A Teresa “Maheu” adivinhou que a demora do Mbate em regressar para casa era o augúrio doutra catástrofe na sua vida. Onde aquele passara a noite já sabia, e com quem. E o que sucedera durante a mesma. Assim avisada, preparou-se para o que desse e viesse.
Ela aprendera que a felicidade é afinal um sentimento passageiro, uma ilusão com que a vida nos entretém. Quase poderia jurar que aquela relação com o Mbate estava destinada a terminar como adivinha que iria terminar: o regresso dele ao lar, aos braços da esposa. A sua sina não era a de ser esposa matrimonial dalguém, mas de concubina, mulher secundária em cujo ombro esse homem viria para carpir mágoas passageiras e frustrações de ocasião. Solucionada a crise, vê-lo-ia regressar ao ponto de partida. A realidade abriu-lhe os olhos e mostrou-lhe que estava do lado da razão, que fora derrotada na sua tentativa de, como mulher, encontrar um parceiro com quem partilhar o quotidiano da vida. Mbate era já uma miragem na sua existência, algo que se movia apenas na imaginação, disforme e imaterial. Desfeito o sonho, havia que reconstrui-lo; dos pedaços em que ficaram os seus sentimentos, colar as peças dessa experiência, uma ao lado doutra, e fazer delas o sustentáculo onde inspirar-se para vencer outros desafios.
Tivera a sorte de, naquela mesma casa, coabitar com o primeiro homem que conhecera, o Aurélio “Bigwana”_ que Deus o tenha sob sua protecção. O destino, todavia, não quis que se consumassem os rituais que selariam a união pelo matrimónio que ambos projectavam. Dele nem sequer chegou de ficar grávida. Provinham da zona de Nkovene, na Manhiça. Ela encontrara nele o homem certo que os deuses poderiam ter colocado nos seus caminhos. Os mesmos deuses retiraram-no com aquela brevidade e aquela violência de que ainda guarda memórias. Ele foi esmagado pelas rodas de um camião em pleno meio-dia na baixa da cidade. No momento, com certeza que algo o cegou e teve aquela morte instantânea que causou pasmo e consternação no bairro. Ainda recorda-se dele, com uma saudade longínqua, mas impagável. O “Bigwana” fora um homem jovial e robusto, mais até do que o Mbate. Era mesmo um gigante. E por causa desse seu físico avantajado os patrões ingleses da companhia Breyner & Wirth alcunharam-no “Aurélio, the Big One”, daí “Bigwana”.
O defunto “Bigwana” levou consigo toda a esperança por um futuro estável à Teresa. Ficaram as rendas do fogo para pagar, o comer tinha de desenterrá-lo dalgum lado, o dinheiro para as roupas também. Sem instrução nem habilidades ela achou prudente iniciar um negócio de venda dalguns produtos nas ruas da cidade. Foi aí onde o Mbate a conheceu, aos portões da capitania do Porto a vender amendoim torrado, fruta e maheu. Os fregueses admiravam e apreciavam a qualidade da sua bebida. Por brincadeira deram-lhe a alcunha de Teresa “Maheu”.
Assim viveu durante anos, a sustentar-se à custa daqueles negócios, até àquela tarde fatal em que fraquejou e aceitou a proposta de juntar-se ao Mbate e abandonar as actividades de vendedeira nas ruas da cidade. Ainda amaldiçoa-se pela cegueira e pela ilusão duma vida repousada ao lado dum homem que dizia amá-la.
Com o desaparecimento do Mbate tudo voltou ao princípio. Era a roda da existência a girar e a mostrar as suas diferentes faces, as verdadeiras cores da vida.
Sozinha e retirada da rua restava-lhe apenas fazer o que muitas mulheres da sua idade faziam: mercar molhinhos de carvão, fruta e bolos caseiros como tifiosse, matortor e mabadjia, à porta do quintal da casa. Assim fez. Os clientes afluíam com regularidade. Da receita ganha ia vivendo como podia.
As noites, inimigas dos solitários, convertiam-se em momentos de tormentos. O seu corpo de trintona ardia e sufocava sob labaredas de desejos de ter um companheiro ao lado. Entontecia e rebolava na cama. Imaginava cenas de intimidade, ora com o Mbate, ora com o defunto Bigwana, as mesmas que a transportavam para as fronteiras da felicidade. As madrugadas eram testemunhas das suas insónias. Tudo escrutinava: o cantar dos galos, a surdina das pessoas que ao largo do caminho dirigiam-se aos seus locais de trabalho. Não voltou a escutar a voz grave dum homem a seu lado, jamais escutou a surdina de passos a transpor o piso do seu quarto, jamais voltou a sentir o calor duma mão que a descobrisse dos lençóis e a afagasse, ou a despertasse com o contacto do seu corpo. A sua companheira era a solidão. Seu esposo era aquele xindotana com que a casaram os avôs, o mesmo que, segundo os magos lá de Nkovene, planeara e causara a morte do Aurélio “Bigwana”.
Depois de recolher as sobras dos produtos das vendas de cada dia a Teresa deslocava-se ao bazar do Diamantino para adquirir outros para o dia seguinte. Passava pela cantina do Mário e aí comprava os ingredientes para confeccionar os produtos destinados à venda. E qual o melhor remédio para as insónias do que uma garrafa de vinho “Matateu”? Assim, a Teresa iniciou-se no consumo de bebidas alcoólicas.
Não havia noite em que ela não bebesse. Para ela isso tornou-se uma necessidade imperativa, irresistível. Com o tempo, e como o custo de vinho fosse superior à sua capacidade para o adquirir, baixou de escalão na qualidade das bebidas que consumia. Já enviava as crianças da vizinha à bhanga da Tia Cacilda para comprar para si um mu-cinco de uputso. Aí contraiu dívidas, créditos não cobertos. A proprietária da bhanga, embora fosse sua amiga, cortou-lhe os favores. De sede não iria morrer. Do uputso derivou para o xidangwana, que até era mais barato e de melhor efeito no combate às insónias. Estas deixaram de ser um problema, porque a Teresa dormia até ao meio das manhãs, negligenciando os negócios e as limpezas da casa. Comia o que calhava e quando calhava. Centavo que lhe caísse às mãos, investia-o imediatamente no ntho-ntho-ntho ou no xidangwana. Ao anoitecer era rotina vê-la a regressar à toca, a cambalear, em ziguezagues muito caprichados.
Mulher-viúva, noiva abandonada na cratera da paixão, a “Maheu”, já mais afectuosamente conhecida por “Xicanicana”, naquelas viagens entoava a mensagem da única canção que conhecia:
Tai, eu fiz tudo p’ra você gostar de mim *
Ai meu bem não faz isso comigo não
Você tens que me dar o teu coração
Meu amor não posso esquecer
A minha vida foi sempre assim
Só chorando as mágoas que não tem fim
Você tens
Você tens que me dar teu coração
Ela nunca o revelou a ninguém, ou nunca pôde fazê-lo. A quem dedicava aquela mensagem de amor? Ao defunto Aurélio “Bigwana” ou ao senhor Jaime Mbate?
in Caderno de Memórias, Volume II