Pelo fim das manhãs quem se dirigisse ao mercado do Diamantino não poderia esquivar a vista duma figura que era singular. Tratava-se duma dama a quem o povo alcunhou de “Xicanicana”, o que traduzido à letra significa “a avó da latinha”, porque era em vazilhame de alumínio, de tamanho miúdo, que se servia o xidangwana, fermentado à base de farelo e doutros ingredientes, todos igualmente e altamente, tóxicos. Provinha do Muvumbi, não tão distante da casa da Eva.
Pelo cestinho que costumava trazer em mão dir-se-ia que ia às compras. Em vez de fazê-lo no bazar do Xipamanine, onde a oferta de produtos era maior e, por essa razão, mais baratos, contornava este mercado e esgueirava-se pelos labirintos dos caminhos que conduziam até ao Chamanculo. Aí vivia parte da equipa constituída por dignitários como o senhor Issufo, vice-presidente do Clube Desportiva da Beira Mar, alguns vogais desta agremiação, todos ocupados em fazer nada, ou quase nada; algumas damas de feições que se alguma vez tiveram uma certa formosura esta desvaneceu-se com a frequência e a violência das bebedeiras.
O lugar de encontro dos distintos membros deste colégio de ébrios era o “Bar Estrela”, a sé-catedral do “copo”, lugar onde o vinho tinto, as “catembes” e a cerveja “Laurentina” da Reunidas, corriam como as águas do rio Incomáti. O próprio dono da loja, o senhor Pacheco, ingressava nas rodas de consumo e nela introduzia a sua colaboração de pedaços de frangos, de fígado trinchado, de tremoços e outros petiscos com que renovava as sedes e os apetites da clientela.
Qual era a fonte do dinheiro para tantos gastos, nem Deus que sabe tudo e tudo vê poderia afirmá-lo com precisão. O das damas, via-se logo, era o mesmo que os respectivos esposos deixaram sobre as mesinhas das cabeceiras para a aquisição de víveres para as refeições do dia. Daí que, em estes regressando das estafas dos empregos, não encontravam à espera as ansiadas saudações, muito menos as delícias dos jantares. Sobrevinham então as cenas de espancamento, as chicotadas com cavalo-marinho que, com frequência, tinham lugar em algumas já conhecidas residências. Alguns esposos, já subjugados pelas reincidências das consortes, deglutiam o sofrimento e adiavam as recriminações, sinal de uma rendição total e incondicional.
Esse era o caso da “Xicanicana”. De todas as correligionárias era a que mais vezes protagonizava episódios de vária índole, dentre os quais se citam o despir-se em público, fazer necessidades menores em pé, também em público, para de seguida, sem nenhum pudor, sacudir a capulana _ gu-bu! gu-bu!_ e limpar os calcanhares molhados com as mãos. E, vai daí, o deixar-se arrastar por alguns oportunistas para as sombras dalgum becos e aí reproduzirem a passagem bíblica que custou o Paraíso a Adão e Eva era conversa de um minuto. E muitas vezes nem conversa havia.
Ao anoitecer ela regressava a casa a cambalear. Ziguezagueava que até parecia um barco à vela arrastado por uma forte tempestade que, de minuto a minuto, mudasse de sentido. Trocava os passos, o pé direito muito à esquerda, o esquerdo muito para a direita; o corpo inclinava-se ora para frente, ora para trás, em sucessivas tentativas de equilibrar-se para, no instante seguinte, cruzar a largueza dos caminhos em linhas quabradas. Efectuava estas marchas de olhos cerrados, como se estivesse adormecida, ou de cor conhecesse a rota do seu destino. Da boca emanava a surdina duma cantiga melancólica:
“Taí, eu fiz tudo p’ra você gostar de mim
Ai meu bem não faz isso comigo não
Você tens que me dar o teu coração
Meu amor não posso esquecer
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A minha vida foi sempre assim
Só chorando as mágoas que não tem fim
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Se me ajudasse Nosso Senhor
Eu não pensaria mais no amor”
O eco da voz tangia o coração sofrido da “Xicanicana”. Muitas vizinhas, igualmente com os corações quebrantados por amores não correspondidos, faziam seus os versos da canção da Carmen Miranda. E juntavam-se no canto:
…só chorando as mágoas que não tem fim…
…você tens que me dar o teu coração…
Não consta na história da “Xicanicana” que vez alguma tenha-se equivocado nas rotas. A bússola do instinto era a única garantia de que chegaria a bom porto sem se extraviar. Numa mão segurava sempre um cesto de verga vazio ou parco de compras. Quem vasculhasse o interior deste acharia apenas uma meia dúzia de folhas de mbowa murchas e amolecidas ou algumas magumbas desidratadas a exalar os aromas das lixeiras. Em dias mais felizes aí poderia encontrar-se o exemplar tristonho e solitário de um pão amolgado, seco e queimado, daqueles que se vendiam por um escudo nos postos de venda das padarias ou à porta dos quintais.
O verdadeiro nome da “Xicanicana” era Teresa. Antes de ser “Xicanicana” fora Dona Teresa, mulher de dotes físicos como poucas tinham no bairro. O seu companheiro era um estivador que sofria de autismo, pessoa de ar distante, sempre a magicar coisas que não segredava a ninguém. De físico era de boa envergadura, possante como um búfalo, porque de contrário não poderia trabalhar na Estiva, a carregar sacos e tambores cheios de produtos.
A história dela é uma de amores tripartidos, de um triângulo de amor que se rompeu e que se resume do seguinte modo:
O companheiro da Teresa, o senhor Mbate residia no bairro da Maxaquene, nas proximidades da zona do Vieira, com a esposa dona Maria Rosa Nwa-Mbate, uma senhora recolhida, anémica e com voz de falsete, muito infantil. Viviam felizes, isto é, cada um vivia a sua vida, a qual comungavam apenas na esteira. Dessa comunhão na esteira nasceram dois filhos que se não prometiam cidadãos honrados e bem sucedidos, sempre a pensar no futebol, na bisca e noutros jogos de azar. A dona Maria Rosa sentia-se impotente para dar corda curta aos filhos que, conhecendo-lhe as fraquezas, riam-se dela e afastavam-se para longe das recriminações, tímidas e pouco convincentes.
O esposo, na maioria do tempo ausente na Estiva, dava pouca conta dos comportamentos dos filhos. E estes tresmalharam de vez. Acabaram ambos presos na cadeia do “Djamangwana” por assalto a um estabelecimento comercial no centro da cidade, no qual, placidamente degolaram o respectivo guarda-nocturno.
A tristeza abalou o lar Mbate. A mãe emudeceu de vez. O marido sofreu de um ataque de melancolia que o remeteu a um silêncio e a uma solidão quase sepulcral. Mas como um homem é sempre um homem, às vezes tentava algumas abordagens, acanhadas, é de se ver, na esteira com a consorte. Esta afastava-o com a suavidade da sua mão frágil e murmurava pretextos para evadir-se das intimidades. Ele sabia que estava no seu direito obter a bem o que desejava; todavia, optava pela complacência. Bem podia, porque assim é que um homem deve proceder, mandar um berro ou dar-lhe um bofetão, ou mesmo apertar-lhe o gasgante, porque não?, para obter o que lhe era de direito. Mas esse tempo já lá vai desde que fracturou a mandíbula a um colega na Estiva por causa de uns desentendimentos profissionais. A sua mão era pesada demais. Assim, à esposa limitava-se a voltar as costas e engolir a humilhação em silêncio. Ela também sabia que se se deixasse ir na conversa do esposo, com aqueles jejuns prolongados era capaz de perecer na esteira, em pleno cumprimento das obrigações conjugais. O fosso matrimonal alargou-se, as relações entre ambos esfriaram e azedaram-se. Era a premonição do fim do matrimónio. Nada os unia e nada parecia vir em seu socorro.
Conforme diz aquele adágio shangane “cabrito solto come em machamba alheia”, o senhor Mbate, pressionado pela rejeição da esposa, era acometido de pesadelos durante o sono e alucinava durante as vigílias. Via-se rodeado de mulheres que se despiam das capulanas e rodopiavam à sua volta, cobertas de uma nudez que o torturava. Via-lhes as missangas multicores cintadas sobre os púbis, as tatuagens nas coxas com figuras hieroglíficas a lembrar sexos, os seios dançarinos a peneirarem-se sobre os peitos: a tortura de Tântalo no seu quarto e nos seus caminhos!
Como tudo o que não tem remédio remediado está, o dono da casa começou a atrasar os regressos para casa depois das jornadas de trabalho. A princípio, e de um modo tímido e furtivo, visitava as “tembas” das Lagoas. Aí demorava-se com algumas “madalenas” escolhidas a dedo, embora soubesse que corria o risco permanente de ganhar o bónus de um esquentamento. Do que ele necessitava era duma mulher que lhe fizesse companhia, trocar conversa, intimidades pessoais. O que tinha em casa era aquela afónica da esposa, sempre embrulhada em silêncios, uma fracota quebradiça como um caniço, desconectada da esteira e do mundo.
Conheceu a Teresa aos portões da capitania, popular e oficialmente conhecida por Cais Gorjão. Ela aí vendia amendoim torrado e maheu. Era disso que sobrevivia. Já se conheciam porque ele frequentava o lugar da venda para adquirir uma mão cheia de grão salgado, para “ajudar a salivação”, e maheu para se refrescar do calor e enganar a fome.
Se a Teresa era abstinente como ele, o senhor Mbate não poderia afirmá-lo com a devida precisão. Mas quando, naquele fim de tarde, ele acercou-se dela e propôs-lhe escoltá-la para casa, as dúvidas sobre a sua disponiblidade desvaneceram-se. Mulher que viva na rua a vender produtos daquela natureza há-de ter as suas carências, pelo menos de um esposo que lhe garanta alguma estabilidade e conforto. Não lhe disse que era rico, nem prometeu o outro mundo, cheio de esplendores, véus, grinaldas e sapatos de salto alto. Não! Só disse: “se me autorizares posso frequentar a tua casa”. Ao que ela anuiu sem pestanejar. A ciência da vida ensinara-lhe que “a sorte só bate à porta uma vez” e que “o pescador que deixa passar à sua frente um peixe porque é pequeno corre o risco de não pescar nada, nem grande nem pequeno, nem pescadinha nem tubarão”.
Esse foi o início daquele romance entre a Teresa “Maheu”, futura “Xicanicana” e o senhor Mbate. Relação de tristes recordações cujo relato prossigo nas linhas que se seguem.
in Caderno de Memórias, Volume II