram, mas já se adaptaram. Portanto, tudo isto e muito mais foi injecção de força que se transformou em tranquilidade para lidar com adversidades.

Mais um ano passou e, uma vez mais, celebramos o nosso aniversário no meio da pandemia da COVID-19, que neste intervalo infectou mais de 70 mil pessoas, das quais 834 vítimas mortais. Apesar da significativa redução de casos activos, agora a volta dos 600, continuamos em sentido de alerta e, por isso, precisamos de ter atitudes comedidas. Na media, a pandemia também arrasou, mas também elevou a nossa importância, enquanto canal disseminador de informação. Temos, pois, orgulho do papel que temos neste capítulo.

Ao celebrar os 16 anos, juntam-se a nós distintas personalidades para expressar o seu olhar sobre o nosso jornal e o país. A estas e a todos que, nestes 16 anos de existência, dialogam com os textos d´O País, os nossos agradecimentos pela confiança. Tudo faremos para continuarmos a merecer o vosso apreço.

Com o sentido de acção activo, continuaremos a trabalhar em prol da vossa satisfação para somar histórias na vossa companhia. Bem haja, O País!

O jornal O País inaugura uma época de imprensa moderna cuja liberdade de expressão calcorreia as novas tecnologias, enfrentando momentos incertos e vencendo receios, ventos e tempestades.

Trata-se de um jornal que cultiva um jornalismo que foge da mera conveniência de alardear títulos capciosos e bombásticos, feitos de frases pré-fabricadas, tanto assim é que se distancia dos grupos de interesses (com exclusão, como é óbvio, da publicidade paga), como se não se deixa levar por pressões de uns e outros, em busca de exposição positiva para ganhar mercado político ou empresarial ou qualquer outro quando não seja para com a mesma exposição em sentido negativo contribuir para o derrube, por essa via, dos mesmos adversários (políticos ou concorrentes empresariais ou quaisquer outros actores sociais), num mundo cada vez mais volátil à notícia, sobretudo, quando ruim.

Deste modo, O País usa a lisura, bom senso e responsabilidade num mercado onde todos os stakeholders nesse campo são importantes para os leitores, para a cidadania e não menos para o mundo global. Quantas vezes, entre outros, os turistas e os investidores são influenciados pelas notícias para demandar um certo país, no caso, este, o do território e não o do jornal.

Ao longo dos seus dezasseis anos de adolescente que é, O País tem feito jornalismo com uma mestria que o marca como referência, fazendo jus ao seu nome, ao trazer material informativo de toda a largura territorial, do Rovuma ao Maputo e do Índico ao Zumbo, e nas diversas vertentes temáticas e cobrindo actividades de diversos segmentos e grupos sociais, o que constitui uma materialização incondicional da democracia.

Na verdade, não se pode falar de democracia em qualquer país civilizado, como o que pretendemos que Moçambique seja, sem que haja liberdade de imprensa, o que é corolário da liberdade de pensamento do jornalista na sua acção de recolha e tratamento de informação para torná-la fiável, porque testada e contraditada no terreno.

A liberdade de imprensa, em democracia plural, é o reverso do direito à informação que aos cidadãos é devido.

E nenhum direito se conquista sem esforço, pois mesmo o pão para a boca depende da labuta diária em sua busca.

Assim, também se busca a liberdade de imprensa como se de pão para a boca se tratasse.

A liberdade de imprensa, ancorada na liberdade de expressão, carrega consigo o consequente benefício social dos cidadãos, pelo correlativo direito à informação. No dia em que faltasse a liberdade de expressão e de imprensa e, desse modo, ficasse vilipendiado o direito à informação a que os cidadãos pudessem ter acesso, então teríamos de nos preparar para o funeral da democracia!

Do mesmo modo, no dia em que faltar a pluralidade de ideias e todos nós passarmos a pensar da mesma maneira, estaremos carregando a mesma cabeça e faltará, por completo, a diferença – esse património universal inalienável do Homem.

O País tem trazido a verdade, ou pelo menos, tem feito tudo o que é possível e tudo o que não é possível para apresentar, somente, a verdade aos seus leitores.

Esse tipo de conduta e forma de ser e de estar do jornal O País fez com que ganhasse, neste período dos dezasseis anos, o seu espaço na comunidade leitora nacional e internacional e, bem assim, se afirmasse como um matutino diário de referência e de destaque no mercado nacional e internacional.

Assim, O País tem demonstrado, também, que, além da informação e comunicação relativa, entre outros, ao pano de fundo, à política e à sociedade, internacional, há mais vida, nomeadamente, no desporto e cultura, já que, aliás, bem se sabe, o Homem não vive só de pão, mas também de circo.

O País é, certamente, mais do que um jornal, não só por extravasar as fronteiras nacionais, como, sobretudo, por se ter tornado um amigo diário indispensável, do qual se busca informação fiável e credível, captada em qualquer ponto do país e do mundo, por via do também mundo moderno, nomeadamente, o digital.

Este jornal configura, assim, uma marca de prestígio que merece ser acarinhada, tal como qualquer adolescente, para continuar nessa epopeia de transformação e adaptação permanentes, em benefício dos leitores, expondo Moçambique pelo mundo e trazendo o mundo a Moçambique.

Mas, nenhum sucesso teria sido alcançado sem a irreverência juvenil dos jornalistas afectos ao matutino. Só com a sua determinação e entrega ao trabalho, conseguiram-se alcançar os níveis e resultados que estamos a celebrar.

A esses jovens aguerridos, aos quais coube durante este período produzir um jornal diário, o que representou uma empresa verdadeiramente difícil, carregada de uma acrescida pressão para apresentar artigos e torná-los credíveis, para assim tomar para si um bom segmento de mercado, num espaço onde cabem todos, cada um na proporção do seu empenho, vai, por ser de justiça, um reconhecimento
sem paralelo.

Assim é, pois, porque O País é um jornal que cobre o seu espaço por mérito próprio, daí que, efusivamente, lhe celebrarmos a pujante e promissora adolescência, pela qual lhe apresentamos, aqui e agora, os nossos cumprimentos de merecidos PARABÉNS!

Dezasseis anos atrás, era colocado a circular o jornal O País com uma apresentação invejável em leyout, assim como em termos dos conteúdos.

Um lançamento rodeado de pompas e circunstâncias, próprio do Grupo SOICO. Chegava às nossas mãos um jornal diário, com uma forma de tratar as notícias e assuntos defundo, com responsabilidade, que acabou por nos acostumar a querer sempre comprar o jornal ou a aceder electronicamente.

Os 16 anos, que passaram, foram consolidando o jornal O País na “praça” e, nos momentos em que por razões alheias aos donos do jornal esteve fora da circulação, sentimos a sua falta.

Dezasseis anos, período de adolescência, se fosse um ser humano, seria o momento de muito questionamento, de rebeldia que precisaria sempre de diálogo com os pais.

Mas, como se trata de um jornal, não acontecerá isso, pois os editores, os jornalistas, sempre cuidando da deontologia profissional, nos acostumaram a ter notícias que constroem o país.

Longe der ser um jornal sensacionalista, pautou-se por abordar assuntos que ajudaram a elucidar os momentos vividos pelo nosso país em termos políticos, sociais, económicos e não só.

O jornal o País soube ser e estar na sociedade moçambicana.

O jornal o País passou a ser um sujeito activo de forma positiva, um actor relevante e imprescindível na construção de uma sociedade de respeito, de diálogo e pluralidade de ideias, ou seja, a abertura para o diferente.Quero acreditar que o jornal O País continuará a brindarnos de forma responsável na veiculação das notícias que contribuam para o desenvolvimento do nosso país. Bem haja, jornal O País!

Neste momento de turbulência por causa do terrorismo que teima em adiar os sonhos não realizados dos nossos antepassados, dos nossos e das gerações vindouras de ver o país com os seus habitantes sorridentes e felizes devido ao usufruto dos recursos abundantes transformados de forma justa, esperamos que o jornal continue a sua caminhada como actor responsável e ético, ajudando-nos a não desfalecermos, mas a olhar, com esperança, os dias que virão rumo ao desenvolvimento do nosso belo Moçambique.

Muitos 16 anos virão e o nosso desejo é que o jornal O País celebre sempre com a dignidade merecida.

Se a única razão que justificasse a necessidade duma imprensa independente fosse a mera garantia do direito que as pessoas têm de dizer o que pensam, provavelmente essa imprensa não seria absolutamente necessária. Há mérito, claro, em garantir que as pessoas se informem de forma diversificada, algo que não poderia ser garantido se dependessem apenas de fontes oficiais. Todos sabemos que as fontes oficiais têm a sua verdade, ou melhor, têm uma “verdade” que lhes interessa transmitir. Nesse aspecto, não existe diferença entre regimes autoritários ou democráticos. A verdade oficial é sempre refém dos interesses de quem detém o poder político e, por isso, ela não corresponde necessariamente à “verdade”.

Se dissermos, também, que precisamos duma imprensa independente para podermos satisfazer as necessidades que as pessoas têm de estarem informadas, também não estaríamos a proporcionar boas razões para a sua existência. Todas as sociedades dependem,  até um certo ponto, da troca de informação, independentemente da forma como essa troca está organizada. No fundo, sociedade não é outra coisa senão a troca de informação. Viver com os outros é saber dos outros, saber como estão, o que fizeram ontem, o que vão fazer amanhã, o que acham disto e de mais aquilo. Nessa satisfação da nossa curiosidade flui informação, falsa e verdadeira, na base da qual cada um de nós orgnaiza a sua vida. Portanto, com ou sem imprensa independente, a informação fluiria.

Existem, contudo, três razões impecáveis que justificam a existência e necessidade duma imprensa independente. É que ao dar substância à ideia de liberdade de imprensa a imprensa independente garante três coisas fundamentais, nomeadamente a liberdade de expressão, o pluralismo e a cidadania activa. Dito doutro modo, uma sociedade democrática precisa duma imprensa independente porque esta dá conteúdo à própria ideia de democracia. Democracia não é um rol de coisas que preenchemos mecanicamente, do tipo eleições, liberdade de imprensa, liberdade de expressão, etc. Democracia é o reconhecimento da importância capital que a liberdade de expressão, o pluralismo e a cidadania activa têm na viabilização da própria democracia. Ou por outra, a democracia é o seu próprio conteúdo.

Pode ser útil reflectir sobre cada uma destas três coisas. A liberdade de expressão protege o direito que cada um de nós tem de articular a sua opinião. É claro que não se trata de qualquer opinião. Como qualquer outra liberdade individual, o seu usufruto só tem validade até onde ela não interfere com a liberdade dos outros. É por isso que existem leis contra a calúnia e difamação. Mas o essencial é que a liberdade de expressão nos protege contra aqueles que não gostariam de nos deixar falar para serem eles a dominarem a esfera pública só com os seus pontos de vista. A liberdade de expressão constitui o reconhecimento de que ninguém detém o monopólio da verdade. A existência duma imprensa independente concretiza este reconhecimento.

Alguém pode levantar uma objecção neste ponto. Pode dizer, por exemplo, que a ideia segundo a qual ninguém teria o monopólio da verdade significa, consequentemente, que mesmo aquilo que não é verdade pode ser veiculado publicamente. Sim, a ideia é efectivamente essa. Dizer que ninguêm açambarcou a verdade não quer dizer que certas coisas que passam por informação na esfera pública não possam ser falsas. Podem ser. A ideia, contudo, é de que é melhor correr o risco de consumir falsa informação do que o risco de ser privado de informação para que alguém tenha o direito de impôr a sua verdade. Os momentos conturbados que o País atravessa com a violência em Cabo Delgado são particularmente instructivos. Sem a protecção da liberdade de expressão estaríamos sujeitos à prerrogativa repetidamente demonstrada do governo de desinformar sobre o que lá se passa. Quando pessoas próximas do governo falam mal de quem comenta a violência em Cabo Delgado e acusam-no de “insurgência digital” e epítetos afins, elas estão efectivamente a manifestar aquele desejo profundo de serem os únicos a desinformarem. Não são necessariamente pela informação séria.

Ora, a protecção da liberdade de expressão está intimamente ligada à segunda coisa que a liberdade de imprensa garante. Refiro-me ao pluralismo, talvez a coisa mais fundamental que a democracia promove e protege. O pluralismo é, na verdade, um princípio. Segundo ele, existem várias maneiras de viver a vida. Nenhuma dessas maneiras tem prioridade sobre as outras a não ser, claro, que para eu viver a vida como eu gostaria de a viver tivesse que eliminar todas as outras maneiras de viver. Por exemplo, se eu sou católico ou muçulmano, e tenho poder para determinar as coisas, se eu exigisse que toda a gente fosse católica ou muçulmana, estaria a violar esse princípio. Isto não é apenas no campo religioso. Mesmo no campo político pode acontecer.

Aconteceu no nosso País quando se declarou a independência. Os libertadores da Pátria impuseram como condição para se ser moçambicano estar de acordo com a orientação marxista que eles tinham. Isso limitou as liberdades daqueles moçambicanos que tinham outra concepção da vida e, por que não, uma outra ideia de Moçambique. A rejeição do pluralismo em 1975 criou, por sua vez, condições para a instabilidade militar que o País viveu durante 16 anos durante os quais milhares de compatriotas perderam a vida e o nosso desenvolvimento económico se atrasou com todas as infra-estruturas que foram destruídas. Portanto, o pluralismo é muito importante. A viabilidade dum País depende muito da sua protecção e mesmo promoção, pois isso garante que apesar das diferenças que existem entre nós possamos viver em comunidade e de forma pacífica uns com os outros.

O pluralismo articula-se com a liberdade de imprensa no sentido em que esta permite que outras maneiras de se ser moçambicano, de pensar Moçambique e de organizar a vida tenham espaço legítimo para se exporem e, quiçá, procurarem convencer outras pessoas da sua beleza. Do ponto de vista político, contudo, a liberdade de imprensa articula-se com o pluralismo lá onde ela garante que outros projectos de governação encontrem espaço para serem expostos sem que, por isso, os seus autores tenham que sofrer represálias, ou, para dizer as coisas moçambicanamente, sem que alguém parta as pernas dos seus autores. A liberdade de imprensa protege, neste sentido, o direito que cada um de nós tem de não concordar com quem detém o poder, e de poder dizer isso de forma aberta, ainda que com o devido respeito.

É neste ponto onde intervém a terceira coisa fundamental, nomeadamente a cidadania. Cidadania não é apenas ter um bilhete de identidade, pagar impostos e votar. Cidadania é fazer parte da esfera pública, isto é ter interesse nos assuntos que dizem respeito a todos e ter a liberdade de se manifestar de forma crítica em relação a esses assuntos. Moçambique é uma república e isso significa que a participação de cada moçambicano na coisa pública precisa de ser garantida. A prerrogativa que cada um de nós tem de interpelar criticamente aquele que governa constitui uma manifestação essencial do republicanismo. Com a liberdade de imprensa, todo o moçambicano tem a possibilidade de interpelar quem governa.

Há quem pense que quando um governo é interpelado existe a possibilidade de se comprometer a governação. A crítica, diz-se, pode diminuir a confiança no governo e isso pode fazer com que as pessoas sejam menos disciplinadas na maneira como seguem orientações. A verdade, porém, é que uma interpelação crítica só enfraquece um governo que já é fraco. Pouco surpreendentemente, são normalmente governos fracos que nutrem hostilidade à crítica. Com efeito, quanto mais fraco for um governo, maior é a sua necessidade de controlar a informação e maior é o seu investimento no silenciamento da crítica. Um governo forte, pelo contrário, sai sempre mais fortalecido da interpelação crítica, pois através dela ele tem a possibilidade de ver aquilo que talvez não via e, se estiver de acordo, claro, corrigir as coisas.

Eu, por exemplo, acho que o programa SUSTENTA foi mal concebido. Gente próxima do governo tem muitas dificuldades em ouvir isto. Por essa razão, essa gente reage irada e sempre com aquela suspeita de que quem critica o programa o faz por não gostar do governo, do ministro ou, pior ainda, por não querer o fim da fome no País. Mas a questão não é essa. O programa definiu mal, em minha opinião, o problema da productividade agrícola no país. Esse problema não me parece ter nada a ver com as cadeias de valor, mas sim com o facto de muita gente nas zonas rurais não ter alternativa à agricultura de subsistência.

Ademais, o programa foi mal definido, também, por assentar numa solução que exige um estado muito mais eficiente do que o nosso, infelizmente, é. O meu receio é que tudo isto termine num desastre humanitário e político. Não seria a primeira vez. A socialização do campo ensaiada nos anos imediatamente a seguir à independência teve também um fim desastroso justamente por ter definido mal o problema. Agora, essa é a minha opinião. Não significa que eu tenha razão e que aqueles que conceberam o SUSTENTA sejam idiotas. É apenas a minha opinião. É minha responsabilidade como cidadão interpelar o governo. Se o governo achar que vale à pena incorporar o que eu digo numa revisão dos seus planos, tudo bem. Se achar que não, também tudo bem.

O que um governo não pode fazer, contudo, é abafar a articulação dessas outras opiniões, ou partir do princípio de que quem não concorda, está contra o governo ou contra o país. Infelizmente, o nosso governo é apoiado por muita gente que promove esta postura problemática. Mas ao fazer isso priva o governo e, em última instância, o País inteiro, da assessoria gratuita que a cidadania activa garante. E é justamente isso que a liberdade de imprensa ajuda a proteger e a garantir porque ela é um recurso importante à governação.

É neste conjunto de razões que reside a importância da existência do jornal O País. Ele não existe apenas como fonte de rendimento de quem o faz. Ele existe para participar na construcção dum Moçambique melhor porque esse Moçambique só é possível onde se respeita a liberdade de expressão, o pluralismo e a cidadania. A efeméride que o jornal festeja não poderia ser mais auspiciosa numa semana em que um partido que reúne algumas das pessoas mais hostis à liberdade de expressão se reúne sob o lema “Unidos fazemos Moçambique desenvolver”. Numa sociedade civilizada, a unidade não é unanimidade. É o reconhecimento de que ninguém detém a verdade e, por isso, só na deliberação é que se chegará lá.

Dou os meus parabéns ao jornal pela sua perseverança. Não é a verdade como notícia. É a notícia como convite ao debate de ideias. Mas não vou ser eu a estragar o slógan…

Olá paz.
Parabéns a’O País pelo 16º aniversário! Informação fiável por ser feita com isenção, entretenimento ético e alimento espiritual inclusivo é como eu classifico o nosso Querido O País.

A natureza jovem que usamos no título, por um lado tem a ver com o próprio O País enquanto por outro tem a ver com a maioria dos seus hábeis Jornalistas. A maturidade que revelam no desempenho das suas funções levaria a pensar que tem dezenas de anos de experiência, dada a alta qualidade do produto com que nos presenteiam nas 3 manifestações de informação, entretenimento e nutrição espiritual.

O nosso País necessita de Jovens como estes que se entregam de modo abnegado a juntar aquilo que alimenta as necessidades dos leitores. Estou convencido que há muitas pessoas, dentro e fora do País que regularmente se organizam para não perderem as ricas matérias que preparam para nós.

Temos orgulho de Moçambique ter um órgão de informação e formação como O País.
Deus continue fazendo prosperar as iniciativas que com muita criatividade O País toma, abençoe todos os envolvidos no seu funcionamento e proteja de tudo quanto possa ser ruim.

O jornal diário moçambicano “O País” faz esta sexta-feira, 21 de Maio, 16 anos. É um marco importante dado o espaço de referência que o diário conseguiu no cenário informativo nacional, contribuindo para que os cidadãos sejam mais informados e munidos de ferramentas para, eles próprios, contribuírem para uma sociedade mais aberta e participativa.

É um aniversário que se celebra num contexto de pandemia da Covid-19, que nem por isso relaxou o dever da comunicação social de informar, formar e educar nesta que é conhecida como a era de desinformação e fake news. Afinal, informar ao cidadão com verdade e transparência deve prevalecer sempre, e a isso bem se alinha o lema “A verdade como notícia!” que o jornal carrega.

Refiro-me a desafios editoriais: a adaptação da comunicação e dos conteúdos que são levados ao público leitor, entendendo e considerando as especificidades de informar sobre uma área temática complexa que é a saúde, mais concretamente sobre o coronavírus e a Covid-19.  Por outro lado, falo do desafio da sustentabilidade, de manter uma publicação diária num contexto em que só o papel físico que veicula um jornal pode, em si, ser um elemento de risco na transmissão do vírus.

Sobre esses desafios, e outros mais, um aniversário é o momento adequado para uma reflexão a volta do percurso do jornal, o seu impacto sobre leitores diversificados nos seus interesses, sobre as diferentes áreas temáticas de reportagem e sobre o espaço que é dedicado a estes leitores para passarem as suas opiniões sobre o contexto moçambicano e não só.

A minha relação com o jornal, como leitor, é relativamente recente, mas saber do percurso anterior, como semanário, e ver hoje uma linha diária mais noticiosa e multi-plataforma sobre temas políticos, económicos e sociais, desporto, cultura e arena internacional, é algo por que felicitar aos mentores desta iniciativa multimédia.  É, para nós, também um momento de agradecimento pelo espaço que muitas vezes o “O País” nos concedeu para abordarmos a acção da União Europeia e dos Estados Membros em Moçambique, na área da reconstrução pós-ciclones, promoção da paz, mudanças climáticas, resposta à Covid-19, entre outros âmbitos da cooperação para o desenvolvimento e interação com diversos actores nacionais.

Saúdo a aposta da equipa do “O País”, desde o grupo directivo aos jovens que, dos corredores das instituições, das ruas e das redacções, trazem ao grande público conteúdos noticiosos sobre este vasto país. Essa aposta é uma grande contribuição não só para a liberdade de imprensa, mas também para o aprofundamento da democracia em Moçambique. Uma imprensa livre significa um país livre.

O cometimento e a responsabilidade assumidos devem continuar, com “O País” a renovar o seu compromisso perante os leitores e até com os anunciantes, a reinventar-se e readaptar-se enquanto diário, sem deixar ninguém para atrás no que ao acesso à informação diz respeito.

Para quem se interessa em estudar a história política e contemporânea de Moçambique, não pode deixar de constatar que a nossa história é estruturalmente uma sucessão de guerras, de instabilidades, de acordos de cessão de hostilidades e acordos de paz. Podemos, por isso, dizer que o teor mais profundo da história de Moçambique nos últimos 57 anos, para além do ideal de liberdade qui ganha corpo com a luta de Libertação Nacional encetada pela FRELIMO de 1964-1974, é o espectro da guerra e instabilidades permanentes. Ou seja, desde o inicio da Luta Armada em 1964, Moçambique, sendo um projecto ainda inacabado, não poucas vezes impreciso ou indefinido, tem sido um problema existencial para os povos que o habitam. Ao invés de ser um ideal de paz, de tranquilidade, de riqueza, de prosperidade e de projeção do futuro para milhões de cidadãos, Moçambique tem sido um tormento crónico. Tal como mostra Rousseau no “Contrato Social” e no “Discurso sobre a origem e fundamento das desigualdades entre os homens…”, o problema da paz não se pode confundir com a ausência da guerra. É muito mais do que isso, é igualmente tranquilidade e sociedade menos desigual. Se pensarmos nestes termos, podemos dizer que o problema de Moçambique desde a sua projeção enquanto nação foi de, no seu interior, ter sido produtor das contradições sociais, culturais, politicas e económicas que o levam à guerra e instabilidade quási-permanentes.

Esta situação impele-me, como não podia ser diferente, a afirmar que Moçambique vive uma situação de “estado de guerra”, pois a forma como tem sido construído, projectado ou criado tem fabricado todos os elementos que perigam a sua própria existência enquanto lugar pacifico e mesmo enquanto projecto nacional. É por essa razão que imaginar Moçambique enquanto terra pacífica não me parece ser possível enquanto não se repensar o que Moçambique se tornou hoje para a sua grande maioria; social e economicamente inútil ou quase isso. É necessário recolocar no centro da reflexão desse repensar Moçambique o ideal libertário da FRELIMO de 1962 e do Moçambique de 1975-1986. Isso implica, certamente, questionar com lucidez o Moçambique actual que ao invés de se constituir enquanto ideal para grande parte dos Moçambicanos, tornou-se o elemento que cria angustia persistente. Nessas condições, um país como Moçambique tem poucas possibilidades de se imaginar enquanto terra de tranquilidade. Sabemos que um dos graves problemas para a instabilidade em Moçambique, entre outras razões, tem sido, primeiro, ausência de uma reflexão profunda sobre o modelo de desenvolvimento nacional e, segundo, o agravamento das desigualdades entre as elites dirigentes e as populações que vivem no submundo da paupérie, da mendicância grave, da nudez, da instabilidade, da guerra, entre outras situações.

O Jornal O País significa, para mim, a “poesia de combate” que é cantada nos momentos de incerteza, dando esperança aos que vivem atormentados pela perplexidade do presente e do futuro. Participa, de forma extraordinariamente particular, na epopeia nacional, fazendo dos problemas de Moçambique não uma fatalidade, mas sempre uma abertura para repensar melhor o destino de Milhões de moçambicanos. É nesse sentido que ao conhecer o Jornal O País, estava a conhecer um projecto cujo fito era dignificar criticamente a construção do projecto Moçambique fazendo do jornalismo crítico o seu único critério e finalidade.

Tendo conhecido o Jornal O País, primeiro como semanário, e depois como diário, não deixo de fazer duas constatações. Primeiro, ao emergir no mercado dos Media em Moçambique, este jornal fez das questões de sociedade, de desenvolvimento, de cidadania, de combate à delapidação do erário público o centro nevrálgico da sua actuação. Foi por meio deste Jornal que muitos de nós moçambicanos, e não só, descobrimos a historia social imediata dos bairros desfavorecidos, da ausência de projectos para esses lugares, das desigualdades crescentes, da insalubridade, de larápios infiltrados no aparelho do Estado e não só.  Este primeiro elemento fez do Jornal O País dos poucos jornais no pós-1990 a fazer dos grupos desfavorecidos, sem expressão social, actores importantes nas suas peças jornalísticas. Ademais, este jornal conseguiu deselitizar os personagens do jornalismo moçambicano ao aproximar o jornalista daqueles grupos sociais vivendo nas diferentes periferias, que nunca tinham imaginado participar na esfera publica por meio do espaço que lhe era atribuído nas diferentes secções do jornal (sociedade, politica e economia).

Segundo, este jornal ao fazer isso, permitiu-me ver que o nosso país era uma fábrica de desempregados, de marginais, de drogados, de doentes… pois ao mostrar a realidade crua do estado real da nossa sociedade permitia mostrar que o desenvolvimento em Moçambique não estava a beneficiar a todos. Urge igualmente realçar que me permitiu ver o potencial que tínhamos como país.

Foi a partir das suas peças sobre as manifestações de fevereiro de 2008 e setembro de 2010 que me apareceu a ideia segundo a qual o problema da instabilidade, da guerra em Moçambique não poderia ser resolvida apenas com a integração da Renamo, que a Renamo não era o problema mais perigoso em Moçambique. O grande problema de Moçambique era o número de pessoas que viviam excluídas de todo e qualquer desenvolvimento, pessoas que viviam cobertas da míngua, da forme, da inópia, da lazeira. Este era o perigo que me parecia mais radical. Os depoimentos publicados pelo O País foram nisso uma contribuição estruturante para que eu chegasse à essa ideia.

Revoltas Populares e os acordos de paz a partir d’O País

Moçambique é um país cujo processo democrático ainda está em vias de “consolidação”. Muitos aspectos de “sociedades não abertas ou fechadas” (Bergson, Popper, Hayek) ainda pairam da cultura politica nacional, como a limitação do exercício das liberdades fundamentais, por exemplo a de imprensa. Porém, em fevereiro de 2008 e setembro de 2010 duas grandes revoltas populares eclodiram em Maputo, revoltas que marcaram um momento político particular; a contestação social e politica de cidadãos indefesos contra um Estado fortemente armado, e com características autoritárias muito pronunciadas. Tudo o que o governo de então queria é que os moçambicanos não tivessem acesso à informação detalhada o evento. Foi nesse contexto que, mais uma vez, o Jornal O País mostrou não só a sua lucidez, profissionalidade mas também a sua determinação em defender as liberdades fundamentais, a sociedade aberta, portanto, ao reportar com detalhes tudo o que acontecia naqueles eventos, sem tomar partido e dando objectivamente as informações sobre o curso dos eventos. Vimos uma cobertura imparcial, rigorosa e multifacetada, o que permitiu que tivéssemos uma perceção mais ampla do fenómeno, das razoes que tinham levado aquelas pessoas a se revoltarem. Isto permitiu ver que o discurso do combate à pobreza não estava a produzir os efeitos desejados, pois enquanto o número de indigentes, desvalidos aumentava e o custo de vida piorava, os governantes mais ricos e afortunados ficavam. Tornavam-se parasitas. Esta posição do jornal marcou imensamente a minha perceção da utilidade do jornalismo, tendo eu mesmo passado pelo grupo Soico e escrito para O País entre 2009-2010, pois ali víamos o pleno sentido do jornalismo; informar com objectividade e rigor. E, hoje, como académico e intelectual, este jornal constitui ainda uma referência quando me quero informar sobre o país.

Um outro assunto que me marcou pela forma como O País cobriu, são os acordos de paz de 2014 e 2019. Historicamente, a cobertura desses assuntos não é fácil, sobretudo, quando uma das partes pretende dar a impressão que todos os erros são imputáveis à sua contraparte. Moçambique, em todos os processos de paz, nunca fugiu à essa tendência. Sabendo que era um assunto que definiria o destino de Moçambique e que todos os actores estavam ansiosos em ver o seu papel aclamado, este jornal fez das suas peças jornalísticas não a extensão de nenhum dos actores, ou ainda espaço de recados, propagandas de quem quer que fosse. Com todos os perigos que se corria ao dar igualdade de tratamento à Renamo e ao Governo, vi neste jornal o principio fundamental para qualquer jornalista; equilíbrio no tratamento das informações. Aqui, mais uma vez, tive a possibilidade de ver as múltiplas versões desse processo, as discussões à volta do que cada um dos actores pensava do processo. Isto permitiu reforçar a minha ideia de que os órgãos de informação, como O País, representam o que há de melhor no sistema de Media nacional.

Para terminar, quero dizer que esses dezasseis anos de existência foram marcados, como bem indica o nome, pela vontade de falar de todo o país a todo o país, sem regionalismos e elitismos. Ao negar-se toda e qualquer interferência de quem quer que fosse, este jornal contribuiu para a minha formação intelectual e, certamente, de muitos outros.  Esses dezasseis anos são, para mim, marca de resistência, de destreza, de rigor e de coragem, mormente, quando sabemos que exercer um jornalismo livre em Moçambique é ainda uma aspiração que muitos sonham. Não se pode pensar na democracia em Moçambique sem se reconhecer o papel determinante que O País tem desde a sua fundação.

 

 

Muitas vezes, não damos a devida importância e não pensamos sobre o papel da imprensa e da grande influência que esta tem para o nosso país e até para o mundo, quer para o desenvolvimento das sociedades, bem como para a simples missão de manter as pessoas informadas. O desporto como uma instituição social que exerce uma grande influência nos vários domínios das sociedades, não escapa dessa influência. Contudo, para a nossa sociedade, em particular, tal situação nem sempre se verificou.

Por muito tempo a imprensa foi vista como uma despesa ou custo desnecessária para muitos gestores desportivos, clubes e até atletas. Muito disto porque a imprensa (jornais, emissoras de rádio, canais televisivos, etc), na sua maioria, limitava-se em reporter acontecimentos políticos quando comparado ao desporto. Exemplo disto, era o limitado espaço que os destaques deportivos ocupavam num jornal, não chagava se quer a meia página.

Actualmente, com a evolução das redes sociais e facilidade de comunicação, a imprensa deixou de ser uma ferramenta a ser utilizada apenas para destaques de empresas e governos. Hoje em dia a imprensa tornou-se uma peça fundamental no desporto, tornando as modalidades, clubes e atletas em constante assunto de interesse público, ajudando as equipas na sua preparação, a ganharem visibilidade, a conquistarem patrocinadores e parceiros comerciais, a divulgarem informação técnicas (estatísticas) e desempenho das equipas, a divulgarem o quotidiano das equipas e estrutura, a gerirem crises, a angariarem adeptos, e venderem bilhetes de jogo. No caso específico dos atletas, especialmente quando se trata de atletas jovens e talentosos, a imprensa ajuda a capitalizar as suas qualidades, divulgar a sua imagem, e criar oportunidades de contratação.

É neste contexto que hoje dou os meus aplausos de parabéns e agradecimento ao jornal O País, pelo legado jornalístico de boa qualidade, e pelos contributos que tem prestado ao nosso Desporto nos seus 16 anos de existencia, cumprindo o seu dever cívico de informar com excelência. Parabenizo ainda aos actuais colaborarados e todos aqueles que passaram deste orgão. Que venham mais 16 anos de sucesso.

Quando se me pedem para dissertar sobre os 16 anos do jornal O País, a primeira dificuldade óbvia é por onde começar. Deixem que me concentrem na história do jornal que poucos conhecem. Historicamente, o jornal O País passou por quatro fases de evolução. A primeira fase compreende a sua criação e lançamento da primeira edição, em 2003, pela Editores Associados, cujo director e um dos accionistas era António José Correia Paulo. Esta fase durou quase dois anos, entre finais de 2003 e Maio de 2005. Não há muito a contar sobre este período.

A segunda fase inicia em Maio de 2005, quando a publicação é adquirida pelo grupo Soico. Este momento foi marcante, não só para o grupo Soico, também para nós recém-contratados que trabalhávamos neste jornal. O jornal sofreu uma revolução quer no aspecto gráfico, desde as cores até ao layout (passou de cores vermelha e branca a azul e branca), bem como na sua linha editorial. A nível editorial foi-nos colocado a todos um grande desafio que constitui a visão do grupo: sermos a referência em Moçambique e na região da SADC. Para isso deveríamos optar por um jornalismo de isenção e guiar-nos pelos altos padrões éticos e técnico-profissionais. Tínhamos de romper com a anterior linha editorial. Houve, de facto, uma ruptura com o passado. Aprovámos um quadro de princípios ético e deontológico. A primeira decisão, após termos assinado contratos, é que deveríamos ser jornalistas multimedia. Não tínhamos na noção do que isso significava e representava, mas foi-nos explicado que isso significava que assinámos os contratos com o grupo Soico para fazer simultaneamente o jornal, a televisão e a rádio.  Ou seja, há 16 anos, quando o conceito de convergência multimedia era quase desconhecido, o grupo Soico já estava avançado nos processos de implementação de multimedialidade de plataformas. Tal como todas as mudanças suscitam resistência, esta decisão também não foi completamente aceite e implementada por todos. Era mais fácil um jornalista que cresceu a escrever para um jornal fazer televisão do que um jornalista da televisão fazer o jornal. Em quase todas as reuniões, Daniel David enfatizava que “o jornalismo multimedia é o futuro, não há voltas a dar” e ameaçava, como sempre, aos gritos: “quem não quer abraçar a ideia e o projecto a porta esta aberta. Todos devem saber fazer jornal, televisão, rádios e no futuro saberem filmar, editar as imagens e tirar fotografias. Quem não se adaptar não tem espaço neste grupo”. Essas ameaçam deixavam-me pessoalmente com arrepio, quão uma tempestade, no estomago e uma insegurança laboral tremenda. Quando ele saísse a redacção ficava toda ela gelada e em silêncio por alguns segundos ou minutos.

Raramente Daniel passava pela redacção sem deixar o ambiente de pânico. Se não era Daniel David era Jeremias Langa. Claro, era mais fácil aguentar pressão de Jeremias que já o conhecíamos do que de Daniel. Era difícil saber quando o trabalho era melhor? Quando eu julgasse que tinha feito excelente trabalho, em vez de elogios vinham críticas. Havia sempre algo de errado. Ou era a linguagem ou era o título ou era qualquer coisa. Às vezes o título era de Jeremias Langa, mas quem apanhava com críticas éramos nós. Jeremias Langa era profundamente influenciado pelo jornalismo desportivo português. Por isso, não gostava de títulos óbvios, adorava títulos fortes. Isso influenciou-me bastante na construção de títulos.

A multimedialidade criou, na altura, desgaste em nós do jornal O País. Era previsível, porque alguns jornalistas da televisão tinham limitações óbvias para um jornal. Era violento obrigar um jornalista da televisão a escrever um artigo de uma página ou duas do jornal. Eram poucos os jornalistas que tinham experiência de jornal. Recordo-me que apenas tínhamos Jeremias Langa (director editorial), Alfredo Júnior e Francisco Mandlate. Os restantes jornalistas não tinham experiência de jornal, embora alguns tenham estagiado em impressos. Nós, mais integrados no jornal, fazíamos as duas coisas, sem grandes dificuldades. Com o tempo, a resistência aos processos de mudança foram aumentando. Muitos preferiram fazer televisão a jornal. Em 2006, o semanário O País, com 32 páginas, chegou a ser produzido por três repórteres (eu, Arão Valoi e Ramos Miguel, este último chefe da redacção), sem textos de jornalistas da televisão.

Relativamente ao layout, tinham sido desenhados três ou quatro versões de layout que foram discutidos numa das salas do VIP. Duas versões foram as mais votadas: o layout muito próximo do anterior jornal, o mais votado e o de cor azul e branca, o segundo mais votado. Claramente que eu também tinha votado vermelho e branco. O argumento era de que a cor vermelha era viva do que a azul. A azul e branca eram pálidas e não atraiam aos leitores. Nessa reunião, Daniel David disse que o jornal tinha de marcar diferença e considerava a palidez da cor do jornal como uma das grandes diferenças em relação aos outros semanários. Era um jornal com mais cor branca do que azul. Prevaleceu a ideia vencida.

A terceira fase foi de transformação de semanário em diário e a respectiva reforma no layout, em 2007. Se produzir um semanário era difícil, mais difícil era aventurar para um diário de 32 páginas. É verdade que entre 2006 e 2007 tínhamos recebido um reforço de quatro estagiários, idos da Escola de Jornalismo e Universidade Eduardo Mondlane, com potencial enorme que viriam reforçar sobremaneira o jornal O País.  Hoje são referências incontornáveis no jornalismo moçambicano. Refiro-me a Boaventura Mucipo, Ricardo Machava, Orlando Macuácua (Escola de Jornalismo) e a própria Olívia Massango (vinha da UEM). Estes vieram aliviar-nos muito o fardo antes da transformação do semanário em diário. Como era de esperar, a transformação do jornal em diário trouxe enormes problemas. Saíamos da redacção de madrugada esgotados, no dia seguinte nova edição tinha de ser preparada. Fui-me incumbida a missão de negociar a contratação de bons e experientes jornalistas na praça para integrar o projecto de diário. Na altura negociei com vários jornalistas experientes e excelentes da praça. Quase todos aceitaram a proposta, mas à hora de assinatura do contrato recuaram. Outros vieram buscar contratos para irem ler e não regressaram mais. Os argumentos eram os mesmos: “ali se trabalha muito”, “ali só há hora de entrada e não há de saída”, “Ali não há tempo para descanso, nem aos fins-de-semana”, “ali há muita insegurança, mandam-te embora com facilidade, por isso, prefiro ganhar pouco mas com emprego seguro”.

Com a recusa dos jornalistas experientes só nos restava uma saída: lançar um concurso público para contratação de jornalistas e de estagiários. Pelo menos conseguimos vários estagiários. Dessa lista, ainda me recordo de Elísio Uamusse. O País diário foi fundamentalmente produzido por um muito de jornalistas experientes e de estagiários ou recém-contratados após estágio com sucesso. O projecto de diário fez com que a multimedialidade funcionasse em pleno. A redacção foi construída para servir todas as plataformas. Deixou de existir chefes da redacção para o jornal e para a stv. Só havia chefe e sub-chefe da redacção do grupo Soico. Igualmente, as secções também passaram a ter apenas editores de todas as plataformas, ou seja, o editor de sociedade era o mesmo para o jornal e para a televisão, ide em relação às outras secções. A resistência a mudança cessou. Claro que havia um e outro que ainda resistia. Esta foi a fase mais difícil. Numa primeira fase, a edição do jornal só fechava entre 3 e 4 horas. Com o tempo, o entrosamento e experiencia de jornalistas, fomos reduzindo a hora do fecho para 1 e 2 horas de madrugada. E finalmente, o fecho acontecia entre 22 e 23 horas.

A quarta fase é a que não participei. Apenas acompanhei como leitor. Nesta fase o jornal impresso foi descontinuado, dando lugar ao electrónico. Embora o electrónico tenha sido introduzido há bastante tempo, o marco desta fase seria 2020, após a eclosão do Covid-19.

Em todas estas fases há momentos que merecem destaque. Um dos momentos foi o início da governação do Presidente Armando Guebuza. Havia muita expectativa de que aquela seria uma governação transformacional e que romperia com o espirito de “Deixa Andar”, o burocratismo e a corrupção. O jornal O País desempenhou um papel do primeiro plano na monitoria de governação desse período. A cobertura de explosão de paiol de Malhazine a 23 de Março de 2007, que culminou com a morte de mais de 100 pessoas, as manifestações populações de 5 de Fevereiro de 2008 e de 1 e 2 de Setembro de 2010 constituíram também um momento marcante, nos quais o jornal se mostrou à altura, cumprimento, com excelência a função social. O mesmo papel cumpriu na cobertura dos processos eleitorais autárquicas e gerais de 2008/2009, 2013/2014 e 2018/2019; na cobertura dos ciclones e cheias e nos conflitos militares entre as forças governamentais e os homens da Renamo (2012-2014 e 2015 em diante; de Cabo Delgado, entre outros eventos. Um papel que continua a desempenhar, com maior ou menor dificuldade. Os tempos são outros.

“Alguns livros são imerecidamente esquecidos,

nenhum é imerecidamente lembrado”, Frederich Nietszche

 

“Catorze mil versos de sermões assim, quem poderia lê-los sem desmaiar de cansaço ou de sono? (…) nada faltou a Dante senão um bom gosto e discernimento na arte”, lê-se nas cartas virgilianas (1758)  escritas pelo douto jesuíta Saverio Bettinelli (apud ECCO:2007) sobre a Divina Comédia. Por ocasião da morte do poeta Baudelaire, o escritor francês Émile Zola escreveu “dentro de cem anos Les Fleurs du mal serão apenas recordadas como uma curiosidade”. Já the London Critic (1855) chegou a afirmar que “Walt Whitman tem a mesma relação com a arte que um porco com a matemática”. Mediante tais observações desagradáveis dos críticos literários renomados daqueles tempos, quem dos consumidores de literatura ousaria protestar e prever o sucesso desses autores clássicos sem ser tido como ridículo?!

Entretanto, ao longo do tempo, o belo da arte dos autores supracitados prevaleceu sobre a crítica mordaz de quem naquele tempo afigurava-se uma autoridade da literatura.  Como se explica essa estranha imortalidade de certas obras literárias que sobrevivem ao tempo e à crítica dos maiores doutos da arte? Se calhar fosse o caso para dizer-se que o valor estético não é definitivamente relativo quanto ao tempo e espaço, como convencionalmente se pensa. Ou talvez tenhamos de aceitar o aspecto óbvio de que toda a obra de arte tem um valor intrínseco, por conseguinte, não carece de nenhuma validação do crítico literário. Aliás, o real papel dum crítico literário é lançar a luz sobre o enredo textual, descortinando a graciosidade da sua estrutura, a problemática do seu tema e as implicações do seu assunto sobre a nossa actual condição humana.

Ainda retomando o questionamento do relativismo do belo artístico, se concordarmos que a literatura é um meio de narrar nossas imaginações, sentimentos e pensamentos da maneira mais bela possível, e o belo é um valor estético que varia em cada época, como se pode responder ao facto de, por exemplo, a Odisseia e Ilíada de Homero granjear admiração desde antiguidade grega até aos nossos dias? Mostra-se, deste modo, necessária a compreensão de que a literatura seja imbuído doutros valores e interesses, além do belo na sua forma. A ideia de que a literatura seja bela, mas inútil já não é mais uma conclusão convincente num debate sobre o poder da arte. Houve tempo em que se mostrava conveniente defender-se a ideia de fazer-se arte pela arte, ou seja uma arte totalmente desinteressada, de tal maneira que ela não sucumbisse ao moralismo social, político e, ou, religioso. Porém, sujeitar-se a arte a esse sacrifício de inutilidade afigura-se-me um auto-engano de quem assim a sentencia, pois ela jamais se revelou inútil ao mundo. A arte, especificamente, a literatura, em seu modo desinteressado e ficcional, sempre sugeriu as virtudes da vida, sem precisar de dize-las ou defini-las.

O desafio que se nos impõe a todos nós como consumidores da arte é a capacidade de interpretação. Na literatura assim como na própria vida é disfuncional o adágio de que “contra factos, não há argumentos”. Esses dois mundos, um carregado de ficção e outro de realidade, têm a mesma exigência de interpretação que é um exercício em busca do sentido das coisas. E quando a literatura, em particular, assim o exige, ela torna-se o objecto do pensamento, porquanto o acto de pensar configura-se como este exercício (inexorável) em busca do sentido. Por essa razão, pode atribuir-se à literatura a função primordial de instigar a reflexão sobre a condição humana. Haverá outras funções não menos importantes nas quais se destaca a catarse, empatia, autorreconhecimento e autossuperação perante modelos regenerativos e degenerativos fornecidos pela literatura.

Diria que a função primordial da literatura que é de provocar pensamentos despoleta automaticamente funções secundárias, algumas delas já supramencionadas. A múltipla funcionalidade dos textos literários tem a ver com a própria natureza da literatura que é miscelanicamente holística.  Ou seja, a literatura configura-se como um conhecimento que aborda a vida em quase todos os seus aspectos. Diferente das ciências que tendem a compreender a vida num só ângulo, como a psicologia o faz, focando-se em reacções comportamentais, a sociologia em relações sociais, a biologia em termos da funcionalidade dos órgãos, a literatura não fragmenta, apresenta-nos a vida sob influência de vários aspectos, incluindo os principais aspectos biopsicossociais.

Sendo assim, a literatura mostra-se a ferramenta mais aprimorada e completa em relação às ciências para compreensão da vida. Entretanto, a sua anomalia benigna consiste em ser incapaz de definir ou sistematizar, mas apenas contar, descrever e insinuar. Jamais a literatura ousará definir com logicidade o que é amor, mas atrever-se-á a contar alguma coisa sobre este sentimento, tal como o faz com a justiça, a morte, a dor, a solidão, a amizade, a crise existencial, etc. E a sua glória reside especialmente quando ela fala desses elementos, sem ter de se impor como uma autoridade do saber, mas o fazendo com a beleza das palavras, a metáfora dos sentidos, a originalidade do estilo e a coerência das ideias. Ao todo, julgo serem esses elementos que tornam a obra literária agradável e memorável de ler-se. Perdendo-se a beleza das palavras, a obra literária torna-se seca ou entediante de ler, dificultando a compreensão das metáforas. Com a escassez das metáforas, a obra literária mostra-se pobre na matéria de imaginação e dessensorialização do mundo físico. E a ausência da originalidade do estilo faz da obra um elemento totalmente confundível. A falta da coerência das ideias deixa a obra literária desprovida do pensamento. E sem pensamento, não há significado. Sendo assim, todas as razões para que obra literária sobreviva ao teste do tempo tornam-se nulas.

A ideia de que a imortalidade da obra literária seja, em grande parte, garantida pelo pensamento fundamenta-se com a própria natureza do pensamento que é intemporal. Todo e qualquer pensamento tem a tendência de tornar-se universal, não somente pela sua constituição lógica, mas pelo seu poder de abstração. Ou seja, todo o acto de pensar envolve abstração que é o processo que permite a mente descurar-se da realidade sensível e passar a lidar com as formas e conceitos. E, ao contrário das impressões que variam de acordo com o tempo e espaço, as formas e conceitos mantêm-se inalteráveis de tal modo que, por exemplo, se alguém nos fala da árvore ou montanha, não precisamos de lembrar-nos da primeira ou última árvore ou montanha que a gente viu no mundo, mas chegamos ao entendimento do enunciado, pois dispomos do conceito e forma destes dois elementos independentemente do tempo e espaço em que estivermos.

Deste modo, a glória da literatura sobre o tempo deve-se basicamente ao pensamento fundido nela de maneira inobjectiva e sob os condimentos estéticos. Normalmente, o pensamento dentro das obras literárias revela-se-nos através das famosas lições morais que desde os tempos do ensino primário éramos obrigados a retirar dos contos e poemas. Obviamente que haja mais lições que se podem tirar dum texto literário, mas a ideia duma lição moral configura-se como aquele valor que se aprende duma experiência para toda a vida. Por conseguinte, um livro com uma lição moral tem asas para desprender-se duma experiência limitada pelo tempo e espaço rumo ao universo metafísico. Tratando-se da literatura, é preciso que essa lição moral (pensamento) tenha sido estabelecido num exemplo indutivo (poema, romance, conto, etc) adornado de elementos estéticos inéditos. Sem os elementos estéticos, corre-se o risco de, no lugar da literatura, ter-se um livro deformado de filosofia, um ensaio científico ou uma auto-ajuda totalmente desprazerosos (ou pouco prazerosos), mas úteis de lerem-se. Se calhar, seja essa a grande diferença existente entre a maioria dos best-sellers e a maioria dos escritores talentosos, porém menos populares. Ou seja, quem lê Paulo Coelho ou José Rodrigues dos Santos, best-sellers lusófonos, pode notar que nas suas obras o nível de erudição supera o domínio estético da língua, enquanto escritores como Ernest Hemingway, Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto ou Machado de Assis procuram manter equilíbrio entre a estética da palavra e a erudição, um exercício tão imperfeito em que o domínio estético da palavra se mostra normalmente avantajado em relação à erudição.

Entretanto, quando o domínio estético da língua suplanta a erudição, a obra literária tem menos chances de sobreviver ao seu tempo, pelo facto de não ter nenhum valor a transmitir a novas gerações, senão experiências corriqueiras que, embora contadas de maneira requintada, não agregam nenhuma lição ao desenvolvimento da consciência humana. E quando é a erudição a suplantar a dimensão estética da obra, ela tem relativamente mais chances de sobreviver ao teste do tempo, pois apesar de ser uma obra austera na beleza da palavra, ela torna-se útil à humanidade pelo conhecimento e reflexão envolvidos na sua composição. Todavia, tal obra jamais vai ser considerada uma referência literária, mesmo que seja enquadrada na estante da literatura, pela razão de ter-se descuidado consideravelmente dos elementos estéticos que causam fruição na leitura. Deste modo, para imortalidade duma obra literária, em stricto sensu, é necessário um meio-termo ou equilíbrio ainda que não perfeito entre o pensamento e a estética da palavra. Quando um se sobrepõe gravemente sobre o outro, ou viola-se a imortalidade da obra ou dissolve-se a literariedade da mesma. Para uma intemporal obra literária urge sempre a união entre o útil e o agradável, parafraseando o poeta romano Horácio.

 

Email: tsembah@gmail.com

 

O diálogo com a narrativa oral no universo literário moçambicano (para não dizer africano mesmo com poucas credenciais para o efeito) é já uma premissa adquirida, partilhada e aceite sobretudo por aqueles que observam este fenómeno de fora para dentro. Para esses, a narrativa escrita que foi sendo feita ao longo do tempo, apresenta-se-lhes como um palimpsesto da narrativa oral talvez pelo discurso modesto que se quer honesto “vendido” in e outside por vários escritores: eu sou contador de histórias do meu povo. Quando acolhido à primeira vista, este discurso, gera a ilusão de que há pouca ficção como se ao escritor e ao escrivão a vida reservasse o mesmo ofício.

É deste diálogo intertextual com a narrativa oral que se foi forjando a narrativa moçambicana sob a égide criativa dos seus cultores numa esfera que não se esgota na cedência de espaço, na escrita, para ressonância dessas vozes ágrafas mas perpassa a apropriação do seu discurso e estrutura para se conceber a ficção, conforme recorda-nos Lourenço do Rosário, ao afirmar que a literatura de tradição oral encontra-se refletida na literatura escrita na forma e no conteúdo, com a adopção de recursos estéticos, integração de elementos estruturais e recuperação de valores.

Esta simbiose ocorre, talvez, por motivos de busca de retalhos que lhes permitam a identificação do rosto no campo do fingimento literário ou, se calhar, por mero fluir identitário porque se na literatura há espaço para o fingimento, o ADN furta-se a esse jogo e evidencia-se onde quer que seja.

É este elo identitário que nos permite aferir que “Ilusão à Primeira Vista” de Almeida Cumbane inscreve-se, também, neste domínio, fazendo com que denotemos, na narrativa, os binómios prémio/castigo e ruptura/continuidade.

O primeiro (prémio/castigo) resulta deste diálogo permanente da narrativa moçambicana com o universo oral do ponto de vista estrutural, que organiza o enredo de tal forma que a interpretação do valor temático-ideológico que uma determinada narrativa veicula deve passar pela aplicação de dois critérios: o morfológico e o temático-antropológico.

Este modelo interpretativo fora cunhado por Vladimir Propp (1928/1983) que em “Morfologia do conto maravilhoso” estabeleceu diversos aspectos que constituem bases da actual narratologia. Um dos aspectos a destacar é que com base na comparação e análise da distribuição dos motivos em diversos contos, Propp descobriu que, “muitas vezes os contos emprestam as mesmas acções que se resumem numa mesma acção na qual o que muda são os nomes e os atributos das personagens, mas não suas funções.

Entenda-se, no entanto, que Propp define função como “a acção de uma personagem definida do ponto de vista de seu significado no desenrolar da intriga”.

Assim, na esteira de Propp, ROSÁRIO (1989: 15) postula que morfologicamente, as narrativas serão identificadas como: Ascendentes (quando terminam bem e com o prémio ao herói) e Descendentes (quando tudo se processa de forma inversa à do primeiro caso).

No que diz respeito ao critério temático-antropológico, identificamos as narrativas conforme elas se apresentam com, por exemplo: pessoas e/ou animais através do comportamento dos quais se pretende abordar questões ligadas aos costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os cumpridores e castigando os transgressores.

Este foi (e é) em grande parte o modelo discursivo/estrutural da narrativa moçambicana que costura os enredos a ponto de resultar no que Francisco Noa chamou de “dimensão escatológica da ficção moçambicana” apresentando cenários tipicamente perfeitos de castigo a um determinado agressor no universo narrativo, lendo-se, então, um certo pessimismo/cataclismo, no enredo (e quiçá do próprio autor), relativamente aos comportamentos das personagens da ficção (e quiçá de que/quem elas representam).

É neste prisma que sobressai, também, o binómio ruptura/continuidade. Vítor Manuel de Aguiar e Silva em sua “Teoria de Literatura” afirma que a continuidade no panorama literário funda-se numa discursividade intertextual que privilegia a manutenção da cultura, a invariância dos modelos, a atemporalidade das normas e convenções retóricas e estilísticas. A ruptura, contudo, tal como o conceito denuncia, processa-se de forma inversa.

Não há, apesar disso, uma situação de conflito conforme alerta-nos Aguiar & Silva (2007: 270) porque a característica primordial de qualquer sistema cultural é a procura fervorosa da manutenção do seu equilíbrio, das suas entidades, normas e fins, isto é, a sua tendência para a homeostase. Esse sistema mantém-se essencialmente inalterado, através da introdução de alguns ajustamentos e modificações – um processo de homeorrese que, ao efetuar pequenas alterações, permite que a estabilidade do sistema não seja afectada. É, tal como o autor reitera, a actuação concertada dos fenómenos da homeostase e da homeorrese (entenda-se continuidade e ruptura) que contribui para o privilégio de um determinado “sistema literário” com base numa componente de estabilidade e não de ruptura total ou parcial.

Portando, Almeida Cumbane continua este permanente diálogo com o oral, modalizando a realidade “mística” com o enredo decorrendo, sobretudo, no espaço rural e com personagens típicas desse meio. Por seu turno, a rutpura emerge também desse universo dos prémios e castigos buscando um quê de humanização dos blocos interpretativos desses binómios, demonstrando que no percurso daquilo que parece ter um fim escatológico há, afinal, um espaço para redenção, para o optimismo: uma segunda chance.

De Almeida Cumbane, busca-se estas inferências num enredo em que se nos apresenta o professor André Fernando Matuassa. Ora, saber que Cumbane é, também, professor pode-nos reenviar para uma leitura biografista que não vinga porque acaba se fitando em detalhes da vida íntima do autor (do ponto de vista social, económico, político, cultural, etc.) e tudo que pré-existe ao texto no sentido de criar, em retalhos, uma imagem do autor como se a obra fosse o espelho fiel do ego do escritor. Não querendo, contudo, ignorar o facto de que mesmo sendo ficção o texto só pode apresentar aquilo que o seu autor conhece ou imagina.

André Fernando Matuassa nutre um amor profundo pela N’weti que brotou da infância nas companhias frequentes na aldeia 16 de Junho em Chicualacuala, no contexto doméstico e na escola porque fizeram o primário juntos e a N’weti não pôde prosseguir porque as amarras tradicionais não permitiram que continuasse com os estudos.

Já formado como professor e perspectivando leccionar em Chicualacuala ou nas imediações, André vê a sua perspectiva reduzida a negação e contrariedade em prol de uma unidade nacional pensada nos escritórios de Maputo que o faz rumar para Zambézia (Alto-Molócuè). Lá a ilusão de funcionário assalariado, dono de si e dos seus, desnuda-se e dá espaço à insuficiência financeira de se resolver sentimental e socialmente com a N’weti porque esta já entrelaçava o corpo e os destinos com outro homem na sua aldeia enquanto ele sucumbia de amores e esperanças de um dia esposá-la. Regenera-se, então, com a Ana que a ele se junta com uma menina (sua filha com outro homem) e juntos dão vida a um casal de gêmeos. Num reencontro fortuito com o seu pai em Alto-Molócuè, que abandonara a família em 16 de Junho, revela-se o castigo da pouquíssima convivência: a sua enteada é, afinal, sua irmã.

Ana, ao descobrir que o seu sogro é, na verdade, a pai da sua primeira filha, cede ante a hipertensão arterial e desvive. Com três filhos por criar, sozinho nas terras Zambezianas, longe da família em Gaza, André faz diligências para regressar à casa mas não consegue fixar-se além de Inhassouro (Inhambane) onde continua como professor e consegue levar as crianças para junto da família em Chicualacuala. Passa, então, a trabalhar na SASOL em virtude de ter sido apurado num concurso público e chega-lhe como um presente a morte de Ultimisso Maluleque, marido do objecto do seu amor: N’weti.

Na viuvez de ambos, unem os trapos, perspectivam a recuperação do tempo perdido, uma vida conjunta e eterna. Alcançaram todos estes objectivos excepto o da eternidade porque a traição de N’weti com Madjaco rompeu esse elo conjugal e fez a vida de André dar mais uma guinada “amorosa” e profissional após os apelos da sua tia que tinha maus pressentimentos relativamente à sua vida e sugeria uma consulta médico-tradicional.

Depois desta experiência e da repercussão que teve até no contexto laboral, o que fez dele objecto de piadas não muito bem geridas pelo seu ego masculino a ponto de se envolver em agressões físicas com um colega na SASOL, eis que se esgota a sua “temporada laboral” naquela multinacional e, com o apoio de um amigo de infância abraça a carreira de caçador furtivo. Tendo evoluído rapidamente no ofício através de uma “bênção” peculiar de Nyanga ya Ndere e, sob orientação do mesmo, aberto os braços para acolher uma nova mulher, a Inocência, embora nunca lhe tivesse aberto o coração já molestado.

Com a nova vida de “lord” facultada pelo novo ofício, buscou desassossego porque passou a estar na “mira” das autoridades moçambicanas e sul-africanas que, numa operação conjunta, acabam por encarcerá-lo e condená-lo a catorze anos de prisão. Enquanto preso, Inocência e seus dois irmãos (do André) dão continuidade à vida e encetam contactos para que após sete anos, André beneficie-se de liberdade condicional e ganhe vida nova.

 

Repare-se que estruturalmente, esta narrativa enquadra-se no modelo ascendente em que o enredo culmina com a premiação do “herói” (André Fernando Matuassa) que parte da ideia da função da personagem aludida por Vladimir Propp em “Morfologia do conto maravilhoso”, para quem todo o conto parte de uma carência e passa por funções intermediárias e termina com uma recompensa ou um castigo, dependendo daquilo que foi a atitude da personagem ao longo das funções intermediárias.

Ao que é legítimo aplicar o binómio prémio/castigo consoante as transgressões de André e assumir, também, com estas “transgressões” a dimensão da continuidade do ponto de vista estrutural deste enredo com outras narrativas produzidas nos anteriores períodos da literatura moçambicana. Contudo, esta regeneração (prémio) de André do ponto de vista social revela-nos uma ruptura com uma dimensão pessimista, se quisermos escatológica na já aludida perspectiva de Francisco Noa, e abre espaço para um quê de herança de contos de fada (espólio de outras latitudes) em que os enredos, na sua maioria, se encerram com o famoso “…e todos foram felizes para sempre”.

Como consequência das mazelas contraídas durante “a batalha do Beira-Mar”, o Garrincha permaneceu em casa a convalescer durante uma semana. Embora homem de largo arcaboiço e de força taurina, os jogadores do Gazense e seus apoiantes  inflingiram-lhe uma sova de que guardará recordações pelas temporadas mais próximas. Obviamente que naquele evento houve muitas vítimas, com registo de traumatismos em ambas as facções, uns mais graves do que outros, segundo testemunhos dos enfermeiros do Hospital da Missão de S. José.

A época era de produção e de consumo de canhu e de sumo de cajú, bebidas redentoras dos aflitos e pretexto principal para encontros de confraternização entre amigos e familiares. Aquelas chegavam à cidade provenientes de várias localidades, situadas nos arredores da cidade, como Mahlanguene, Minchafutene, Boquisso, Mahotas e doutras com semelhante tradição, transportadas pelas carreiras de “Teresa Lino & Filhos” e da “Companhia de Transportes de Moçambique”. Alguns residentes aventuravam-se em viagens aos locais de produção para, pessoalmente, carregarem e transportarem as encomendas para venda nos quintais das suas residências. Outros desafiavam a sanha das autoridades e mercavam-nas nas vizinhanças dos bazares. Assim sucedia no Xipamanine, no Diamantino, no Adelino, no Vulcano. Era sempre com ansiedade que se aguardava pelos fornecimentos. Muitos dirigiam-se para esses locais a fim de adquirirem a sua quota-parte do mesmo.

O Garrinha levou o igualmente combalido Valgi ao bazar do Xipamanine para a compra de cinco litros de cajú. A manhã daquele sábado ia meio quando o autocarro da “Teresa Lino” acostou ao lado do mercado. A chegada matutina da carreira foi saudada com alegria e ululações. Trazia no tejadilho embalagens de garrafões de vinte litros camufladas em capulanas e sacos de serapilheira. Alguns cabritos, frangos e coelhos encarcerados em gaiolas formavam o resto das mercadorias que atulhavam o tejadilho do veículo. Era a promessa de um fim-de-semana festivo. Doutro modo nem poderia ser. Com a quadra festiva mesmo à porta a ocasião propiciava-se para umas entradas  em grande estilo.

Durante o descarregamento da consignação dos garrafões registou-se a habitual  barafunda. Cada cliente  queria todo o descarregamento para si.

“ Esta encomenda é minha”, esbracejava uma grossista de nome tia Xi-Guindatxe que tinha em casa  fregueses à espera, a empurrar os outros clientes.

“ Mentira! Esses três garrafões são meus; fiz a encomenda na semana passada. Pergunta aquela mamã ali”, dizia uma outra mulher, que respondia pelo nome de tia Xi-Kwakwati, dona de uns braços cheios duma  gordura empapuçada, pendular, e uma barriga dilatada que não deixava dúvidas sobre os níveis da sua gula digestiva. Nisso, a Xi-Kwakkwate emparceirava com outras gladiadoras que respondiam pelos nomes de Halima e Mingindatche, também presentes no ajuntamento.

“ Eh, tu mamã, cala masé a boca. Se lutam ninguém não vai apanhar nada”, dizia o ajudante-carregador do autocarro que também era um dos proprietários de parte da mercadoria, a apontar um dedo ameaçador a uma terceira cliente de nome Halima, interveniente em muitas bulhas que se registavam naquele tipo de concentrações.

Como a procura fosse enorme, os fornecedores imediatamente subiram os preços.

“ Cada garrafão de vinte litros custa sessenta escudos. É pegar ou largar. Clientes não faltam”, diziam aqueles com os olhos a luzir de cobiça.

Um burburinho de vozes de protesto subiu na atmofera da aglomeração.

Dos garrafões o sumo de cajú espumava e derramava-se ao longo dos gargalos. Era a prova de frescura e do excelente paladar que ninguém, sob nenhum pretexto, tinha intenção de perder.

Embora abstémio, o Valgi não resistiu em concordar com a sugestão do “Garrincha” em adquirir dois garrafões para consumo de ambos e seus amigos, vizinhos da Eva. Seria esse o seu baptismo de consumo dalguma bebida alcoólica, porque até aí contentava-se com o maheu e a Tombazana.

“ Ó Valgi, não sei qual é o teu problema. O cajú só se bebe uma vez por ano. Aliás, vais consumi-lo ainda doce. Faz de conta que é refresco”, assim o “Garrincha” aliciava o amigo a provar aquele sumo sacro-santo, uma dádiva dos deuses, tão benevolentes que lhes davam à boca aquele líquido para sua fruição. Mesmo assim o Valgi desconfiou. Não ia dar-se o caso de o fermentado provocar-lhe os efeitos semelhantes aos do canhu, dos quais já ouvira falar.

Todos foram servidos a contento. Cada qual carregou à cabeça ou pela mão a sua encomenda. Mas eis que, da varanda duma loja destaca-se um pequeno contingente de agentes da polícia municipal e de sipaios à paisana.

“ Todos os que carregam garrafões de cajú parem onde estão!”, vociferou o caudilhodo grupo que era, nem mais nem menos, o já historicamente odiado pelas populações, João Mulato!

Tudo à volta estremeceu. Ia suceder, e sucedeu o habitual.

Numa voz, os agentes tomaram de assalto as encomendas de garrafões de cajú à vista. Sobre elas desferiram golpes com mocas, pontapés e cassetêtes, com uma ferocidade de soldados em combate. Estilhaços de vidro voavam para todos os cantos. O líquido cremoso e fresco do sumo de cajú derramava-se no chão e o solo seco tragava-o com rapidez, sem apelo nem agravo, sem nenhuma possibilidade de salvação.

Os que presenciaram o espectáculo da destruição mal conseguiam conter a fúria, o  profundo desapontamento por tão maldosa acção das autoridades que assim privavam muita gente de uma oportunidade para celebrar uma época de confraternização com algum divertimento e dignidade. Aquele fora, como muitos outros o foram, o esvaziamento de um esforço colectivo, o furto de momentos de convivência e descontração em nome da saúde pública. Era mais uma manifestação da prepotência da polícia que não entendia quão importante era para muita gente a prestação de um tributo de agradecimento aos deuses e à natureza pela dádiva do fruto e do sumo que lhes era concedido.

Se lhos tivessem contado, o Valgi não poderia crer que aqueles actos tão bárbaros quão desumanos fossem reais.

“ Porque razão fazem isto?”, perguntou ao atónito “Garrincha”.

“Dizem que é por causa da higiene. Que o cajú está contaminada por micróbios e  provoca muitas diarreias na população”, foi a resposta que aquele achou, e fê-lo com tremuras na voz. Conseguiram escapulir-se da vista dos agentes e cada um segurava  o seu garrafão com discrição e notáveis cuidados.

Durante a retirada ainda conseguiram assistir ao espectáculo do “Sebastião”, um doente mental frequentador da zona, agachado sobre uma mancha de líquido derramado, a lamber o chão com gosto e gula. E gargalhava alto, divertido por saciar aquela sede de xikadju que a tantos esmagava.

 

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