Ex-pesquisador da Faculdade de Direitos Humanos da Universidade Edouardo Mondlane
As observações feitas por funcionários e meios de comunicação na região da África Austral têm sido enganosas e contraproducentes na sequência do destacamento de tropas ruandesas para Cabo Delgado. Curiosamente, isso explica porque o povo de Cabo Delgado recebeu escassa assistência durante anos, durante os quais foi assediado por terroristas e grupos islâmicos. A situação precária de Cabo Delgado parece ser uma preocupação secundária, diante da preocupação sobre que país deve liderar a força de intervenção para socorrer Moçambique.
Alguns países dizem que não confiam nos comandantes moçambicanos, outros insistem que a África do Sul deve comandar porque tem o exército maior, delegado pelo Botswana; outros ainda dizem que a África do Sul e Moçambique deveriam primeiro resolver a questão dos oficiais de inteligência sul-africanos, que foram presos em Moçambique, ou que o ex-ministro moçambicano das finanças exilado na África do Sul deveria ser extraditado primeiro, enquanto a papelada da SADC para implantação, parece, ainda não estar à altura.
Já os meios de comunicação, por outro lado, não perdem a oportunidade de proclamar que Cabo Delgado é um local estratégico, por concentrar enormes reservas de gás natural, rubis e pérolas do fundo do mar.
Em meio aos conflitos, cidadãos inocentes de Cabo Delgado continuam a morrer sequestrados ou passando graves necessidades em campos para refugiados.
Só isso explica exactamente por que motivo o exército ruandês foi enviado em peso, antes de qualquer outra força militar. Quando aconteceu o genocídio contra os tutsis no Ruanda, nas Nações Unidas em Nova York, especialistas e diplomatas debatiam semântica sobre, como o que estava acontecer no Ruanda deveria ser nomeado com precisão, políticos aconselhavam cautela ao chamá-lo de genocídio, pois isso implicaria uma ação imperativa por parte da comunidade internacional. Um milhão de pessoas inocentes foram massacradas enquanto aqueles debates estéreis continuavam, e assim por diante.
Portanto, ao se deslocar para Moçambique, Ruanda está meramente a cumprir a norma internacional de “Responsabilidade de Proteger” e passo a esclarecer: A Responsabilidade de Proteger – conhecida como R2P – é uma norma internacional que visa garantir que a comunidade internacional nunca mais deixe de intervir para travar crimes e atrocidade em massa como genocídios, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Lembremos que o conceito surgiu como resposta ao fracasso da comunidade internacional em responder adequadamente às atrocidades em massa cometidas no Ruanda e na ex-Jugoslávia durante a década de 1990.
Ruanda está em paz agora, mas acreditamos que nossa paz não será completa se a paz de nossos semelhantes, os africanos, não estiver segura. É nesse contexto que Ruanda convidou o mundo, em sua capital, Kigali, a assinar os “Princípios de Kigali sobre a Proteção de Civis”, que são um conjunto não vinculativo de dezoito (18) compromissos para a implementação efetiva e completa da proteção de civis na manutenção da paz da ONU.
Não é a primeira vez que tropas ruandesas se deslocam para fora da região da África Oriental. Ruanda é atualmente o quarto maior contribuinte de tropas para as operações de manutenção da paz da ONU e o segundo maior país contribuinte da Polícia.
Antes do destacamento para Moçambique, havia cerca de 6.550 militares uniformizados do Ruanda servindo na ONU, a maioria deles em pontos críticos como o Sudão do Sul, a região de Darfur no Sudão e a República Centro-Africana (CAR).
Nos últimos 15 anos, mais de 7.700 policiais de Ruanda participaram de tarefas de manutenção da paz em todo o mundo, dos quais mais de 1.400 são mulheres. A Polícia Nacional de Ruanda participou do restabelecimento da paz e da segurança na Costa do Marfim, Mali, Libéria, Sudão do Sul, Haiti e tem destacamentos na Sede das Nações Unidas em Nova York.
As tropas ruandesas não ‘avançaram’ para a SADC para se destacarem em Moçambique. Essa é uma das falácias decorrente do conflito prolongado. O fato de um exército de uma região africana diferente ser solicitado a entrar em uma zona de guerra para resgatar civis inocentes, quatro anos após o conflito estar em andamento, é uma acusação ao órgão regional relevante, sobre sua verdadeira disposição de intervir naquele conflito.
Mas essa não é a questão relevante. A verdadeira questão é: o que as tropas ruandesas vão fazer? Eles vão para resgatar civis! Se tiverem sucesso, essas mulheres, crianças, os idosos que estão em perigo, não se importar o com quem veio primeiro, quem veio em segundo lugar, quem comanda as tropas.
Durante o genocídio contra os tutsis, aqui no nosso país, poderíamos ter aceite qualquer um que se importasse em vir resgatar-nos …Não importa quem!
É importante não perder o foco. Em uma situação humanitária, as pessoas em perigo devem estar no centro de todas as decisões políticas e devem determinar a urgência com que tal decisão deve ser tomada. Quem chegou primeiro ou por último, quem comanda e quem substitui as tropas são tecnicismos segundarios. O que importa é continuar com o trabalho de salvar vidas inocentes.
Dito isso, embora não seja dito, os ruandeses não são estrangeiros, eles são africanos. Está na ordem das coisas que eles se preocupem com o sofrimento de outros africanos. Imagino que aqueles que lutaram pela libertação de Moçambique ainda se lembram de jovens ruandeses que costumavam aprender a fazer guerrilha em seu país no final dos anos setenta, início dos anos oitenta. Esses jovens, agora comandantes ruandeses reformados, ainda partilham com os jovens soldados, as suas boas memórias de Moçambique e do falecido Samora Machel. Recorde-se que a FRELIMO foi fundada na Tanzânia e os jovens ruandeses também cresceram com a canção revolucionária de Miriam Makeba: “A luta Continua”. Seria impróprio então que a casa dos revolucionários africanos fosse sitiada pelo terrorismo enquanto outros exércitos africanos ficam a olhar.
O rápido deslocamento das tropas ruandesas está de fato em linha com o sonho dos pais fundadores de uma força pan-africana para defender o nosso continente sem ser impedido por fronteiras coloniais ou “blocos” regionais. Em vez de especular, todas as nações de boa vontade deveriam apoiar as tropas ruandesas desdobradas em Cabo Delgado, afinal, não há nada de novo sobre a vinda de um irmão para ajudar outro irmão.
No entanto, para que uma operação seja bem-sucedida, todas as tropas precisam ter clareza sobre a missão. Nesta operação, todos os exércitos intervenientes têm um inimigo comum: os terroristas. Eles têm uma missão comum: resgatar civis e restaurar a paz e a segurança em Cabo Delgado. Que eles não se enganem sobre quem está de que lado e quem não está.