Naquela sessão de consumo de sumo de caju em casa da Eva o grupo em convívio era diversificado. Dele faziam parte personalidades da vizinhança e convidados doutros bairros, acompanhados pelas respectivas damas, todos ansiosos em passar momentos diferentes, senão inéditos. Cada qual trazia a sua contribuição de um garrafão de bebida. As senhoras esmeraram-se na preparação de nhangana, à qual adicionaram um nadinha de piri-piri sacana. Outras fritaram e trouxeram magumba e pescadinha para variar a ementa. Doçuras de petiscos! Na mesma compareceu um sujeito de nome Nhamposse, dado a galã e que residia na zona do Vieira, nas proximidades da Praça de Touros. Era um contador de histórias nato e prolixo, o que atraía largas audiências à sua volta para escutá-lo.
Foi com agrado que o galante Nhamposse recebera do “Garrincha” _ amigo de longa data _ o convite para a abertura oficial da época de caju em casa da Eva. Na sua área não era muito bem quisto, em virtude de uns guiza-guizados com os maridos dalgumas damas um pouco liberais nos seus relacionamentos com homens. Receava que algum dia, se se juntasse aos mesmos naquelas sessões, acabaria envenenado por algum ciumento. Sentia-se bem e seguro longe daqueles fracassados que eram os esposos das suas amantes.
Ele tinha a sua habitação nas adjacências da Escola Primária da Malhangalene, no centro de um aglomerado de fogos de madeira e zinco. A sua era a mais próxima de uma fontenária para onde afluíam rapariguinhas adolescentes à busca de água. Rapariguinhas e não só; mesmo mulheres adultas e solteirões escolhiam aquela como a fonte predilecta para se abastecerem.
Dava-lhe imenso gosto postar-se à varanda da sua habitação e assistir àquelas escaramuças entre o mulherio que ia carretar água naquela fonte. Fazia-o com um ar superior, as mãos metidas nos bolsos e um sorriso permanente entre os lábios, como se ele fosse o proprietário daquela obra.
Por vezes refastelava-se numa cadeira de lona, os braços muito abertos, um aqui outro ali, a gozar as emoções das trocas de olhares com as mulheres e as raparigas que por ele passavam. Dia não havia em que se não registassem brigas entre grupos que rivalizavam na urgência em abastecer-se. Quando o faziam nem sempre era pela mesma razão. Muitas vezes eram apenas rivalidades pelo gosto e pelo hábito de rivalizar. Porque contradições é costume sempre havê-las entre pessoas que habitam os mesmos bairros. Outras, essas já melhor fundamentadas, tinham a ver com divisões por questões de invejas e de ciúmes, “…porque disseste que…porque a Jorgeja é que me disse que disseste que…”, de competições por causa de namorados, eu sei lá.
Em momentos de alguma paz o Nhamposse convidava uma e outra rapariga ao seu reduto “para toma uma chávena de chá”. Em outras ocasiões era alguma mulherzinha, respeitada mãe de família que se não coibia de abrir tréguas na abstinência forçada pela ausência prolongada do esposo e aceitava de bom gosto os convites para as ditas sessões de “tomar um chá” com o galante Nhamposse.
Naquele fontenário eram notórios os grupos da Teresa “Nkadjuíne” e da Quitéria “Xiguindlana”. O cerne das contradições entre estes grupos fora o próprio Nhamposse que, pela Nkadjuíne preterira a Xiguindlana. Como é uso e costume nessas situações, esta não se fez rogada na cobrança do desforço. Ao pretenso namorado não iria bater, porque para isso não possuía nem força nem competência. Descarregou, porém, o tanque do fel sobre a rival. Pegaram-se na fontenária, nos caminhos, no mercado e nos seus próprios domicílios. Onde quer que uma se cruzasse com a outra invariavelmente tomavam lugar verdadeiras batalhas, verbais e físicas, que se prolongavam por horas e terminavam sem vencedora. Se a “Xiguindlana” chegasse primeiro à fonte, nenhuma filiada ao grupo rival tinha o direito a servir-se, tivesse ou não urgência, porque essa deixara de existir para qualquer elemento do campo adversário. E por detrás da lata ou tambor que marcasse “vez” as filiadas alinhavam os seus recipientes, e abasteciam-se até a noite fazer-se escura. E o inverso sucedia-se a “Nkadjuine” aportasse à fontenária antes da segunda. E longas filas aí se formavam, para desespero doutros residentes que assim se viam privados ou atrasados em abastecer-se.
Ao redor da fontenária havia sempre riachos de aguadilhas a correr, formados pelo jorro contínuo das torneiras negligentemente fechadas. Os que iam buscar água outra solução não tinham senão mergulhar os pés nesses lodaçais de solo negro.
O Nhamposse, naquela sessão de cajú em casa da Eva não se poupou a narrar histórias presenciada na fontenária da Malhangalene e outras mais, nas quais o protagonista principal era um hipotético e imaginário senhor Zunguza, um barba-azul que “não podia ver uma saia abanar à sua frente”. E, como era para esse efeito que para ali se juntaram, os presentes arregalaram-se com a frescura do caju, com as delícias dos petiscos, com a empolgância das narrações, com graça das conversas e a prolixidade dos narradores.
Com a noite as línguas entaramelaram-se, as cabeças aturdiram-se com a força dos vapores do fermentado. Todos falavam alto e riam-se ao mesmo tempo, mas entendiam-se. E, como não poderia deixar de ser, entoaram-se cantigas próprias para a ocasião.
O senhor Pachorro, que era um guitarrista que nunca primava pela ausência nesses ajuntamentos, desmontou a viola das costas e executou aquele número musical. À sua voz fundiu-se a do Nhamposse. E ambos, em dueto improvisado, elevaram aos ares as notas daquela canção que era, a um tempo, uma mensagem de paixão, de nostálgica melancolia por amores perdidos:
Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora ****
E conta logo a tua mágoa toda para mim
Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora
Que não vai embora, que não vai embora
Amor, eu quero o teu carinho
Porque, vivo tão sozinho
Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora
Se ela vai embora
Porque gosta de mim!
E todos entoaram em coro:
…se ela vai embora…
… porque gosta de mim!…
O Nhamposse, de olhos cerrados, uma mão espalmada sobre o peito, e outra no ar, era o próprio Almir Sater, no transe do canto. A voz apaixonada, o timbre ondulante e a expressão facial sofrida conferiam-lhe a imagem do homem enamorado, abandonado o seu profundo amor ao desdém dalguma mulher insensível e caprichosa.
A ovação que se seguiu foi o convite inevitável para o prosseguimento da exibição. Outros números foram executados e entoados, com a questionável perfeição que seria de esperar de bardos improvisados e embriagados.
A noite também embebedou-se com o calor das festividades. Com estas as mentes toldaram-se. Os becos entre as cercas das casas testemunharam as marchas cambaleantes dos consumidores que iam entoando cantigas de nostalgia pela felicidade breve ainda há momentos vivida.
E tudo silenciou no bairro do Chamanculo. A noite voltou a cobrir os fogos com o seu manto escuro. A madrugada sobreveio com outras novidades. As mesmas que abalaram a paz da época, esfriaram o calor das celebrações e trouxeram uma lição renovada de que o respeito pelas coisas ou pela propriedade alheia é uma norma fundamental para que reine a paz e a harmonia na comunidade.
Os residentes nas vizinhanças da cantina do Mário acordaram sobressaltados com aquela notícia: um homem jazia morto e descoberto junto ao muro traseiro do estabelecimento. Era o de um indivíduo desconhecido na zona, que pela aparência devia ser de meia-idade. Um ajuntamento de curiosos formou-se ao redor do malogrado, sem que ninguém, pela surpresa _ diria_ não cometeu a temeridade de dele aproximar-se para melhor identificação; ou, movido por algum sentimento samaritano, o envolvesse com uma capulana para cobrir-lhe o pudor.
A manhã de Domingo ia no começo, eram dez em ponto, quando o “Garrincha”, sobressaltado pelo burburinho causado pela presença dum homem morto ali nas redondezas, sacudiu-se da lazeira e foi testemunhar. Uma brigada da Polícia Judiciária já lá se encontrava a colher evidências, a tirar fotografias e a questionar eventuais testemunhas do evento.
E eis senão quando, para seu espanto e incredulidade, o “Garrincha” descortinou as feições daquele indivíduo e testemunhou a tragédia que fora a morte daquele seu amigo. Porque era, nada mais, nada menos, o corpo despido do seu convidado da véspera, o Nhamposse da Malhangalene! Tinha os órgãos genitais expostos, esmagados, envolvidos por coágulos de sangue já escurecidos, à mistura com uma massa escurecida e disforme de tecidos macerados e pedaços de peles esmagados. O rosto sem expressão era uma máscara cruzada de escoriações e hematomas. Do resto do corpo distinguiam-se com nitidez marcas de lanhos, sinais de que o malogrado fora vítima de uma violenta agressão e que, provavelmente, fora morto algures e deixado ali ao relento.
“ Este teve o que merecia”, disse um mirone no ajuntamento de curiosos, a apontar para aquele corpo sem vida.
“ Você não tem mesmo alma. Como pode dizer que a morte duma pessoa é coisa boa?”, protesto duma mulher, comiserada com aquele infeliz.
“ Digo isso porque vê-se que ele foi surpreendido em flagrante na cama doutro”, esclareceu o primeiro. “ Já vimos casos como este aqui o bairro. Não é a primeira vez que isto acontece. Procurou e encontrou o que procurava. Aqui entre nós é assim, e doutro modo não pode ser. A nossa justiça funciona desta maneira. Morreu por onde pecou”, desabafo daquele justiceiro, a ranger os dentes.
Ao Nhamposse custara a vida a aventura da última noite. O fim daquela sessão de consumo de caju terminara como muitas outras. Embevecidos uns pelas delícias da bebida e outros pelos apelos espirituais das melodias entoadas, libertaram-se das amarras da inibição e deram asas a desejos não confessados. Recolheram ao abrigo das cabanas cujas sombras foram cúmplices de actos de amor proibidos. E esse fora o seu caso com aquela dama de lábios tenros e carnudos, dona de uns olhos grandes que vertiam ternuras a mirarem-no com lascívia e _ só podia ser_ a transmitir-lhe uma clara mensagem de convite para outros encontros, em outros lugares, para outras finalidades. E o esposo dela., que afinal não estava no piquete da Estiva, regressou a casa, a tempo de presenciar a sua esposa legítima em flagrante acto de adultério, na sua cama, na sua palhota. O Nhamposse rendeu-se à evidência de que cometera o mais pecaminoso dos actos dos que em toda a vida cometera. E teve lugar aquela que foi a sua luta pela sobrevivência. Manietado pelo medo a sua resistência foi mínima. O dono da casa era um sujeito afeito a lutas, das quais travara muitas, e longas, lá na aldeia donde provinha. Em pouco tempo neutralizou e subjugou o adversário. Remeteu-o à inconsciência com um estrangulamento e, na presença da própria esposa_ paralisada de temor e culpa_ esmagou-lhe os órgãos genitais com um martelo e um bloco de cimento. Sorte semelhante teve a adúltera. Morreu estrangulada na mesma cama onde cometera a infracção matrimonial.
Consumados aqueles actos, o esposo enganado carregou às costas o corpo do Nhamposse e depositou-o nas traseiras da cantina do Mário para pasto de cães. Regressou à cabana e aí enforcou-se sem deixar mensagem.