O diálogo com a narrativa oral no universo literário moçambicano (para não dizer africano mesmo com poucas credenciais para o efeito) é já uma premissa adquirida, partilhada e aceite sobretudo por aqueles que observam este fenómeno de fora para dentro. Para esses, a narrativa escrita que foi sendo feita ao longo do tempo, apresenta-se-lhes como um palimpsesto da narrativa oral talvez pelo discurso modesto que se quer honesto “vendido” in e outside por vários escritores: eu sou contador de histórias do meu povo. Quando acolhido à primeira vista, este discurso, gera a ilusão de que há pouca ficção como se ao escritor e ao escrivão a vida reservasse o mesmo ofício.
É deste diálogo intertextual com a narrativa oral que se foi forjando a narrativa moçambicana sob a égide criativa dos seus cultores numa esfera que não se esgota na cedência de espaço, na escrita, para ressonância dessas vozes ágrafas mas perpassa a apropriação do seu discurso e estrutura para se conceber a ficção, conforme recorda-nos Lourenço do Rosário, ao afirmar que a literatura de tradição oral encontra-se refletida na literatura escrita na forma e no conteúdo, com a adopção de recursos estéticos, integração de elementos estruturais e recuperação de valores.
Esta simbiose ocorre, talvez, por motivos de busca de retalhos que lhes permitam a identificação do rosto no campo do fingimento literário ou, se calhar, por mero fluir identitário porque se na literatura há espaço para o fingimento, o ADN furta-se a esse jogo e evidencia-se onde quer que seja.
É este elo identitário que nos permite aferir que “Ilusão à Primeira Vista” de Almeida Cumbane inscreve-se, também, neste domínio, fazendo com que denotemos, na narrativa, os binómios prémio/castigo e ruptura/continuidade.
O primeiro (prémio/castigo) resulta deste diálogo permanente da narrativa moçambicana com o universo oral do ponto de vista estrutural, que organiza o enredo de tal forma que a interpretação do valor temático-ideológico que uma determinada narrativa veicula deve passar pela aplicação de dois critérios: o morfológico e o temático-antropológico.
Este modelo interpretativo fora cunhado por Vladimir Propp (1928/1983) que em “Morfologia do conto maravilhoso” estabeleceu diversos aspectos que constituem bases da actual narratologia. Um dos aspectos a destacar é que com base na comparação e análise da distribuição dos motivos em diversos contos, Propp descobriu que, “muitas vezes os contos emprestam as mesmas acções que se resumem numa mesma acção na qual o que muda são os nomes e os atributos das personagens, mas não suas funções.
Entenda-se, no entanto, que Propp define função como “a acção de uma personagem definida do ponto de vista de seu significado no desenrolar da intriga”.
Assim, na esteira de Propp, ROSÁRIO (1989: 15) postula que morfologicamente, as narrativas serão identificadas como: Ascendentes (quando terminam bem e com o prémio ao herói) e Descendentes (quando tudo se processa de forma inversa à do primeiro caso).
No que diz respeito ao critério temático-antropológico, identificamos as narrativas conforme elas se apresentam com, por exemplo: pessoas e/ou animais através do comportamento dos quais se pretende abordar questões ligadas aos costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os cumpridores e castigando os transgressores.
Este foi (e é) em grande parte o modelo discursivo/estrutural da narrativa moçambicana que costura os enredos a ponto de resultar no que Francisco Noa chamou de “dimensão escatológica da ficção moçambicana” apresentando cenários tipicamente perfeitos de castigo a um determinado agressor no universo narrativo, lendo-se, então, um certo pessimismo/cataclismo, no enredo (e quiçá do próprio autor), relativamente aos comportamentos das personagens da ficção (e quiçá de que/quem elas representam).
É neste prisma que sobressai, também, o binómio ruptura/continuidade. Vítor Manuel de Aguiar e Silva em sua “Teoria de Literatura” afirma que a continuidade no panorama literário funda-se numa discursividade intertextual que privilegia a manutenção da cultura, a invariância dos modelos, a atemporalidade das normas e convenções retóricas e estilísticas. A ruptura, contudo, tal como o conceito denuncia, processa-se de forma inversa.
Não há, apesar disso, uma situação de conflito conforme alerta-nos Aguiar & Silva (2007: 270) porque a característica primordial de qualquer sistema cultural é a procura fervorosa da manutenção do seu equilíbrio, das suas entidades, normas e fins, isto é, a sua tendência para a homeostase. Esse sistema mantém-se essencialmente inalterado, através da introdução de alguns ajustamentos e modificações – um processo de homeorrese que, ao efetuar pequenas alterações, permite que a estabilidade do sistema não seja afectada. É, tal como o autor reitera, a actuação concertada dos fenómenos da homeostase e da homeorrese (entenda-se continuidade e ruptura) que contribui para o privilégio de um determinado “sistema literário” com base numa componente de estabilidade e não de ruptura total ou parcial.
Portando, Almeida Cumbane continua este permanente diálogo com o oral, modalizando a realidade “mística” com o enredo decorrendo, sobretudo, no espaço rural e com personagens típicas desse meio. Por seu turno, a rutpura emerge também desse universo dos prémios e castigos buscando um quê de humanização dos blocos interpretativos desses binómios, demonstrando que no percurso daquilo que parece ter um fim escatológico há, afinal, um espaço para redenção, para o optimismo: uma segunda chance.
De Almeida Cumbane, busca-se estas inferências num enredo em que se nos apresenta o professor André Fernando Matuassa. Ora, saber que Cumbane é, também, professor pode-nos reenviar para uma leitura biografista que não vinga porque acaba se fitando em detalhes da vida íntima do autor (do ponto de vista social, económico, político, cultural, etc.) e tudo que pré-existe ao texto no sentido de criar, em retalhos, uma imagem do autor como se a obra fosse o espelho fiel do ego do escritor. Não querendo, contudo, ignorar o facto de que mesmo sendo ficção o texto só pode apresentar aquilo que o seu autor conhece ou imagina.
André Fernando Matuassa nutre um amor profundo pela N’weti que brotou da infância nas companhias frequentes na aldeia 16 de Junho em Chicualacuala, no contexto doméstico e na escola porque fizeram o primário juntos e a N’weti não pôde prosseguir porque as amarras tradicionais não permitiram que continuasse com os estudos.
Já formado como professor e perspectivando leccionar em Chicualacuala ou nas imediações, André vê a sua perspectiva reduzida a negação e contrariedade em prol de uma unidade nacional pensada nos escritórios de Maputo que o faz rumar para Zambézia (Alto-Molócuè). Lá a ilusão de funcionário assalariado, dono de si e dos seus, desnuda-se e dá espaço à insuficiência financeira de se resolver sentimental e socialmente com a N’weti porque esta já entrelaçava o corpo e os destinos com outro homem na sua aldeia enquanto ele sucumbia de amores e esperanças de um dia esposá-la. Regenera-se, então, com a Ana que a ele se junta com uma menina (sua filha com outro homem) e juntos dão vida a um casal de gêmeos. Num reencontro fortuito com o seu pai em Alto-Molócuè, que abandonara a família em 16 de Junho, revela-se o castigo da pouquíssima convivência: a sua enteada é, afinal, sua irmã.
Ana, ao descobrir que o seu sogro é, na verdade, a pai da sua primeira filha, cede ante a hipertensão arterial e desvive. Com três filhos por criar, sozinho nas terras Zambezianas, longe da família em Gaza, André faz diligências para regressar à casa mas não consegue fixar-se além de Inhassouro (Inhambane) onde continua como professor e consegue levar as crianças para junto da família em Chicualacuala. Passa, então, a trabalhar na SASOL em virtude de ter sido apurado num concurso público e chega-lhe como um presente a morte de Ultimisso Maluleque, marido do objecto do seu amor: N’weti.
Na viuvez de ambos, unem os trapos, perspectivam a recuperação do tempo perdido, uma vida conjunta e eterna. Alcançaram todos estes objectivos excepto o da eternidade porque a traição de N’weti com Madjaco rompeu esse elo conjugal e fez a vida de André dar mais uma guinada “amorosa” e profissional após os apelos da sua tia que tinha maus pressentimentos relativamente à sua vida e sugeria uma consulta médico-tradicional.
Depois desta experiência e da repercussão que teve até no contexto laboral, o que fez dele objecto de piadas não muito bem geridas pelo seu ego masculino a ponto de se envolver em agressões físicas com um colega na SASOL, eis que se esgota a sua “temporada laboral” naquela multinacional e, com o apoio de um amigo de infância abraça a carreira de caçador furtivo. Tendo evoluído rapidamente no ofício através de uma “bênção” peculiar de Nyanga ya Ndere e, sob orientação do mesmo, aberto os braços para acolher uma nova mulher, a Inocência, embora nunca lhe tivesse aberto o coração já molestado.
Com a nova vida de “lord” facultada pelo novo ofício, buscou desassossego porque passou a estar na “mira” das autoridades moçambicanas e sul-africanas que, numa operação conjunta, acabam por encarcerá-lo e condená-lo a catorze anos de prisão. Enquanto preso, Inocência e seus dois irmãos (do André) dão continuidade à vida e encetam contactos para que após sete anos, André beneficie-se de liberdade condicional e ganhe vida nova.
Repare-se que estruturalmente, esta narrativa enquadra-se no modelo ascendente em que o enredo culmina com a premiação do “herói” (André Fernando Matuassa) que parte da ideia da função da personagem aludida por Vladimir Propp em “Morfologia do conto maravilhoso”, para quem todo o conto parte de uma carência e passa por funções intermediárias e termina com uma recompensa ou um castigo, dependendo daquilo que foi a atitude da personagem ao longo das funções intermediárias.
Ao que é legítimo aplicar o binómio prémio/castigo consoante as transgressões de André e assumir, também, com estas “transgressões” a dimensão da continuidade do ponto de vista estrutural deste enredo com outras narrativas produzidas nos anteriores períodos da literatura moçambicana. Contudo, esta regeneração (prémio) de André do ponto de vista social revela-nos uma ruptura com uma dimensão pessimista, se quisermos escatológica na já aludida perspectiva de Francisco Noa, e abre espaço para um quê de herança de contos de fada (espólio de outras latitudes) em que os enredos, na sua maioria, se encerram com o famoso “…e todos foram felizes para sempre”.