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As narrativas d’Um almoço simples em Vällingby

Eu tenho um sonho/ Uma canção para cantar

Que me ajuda a enfrentar/ Qualquer coisa

Se você vê maravilhas/ Em um conto de fadas

Você pode agarrar o futuro/ Mesmo se você falhar.

in “I have a dream”, ABBA.

 

ABBA é o nome do grupo sueco de música pop muito agradável de se ouvir. Fundada por Agnetha Fältskog, Björn Ulvaeus, Benny Andersson e Anni Lyngstad, em 1972, na Cidade de Estocolmo, o quarteto musical conseguiu ultrapassar fronteiras escandinavas e impor-se em vários cantos do mundo, incluindo Moçambique. Quem não vibrou ao som de “Mamma Mia?”. Esta é uma das composições mais conhecidas do grupo, à imagem de “Chiquitita” e “I have a dream” (interpretada pelos Westlife 20 anos depois da versão original), duas músicas que integram a trilha sonora da peça Um almoço simples em Vällingby, com direcção de Manuela Soeiro.

A música dos ABBA é tocada de forma oportuna na peça radiofónica, pois, tem a delicadeza de conduzir o ouvinte a um certo instante do passado, lá onde Eduardo Mondlane se reuniu com Olof Palme. Pode parecer ficção, mas esse encontro entre os dois políticos, realmente, aconteceu na cozinha da casa do político sueco, em Vällingby, subúrbio de Estocolmo. Para muitos, esse é um evento desconhecido, embora se saiba que a Suécia apoiou a independência de Moçambique. Quiçá, por essa razão, Henning Mankell escreveu uma peça que ficciona o encontro entre Mondlane e Palme longe dos habituais holofotes diplomáticos.

Na versão moçambicana, com efeito, a peça radiofónica dura 39 minutos fugazes, suficientes para Eduardo Mondlane (Jorge Vaz) e Olof Palme (Adelino Branquinho) apresentarem lições para a vida política actual – com tanta gente quadrada – e aos homens de todas as cores, sobretudo quando realçam que o que nos une são as semelhanças, e não as diferenças. Este cenário parece utópico, algo desacertado ou surreal. Por isso, o então líder da FRELIMO pergunta ao social-democrata sueco. – Como vamos conseguir unirmo-nos à volta de alguma coisa, neste mundo, quando nem o aspecto do céu estrelado nos une?

A pergunta de Mondlane é feita num ambiente muito informal, imagine-se, Palme fritando salchichas, batatas e ovos, um almoço sueco comum, para servir ao seu hóspede. Durante a cavaqueira, pode-se ouvir o líder da FRELIMO expressando a sua admiração pela Suécia, um país que, no tempo da história (1962), ultrapassou problemas relacionados com analfabetismo. Entre vários pontos de discórdia, ambas as personagens concordam que é possível construir um mundo livre de violência. Logo, Um almoço simples em Vällingby é, também por isso, uma peça onde se cruzam sonhos intercalados com um debate ideológico eloquente. Nesse momento específico da conversa, lá se ouve “I have a dream”, de ABBA, uma composição de esperança a unir os dois políticos numa ideia de futuro. E esse futuro pode ser a actualidade. Logo, a conversa entre Mondlane e Palme, explorando temas como racismo, colonialismo, tradição, identidade, sonhos e, sobretudo, liberdade, é assaz lúcida para construir em cada território humano (interessado) a paz e a concórdia tão ausente num mundo cheio de tensões.

Na peça, adivinha-se um Palme desinibido, talvez por estar em sua casa, e um Mondlane, em alguns momentos, comedido, todavia capaz de expressar os seus propósitos em torno da luta armada pela independência de Moçambique. Nessa questão, Mondlane não deixa de referir ao projecto de justiça ou de sociedade justa para Moçambique.

No entanto, não obstante o respeito recíproco, a conversa na cozinha não esbanja em falsas unanimidades e tão-pouco em vivas ou abaixo. Os dois políticos tanto concordam quanto discordam, sem nunca abandonarem a retórica (e a sensatez), recurso refinado de persuasão/ dissuasão. Por exemplo, numa passagem em que Palme diz que a Suécia está a caminho de uma sociedade justa, Mondlane lembra: “Não nos podes comparar a um país independente há séculos, que nunca teve colónias e que nunca foi colonizado. Vocês não têm uma guerra há 150 anos”. O líder da FRELIMO termina a frase com alguma perturbação. Tácita, é verdade, mas simultaneamente audível. Ora, ninguém se envaidece com isso. Pelo contrário, cada um dos políticos tem o seu momento de oposição.

Depois de Mondlane o ter chamado ingénuo, numa circunstância que humaniza essas duas grandes figuras do século passado, Palme riposta: Nesse caso, o ingénuo és tu, Eduardo. Não acredito que seja possível uma justiça absoluta numa sociedade democrática. Para isso, é preciso imposição, imposição ditatorial. No entanto, é possível atingirmos uma sociedade justa, sem perdermos a liberdade. É nisso que reside a base das minhas convicções políticas. Por isso sou social-democrata. E, por isso, me afastei do comunismo totalitário.

A seguir, Mondlane diz o que não parece um juízo próprio, mas imposto: – Não acredito que haja um futuro para Moçambique sem uma direcção comunista, depois de termos expulso os portugueses, claro. A ser proferida por Marcelino dos Santos, Jorge Rebelo ou Samora Machel, a frase convence. Entretanto, por Mondlane, há uma incerteza que paira no ar. Seja como for, mesmo quando há divergências, a peça radiofónica lembra que o mais importante entre as pessoas é o respeito mútuo. O “revolucionário” e o reformista, durante o almoço, afiam argumentos e não facas e ainda demonstram como a palavra pode ser bonita, quando bem usada.

Na peça estão representados políticos iluminados, viajados, cultos, equilibrados e de mentalidade aberta, tão difícil de encontrar actualmente. E como excelentes políticos, Mondlane e Palme agitam águas sem gerar tempestades inconsequentes. Afinal, como os ABBA, as personagens interpretadas por Branquinho e Vaz acreditam em anjos se assumirmos que os seres celestes personificam tudo de bom em todas as coisas que se vêem ou sentem-se.

Portanto, Um almoço simples em Vällingby é mais do que uma peça radiofónica de ficção, é uma experiência incisiva sobre o passado de Moçambique, sobre as relações entre Moçambique e Suécia, produzida de tal forma verosímil que é impossível o ouvinte não pensar no poder transformador da arte.

Na voz de Jorge Vaz e, principalmente, de Adelino Branquinho – actor de classe mundial num país pobre – Um almoço simples em Vällingby alimenta a alma e o Homem com conhecimento, elegância e arte nas palavras. A peça é radiofónica, certamente, entretanto, cheia de imagens. As personagens, com efeito, conseguem preencher espaços e momentos vazios e dar clima e movimento às coisas. Um almoço simples em Vällingby é uma peça categórica, na qual a simplicidade descodifica os mais complexos fundamentos do mundo contemporâneo. É do melhor que se pode levar à rádio, pois, ao mesmo tempo que a peça enaltece duas figuras históricas pertinentes, reverbera as peculiaridades da arte.

Ouvir Um almoço simples em Vällingby pode ser uma maneira lúdica de pensar Moçambique e o mundo através das memórias de duas figuras políticas que não merecem ser asfixiadas pela História (oficial).

 

Título: Um almoço simples em Vällingby

Texto original: Henning Mankell

Direcção: Manuela Soeiro

Peça radiofónica

Classificação: 17

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