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ARTIGOS DE OPINIÃO

Malangatana:

– Tens gin em casa?

Eu disse-lhe que sim.

– Então vou aí!

Não passou muito tempo, o velho Mercedes do Mestre estacionava no baldio que tínhamos à frente do prédio. O dia dessa visita está anotadíssimo: 22 de Março de 2003. O Irati acabara de fazer sete anos e a Mayisha, que nascera enquanto vivíamos naquele apartamento da Coop, tinha dois anos. Já passava das 19 horas quando ele chegou, presumo que a Mayisha dormia já. O Irati foi um dos entusiasmados anfitriões.

Fui buscá-lo lá abaixo e subimos aqueles dois andares ao seu ritmo. Não sei como explicar o júbilo de o receber em casa, de partilhar com ele aquele momento incrivelmente único, de me atardar na conversa com o Mestre. Servimo-nos do gin e água tónica. Fui, a meio da conversa, à estante apanhar o exemplar do álbum Malangatana, edição da Ndjira, para ele o autografar.

O Mestre pegou no livro e, com o Irati no colo e, diante do meu deslumbrado espanto, em vez de mo assinar, começou a desenhar na página direita do livro. Depois, acto contínuo, escreveu um poema (“Contradição”), que encimara com um “Para ti Nelson”. Entre os versos, outros desenhos na página esquerda do livro. Escusado será dizer que ele andava sempre com os seus materiais. Fiquei chocado. Eu esperava uma dedicatória e ganhei uma obra de arte. Inédita. Uma grande láurea. Isso é impagável. O Mestre praticava, amiúde, essa generosidade com os amigos.

A primeira vez que fui visitá-lo à casa do aeroporto era noite, passava das 10 da noite e tínhamos saído de um jantar e lá fomos, como se estivéssemos em procissão, à casa do Mestre. Visitar aquele mundo mágico, num momento em que o bairro adormecera, num silêncio que ampliava a sensação daqueles duendes, daquelas figuras, daqueles demónios, daqueles sathanas, daqueles xipócuès, não me parece que seja possível dizê-lo em palavras. É uma magia indescritível, mesmo para quem passa a vida a discretear palavras. O mundo prodigioso do grande pintor moçambicano, do grande pintor africano, do grande pintor universal. Outras tantas vezes fui com ele ou fui vê-lo a Matalana. Outro lugar mágico.

Estive com ele inúmeras vezes. Recordo-me da vez em que viajámos juntos para os Estados Unidos e da voz do Mestre, em Rhode Island, numa cerimónia da Brown University, que comoveu a reitora, uma afro-americana, que desabou em lágrimas, e a todos os que lá estavam. Recordo-me dele em Lisboa em diversas ocasiões. Recordo-me dele em exposições e vernissages, aqui em Maputo. Recordo-me, sobretudo, quando um grupo de dez amigos, à volta dele, fundou a Kulungwana, no seu 70º aniversário. A galeria está na estação dos Caminhos de Ferro e a Henny Matos, que a dirige, tem feito um trabalho extraordinário. Com ela partilho, muitas vezes, as histórias do gin tónico, o pretexto que Malangatana arranjava, ao fim do dia, para visitar os amigos. Todos os dias espreito a sala da galeria quando me dirijo para o meu posto de trabalho no fundo da estação. O nome foi ele quem o sugeriu e o desenho que o identifica é dele.

Malangatana, nascido a 6 de Junho de 1936, em Matalana, Marracuene, morreu em Matosinhos, a 5 de Janeiro de 2011, aos 74 anos, faz esta semana 7 anos. Em 2005, o José Luís Cabaço marcou um café no Piri-Piri comigo. Estivera em Lisboa e soubera que havia uma iniciativa dos portugueses para celebrar os 70 anos do Mestre no ano seguinte. Sugeriu-me que eu juntasse CEO e administradores de empresas moçambicanas e constituíssemos um fundo e avançássemos com uma iniciativa em Moçambique. Ele estava em São Paulo e não teria como participar activamente. Queria que eu fosse uma espécie de director executivo da iniciativa. Nomeou-me ali mesmo, como quem diz: se não o fizeres, ninguém mais o fará. E será uma vergonha os portugueses celebrarem Malangatana e nós não! Eu assumi a incumbência e avançámos com a iniciativa, que agregou não só empresários, mas actores da vida cultural e intelectual moçambicana.

Rui Fonseca, dos CFM, anuiu que a empresa hospedasse a organização e os encontros. Magid Osman, Arnaldo Lopes Pereira, Rui Fernandes, Joaquim de Carvalho, Lourenço do Rosário, entre outros, foram os mais entusiasmados e participaram activamente no estabelecimento da homenagem. Pensámos, para além de uma exposição, realizada na Mediateca do BCI, num conjunto de iniciativas. Para que a gestão de fundos fosse credível, elegemos a FDC e pedimos que ela acolhesse e gerisse o fundo e teríamos uma empresa de auditoria que iria auditar as contas. Partimos para acção. Muitos meses depois da homenagem, o Narciso Matos, que era director executivo da FDC, ligou-me a dizer que tínhamos ainda dinheiro que sobrara das comemorações. Articulei com o Lourenço do Rosário e falei com o Mestre. Ele sugeriu aquele valor fosse para jovens artistas. Atribuímos a dois deles para um estágio no estrangeiro. Tocou-me este exemplo. Esta generosidade.

O Mestre deveria merecer do Estado a mais alta condecoração a um civil. Lourenço do Rosário, que presidia à comissão na companhia de Lindo Lhongo – que desapareceu do reino dos vivos em 2017 -, amigo de sempre do Mestre, e eu próprio, fomos falar com o Presidente. No dia 6 de Junho de 2006, Matalana estava em júbilo com a festa de um dos seus filhos ilustres, senão mesmo o seu mais ilustre filho. A festa que os familiares e amigos tinham preparado transfigurou-se com o furacão da delegação e da visita presidencial. O Mestre recebeu a medalha que queríamos que ele tivesse. 

Mas queríamos e deveríamos fazer outras coisas como sociedade civil. Outras competiriam ao Estado fazer.  Iríamos constituir um fundo que permitisse que o Mestre e a família não precisassem de vender ou malbaratar a obra para sobreviver, íamos dinamizar a construção de uma galeria ou um museu Malangatana, queríamos que o Estado adquirisse a obra para fundeá-lo. Para tal, seria necessário que o Estado declarasse a sua obra de utilidade pública. Também queríamos que o governo lhe concedesse uma pensão. O Magid Osman fez um jantar em sua casa, com a presença do Primeiro-ministro. Objetivo: conseguir do governo um compromisso com aquela iniciativa e os seus objectivos. Nós iríamos mobilizar os recursos, no país e no estrangeiro. Tínhamos amigos lá fora que iriam aderir, estavam disponíveis. O ministro da cultura não compareceu ao jantar, fez-se representar pela directora do museu de arte.

Encontrei no dia seguinte o Ministro da Cultura e falei-lhe dessa intenção, do jantar a que ele gazetara, e da esperança que tínhamos de que ele levasse ao Conselho de Ministros aquela iniciativa, como tinha sugerido o Primeiro-ministro. A resposta do Ministro revela tudo o que somos e que não somos e, sobretudo, o quão somos ingratos em relação aos nossos génios: a iniciativa era bem-vinda, mas deveria ser para todos os artistas. Disse-mo. Malangatana não merecia um estatuto de excepção – palavras minhas.  Como assim? – não quis acreditar. O princípio de que o Estado deve criar um ambiente de defesa e promoção de todos os artistas de igual modo, é um princípio correcto. Mas não se perceber que um génio merece uma excepção e um tratamento excepcional parece-me uma perfeita inadimplência.  Escusado será dizer que a ideia morreu ali. Todos os artistas têm o génio do Malangatana? – perguntei-me. O ministro à época, que é poeta, pelos vistos acreditava que sim. Mais: como se verificaria, não fez nada nem por Malangatana nem por nenhum outro de todos os outros artistas.

Moçambique tem um escol extraordinário de artistas plásticos: Bertina Lopes, Mankew, Chissano, Shikhani, Noel Langa, Samate, Chichorro, Reinata, Victor Sousa, Ídasse, Naguib, Bata, Tomo, Gemuce,  Sitoe, Ndlozy, Simões, Pekiwa, Pinto Zulu, entre outros. Poderia citá-los continuadamente. Muitos deles de grande e indubitável talento. Cada um deles representando um universo criativo singular. Mas Malangatana pertence a outra galáxia. Malangatana habitava e habita outro universo. Tinha e tem outra dimensão. Malangatana foi, provavelmente, o maior artista plástico do século XX africano. É certo de que esta afirmação ufana, flagrantemente ufana, é peremptória – eu sei. E assumo. Nós, na nossa pequenez, por vezes, não temos noção daquilo que é grande em nós. Malangatana é um artista, provavelmente o único entre nós, com a projecção, a importância, a relevância e a percussão universal, que obteve em vida e que mantém.

Malangatana: “Os meus temas principais são: ódio, feitiço, crime, angústia, paixão pela vida e amor. Estes temas não estão só na pintura mas também na poesia. Tudo isto sinto no coração e quando faço qualquer trabalho sem sentir, nunca sou eu o autor desse trabalho, o que me leva então a estar a fazer outra coisa quando o sentimento me falta (…)”

O universo pictórico dele é brutal, fantasmagórico, assombroso, medonho, dilacerante. As suas esculturas e os seus murais são uma presença singular na paisagem. Trazem a mesma carga metafórica dos seus desenhos e pinturas. As canções que canta são profundas. O seu corpo caudaloso transporta o universo do seu povo. Matalana é o seu mundo e com ele rasga fronteiras. A sensibilidade, a composição, a explosão das cores, a sua exuberância. O bestiário de Malangatana é único, os seus duendes, os seus espíritos, as suas vozes, o seu imaginário inesgotável e fascinante. Os seus monstros. Ninguém sai incólume desse universo. Ninguém sai o mesmo depois de mergulhar naquele mundo encantado de Malangatana. Malangatana é um fabuloso contador de histórias. É um encantador encantado. Um ser humano impressionante. Um gigante. Um homem soberbo. A sua arte revela isso mesmo. O seu génio incrível. Incomparável.

Não conheço outro caso, no que se refere a Moçambique, de um talento tão brutal e ingente como o de Malangatana, convergindo para uma panóplia de expressões e encantamentos. Pintor, escultor, poeta, cantor, dançarino. Antes foi tudo: pastor de gado, aprendiz de nyamussoro, criado, apanhador de bolas. Desde os anos 60, a sua arte irrompe para além do seu universo particular. Com José Craveirinha, Rui Nogar e Luís Bernardo Honwana é preso político. No pós-independência cumprirá o opróbrio da expiação revolucionária, em Nampula, com o Rui Nogar. É preciso não deslembrar os excessos que se cometeram. A amnésia por vezes assalta-nos, principalmente nos dias de hoje em que vivemos nos antípodas daquele tempo de todas as exabundâncias.

Nunca o vi ressabiado, nunca o vi amargurado, nunca o vi alvitrando em desfavor de ninguém. Lembro a sua imensa generosidade. Lembro a sua bondade. Lembro a sua alegria de viver e, sobretudo, a sua disponibilidade. Lembro-o inquieto com tantos projectos. Os sonhos gigantescos que tinha. Como a sua casa de Matalana, que lembra o sonho de Antoní Gaudí – a Sagrada Família, em Barcelona. Obra impossível de ser concluída pelo autor. Obra para o futuro de todas as incumbências. Falava-me, sempre que me encontrava, do que estava a fazer. Partilhava o seu mundo. Era um ser único. Na sua companhia sentíamo-nos iguais a ele e, só depois, apartados daquela presença exuberante e colossal, poderíamos realizar que estivéramos perante um verdadeiro gigante. Precisávamos de distância para perceber isso.

Creio que o que perdura daquele ano de 2006, no qual celebrámos, jubilosamente o Mestre em vida, é a associação Kulungwana, que ele tanto acarinhou. Ali, muitas vezes, na estação, à porta da galeria, revendo aquelas imagens do tempo, dos últimos dez anos, reencontro aquela figura possante, aquele homem extraordinário, aquele artista generoso, com a saudade de um grande amigo, provavelmente esquecido e sem merecer o cuidado e o carinho que deveriam merecer os nossos maiores – os intérpretes da moçambicanidade. A Pátria tem disto. Já não me queixo. Assinalo apenas. A Pátria pratica a disjuntiva quando se trata dos seus melhores, é displicente, quando não disfarça o incómodo, pratica o dissenso em relação a eles. A Pátria apela à mediania. Revê-se nela. Com um júbilo escancarado. Gosta de disjungir quando se trata dos seus génios. Como se o facto de os possuir fosse uma dádiva de que dispuséssemos sempre.

Os portugueses, entre outras coisas, baptizaram um avião com o nome de Malangatana. Quando vejo a aeronave que rasga os céus com o nome do nosso mais importante pintor, assalta-me um misto de alegria e tristeza. Alegria por o ver reconhecido, tristeza por sê-lo longe da Pátria. Mas não me resigno perante os dislates. É preciso cauterizá-los. Sem proselitismos, nem maniqueísmos. Acho que, sete anos depois da sua morte, lembrá-lo aqui é importante. Lembro-o não só como o amigo com quem tive o privilégio de conviver, de falar e de ouvir, de admirar a sua soberba arte, mas sobretudo como o maior pintor moçambicano – quiçá o maior pintor africano – do século XX.

Aquele dia 22 de Março de 2003 em que ele desenhou duas amplas páginas do meu álbum Malangatana, com o meu filho vigilante e maravilhado, no seu colo, sorvendo, ele e eu, vagarosamente, aquele inesquecível gin tónico, terminou tardíssimo. Já passava das 22 horas quando fui escoltá-lo até à sua casa. Já era tarde demais para deixar o Mestre Malangatana Valente Ngwenya, depois de um belo gin tónico, andar, sozinho pela estrada fora, ainda que no seu belo e velho Mercedes Benz.

 

“Onde entra o desporto, sai a doença” – esta é uma frase de Samora Machel quando se referia à necessidade de todos os cidadãos se preocuparem com a prática desportiva.

Com a sua voz “metálica”, o carismático líder lançou a primeira edição dos Jogos Desportivos Escolares, marcou presença em partidas internacionais no Estádio da Machava e recebeu na Ponta Vermelha vários desportistas após sucessos desportivos. Num gesto de reconhecimento por um talento da terra que fez furor em Portugal, o Presidente recebeu Eusébio da Silva Ferreira, conferindo-lhe um passaporte diplomático.
Foi também sob sua Direcção que se lançaram bases para a internacionalização do nosso desporto, com o surgimento do Comité Olímpico e as Federações Nacionais. Além disso, foi o mentor do programa “Correr é Saúde”, que motivou talentos, distribuindo rádios “xirico” e viciando muita gente para a prática da actividade física.

Assunto de Estado
Apesar das imensas preocupações com os multifacetados problemas da Nação recém-independente, Samora Machel considerava para si próprio obrigatória a prática regular de exercícios físicos, estendendo como “orientação”, essa sua paixão aos quadros dirigentes do País.

E muita gente se envolvia. Em período de grande exaltação política, os jogos-grandes na Machava e as inesquecíveis noites de basquetebol no Maxaquene, funcionavam como um tónico revigorador para as jornadas laborais e, ao mesmo tempo, instrumentos de verdadeira moçambicanidade.

A força e o interesse dos então dirigentes do país pelos grandes jogos da Selecção Nacional, lotavam os camarotes. Samora dizia que várias vezes tinha vontade de ir aos grandes-jogos, mas só não o fazia por causa da movimentação protocolar que a sua deslocação obrigaria. Chegou, certa vez, a abreviar um discurso de encerramento na então Assembleia Popular, porque se apercebeu que os deputados estavam todos de corpo presente, mas com o pensamento no Moçambique-Zaire que se realizaria poucas horas depois.

Ai que saudades! O desporto era mesmo um assunto de Estado. Mexia com todos. A união dos moçambicanos em redor dos objectivos desportivos nacionais, a verdadeira auto-estima, eram uma realidade, diferentemente do que hoje vemos, em que o pensamento reside mais no Marquês de Pombal ou em Camp Nou do que no Zimpeto.

Porquê esta tão grande subalternização ao que é nosso? E se a alta competição não tem qualidade, como se propala, como explicar a tão gritante falta de acompanhamento de pais e tutores nos dias em que as nossas crianças “correm para a saúde”?
Termino com o extracto de um dos maiores pensadores e líderes que o mundo conheceu, relativamente ao desporto. Disse, Nelson Mandela: “no desporto, só perde quem o não pratica”!

 

A Barragem de Cahora Bassa sobre o Rio Zambeze, na província de Tete, a maior barragem em volume de betão construída em África e o maior empreendimento português, forma a quarta maior albufeira africana1 com 2700 km² e uma profundidade média de 26 metros2  1969 é o ano de início de construção, protegida pelos Batalhões de Caçadores Pára-quedistas portugueses 31 e 32 e o seu enchimento inicia em Dezembro de 1974.

A  Hidroeléctrica  de  Cahora  Bassa  é  a  sociedade  que  administra  a Barragem,   uma   sociedade   anónima   inicialmente   detida   em   82%   pelo Estado português em 18% pelo Estado Moçambicano.

A Barragem de Cahora Bassa foi um dos assuntos presentes nos Acordos de Lusaka e ficou albergado no Contencioso Colonial.

Em 1986, o Presidente Samora Machel, , em visita a Songo, deixou   a seguinte inscrição comemorativa:

“Esta maravilhosa obra humana do género humano constitui um verdadeiro hino à inteligência, um promotor do progresso, um orgulho para os empreiteiros, construtores e trabalhadores desta fantástica realização. Cahora Bassa é a matriz do desenvolvimento do Moçambique independente. Os trabalhadores moçambicanos e portugueses, fraternalmente, juntando o suor do  seu trabalho e dedicação, garantem que este empreendimento sirva os interesses mais altos do desenvolvimento e prosperidade da R.P.M. Moçambicanos e Portugueses consolidam aqui a unidade, a amizade  e solidariedade cimentadas pelo aço e betão armado que produziu Cahora Bassa. Que Cahora Bassa seja o símbolo do progresso, do entendimento entre os povos e da paz no mundo”.

A 31 de Outubro de 2006 o Estado português vendeu 3 parte da sua participação passando a deter apenas 15% do capital, sendo os restantes 85% passando a caber ao Estado moçambicano.

A cerimónia de reversão do empreendimento para Moçambique foi realizada na vila do Songo, a 28 de Novembro de 2007. Tive a grata felicidade de estar em lugar destacado nesta cerimónia.

A 9 de Abril de 2012, Portugal vendeu os restantes 15% da participação que detinha, por 74 milhões de euros.

Em palavras tão cantantes quanto as da proclamação da insurreição geral armada, feita pelo Presidente Mondlane, em Setembro de 1964 ou as pronunciadas pelo Presidente Samora Moisés Machel na Proclamação da Independência, a 25 de Junho de 1975, o Presidente Armando Emílio Guebuza disse:

“É  com  muito  júbilo  que  nos  dirigimos  ao  Povo Moçambicano, do Rovuma ao Maputo e do Índico ao Zumbo, depois deste acto histórico marcado pela assinatura, com  o  Governo  Português, do  Protocolo  de  Reversão  e Transferência do controle da Hidroeléctrica de Cahora Bassa para o Estado Moçambicano. Este acto remove do nosso solo pátrio o último reduto, marco da dominação estrangeira de quinhentos anos.

Este protocolo simboliza, assim, o rompimento com o passado e o alvorar de uma nova era nas relações entre os nossos dois países, impregnadas de esperança e expectativas. Em razão deste simbolismo político, a Hidroeléctrica de  Cahora Bassa  foi sempre, como todo o processo que conduziu à nossa libertação, um assunto nacional, um assunto de todos e de cada um dos moçambicanos. Foi neste contexto que em toda a nossa Pátria Amada se vinha celebrando a reversão deste empreendimento, desde a assinatura do Memorando de Entendimento, em Novembro de 2005, como a nossa segunda Independência Nacional.

Este sentimento explica, assim, a impaciência pública para com a demora na conclusão do processo negocial que produziu o presente protocolo. Essa impaciência era articulada por cidadãos, profissionais da comunicação social, dirigentes e membros de partidos políticos e de organizações da sociedade civil bem como por amigos de Moçambique e do seu Povo. Estávamos conscientes que para se chegar a este acordo teríamos que passar por um processo negocial longo, complexo e nem sempre fácil. Porém, sempre acreditamos que esse acordo não era apenas necessário para o reforço das relações entre os nossos dois países. Acreditamos, sobretudo, que esse acordo era possível e, a sua conclusão, irreversível. Esta esperança e convicção, bem como a nossa crença na boa-fé do Estado Português informaram a nossa persistência e a manutenção da necessária flexibilidade para a exploração das opções e das modalidades para a conclusão do texto final.

Gostaríamos neste momento solene, de saudar, muito vivamente, a todos os trabalhadores e gestores da Hidroeléctrica de Cahora Bassa que, desde a primeira hora, asseguraram, com afinco, dedicação e profissionalismo, a operação e manutenção deste empreendimento, em circunstâncias, nalguns casos, adversas. Saudamos, igualmente, as equipas técnicas e ministeriais que, na mesa das negociações, souberam usar do seu saber, experiência e tacto diplomático para que o protocolo fosse concluído, satisfazendo Moçambique e Portugal.

Queremos,  em  particular,  reconhecer  o  empenho pessoal e consequente de Sua Excelência o Senhor Primeiro- Ministro, o Engenheiro José Sócrates, neste processo negocial. Ele assumiu, com muita coragem e sentido de Estado, o desafio que o dossier HCB representava para Moçambique e Portugal e agiu com a necessária serenidade para que, hoje, juntos aqui estivéssemos para abrir uma nova página nas nossas relações de amizade e cooperação. A reversão deste estratégico património para o Estado moçambicano marca o início de uma nova fase para o nosso belo Moçambique, tendo em conta o seu reenquadramento na matriz da nossa Agenda Nacional de Luta contra a Pobreza. O controlo deste empreendimento, por parte do nosso Estado, vai impulsionar o projecto de electrificação rural em curso, criando assim condições para a melhoria da qualidade de vida de muitas mais comunidades moçambicanas. Ao mesmo tempo, este protocolo potencia a implementação, no nosso Moçambique, de diversos projectos de consumo intensivo de energia eléctrica, capazes de criar riqueza, gerar postos de trabalho e impulsionar o surgimento de outros empreendimentos de igual ou menor dimensão.

Ainda  no  contexto  da  luta  que  travamos  contra  a pobreza, nesta rica Pérola do Índico, o protocolo ora assinado, cria condições para que no futuro que se avizinha, Moçambique tenha uma maior disponibilidade de energia para as suas necessidades e para acorrer às necessidades da Região. A passagem do controlo da HCB para o  Estado Moçambicano abre grandes perspectivas para o desenvolvimento do sector energético nacional, conhecidas que são as nossas potencialidades energéticas, particularmente no Vale do Zambeze. Assim, com a HCB, sob o nosso controle, podemos, igualmente, não só assegurar a consecução dos compromissos com os nossos parceiros mas também alargar o espaço das relações comerciais e de cooperação que com eles estabelecemos. O presente protocolo que cria uma nova estrutura accionária da HCB, consubstancia a  amizade  e cooperação que têm caracterizado as relações entre Moçambique e Portugal. Neste momento histórico da vida deste empreendimento, queremos exortar, uma vez mais, a todos os trabalhadores para que saibam valorizar as conquistas alcançadas.

Devem, por isso, continuar a assumir uma postura de maior responsabilidade, disciplina e respeito pelas normas laborais. Temos plena certeza que neste ambiente de trabalho será possível optimizar este empreendimento para alcançar cada vez mais altos níveis de produção e de produtividade no sector. O período de transição que agora se inicia e que vai terminar depois do pagamento, por parte do nosso Estado, de todos os valores devidos e plasmados no Protocolo, representa um grande desafio para todos os gestores e trabalhadores da empresa. A eles cabe a tarefa de assegurar que  todas as acções decorram num quadro de normalidade de funcionamento, dentro de um ambiente de tranquilidade, transparência, serenidade e de respeito mútuo. Exortamos a empresa a continuar a observar os compromissos assumidos com os seus parceiros internos e externos.

Do mesmo modo que temos estado empenhados na valorização da nossa Independência Nacional, o controle da Hidroeléctrica de Cahora Bassa não é um fim em si, mas, isso sim, um meio para acelerarmos o nosso passo rumo ao almejado bem-estar dos moçambicanos.

O desafio que temos pela frente é de continuar a conceber e a realizar programas de desenvolvimento dos recursos humanos, pois é no homem e na sua capacidade de compreender e assumir os novos desafios da Nação, em que devemos apostar. Temos igualmente que potenciar a HCB para se juntar aos outros viveiros nacionais de quadros de empreendimentos futuros, tendo em conta que grande parte dos nossos recursos energéticos ainda estão por ser explorados, em pleno.

Moçambicanas, Moçambicanos Cahora Bassa já é nossa!”

“Cahora Bassa ja é nossa” tem sido um tema bastante caro que tem sido colocado quando estudamos o Património Público e a Intervenção do Estado, no âmbito do Direito Financeiro e Finanças Públicas e do Direito Económico, respectivamente.

Recorrendo  à   Constituição  da  República  de  Moçambique, particularmente no seu Artigo 98, tem-se entendido que constitui Propriedade do Estado “os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas interiores, no mar territorial, na plataforma continental e na zona económica exclusiva (…)” e que, nos termos do mesmo artigo, “constituem domínio público do Estado: (…) as zonas de protecção da natureza, o potencial hidráulico, o potencial energético (…)” cujo regime jurídico deve ser regulado por lei com respeito pelos princípios da imprescritibilidade 4 e impenhorabilidade5”.

O património do domínio público ou apenas domínio público, em sentido amplo, caracteriza-se pelo o poder de dominação ou de regulamentação que o Estado exerce sobre os bens do seu património (bens públicos), ou sobre os bens do património privado (bens  particulares de interesse público).

O regime jurídico o património dominial caracteriza-se pela inalienabilidade, imprescritibilidade e que, como tal, é impenhorável  e não hipotecável6 e inapropriável individualmente, mas de fruição geral da colectividade7.

A ideia de que a reversão da Hidroelétrica de Cabora Bassa consubstancia uma segunda independência foi feliz e bem elegantemente justificada.

A  reversão  da  Hidroelétrica  de  Cabora  Bassa  e  a  declaração  da plenitude da independência, momento em que se passou a ser detentor da soberania total sobre o território, parecia indicar que ela seria um bem público e que a meta era caminhar-se, à medida das condições financeiras da Nação, para, finalmente, vir a terreiro proclamar: “Moçambicanas, Moçambicanos, Cahora Bassa já é 100% nossa!”

Isso, quando já totalmente livre das mãos privadas.

O anúncio de mais uma abertura de capital da Hidroelétrica de Cabora Bassa a mais mãos privadas não pode senão espantar porque não estava contemplada no Orçamento do Estado de 2017, no Plano Económico e Social de 2017, nem em qualquer programa mais plurianual que se usa neste solo pátrio.

Mais do que o Estado moçambicano (infelizmente), a Hidroelétrica de Cabora Bassa tem todas as capacidades de tomar de empréstimo qualquer valor que precisa para as operações de reinvestimento para produzir mais energia e receita.

A Hidroelétrica de Cabora Bassa podia ter optado, entre outras, pela mais fácil e imediata medida: emitir obrigações, em vez de abrir o seu capital a privados.

No Notícias de hoje, dia 6 de Dezembro de 2017, na primeira página, anuncia-se: “Iniciado processo para Venda de acções da HCB”.

Perguntas, das várias possíveis só estas: em que Assembleia Geral foi essa decisão tomada? Quais os fundamentos? Porquê esta solução e não outras? Quem pode ter acesso a tais acções e porquê? Porquê o anúncio tão em cima da data da operação? Não teria sido mais interessante que os moçambicanos tivessem tempo para se organizarem? Como foi preparada a operação bolsista antes de se fazer o anúncio? Como se garante que os que detentores de informação privilegiada não sejam admitidos?

Há mais dúvidas do que as perguntas que devo, hoje, ocultar, com uma  certeza: Esta  operação  é  tão prejudicial  para  as  gerações  vindouras quanto qualquer jamais feita na nossa Pérola do Índico.

Afinal, a nossa segunda independência está em qualquer praça, a ser vendida a retalho.

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1  Depois de Assuão, Volta e Kariba.

2  Com uma extensão máxima de 250 km em comprimento e 38 km de afastamento entre margens.

3     Por 760 milhões de euros tendo sido a última tranche paga a 27 de Novembro de 2007.

4    Os bens de propriedade do Estado, bem como os bens que, embora pertencentes a particulares, estejam sujeitos a limitações administrativas, constituem o chamado domínio público. O conceito de domínio patrimonial corresponde ao direito de propriedade do Estado sobre os bens públicos, os quais estão sujeitos a um regime administrativo especial. Tal regime especial impõe que tais bens são inalienáveis, imprescritíveis, impenhoráveis e não oneráveis. Ressalte-se que a característica da imprescritibilidade dos bens públicos, é aquela segundo a qual estes são insusceptíveis de prescrição aquisitiva, ou seja, de aquisição por usucapião.

5    A impenhorabilidade é a característica de defesa, prevista em lei ou pela jurisprudência, contra a penhora de bem imprescindível à pessoa executada por dívida apesar de se aceitar que a mesma não seja absoluta, sendo oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, laboral ou de outra natureza, com algumas excepções.

6    WATY, Teodoro Andrade, Direito Financeiro e Finanças Públicas, WEditora, 2011, pp 237-245.   7 MEIRELLES, Hely Lopes,   Direito Administrativo Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 522.
 

Na sua mensagem à Nação no tocante ao desporto, Filipe Nyusi, numa passagem meteórica e pouco aprofundada, referiu que ao longo do ano, o país participou em competições internacionais e arrecadou, no total, 62 medalhas das quais 13 de ouro, 20 de prata e 29 de bronze. Foram assinados 64 contratos-programa, a nível central e provincial, cujo financiamento contribuiu para a formação de 1.069 agentes desportivos, a nível central e provincial. Os Jogos Escolares, que contaram com a participação de 1.386 alunos, foi outro ponto mencionado.

E mais não disse!

Tal como noutros sectores da vida nacional, é natural que as gentes e os agentes do desporto estivessem na expectativa quanto “à fatia” que lhes tocava directamente. Neste caso, soube a pouco. Foi uma explanação vazia e pouco desafiante.

Números… Sem enquadramento!

Investimento, contratos-programa, medalhas. O que isso pode representar, comparativamente aos anos passados e que planos e passos se prevêem para o futuro? Numa altura em que no Mundo, o desporto mexe com tudo, mobiliza e motiva a mais trabalho e unidade nacional, o informe do PR o que trouxe de novo?

Entre os 25 milhões de cidadãos que nós somos, quantos se aperceberam, retiveram ou se vangloriaram das vitórias resultantes dessas 62 medalhas de ouro? Que “peso-específico” elas representam no contexto africano ou mundial?

Se o mundo aposta cada vez mais no futebol e Moçambique quer visibilidade não pode ser diferente. Vencer à Zâmbia em Lusaka, seguramente, provocou muito mais festa no país, do que a mão cheia de medalhas que o Presidente mencionou como rescaldo de todo um ano de competição.

De uma vez por todas, importa esclarecerem-nos se a estratégia governamental para o desporto, é a de sermos fortes no meio dos fracos, priorizando competições e modalidades em que o Mundo não aposta.

Ano após ano, nas provas “a doer”, os “rankings” vão colocando o nosso país em lugares cada vez mais subalternos. Depois de Mutola, a visibilidade de Moçambique em Jogos Olímpicos passou a ser uma miragem. Vão-nos valendo as meninas do basquetebol e a “resiliência” no hóquei em patins.

Nos dias que correm, os sucessos e insucessos no desporto são mensuráveis. Mas nós vamos convivendo com as repetidas menções a “balanços positivos”, sempre na ponta da língua de quem dirige e corporiza o nosso desporto, sem leituras realistas, comparativas e com rigor ao lugar que as nossas modalidades ocupam em África e no Mundo.

Até quando iremos satisfazer o nosso ego, fechados num casulo, como se estivéssemos a competir sozinhos com a nossa mediocridade?

Oiço com um misto de júbilo e nostalgia Zena Bacar. Júbilo por celebrar esta voz única da música moçambicana e, indubitavelmente, grande voz da música africana; e nostalgia porque ela desaparece hoje do reino dos vivos, embora seja compelido pelo cliché a afirmar que a magnificência da sua arte está para lá desta circunstância acidental da vida. Oiço estes ritmos, que são ritmos da minha infância macua, uns mais dolentes do que outros, outros tantos mais ritmados, todos eles com uma marca distintiva: a bela, profunda, triste, majestosa e incomparável voz de Zena Bacar. Oiço-a cantar e vejo aquela paisagem onírica, quente e exuberante, de mulheres belas com capulanas garridas, naquela sincronia mágica do tufo, algumas saltando à corda, sempre fascinantes. Oiço Zena Bacar e os Eyuphuro: tufo, namahandja, masepua, djarimane, morro e chakacha. Zena é uma inspiradíssima voz moçambicana que arrebatou o mundo. Levou consigo esta singularidade e transformou-a em algo de uma beleza rara e transcendente. Ela e os Eyuphuro foram dos pioneiros no universo da chamada World Music. Os palcos do mundo não ficaram incólumes ao seu feitiço, ao seu incrível fascínio, à sua arte e à sua expressão única. Ela é, seguramente, a mais universal das cantoras moçambicanas.

Lembro-me, remotamente, de “A muara ya N`rake”, que tocava na rádio, quando a rádio era Rádio Moçambique (RM), nos primórdios dos anos 80. A esposa do senhor N´rake, que põe m’siro e anda a cirandar pela cidade, vestida ao seu jeito, consciente da sua beleza, vaidosa e exibida. A vaidade da mulher macua foi um dos traços essenciais na música de Zena Bacar. Muitas vezes para a celebrar, outras tantas para criticar quando ela significava desvio social. Por isso, ela cantava “Orera kurrera” (alerta para a insensatez que a vaidade provoca). Há muito de lunar, não só na voz de Zena, como nos ritmos e nas letras: “Kihiyeni” (a beleza não significa prostituição, canta ela, eu não minto, repete ela, pôr m’siro na cara não é prostituição, diz a cantora, zangada com esse olhar preconceituoso e a maledicência alheia) ou “Nuno Malani” (mulher abandonada que adverte à filha para as armadilhas da vida ou dos homens; quando a própria filha se vê também abandonada e com uma criança nos braços, ouve a voz da consciência que lhe lembra que, quando a mãe lhe chamava à atenção, ela dizia ninguém me manda, estou-me nas tintas) são paradigmas dessa tristeza, desse lancinante lamento social, dessa mulher vítima da sua beleza e da sua presunção, desse estigma que a beleza macua impõe. “Nuno Malani” tem um balanço e um ritmo e uma beleza e essa exuberância macua. “Kihiyeni” é profundamente melancólica. Profundamente dolente. É de uma beleza dilacerante e dilacerada.

Vivi, entre 1975 e 1980, em Nacala. Aqueles ritmos, muitas vezes dolentes, nostálgicos, profundos e tristes, lembravam-me a minha infância passada naquela cidade com encostas lambidas pela erosão, as ruas de poeira e amendoeiras, o calor obsidiante, o mar incrivelmente verde-azul e as mulheres sempre carregadas, mas caminhando com uma elegância inabalável. A beleza das mulheres que tantas vezes concitaram este meu lado lírico que advém dessa passagem imprescritível por Nacala. A língua macua, os vocábulos muitas vezes ininteligíveis para mim, a entoação, lembrava-me a língua que eu ouvia, naqueles anos em que lá vivi. Quando, nos anos 90, vivia e estudava no estrangeiro, numa viagem a Bruxelas, descobri, na Fnac, o disco Mama Mosambiki dos Eyuphuro. Ouvi-os e exultava com a sua música. Os seus solos de guitarra, aquela acústica, a percussão, as vozes, a pungente e lancinante voz de Zena Bacar. Aquele disco era simultaneamente melancólico e jubiloso. Aquela tristeza era bela e profunda. Aquela voz e o seu lamento social, aquela voz que alertava as mulheres para as contradições do mundo. Eu ouvia obsessivamente os Eyuphuro e orgulhava-me por ouvi-los e saber deles nos palcos do mundo. Oiço-os de novo. Oiço-a de novo. Oiço a Zena Bacar. A belíssima voz da Zena Bacar. A mamã Ana Titos, uma macua de Zavala, bela e hierática, nos seus invejáveis 75 anos, dos quais expendeu 50 em Nampula, traduz-me a beleza intraduzível destas músicas, cujo ritmo sempre me encantou.

Os Eyuphuro, num tempo em que Moçambique era conhecido como o país mais pobre do mundo, quando estava atolado na lama de uma guerra sem solução militar, com moçambicanos refugiados, país assolado pela seca e pela fome, davam uma outra notícia sobre nós ao Mundo, falavam de uma sociedade onde também era possível cantar a beleza, os sonhos, a despeito das insofismáveis contrariedades do quotidiano, mas longe do anátema da violência e da guerra que se nos colava à pele. Os anos 80 têm também, por isso, algo de extraordinário. São anos trágicos e belos, em toda a extensão da contradição que esta adversativa exige. Se, por um lado, foram os anos de extrema violência, de extrema indigência moral e material, onde a guerra atinge os seus insuportáveis limites, onde a provação dos moçambicanos conheceu o estado do inusitado, se por um lado significaram isso, aquela década também foi profícua e proficiente em termos criativos. Não só na literatura, que é o domínio que eu melhor conheço e acompanhei e estudei, mas em outros tantos domínios da criação. Os melhores talentos pós-independência ou emergem ou se afirmam nos anos 80. Foi naquela década que proclamámos os nossos sonhos e foi na mesma década em que os vimos derruídos. A esta distância recordo-me da explosão dos ritmos e canções, das letras e melodias, das experimentações ou caminhos que se fizeram. São muitos os conjuntos que irrompem, as vozes que passam a povoar o nosso imaginário, as propostas, a inovação. A verdadeira explosão da moçambicanidade. De Norte a Sul, de Este a Oeste. Eyuphuro, em Nampula; 1º de Maio (Armindo Salato compôs “Jaqueline”, que foi usado como indicativo pela BBC, num dos programas emitidos em português), de Quelimane; Madala, Romualdo ou David Mazembe, da Beira; e tantos outros que viviam e criavam em Maputo. A Rádio Moçambique desempenhava um papel incontornável. Era a editora moçambicana, por excelência. Os músicos gravavam e registavam lá as suas composições. Mas a RM também criou o seu grupo e albergou algumas das figuras lendárias do cancioneiro moçambicano. A EME, do Eddy Mondlane, e a Movimento,  do Aurélio Le Bon, também têm créditos insofismáveis na afirmação dos nossos músicas naquela década exemplar.

 Era comum ouvir os Hokolókwe, Os Galtons, os Soyus, a Orquestra Marrabenta Star Moçambique, os Alambique, Xigutsa-Vuma (experiência efémera de Simeão Mazuze  – que cantou “Bilibiza”, uma crítica dos campos de reeducação – e Pedro Langa), Ghorwane (fundado por Pedro Langa, em 1983; Roberto Chitsondzo junta-se-lhe em 1984), José Mucavele (belíssimo “Atravessando Rios”), Trio Arão Litsure, Hortêncio Langa e João Cabaço, João Cabaço e a sua comovente “Mamana”, Chico da Conceição (o seu pungente “Ussiwana”), Mingas ou Dulce, Guê-Guê ou Eva Mendonça, os manos Willy e Aníbal, Joaquim Macuacuá (oh, Dadinha!), Fernando Luís (para mim “Maninha” ou a evocação de Bill Cuca, mas do que “Zavala Toté”), Elvira Viegas, Resiana Jaime, ou Elsa Mangue, Filipe Nhassavele, Avelino Mondlane, Chico António, José Guimarães, tantos, tantos. Alguns ganham o concurso Descobertas da Radio France International. Wazimbo, que fora companheiro de Sox, Milagre Langa, Zeca Tcheco ou Alexandre Langa, na banda da RM, emigra, nos anos 80, para o conjunto Orquestra Marrabenta Star de Moçambique. Gravam dois discos na etiqueta alemã Piranha. Yana, que lançara, em 1982 “Que Venham” – eu estava no comício, da Praça da Independência,  quando Samora desafiou o apartheid depois do ataque à Matola: “que venham, que venham, mas que venham depressa!  – , com todo aquele fulgor patriótico, faz uma Orquestra Infantil memorável. Né Afonso, o Tio Turutão, gravaria “Bons Sonhos”. Pedro Bem vai para Portugal, Costa Neto também irá, Childo, outro emigrante, João Paulo, Jimmy Dludlu ou Rosália MBoa para África do Sul, onde vão tantos outros, como Gito Balói (assassinado aos 40 anos à saída de um espectáculo em Joanesburgo), que funda o Tananas e tem grande sucesso nos anos ulteriores, como terá Jimmy Dludlu, nome marcante do jazz africano. Stewart debuta cantando Dany Silva. Ouvia-se Feola ou Magid Mussá. A RM promovia o Ngoma Moçambique, depois da Parada de Sucessos. Fany Mpfumo morre nessa década. Ernesto Ndzevo toca bandolim. Alexandre Langa denuncia a candonga. Fernando Azevedo é uma presença discreta mas decisiva. Xidiminguana canta, viera de outras décadas. A guerra recrudesce. A paz é o sonho de todos. Ana Juliana escreve e canta “Poema para a Paz”.

Quando, no início de 90, oiço os ritmos jubilosos de “Nuno Malani”, composição de Zena Bacar, incluída no disco Mama Mosambiki, lançado pela editora de Peter Gabriel,  Real World, eu exultei. Começara a saga da World Music: os sons maravilhados de África, da Ásia e da América Latina. Os sons do Mundo. Os sons do outro Mundo. Peter Gabriel tinha e tem um registo de activista muito importante e sobretudo combatera o apartheid através da música e do seu activismo. Mama Mosambiki foi dos primeiros discos – o décimo da colecção – dessa onda avassaladora que seria conhecida como a World Music. Antes dos Eyuphuro tinham apenas gravado, na editora de Gabriel, o congolês Tabu Ley Rochereau, então famosíssimo, marido da M´bilia Bel, outra cantora famosa, ou o tanzaniano Remmy Ongala, para falar de cantores africanos. O ugandês Geoffrey Oryema, o congolês Papa Wemba, entre outros, viriam depois, no belo catálogo de Gabriel. Os Ghorwane, com Majurugenta, seriam o disco 29 da mesma colecção. Parece despiciendo, mas quando Peter Gabriel lançou a etiqueta, em 1989, a chamada música tradicional tinha acesso limitado aos mercados internacionais. Na década seguinte, iríamos assistir a uma verdadeira explosão. Buena Vista Social Club, resgatados por Ry Cooder, só seriam possíveis anos mais tarde. Cesária Évora pisa descalça os palcos da consagração mundial.

Peter Gabriel fora o vocalista e líder dos Genesis antes de se lançar numa carreira a solo incrível. Phil Collins iria saltar das baquetas e assumir a liderança após a sua saída. Foi através do disco So, que incluía as músicas “Big Time” ou “In Your Eyes”, que Gabriel se tornaria uma lenda. Aliás, a sua longa parceria com o senegalês Youssou N´dour, com quem canta esta e outros tantos sucessos, é célebre. “Biko” e a campanha pro-Mandela são icónicas na vida e na trajectória de Peter Gabriel. Gimo Remane haveria de compor, curiosamente, uma música intitulada “Mandela”, que não está no disco publicado pelo Peter Gabriel e pela Real World. Não é das melhores músicas de Remane, o autor de “Samukhela”, talvez a sua mais conseguida composição. Curiosamente, Zena Bacar é autora de algumas das mais belas músicas do grupo: “Kihiene” ou “Nuno Malani”, acima descritas, ou as famosas “Yellela” e “Ophentana”.

A biografia de Zena era e continuaria parca. Dela eu sabia o básico, que viera da Ilha de Moçambique, onde nascera em 1949, crescera no Lumbo, tivera uma infância pobre e começara cedo a trabalhar para sobreviver. Estudou pouco e cedo se tornou pescadora. Teve um filho, que morreu, o que foi uma dor até ao fim. Começou a cantar muito nova e foi em Nampula onde se encontrou com Omar Issá, Gimo Abdul Remane, Salvador Maurício, entre outros músicos que viriam a fundar o Eyuphuro em 1981. Isto precisamente nessa década prodigiosa de 80. Em 1984 lançam um primeiro conjunto de composições com título homónimo: Eyuphuro. É desse tempo “Orera Kurrera”. Começam a viajar pelo mundo: Suécia, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Portugal, Alemanha, EUA, Reino Unido. Viajam por África. Zimbabwe, na altura um ponto de encontro importante, entre outros países. Eyuphuro e Zena eram a imagem de Moçambique. O título do disco da Real World é, por conseguinte, de grande alcance: Mama Mosambiki. Zena é isso mesmo: Mama Mosambiki. Não creio que tenha havido uma cantora com a dimensão internacional que ela teve. Se Cabo Verde soube alçar-se na projecção de Cesária e fez da cultura um instrumento de afirmação como país e como nação, como identidade e personalidade, nós fomos incapazes de fazer o caminho aberto por Zena e seu grupo. Nós desperdiçámos Zena Bacar. Não soubemos ser grandes nas pequenas coisas. Procuramos a nossa grandeza onde ela, provavelmente, não existe. Queremos ser grandes onde somos pequenos. Somos pequenos onde deveríamos ser grandes. Muitas vezes somos ufanos naquilo em que somos insignificantes e distraímo-nos perante a nossa magnificência. Zena Bacar cantou genuinamente o seu quotidiano, a sua condição, a condição das mulheres da sua terra e atingiu com isso uma imensa estatura no mundo. Zena cantou Moçambique, simplesmente. Foi uma intérprete da moçambicanidade, uma genial intérprete do ser moçambicano. Foi-o nas pequenas coisas. Aqui está a grandeza das pequenas coisas. É por isso que ela é importante. Essa importância advém-lhe dessa capacidade de ter transformado o seu pequeno mundo num imenso planeta criado pela sua belíssima voz.

Depois de Mama Mosambiki gravam Yellela e um disco comemorativo 25 Anos. Gimo Remane emigra. Entretanto, o grupo dissolveu-se e Zena Bacar passou pelo drama do alcoolismo. Passou pela IURD. A dor insuperável pela morte do único filho não cessa. A doença. Foi uma verdadeira descida ao Inferno. Ainda recuperou. Há muito que eu não tinha notícia dela. Vi-a cantar algures, aqui há tempos, mas era uma sombra daquela mulher que brilhara nos palcos do mundo. Ela redigia, no fundo, com o seu percurso e a sua tragédia, o roteiro pré-existente que conduz a acidentada carreira dos músicos moçambicanos.  Recordo-a aqui, com um misto de tristeza e de júbilo. Tristeza por vê-la partir, aos 68 anos, júbilo por ouvir estas extraordinárias músicas que ela compôs e cantou, por celebrar esta voz profundamente melancólica, muitas vezes dilacerada, exuberantemente bela, majestática, macua, universal e livre, do meu país.

O sono esmoreceu, mas não despertei de imediato. Acordar parecia um caminho longo. Deixei-me estar a meio da viagem, sem compromisso, nem com o sono nem com a vigília. (Como um mineiro antigo, com xidjumbas de anos às costas, que regressa da djoni

para as festas e aguenta, paciente, o demorado percurso até à terra natal).

Fui reconciliando com a vigília. A pálpebra amoleceu. Os olhos já não se fechavam mas também não se abriram. Pareciam duas amêijoas preguiçosas. A luz trespassava a cortina desfiada das pestanas e fui percebendo, meio a sonhar meio a olhar, uma coisa de imponência triangular, a querer distrair-me a visão.

Parecia-me uma palhota. De colmo macio. Enfeitada com cores. Tinha muitas cores, tantas que lembrava uma pirâmide de Gizé exótica, travestida de pirâmide de Maslow.

O sono abstraía tudo. Os enfeites  que coloriam a palhota pareciam pessoas. Muitas pessoinhas. Umas por cima das outras. As da base, magras, músculos tensos e costelas à mostra, suportavam todo o peso. As do topo, rechonchudas, pareciam mais refasteladas. 

Eram camadas de gente. As de baixo lembravam pessoas que andam resignadamente a pé. Por cima destas estava uma camada das que pareciam andar empoleiradas nos chapas. Mais acima, e em menos número, as que suportam o preço do combustível e têm viatura própria. Acima, as que se sentam nos bancos de trás das suas viaturas e são conduzidos. Os mais acima, em número cada vez menor, tinham até barcos e helicópteros. Por cima destes e de todos, com imponência enganadora de uma cereja no topo, o mais gordinho, que pareciam andar de naves espaciais, em poses autoritárias. 

Um mosquito passou-me pelo pavilhão do ouvido com um zumbido irritante. Fez uma gincana de três voltas e meia, descreveu uma espiral desengonçada, entretido com o cheiro azedo da cera dos meus ouvidos. Espanquei-o com uma palmada contra a minha face. O zumbido calou-se. Devo tê-lo acertado em cheio… e eu já estava naquele humor de quem se sente frustrado pelo sono interrompido. Maldito pernilongo. Perturbador de sono alheio. Chupador de sangue dos outros. Parasita…

As pálpebras subiram até meio olho. Ainda pesavam mas agora, sem sono, era difícil mantê-las fechadas. Só fechava para pestanejar tentando, em vão, afastar o resto de sono que ainda me embaciava a visão.

Olhando com a quase lucidez da vigília, percebia que adormecera na cadeira de trabalho. Aquela palhota no meu campo de visão era uma imitação de árvore. Uma árvore de Natal numa montra. As pessoinhas eram os enfeites da árvore. Tinha as luzinhas desligadas em óbvia economia de energia eléctrica.

Estranhamente, no resto do prédio, no resto da rua, no resto da cidade, não se via luzes de Natal, reforçando a ideia de que este fora um ano financeiramente atípico. "Ah, esta crise!" suspirei em pensamento enquanto me ocorria a pergunta que não se quer calar: Será  que vai haver décimo terceiro?

Espanquei outro mosquito que me vinha dar uma picada de bofesta. Ajeitei-me na cadeira de guarda nocturno. Senti as  molas de um bocejo a escancararem-me a boca. Embora fosse noite de Natal, não havia muito por fazer acordado. As pálpebras cederam. Devagarinho. Parti para a longa viagem de regresso ao sono. A imagem da árvore de Natal sem brilho, apagou-se. Adormeci.

 

A meio do terceiro episódio do folhetim, este é interrompido e a voz de um locutor esclarece que o mesmo foi censurado e os seus autores presos, por subversivos. O resto do que seria o tempo do folhetim é substituído pela emissão radiofónica de uma das Conversas em Família, de Marcelo Caetano.

Sá Caetana acha muito bem e aproveita para ler à parte — embora de vez em quando vigie a irmã, para ver se ela continua alheada — a carta em que Basílio Alberto conta a morte de Cosme Paulino.

Ao mesmo tempo vemos que, nu e empurrado pelos amigos, Vicente, se prepara para ser iniciado sexualmente por Camba. Aí recortam-se nos pés os coturnos que sempre usou desde o início e nunca tira e que simbolizam como é um homem “entre”, um homem que nunca pisa inteiramente o chão do presente.

Camba leva-o para off. Só ouvimos os seus assobios de prazer, enquanto os amigos riem.

Dr. Valdez visita Vicente no seu quarto. Este, depois de ter estado sob influência, submetido à provação, resolve sacudir a “possessão” e envergar a sua máscara do Mapiko, que tinha debaixo do catre.

Última cena com o Dr. Valdez. Amélia acaba por se finar, logo depois de ter felicitado a irmã por ter servido uma cerveja ao rapaz.

O chilumi continua a invadir o ciclo-rama.

De modo coral, os criados dão conta das últimas notícias e palram entusiasmados com o espírito do homem novo conquistas do homem novo. Após, o que repartem entre si novos papéis sociais, só Vicente permanece abstraído.

O chilumi “tapou” todo a superfície do ciclo-rama.

Caetana, despedindo-se de Vicente, oferece-lhe num gesto magnânimo o que já não tem: as suas propriedades no Ibo.

Com a mala de viagem e vestida para sair, Caetana relê a carta da sobrinha.

Vicente, bucólico, no seu quarto, mete uns novos coturnos para ficar mais alto e depois senta-se a olhar as imagens do mar que passam no ciclo-rama e que ressoam forte.

Está no seu purgatório, submerso nos seus irreais.

Os criados que julgavam viver no inferno, mudam-se para a casa das manas, julgando que doravante viverão no paraíso. Acendem a telefonia e ouvem um discurso contra os Xiconhocas (1).

Fecham-se as luzes.

E neste momento também eu me calo.

————–

Cantinho, Maria João, O anjo melancólico, Ensaio sobre o Conceito de Alegoria na obra de Walter Benjamin, Angelus Novus, Coimbra, 2002.

    Xiconhoca, no imaginário popular de Moçambique é a má rés, o aproveitador, o vigas que faz ronha e que subverte os processos em seu proveito. Durante uns anos foi símbolo dos sabotadores da Revolução.

É um fenómeno que se sente em grande escala na capital do país: o esvaziamento da cidade, com citadinos a dirigirem-se para a periferia, onde uns residem e outros mantêm um espaço, só para “curtição”. Tudo começa à sexta-feira. A cidade vai ficando aos poucos deserta, com a movimentação de automóveis a fluir praticamente em sentido único. Disso se ressentem as mercearias, restaurantes, casas de espectáculos, museus e até a venda de jornais e revistas.

Novas rotinas

Dificilmente o maputense quebra esta sua nova rotina, perante um qualquer chamamento, mais ou menos importante. E a sociedade vai-se habituando, pelo que toda e qualquer cerimónia que solicite a presença dos madalas, tem que ser apontada para segunda/terça ou quarta, pois o fim-de-semana tem outras prioridades…

O desporto ressente-se, e muito, desse novo fenómeno. Ao contrário do que acontece pelo mundo fora, em que há cidadãos que fazem excursões, partindo de lugares longínquos com dois ou mais dias de antecedência para apoiarem e vitoriarem o seu clube e as suas estrelas, por cá os adeptos, mesmo a caminho do estádio, podem ser com relativa facilidade “desviados”para uma sessão de “três-cem” ou algo parecido. Daí que nem os Barcelona Legends ou a final da Taça o motivem a abandonar “a sua quinta”.

O Moçambola põe a nu essa grande diferença entre Maputo e o resto do país. E que não se pense que isso só acontece com o futebol. Recentemente, um Torneio Internacional de Basquetebol, englobando equipas angolas que são a nata de África, foi jogado com as bancadas às moscas. O mesmo se passou no excelente Nacional de boxe, com participantes de todo o país, música e entretenimento.

Idem no disputado Nacional de futebol de salão. E com se não bastasse, era tudo com entradas… mahala!

Que explicação? As respostas mais comuns remetem-nos para a fraca qualidade do espectáculo.

Será só isso?

E se os mais velhos ainda se podem escudar no facto de terem vivido outro nível de emoções, o que dizer dos novos, que preferem senti-las virtualmente, quando o mais sensato seria eles próprios descerem ao terreno e serem protagonistas da melhoria do nível geral do nosso desporto, ao invés de críticos da qualidade da sua geração e aduladores do que lhes é projectado através dos pequenos ecrans?

A auto-estima, de que tanto se fala, só terá “pernas para andar”, quando soubermos e pudermos recuperar valores que já tivemos e que em pouco mais de três décadas tendem a desaparecer.

Sabor longínquo, sabor acre

da infância a canivete repartida

no largo semicírculo da amizade.

Rui Knopfli

 

Quando o descobri, fortuitamente, na minha adolescência, o seu nome não era referido nem a sua obra aludida. Vivíamos um tempo de equívocos que advinham de excessos de zelo e de exabundantes acções purgativas. Quatro décadas depois, estamos nos antípodas – na contracosta. A despeito, nunca duvidei de que estava perante um poeta moçambicano, um soberbo poeta moçambicano, aliás. A sua obra poética atestava-o. O seu excurso jornalístico e a ensaística também. Fora dos primeiros a haurir aquilo que viria a ser a poesia moçambicana. Cartografara o que considerara os primeiros “tentames da poesia de raiz marcadamente moçambicana”. Se também era português? – que problema havia nisso? T.S. Eliot, para citar apenas um poeta que lhe era próximo, era simultaneamente grande poeta americano, onde nascera, e grande poeta inglês. Há muitos casos de escritores ou poetas bi-pátridas. Eu, intuitivamente, reivindicava-o. Rui Knopfli era, indubitavelmente, poeta moçambicano. Proclamei-o nas páginas literárias da época onde me afoitava. E fazia quezília nisso. Passadas estas décadas, parece tudo pacífico. Naqueles tempos exacerbados, não o foi. Quando o li, com espanto e revelação, um manto de silêncio cobria-lhe o nome. Aqui e lá. Autor de uma obra complexa e provocatória, ninguém sabia onde ela cabia. Para mim, sempre coubera e sempre caberia na estante da literatura moçambicana.

Sou, por conseguinte, knopfliliano, como uma data de poetas moçambicanos o são. Muitos o leram, citaram-no ou glosaram-no. Outros tantos explicitamente dedicaram-lhe versos, poemas, livros. No livro O Ritmo de Presságio, o poema “Como os outros”, de Sebastião Alba, é dedicado a Rui Knopfli. De Heliodoro Baptista, “À volta das origens”, do livro A Filha de Thandi, poema dedicado a Rui Knopfli e Eugénio Lisboa, estabelece com o poeta de O Escriba Acocorado, um diálogo explícito. Leite de Vasconcelos, no poema “Receita para uma infracção”, do livro Resumos, Insumos e Dores Emergentes começa dizendo: “Toma nas mãos uma manga/ dessas que verdes o Knopfli sente”. Jorge Viegas, em O Núcleo Tenaz, dedica o poema “Circulo de Sombra”, um dos seus mais belos poemas, a Rui Knopfli. Luís Carlos Patraquim é absolutamente knopfliliano. Não só no poema “Muhípiti”, do livro Vinte e Tal Novas Formulações e Uma Elegia Carnívora, mas em toda a sua obra, onde se estabelece um diálogo intertextual subtil com o poeta da Ilha de Próspero. O título País de Mim, de Eduardo White, de 1989, é uma alusão ao País dos Outros, de 1959, de Rui Knopfli. Ou o imaginário da ilha e da viagem. Guita Jr., um dos nomes cimeiros do projecto “Xiphefo”, em Inhambane, é também declaradamente knopfliliano. “Vilankulo by night” dialoga com um poema epigramático de Mangas Verdes com Sal.

Foi através de Reino Submarino (1962) que eu cheguei à poesia de Rui Knopfli. Aquele livro iria marcar o meu destino poético. Foi ele que respondeu ou deu expressão às minhas inquietações literárias. Vivi um tumulto, difícil de descrever, que se desencadeou em mim perante aquela poesia eclética, discursiva, provocadora. Sem esta poesia, à qual devo muito, à qual devo tudo, eu não seria o pouco que sou hoje. Foram os poemas elegíacos, foram aqueles que mais me impressionaram desde logo: “A Menina do Retrato”, “Encontro”, “Monólogo”, sobretudo “A Uma Criança Longe”: “Escrevo-te estas palavras/ sabendo que as não lerás” ou ainda: “A morte é isso, é acabar/ simplesmente, não acontecer mais.” Este é um dos poemas que mais remotamente recordo aquando da minha iniciação poética de Rui Knopfli, um poema dolorosamente biográfico, dedicado à filha.

Rui Knopfli: “Nada me auxiliam as lágrimas/ que me salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a consciência/ da tua cada vez maior ausência. / E teu pequeno corpo moreno, / que nem todo o meu amor aquece, / é um palmo de ternura/ que apodrece.”

Este livro dedicado à memória da filha é atravessado por esse tom pungente de versos elegíacos. O poema “Pequena Elegia” termina com estes versos que nunca me esqueci: “Inteira, a tua morte/ viaja dentro de mim.”. O livro tem outras elegias, como aquela dedicada ao poeta Reinaldo Ferreira, que morreu em 1959: “O que na vida repartiu seu poema/ por alados guardanapos de papel, / o criador de sonhos logo perdidos/ na berma dos caminhos, / o mago que pressentia o segredo/ da beleza perene”. Deste livro destaco ainda o poema “Adeus Xico”, uma dolorida memória da juventude, poema que eu declamei inúmeras vezes. O poema é uma longa homenagem a um companheiro de juventude morto aos trinta anos. Ainda hoje quando recordo este texto, oiço os acordes da Patética, a famosa sinfonia de Tchaikovsky que o poeta cita profusamente no texto. Seria, porém, “Winds of change” e “Velho Colono”, dois dos mais reveladores poemas deste livro, que me acompanhariam, mais frequentemente, ao longo destas décadas de convívio apertado e quase quotidiano com a poesia de Rui Knopfli.

Rui Knopfli: “Sentado no banco cinzento/ entre as alamedas sombreadas do parque. / Ali sentado só, àquela hora da tardinha, / ele e o tempo. O passado certamente, / que o futuro causa arrepios de inquietação. / Pois se tem o ar de ser e o passado, / os dois ali sentados no banco de cimento. // Há pássaros chilreando no arvoredo, / certamente. E, nas sombras mais densas/ e frescas, namorados que se beijam/ e se acariciam febrilmente. E crianças/ rolando na relva e rindo tontamente. // Em redor há todo o mundo e a vida. / Ali, está ele, ele e o passado, / sentados os dois no banco de frio cimento. / Ele, a sombra e a névoa do olhar. / Ele, a bronquite e o latejar cansado/ das artérias. Em volta os beijos húmidos, / as frescas gargalhadas, tintas de outono/ próximo na folhagem e o tempo. // O tempo que cada qual, a seu modo, / vai aproveitando.”

Citei o poema na íntegra. Aqui está já o grande poeta que se iria revelar, na plenitude, no livro Mangas Verdes com Sal (1969), antes de Máquina de Areia (1964) e, muito antes,  do iniciativo e provocatório País dos Outros (1959). Apetecia-me citar na íntegra também o “Winds of change”. “Passam. Passam/ e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de nada.” Li-o até à exaustão. Poema actualíssimo. Mas há outros poemas extraordinários neste livro. Como “Fim de tarde no café”. Como tantos outros.

A segunda obra de Rui Knopfli que eu li foi esse inigualável Mangas Verdes com Sal, o livro da plenitude, provavelmente o seu mais belo livro. Recordo-me de poemas e versos que me ficaram para sempre na memória. Do poema “Não obstante”: “nunca escrevi versos que não fossem de amor”. Ou “o meu Paris é Joanesburgo”, do poema “À Paris”. Ou o poema aforístico “Progresso”: “Estamos nus como os gregos na Acrópole/ e o sol que nos mira também os fitou. / Mas fazemos amor de relógio no pulso.”

Durante anos impressionou-me o poema “Aparição”, li e reli “Hackensack”, que cito no frontispício do Maputo Blues e, como o título revela, é uma referência a Thelonious Monk, um dos mitos do jazz. Seria, aliás, Rui Knopfli quem haveria de me iniciar nos segredos e nos prodígios do jazz, em Londres, numa ocasião inesquecível, onde fomos ouvir uma banda que tocava Duke Ellington, nas margens do Rio Tamisa. Citei  afanosamente o poema “Velasquez”, diante de “Las Meninas”, no Prado”, lembrei-me dos versos: “Só de perto te apercebemos: é de baixo/ que os gigantes te miram”. Li e reli “A Descoberta da Rosa”, declamei “Mangas Verdes com Sal”, glosei “Lembranças do futuro”: “só os poetas têm lembranças do futuro”, comovi-me com “Praça Sete de Março”, exultei com “Disparates seus no Índico”, pilhei versos como em “Contrição” ou consignei ao futuro a minha escolha da melhor poesia moçambicana do século XX o título “Nunca Mais é Sábado”.

O mito da ilha como tema central da poesia moçambicana devemo-lo a Rui Knopfli e ao seu roteiro belíssimo sobre a A Ilha de Próspero, uma edição inicial de 1972, que li emprestada, só obtendo, mais tarde, a partir de uma ulterior edição, esta obra que também tem influência, não só no meu labor poético como no entendimento de um eixo imprescindível da lírica moçambicana, a que dedicaria o livro A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas, incumbência de Luís Bernardo Honwana, que eu e o António Sopa concretizámos no âmbito da nossa participação na Expo de Sevilha, em 1992, onde aliás eu iria estar com Rui Knopfli, Rui Nogar e José Craveirinha.

Rui Knopfli: “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto do minarete, / Alá – o grande saca! – sorria/ aos tímidos versos bem comportados/ que eu te fazia”. Este livro é notável, uma alquimia perfeita entre texto e imagem, com fotografias belíssimas do poeta. Eu diria que o livro tem uma origem remota, no poema “Ilha Dourada”, que vem no seu livro de estreia O País dos Outros:  “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. /Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na / voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade. / Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento”.

Rui Knopfli: “Servidor incorruptível da verdade e da memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis/ de ignomínia e acusação” – começa assim o poema “Proposição”, que termina: “A História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.” O poema seguinte chama-se “Pátria” e foi glosado por outros tantos poetas, entre os quais Heliodoro Baptista ou Luís Carlos Patraquim. “As árvores chamavam-se casuarina, / eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também/ tinham nomes por que era costume designá-los”. O poema que mais me impressionou neste livro O Escriba Acocorado foi “As Imagens Quebradas”. “Uma última vez percorro a cidade no dia/ em que começa a minha morte. Reconheço/ estes lugares apesar da mudança e a sua / esquiva familiaridade roça-me as tolhidas/ asas da memória. Aqui escrevi. Naquela // sombra imaginei. Entre uma e outra coisa, / vivi. (…) // Caminho// pelos lugares queridos, sem tristeza, nem mágoa, / altas, condoídas árvores, lagos serenos escorrendo/ de meus olhos, hálito azul da tarde que, por cair, / de sombras vai tranquilizando o horizonte. Só, / meu coração, bate contra a pedra e o silêncio.” Duas décadas depois, no derradeiro O Monhé das Cobras, de 1997, ao ler o poema “Aeroporto” recordar-me-ia das “imagens quebradas” que se tinha impregnada em mim de uma forma indelével. Publicara antes, em 1984, o livro O Corpo de Atena (1984) no qual recupera um belíssimo poema – “Notas para a regulamentação do discurso próprio”, inicialmente dado a conhecer nos cadernos Caliban, que promoveu com o poeta João Pedro Grabato Dias. Caliban, que reeditei com a sua anuência e o entusiasmo do saudoso José Capela, que assegurou a empreitada, foi uma revista eclética e reveladora.

Ultrapassado o engano dos anos do silêncio, lemo-lo, cultivamo-lo e amamo-lo. Citamo-lo e glosamos a sua obra. Há hoje teses universitárias, há livros evocativos, os poemas circularam, na medida do possível. Tive o privilégio da sua amizade. Visitei-o em Londres e em Lisboa, acompanhei-o em Maputo. Tenho dele lembranças inesquecíveis e, sobretudo, cultivo a sua poesia com desvelo desde a adolescência. No seu derradeiro e belíssimo Monhé das Cobras, Rui Knopfli haveria de prever o fim num texto derradeiro e premonitório. “O Cair do Pano”: “É Dezembro/ a encurtar o tempo, o pouco tempo que nos sobra”. Nascido em Inhambane, a 10 de Agosto de 1932, morreria em Lisboa a 25 de Dezembro 1997, aos 65 anos, passam agora 20 anos.

 

Eu (…) ouço o que você não diz

Eefje de Visser

Na verdade, o excerto retirado da música “Afdwaalt”, do álbum De koek, de Eefje de Visser, diz-nos, a certa altura: “Eu só ouço o que você não diz”. Retiramos o “só” na frase da cantora holandesa porque, além de ouvirmos o que não é dito, igualmente, conseguimos perceber o que nos é colocado à escuta, no caso, em dois álbuns de grandes autores da música moçambicana: Caminhos, do saxofonista Otis, e In the Groove, do guitarrista Jimmy Dludlu. Quer num quer noutro, predominantemente preenchidos pela componente instrumental, temos a prova indelével dessa necessidade de se recriar a tradição, enquanto um conjunto de valores e de traços identitários que fazem de um património algo comum.

Sem deixarem de ser artistas além-fronteiras, capazes de se exporem ao mais alto nível, Otis e Jimmy Dludlu, em cada última aparição discográfica, sublinham que há uma matriz cultural, no caso, mais do Sul do país, sobre a qual se alicerça o sentimento e a imaginação do músico. E, quando agem desta maneira, assumem o poder da representatividade de cada um que reencontra um momento de si nos ritmos tocados. Por exemplo, no álbum Caminhos, constituído por 12 títulos, Otis devolve-nos as emoções de “Elisa wê”, que nos lembram outros autores esquecidos nesta amnésia colectiva. Mais do que recriar esse clássico da música moçambicana, o saxofone ressuscita contextos sociais, desafiando a capacidade de a memória lembrar como “Elisa wê” torna-se um hino popular a sobreviver tanto às vicissitudes do tempo.

No mesmo diapasão, na música “Kensani”, do In the Groove, Jimmy Dludlu vai recuperar os sentidos da felicidade e da bênção para celebrar o que de melhor a vida/ Deus tem a oferecer. À imagem de Otis, em Jimmy o verbo também é escasso. Ainda bem, pois, logo se vê, fica salvaguarda a beleza causada pela combinação dos instrumentos, ao mesmo tempo que se ouve e percebe-se porque Isabel Novella é das vozes mais autoritárias do país.

Ainda em In the Groove, o carácter alegre de Jimmy Dludlu vem ao de cima a partir de “Masseve”, uma música feito pêndulo a oscilar entre o reconhecimento de se ter beneficiado de coisas boas e o eterno agradecimento. Esta é um som de palco, cheio de imagens coloridas, dessas mulheres nossas que dançam tanto quanto abanam o traseiro, sem receios, como quem vibra em euforia.

Em “Pom”, do disco Caminhos, acto contínuo. Com uma sonoridade a motivar uma dança feita de satisfação, ali ouve-se o que não é dito, mas sugerido de outro modo, afinal, a falta da palavra nada tem a ver com silêncio opaco. Longe disso, a instrumental faz-nos procurar o verbo, os predicados e um provável autor da música original. Encontrando ou não, ficamo-nos na certeza de a música ser de todos, como se, individualmente, tivéssemos contribuído para a sua existência. Tal como nesta primeira música, na última do disco, “Nkosi sikelel’ Africa”, Otis faz com que mergulhemos no que há muito está inserido num cancioneiro popular, dos moçambicanos, por um lado, e do continente inteiro. Este é um som mais pausado, introspectivo e cheio de muita carga emocional. Tudo propositado, que nestas coisas de lidar com a tradição a catarse também é algo importante. Quiçá, desta maneira, o saxofonista quis nos conduzir a uma descoberta de nós próprios como parte de um continente que cada vez mais precisa ser cantado.

Enquanto Otis deixa de ser festivo na sua recriação, quando introduz “Nkosi sikelel’ Africa”, no Caminhos, por tocar um tema sério, num tom grave, Jimmy Dludlu continua festivo em “Ha deva”, mesmo retratando um assunto austero. Sem dúvidas, Jimmy vai buscar essa música para contar que, à imagem do passado, muitos de nós nos esquecemos de que a vida é efémera para todos e que ninguém vai partir com os bens adquiridos na terra.

Portanto, Otis e Jimmy Dludlu, ao recriarem parte da tradição musical moçambicana, adicionam à nossa música a dimensão universal que muitas vezes nos falta. Além disso, cada um dos artistas faz do seu respectivo álbum um conservador de memória colectiva, revitalizando sempre a nossa arte popular. Quem me dera, depois disto, pudesse ver estes dois tipos no mesmo festival de jazz, em Maputo.

 

 

 

Foi na semana das exonerações. Antes do comunicado das novas nomeações. Havia um brilho diferente no sorriso das pessoas. Tudo parecia merecer polimento especial e muita graxa.

Abri os olhos. Os lençóis espalhavam-se como um mar de ondulação rebelde. Laurinda, deitada de bruços, abraçada ao travesseiro, também abriu os olhos. Afastou os longos fios de cabelo postiço esparsos pela cama, que lhe estorvavam a visão. Olhou para mim como se dissesse "bom dia" com o olhar. Um forte cheiro a cabeleireiros misturou-se ao aroma doce e azedo daquelas axilas suadas. Sorriu. Deixou cair e levantou devagarinho, as pálpebras, quando fez com os lábios uma careta de beijinho. Respondi-lhe com um piscar de olho e um sorriso contido. Ela riu-se, três gargalhadas floreadas, daquele riso sem sentido de amantes, projectando da boca há muito fechada, uma lufa seca e o doce vinagre do hálito.

Olhei para o telefone. Nenhuma chamada que desse indícios da notícia de promoção. A luz da janela dispersava-se na cortina quieta e reduzia nos sapatos que a Laurinda me descalçara, com carinho, há pouco. A graxa daqueles sapatos lembrava o projecto que eu tinha em manga, para quando fosse nomeado: elevar a engraxa à modalidade desportiva prioritária, dada a proliferação de talentos. Poderia também prosperar como modalidade  artística e um dia, quem sabe, ser  reconhecida como património  cultural. Assim, passaria a haver workshops e exposições de engraxar sapatos, ao mesmo tempo que se realizariam jogos escolares, campeonatos províncias ou até nacionais, de engraxar.

— Assim como o samba no Brasil, engraxar vai passar a ser o nosso carnaval… — acrescentava Laurinda, a principal das minhas sucursais conjugais, demonstrando perspicácia e maturidade política.

— É, é — concordei, acariciando demoradamente a longa pêra grisalha que me confere estilo, muito importante para a projecção da minha imagem.

— Este país  é  de muitos recursos. Temos de saber aproveitar — Concluí, espreitando o telemóvel sempre à  mão. Nenhuma chamada.

—  Temos de explorar as nossas vocações naturais, cimentar a nossa identidade e progredir como nação — apimentou Laurinda, aproximando-se, ajeitando a cabeça no meu ombro e encaixando-se no meu abraço. Eu gostava de ouvi-la enquanto sentia as unhas postiças acariciarem-me os tufos crespos do peito.

— … e  institucionalizar-se a engraxa. Mais do que arte ou desporto, será a nossa maneira de estar — senti o meu tom de voz a crescer, com confiança de quem já discursa num conselho de ministros. Laurinda abraçou-me, certamente encantada com o discurso.

— Vai se engraxar mais do que sapatos. Vai se engraxar pessoas. Ficaremos todos engraxados, bonitos… e implementaremos a engraxa ao nível dos  municípios… as casas ganharão brilho… as cidades… e o país todo. E, num futuro próximo, exportar esses valores… e sermos uma referência desportiva mundial: campeões olímpicos da engraxa. 

— E como é  que a engraxa resolveria o problema das calamidades naturais? — Laurinda achegou-se mais. Agora passava as unhas pela minha barbicha. Agravei a voz, espreitei o telemóvel, e respondi:

— Engraxando os doadores para que doem cada vez mais. As calamidades são uma fonte de receita. Com mais  doações resolveríamos até a crise.

— E os turistas viriam cá só para se deixar engraxar… Eh eh eh.

— Engraxado… quero dizer, engraçado, por sermos um país  se engraxadores, até poderemos engraxar as nossas dores.. 

— … e esse pode ser o teu slogan, quando te candidatares: o candidato que engraxa dores.

— Eh eh eh… gosto do teu faro. Por isso se diz por trás de um grande homem há uma grande mulher. 

— Mas eu não estou atrás, estou por cima de ti, amor — virou-se para mim. Primeiro com o olhar, a cabeça, depois o corpo todo fazia peso sobre mim.

— eh eh eh… 

— hi  hi hi…

— Agora vem cá. Há quanto tempo não engraxas?

— Hmmmm!!!

— Hi hi hi…

— Meu engraxador…

— Minha engraxatriz…

No telemóvel, nenhuma chamada…

 

 

Francesc  Macià – na sequência das eleições municipais ganhas pelos republicanos e perante o facto de o rei se ter exilado (refira-se que o ditador Primo de Rivera, que governara  a Espanha entre 1923 a 1930, demitira-se um ano antes e se exilara em Paris) -,  declarou, a 14 de abril de 1931, a República Catalã,  que teve uma existência efémera. Seria presidente da Generalitat, num governo provisório desde 28 de abril do mesmo ano e depois eleito pelo Parlamento da Catalunha desde 14 de dezembro até à sua morte a 25 de dezembro de 1933, quando foi sucedido por Lluís Companys, que também pertencia à esquerda republicana radical. Recordo-me dos anos desta república, tão bem cartografados pelo escritor irlandês Colm Tóibín, na sua “Homenagem a Barcelona”, no dia em que foi proclamada, uma vez mais, a República da Catalunha. Não é, por conseguinte, a primeira vez que se declara a República Catalana. Em 1641 fora Pau Claris a fazê-lo; em 1873, Baldomer Lostau; em 1934, haveria de ser Lluis Compays, companheiro de Macià, a proclamar o mesmo. Se Lostau declarou um “Estado Catalão”, Macià içara a bandeira de uma república dentro de uma Federação ibérica e Companys um Estado Catalão dentro da República Federal Espanhola.

Os breves anos da República Catalã, dos anos 30 do século passado, são vistos como verdadeiros anos de ouro para a Catalunha e, sobretudo, para Barcelona. Pau Casals, que chegou a ser considerado o maior violoncelista do mundo, chamou-lhe “um verdadeiro Renascimento cultural”. O governo de Macià tornou oficial a língua catalã, abriu os cordões à bolsa e aumentou as despesas na saúde e educação, e planeou fazer a expansão da emblemática cidade de Barcelona. Para tal, Francesc Macià convida o lendário Le Corbusier. O arquiteto francês, de origem suíça, haveria de pronunciar sobre Barcelona uma frase igualmente lendária: “Por fim”, disse ele, “num ponto vivo do planeta, os tempos modernos encontraram um refúgio.”

Miró, o grande Joan de Miró, regressou de França. Havia uma nova atmosfera na cidade. Também lhe atraía o novo regime. Quando foi organizada, em princípios de 36, uma mostra da obra nova e vanguardista de Pablo Picasso, exposição que acolheu mais de 8 mil visitantes, Miró falou, como aliás o fez Salvador Dali. Esta inauguração foi transmitida ao vivo pela rádio. Picasso vivera em Barcelona na juventude.

A língua catalã que, como língua literária havia sido soterrada durante mais de trezentos anos, readquire nacionalidade. Um engenheiro que se tornara filólogo dedica-se a estabelecer as suas normas ortográficas. Em 1932 publica um dicionário com o apoio do Estado. A educação em catalão é, a partir dos anos 30, influente. Surgem manuais e coletâneas de textos na língua que se consagra. Uma nova geração de poetas catalães, influenciados pela poesia francesa e inglesa, evitando, quase sempre a influência castelhana, irrompe e se afirma.

Pau Casals, que nascera em Vendrell, na província de Tarragona, terra natal de Antoni Gaudí (o grande arquiteto de Barcelona, que projetou a Sagrada Famíla, entre outros marcos da cidade) e Miró, seria, naqueles anos, provavelmente, a figura cultural mais influente da Catalunha. Os seus concertos, sobretudo para as camadas sociais desfavorecidas, são a expressão maior da legenda daqueles anos fulgurantes da República Catalã. A sua carreira e o seu destino iriam ser destruídos, no entanto, pela Guerra Civil, que eclode em 1936.

O poeta andaluz Federico Garcia Lorca, que também viu o seu destino ser traçado, de forma trágica, pela Guerra Civil, teve o seu nome, no Bairro Gótico, dado a uma rua nos anos da guerra. Lorca chegou a Barcelona, pela primeira vez, em 1925, pela mão de Salvador Dali, que conhecera em Madrid. A década seguinte seria de uma paixão fulminante pela cidade catalã e pelas suas gentes.

Federico Garcia Lorca: “Barcelona é diferente, não é? Aí temos o Mediterrâneo, o espírito, a aventura, o grande sonho do perfeito amor. Há palmeiras, pessoas de todos os países, anúncios extraordinários, torres góticas e uma maré urbana intensa. (…) Que prazer foi para mim conhecer essa atmosfera e essa paixão. Não estou surpreendido por a cidade se harmonizar comigo, porque me entendi maravilhosamente com tudo aí e a minha poesia foi recebida de uma maneira que, na realidade, eu não merecia (…) E não apenas isso, mas eu, que sou um catalanista ferrenho, simpatizo muito com o que este povo fez, e estou cansadíssimo de Castela.”

Repare-se: “E estou cansadíssimo de Castela.” Margarita Xirgu, grande atriz catalã, irá representar peças do dramaturgo andaluz. “Mariana Pineda” terá cenários idealizados por Dali. Lorca expõe os seus desenhos na mesma galeria que expusera a obra de Miró e Dali. Isto nos finais dos anos 20. Em 1932, depois de publicar Um Poeta em Nova Iorque, regressa à cidade. É um poeta consagrado. Fala, recita poemas, os seus poemas são cantados, os poetas catalães recitam em catalão.

Quando, em 34, estreia a peça Yerma, em Madrid, vivem-se tempos conturbados. Lluis Company, que substituíra Francesc Marcià, falecido em dezembro de 1933, está em confronto com Madrid e declara a Catalunha como República independente: “Liberal, democrática e republicana”. Nesse mesmo ano emerge a figura de Francisco Franco, que reprimira a sublevação nas Astúrias a 6 de outubro de 1934. É visto como o salvador da pátria em relação ao comunismo. Margarita Xirgu (que acolhera em casa Manuel Azanã, ex-primeiro ministro, ao sair da prisão, acusado de apoiar sublevações em Espanha, é posta debaixo de fogo). A imprensa da direita ataca a peça de Lorca. No ano seguinte, Xirgu leva à cena Yerma, em Barcelona, enquanto a esquerda se prepara para as eleições no ano seguinte. As filas para as bilheteiras são enormes. São formadas desde muito cedo. Federico García Lorca falará no fim do espetáculo, numa sala completamente apinhada de gente. Elogia a cidade, elogia Margarita Xirgu e o seu trabalho. Xirgu sobe ao palco e diz: “El meu cor és amb vosaltres. Visca Catalunya!” (O meu coração está convosco. Viva a Catalunha). É o delírio.

A peça andaluza de Lorca percorre as aldeias catalãs e serve o fervor nacionalista. O poeta é famoso em Barcelona. Bodas de Sangue é a peça seguinte. Lorca está apaixonado pela cidade. Convive em Montjuic com os ciganos, gosta de ir comer na zona do porto, gosta de ouvir canções e danças andaluzas nos bares do Barri Xinès. Bodas de Sangue é um sucesso. Em dezembro de 35, Margarita Xirgu leva à cena outra peça de Garcia Lorca, Doña Rosita la Soltera.

Em fevereiro de 1936 chegam as eleições. Manuel Azaña, que fora acolhido por Margarita Xirgu, regressa ao poder. Exonera Francisco Franco do Ministério da Guerra e envia-o para as Canárias, em março do mesmo ano. Lluis Company, que fora derrotado na sua peleja com Madrid e exilado de Espanha, retorna, no mesmo mês de março de 36, a Barcelona. É recebido em apoteose. Consegue aprovar a sua reforma agrária. Pede a Pau Casals que toque a “Nona Sinfonia”, de Beethoven, nas escadarias do Palau Nacional de Montijuic, como este fizera, para Francesc Marcià, em 1931.

 

Casals não completará mais do que os três primeiros movimentos da sinfonia. A 17 de julho de 1936 começara a sublevação militar no Protetorado espanhol de Marrocos. A 18, Franco avançava a caminho de Marrocos. Começaria, assim, em termos cronológicos, a Guerra Civil Espanhola. A 19 de agosto de 1936, o poeta Federico Garcia Lorca é assassinado em Granada. Nos meses que se seguiriam, Barcelona seria destruída. Terminavam, de modo trágico, os breves e intensos anos de ouro da República Catalã. 

 

As crianças e jovens que nasceram neste tempo em que a maioria dos pais ou mesmo os professores pouco se sentem motivados em dispensar uma parte das suas rotinas para se fazerem presentes na real formação/educação dos continuadores, está pagar uma factura da qual não tem culpa.

Está provado e comprovado que na componente desportiva, é a partir de um investimento sério apontado para a quantidade, que se pode chegar a uma elite, isto é, à qualidade. É assim em todo o mundo e era assim por cá, com provas e resultados mensuráveis, constantes dos arquivos.

Uma simples e atenta leitura comparativa aos “rankings” trazem-nos essa realidade.

Algumas práticas no esquecimento

É verdade que não adianta muito chorar “após o leite derramado”. Importa, isso sim, equacionar os reais motivos pelos quais na alta roda do desporto, no pós-Mutola, o Mundo deixou de se lembrar da nossa existência.

À geração actual, porque se perderam algumas boas práticas, com as quais nem chegaram a conviver, recai a menor dose de culpabilização. O “boom” de tudo se conseguir com “boladas” e “corta-matos”, acontece em praticamente todo o mundo. Porém, a nós, vitimou-nos de forma particular uma razão muito objectiva: abrimos a porta ao veneno, subestimando o contra-veneno!

Tudo começou com a venda dos recintos desportivos que abundavam, negociados sob a capa dos mais multifacetados motivos, ao mesmo tempo que outros espaços eram “dumbanenguizados”. Nas escolas, os campos foram “rentabilizados” para dar lugar a mais salas de aula.

Que maior machadada à tão propalada massificação desportiva, poderia acontecer? Os hábitos salutares de movimentação dos meninos e meninas nas escolas, nos bairros e nos clubes, entraram em desuso. O passo que se seguiu foi o da priorização de outras coisas, a maior parte delas nocivas à saúde e bem-estar.

Pirâmide invertida

O “edifício desportivo”, antes apoiado numa pirâmide de base ampla e com competições regulares, foi sofrendo uma inversão, até ao que hoje se assiste: movimentação infantil e juvenil faz-de-conta, porque sem regularidade. Os Jogos Escolares são o melhor exemplo: joga-se dois meses, de dois em dois anos. O resto…

Como agora inverter, ou dar passos nesse sentido, num cenário tão difícil?

1. Adaptando-nos às novas realidades, há que “salvar” os espaços ainda disponíveis, mobilizando a criançada com incentivos adequados aos novos tempos.

2. Os pais e encarregados de educação têm que ganhar consciência de que o desporto, para lá dos craques que pode gerar, é um preventivo para doenças como a obesidade e as diabetes, antes exclusivas nos idosos, mas que hoje atacam a juventude devido à pouca mobilidade.

3. Se bolas e campos são indispensáveis, há que haver interesse para os utilizar. O que hoje se assiste é os meninos irem às movimentações massivas em busca das camisetes, numa altura em que os papás estão mais preocupados com as visitas às barracas, praias ou centros comerciais, claramente as prioridades que povoam as suas cabeças. Esquecem-se que no “tempo da outra senhora”, há pouco menos de meio século, vivia-se por cá uma real massificação. Os resultados então obtidos, quando comparados com os de hoje, envergonham-nos a todos!

Apesar de tudo…

Graças a alguns resistentes – os ditos carolas – vamos esporadicamente obtendo pálidos triunfos na arena africana. Poucos, mas bons, dirão alguns. Mas se a prática desportiva, nas nossas vidas, se transformasse num assunto verdadeiramente de Estado, como noutras paragens, quanto benefício obteríamos?

Desporto dá saúde e prazer. Citando Nelson Mandela: “no desporto, só perde quem o não pratica”!

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado//
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,//
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram

Mário Quintana

 

Não chamamos sermão às ladainhas dadas habitualmente pelos padres nas missas. Embora sem excluir a relevância daquele palavreado, sobretudo para os mais devotos, aqui, ampliamos o conceito para toda uma tentativa de se fazer da palavra cantada um bálsamo, que alivia e cede a receita capaz de prevenir a dor, no caso, sensação que inicia de um ser e, quando se perde o controlo, esbanja-se na colectividade. Esse bálsamo suave, misturado com sermões didáticos/ pedagógicos, tem um substantivo próprio: Kwiri, título do álbum de estreia de Roberto Chitsondzo, lançado com um livro à laia de uma biografia e outras coisas.

Em Kwiri, disco constituído por 14 músicas, umas muito conhecidas, outras nem por isso, ao estilo “bom rapaz”, Chitsondzo brinca de ser um modelo de vida, ora dando lições ora investindo em sermões, sem falar em Deus e nem no Pecado, mas citando poetas no sentido mais vasto desse significado. Assim, temos um músico a dar voz à escrita, imortalizando autores como Leite de Vasconcelos e Ungulani Ba Ka Khosa, ao apropriar-se de textos como “Custa dizer amor” e “A solidão do senhor Matias”. No primeiro caso, mantendo o título original do poema, canta versos como quem reza, criticando o facto de a doença do ódio existir tão vigorosamente. É uma música que nos conduz, igualmente, ao “Progresso”, de Rui Knopfli, na mesma proporção que nos desperta para repensarmos a forma como lidamos com o amor (no segundo caso, “Waxukuvala”, até é interessante discutir os sentidos de apropriação cultural do europeu em relação às tradições bantu, bem retratados em Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa).

Bem visto, o amor é um tema recorrente neste CD. Veja-se, por exemplo, o caso de “Kwiri”, música que cede o título à obra, na qual temos, com recurso constante às transferências de significado que geram metáfora, um carinho de filho para mãe. A este nível, mais uma vez de forma delicada, o músico faz do sermão uma arma ao serviço social. Afinal, num contexto em que a mulher continua a ser violentada a nível doméstico, cultural e social, em vários cantos do mundo, uma ode é sempre pouca. O amor é umbrella do segundo tema do CD, “Lirandzo”, e ainda o encontramos em “Timpondho”, com azedume, porque, de vez em quando, é necessário ser-se carrancudo, maltratar o cenho e dar um Stop nas acções. Quem disse que o dinheiro pode comprar uma mulher? Até pode pagar a fruta na Araújo, Bagamoyo para os mais novos, mas não compra uma mulher. A quinta música de Kwiri explora este campo, lembrando-nos que a mulher compra-se, como quem diz, com amor.

Na verdade, como se espera dos sermões, nesta atmosfera não religiosa¸ os de Roberto Chitsondzo, neste CD, longe de serem longos, repetitivos ou exaustivos, são, à medida certa, moralizantes; despertam consciências e orientam um percurso, no qual as pessoas podem caminhar de mãos dadas, com a convicção de que o amor, a paz e a liberdade são a tríade indispensável para o bem-estar, o que se constrói com uma memória comum. Deve ser por isso que o músico inclui “Freedom” e “Samora” nesta aparição, enaltecendo heróis e seus martírios, mostrando-se anti-violência, seja de que ordem for: assaltos, assassínios (“Hafa”) ou guerras (“Golfo”).

Com efeito, Kwiri é um álbum diversificado em termos de conteúdo. Se, por um lado, temos sermões que nos motivam a dar um beijo na velha cujo maior feitiço foi o de nos ter gerado e criado, enaltecendo o amor, desvalorizando o materialismo, virando as costas à violência, por outro, Roberto Maximiano Chitsondzo aconselha-nos a fazermos da escola um jardim e de cada criança uma flor. Na verdade, o artista está a dizer-nos para não crescermos, porque, sendo imberbes, estaremos sempre dispostos a aprender e a fazer do mundo um lugar hospitaleiro. Este é o teor de “Dondza”, de uma alma que se esgota a exprimir o melhor de um coração feito de sonhos e esperanças.

 

Título: Kwiri

Autor: Roberto Chitsondzo

Editora: Khuzula

Classificação: 16

(Para Miguel Buendia, meu amigo, meu irmão)

 

O dia 16 de Dezembro de 1972 calhou num sábado, como acontece este ano. O massacre de Wiriamu poderia, naquele dia ignóbil, ter sido apenas mais uma página negra esquecida ou ignorada para sempre, como outras tantas que permanecem no sepulcro do desconhecimento e da ignomínia. A coragem dos Padres de Burgos que o denunciaram trouxe-o para a ribalta internacional, quando um jornal britânico concedeu capa e deu destaque a esta história, no mesmo momento em que Marcelo Caetano, que chefiava então o regime português, estava de visita a Grã-Bretanha. Escusado será dizer que Portugal negou e tentou desmentir aquele facto irrefutável, tendo inclusive promovido uma campanha para desacreditar Adrian Hastings, antigo missionário em África, que relatou o massacre, na edição de 10 de Julho de 1973 do The London Times. Peter Pringle, enviado a Moçambique pelo Sunday Times para investigar o massacre, produziu um corajoso e decisivo testemunho. Mustafah Dhada, historiador nascido no Buzi, em Moçambique, e professor universitário na Califórnia, publicou um estudo intitulado O Massacre Português de Wiriamu, no qual faz a anatomia deste acontecimento trágico. Pringle assina o prefácio da edição inglesa, que foi incluído na sua tradução em língua portuguesa.

 

Peter Pringle: “Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes de Wiriamu, incluindo mulheres e crianças, no largo principal da povoação, e ordenaram-lhes que batessem palmas, que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, os soldados abriram fogo. Os que escaparam às balas foram mortos por granadas. Incitados pelo brado “Matem-nos a todos”, os militares levaram o morticínio a quatro povoações vizinhas ao longo do Rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabwe (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como “a terra esquecida por Deus”. No final do dia, perto de 400 aldeãos tinham sido mortos, e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias ateadas pelos soldados com o capim que cobria as palhotas.”

 

Usaram os mais hediondos argumentos: conspiração internacional, Wiriamu não existia, invenção dos padres, ficção. Marcelo Caetano estava de visita a Londres para a comemoração dos 600 anos da aliança Luso-Britânica. Para além dos jornais e das notícias sobre a brutalidade do regime que representava, tinha manifestações nas ruas de Londres. Os padres não esmoreceram. Hastings foi até às Nações Unidas. Quando fez o seu testemunho e a sua denúncia, tinha Marcelino dos Santos na assistência. Vicente Berenguer e Júlio Moure apresentam-se, em Londres, nas instalações do London Times, a 6 de Agosto de 1973, e afirmam que conhecem a localização exacta de Wiriamu. A história era verdadeira. Eles não só conheciam o terreno, como as vítimas. Berenguer tinha cruzado com os fugitivos e sobreviventes perto de Wiriamu. Mais do que isso, ele e os seus colegas tinham participado no estabelecimento do relatório que tinha fornecido os elementos à denúncia promovida por Hastings. Há meses, numa entrevista de despedida, 50 anos depois de Moçambique, Vicente Berenguer falou também de Wiriamu.

 

Vicente Berenguer: “Após o massacre, eu, juntamente com o padre Ferrão e o padre Sangalo, fizemos um relatório que foi publicado pelo padre Hastings em Inglaterra. Isto criou uma polémica, mas Marcelo Caetano, mesmo assim, desmentiu os factos. (…) Viajámos para vários países europeus para expor as atrocidades cometidas pelo regime colonial contra o povo moçambicano”.

 

Conheci Vicente Berenguer através de Miguel Buendia, outro protagonista desta história destemida. Há mais de vinte anos, perguntei ao meu amigo Miguel algo sobre esta história e ele foi lacónico e sóbrio, sublinhando o papel de Adrian Hastings. Próprio de um homem admirável, de um homem probo, de um protagonista que não procura a ribalta. No entanto, foi Miguel Buendia, vim a saber mais tarde, que, correndo o risco de ser preso – estavam presos uma data de missionários – levou os documentos clandestinamente de Moçambique para Espanha, quando recebeu, ele e o padre Moure, ordens de expulsão, em Fevereiro de 1973, do território moçambicano. O padre José Camba, que fizera 200 km de Chimoio, a pretexto de se despedir dele, ao entregar-lhe  o subscrito disse-lhe: “Miguel, leva isto para Espanha. É sobre Wiriamu.”

 

A acção dos Padres Brancos e dos Padres de Burgos era incómoda para as autoridades coloniais. Eles estavam do lado da justiça, da liberdade, da dignidade dos moçambicanos. Não o afirmavam, mas apoiavam e tinham linhas de contacto com a FRELIMO. Eram a defesa da população que sofria as atrocidades do regime colonial. Estes padres tinham chegado a Tete, que até 1962 pertencia à diocese da Beira, por via de um convite do Bispo D. Soares de Resende. A Igreja iria tornar-se num agente transformador da sociedade, sobretudo através da acção das ordens dos Padres de Burgos, na diocese de Tete. A actividade deles, sobretudo a sua formação de cidadãos, é crucial. Veja-se o testemunho deixado no jornal Notícias pelo Padre Vicente Berenguer, em Julho. Muitos deles foram presos, outros tantos interrogados e expulsos. Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete, chegou a ser preso.

 

Mustafah Dhada: “O papel da Igreja no massacre de Wiriamu não é singular, nem simples. Uma das razões que o explicam prende-se com o surgimento de uma liderança senciente disposta a deixar-se moldar pelo ardor da experiência vivida. Soares de Resende, o novo bispo, mudou o rumo da igreja de Tete. Felizmente, a escassez de sacerdotes em Portugal permitiu-lhe seleccionar padres que considerava adequados às necessidades de Tete sob o seu episcopado. Daqui resultou um grupo de sacerdotes “importados” extremamente diversificado e ecléctico, que assumiu as responsabilidades inerentes à sua missão com grande seriedade e acolheu uma vida de isolamento nos lugares mais recônditos de Tete como um trunfo para a construção de uma comunidade de crentes socialmente activa. Os Padres Brancos e os Padres de Burgos notabilizaram-se neste tipo de trabalho: os primeiros, graças à sua experiência sacerdotal em África, e os segundos, devido à sua formação e experiência com paróquias assoladas pela pobreza em Espanha franquista e pelas suas personalidades individuais.”

 

O massacre ocorreu a 16 de Dezembro de 1972. O primeiro artigo a denunciá-lo surgiu no The London Times a 10 de Julho de 1973. Segue-se-lhe um verdadeiro terramoto  sobre o regime português, incapaz de ganhar na frente de guerra – em Moçambique havia perdido na famosa campanha Nó Górdio, apesar de afirmar o contrário -, mas estava em perda em outros importantes teatros de guerra. Esta denúncia abriu uma frente diplomática importante para a causa da libertação. A 25 de Abril de 1974, menos de 1 ano após aquela denúncia de Adrian Hastings, com base no relatório e na acção dos Padres de Burgos, o regime cai em Portugal. Perdera na frente de batalha, com a luta de libertação em direcção a Manica e Sofala – foi, aliás, com base na acusação de que os wiriamu davam cobertura aos combatentes no seu avanço para Sul que perpetraram este e outros massacres – e perdera na frente diplomática, que ganhou outro impulso com esta revelação e permitiu desacreditar Caetano e Portugal.

 

Domingos Kansande, antigo aluno de Vicente Berenguer e protegido de Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete, cruzou-se com o horror quando naquele sábado ia de visita a Wiriamu onde iria reencontrar a sua amada. Kansande elaborou a primeira lista das vítimas. O relatório teria, por assim dizer, vários autores. Foi inicialmente redigido pelo padre Ferrão com ajuda de duas freiras. Os Padres de Burgos protegeram-no, dado que ele tinha sido preso e levaram adiante a missão de denúncia. Os dados mais importantes do acontecimento são conhecidos desde 1972: o número de mortos, o local, as causas – o facto de ser um corredor dos combatentes na sua marcha para a frente Manica Sofala – e aqueles que o perpetraram.

 

 

Mustafah Dhada: “O padre Catellá serviu-se engenhosamente dos dois protagonistas do conflito para servir a sua Igreja. Enrique Fernando recorreu à sua escrita para registar situações de violência em massa e, ao mesmo tempo, defender os direitos dos mais pobres. Alfonso Valverde de León não descansou enquanto não expôs o que considerava ser a verdade nua e crua. Miguel Buendia tinha a habilidade de convencer os colegas mais indecisos a tomarem uma posição apresentando os argumentos adequados com ardor e paixão. Dividido entre o medo e a fé, o padre Ferrão registou o número de mortos na sua lista de vítimas, enfrentando o risco de prisão. Entre eles estava também o padre Berenguer. Os seus truques de magia conquistaram a lealdade dos rapazes mais novos da sua paróquia. A sua calma aristocrática permitiu preservar a consistência da história apesar das tentativas dos detractores para ferir a sua veracidade. O mais excêntrico de todos talvez fosse o padre Sangalo, filho de um toureiro e um ás ao volante de uma Suzuki. O seu dom para travar amizade com representantes da autoridade em pleno território inimigo salvou a sua vida e a de uma testemunha, o que acabou por inverter o rumo da contranarrativa promovida por Portugal.”

 

Mustafah Dhada recorre em O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972 (originalmente The Portuguese Massacre of Wiriyamu in Colonial Mozambique, 1964-2013) a uma aturada investigação, consulta diversas fontes, consegue relatos das vítimas e dá voz aos sobreviventes, manuseia uma profusa documentação escrita. Para além de ser uma obra importantíssima para a demanda da história deste massacre e uma denúncia documentadíssima do mesmo, este livro é um pungente hino aos que nele (no massacre) pereceram, uma denúncia exemplar do regime português, que nunca se retractou, e um hino comovente ao futuro.

 

Dos protagonistas desta história soberba conheço e sou amigo de Miguel Buendia. Através dele conheci Vicente Berenguer. Quando o vi partir, em Julho, senti que todos nós devíamos uma homenagem nacional não só a ele – Vicente Berenguer -, mas a todos os que denunciaram corajosamente o massacre de Wiriamu. A história e os relatos da saga dos moçambicanos são ainda registos lacunares. Talvez por isso se cometa, muitas vezes, a injustiça da omissão. Aqui está uma página exemplar e luminosa da nossa história recente escrita pelos Padres Brancos, pelos Padres de Burgos e pelo padre Adrian Hastings –  pelo Bispo D. Soares de Resende muito antes – e tantos outros, como os jornalistas que a imprimiram e lhe deram um destino global. O país deve-lhes um tributo. Eu quis lembrar-me de Wiriamu, lembrando-me deles. Do muito que lhes devemos.

 

 

Agarrou a cabeça. A culpa pesava. A primeira reclusão de um culpado é a consciência. Por isso levou a mão à  cabeça que é onde estava, supostamente, a consciência.

Ainda ouvia o eco da voz desesperada do comparsa a cochichar, do outro lado da linha: "Estamos tramados! O caldo entornou. E agora? O que faremos? Alô… alô…"

Não respondeu, precavendo-se de possíveis escutas. Ficou sem reacção enquanto digeria, amargamente, a nova. O telemóvel, na mão, encostado ao ouvido, escorregou. Escapou da Palma. Bateu no ombro, na cintura, num móvel próximo e fez "pah!" dramático quando se esparramou pelo chão. 

Tal como a consciência, tudo começou a pesar. O ar tornou-se espesso, a dificultar-lhe a respiração. O corpo também pesava, como se lhe tivessem pendurado nos ombros uma mochila com todo o dinheiro das dívidas ocultas, em moedas! Cedeu, sentou-se na cama. Apoiou os cotovelos nas coxas. A cabeça, com o peso da culpa, precisava de um guindaste. Afundou entre os ombros e apoiou-se nas palmas das mãos. Os dedos furavam a carne flácida das bochechas. Sentiu, entre os cílios das barbas, o suor do rosto a inundar as mãos já húmidas. Suspirou, exorcizando a consciência. Deitou-se como se, pelo descanso do corpo, pudesse repousar a culpa. Voltou a suspirar, levantou-se. Não havia posição que desse. Levou as mãos à cabeça. Desarrumou o cabelo para reorganizar os cacos das ideias. O suor molhava as roupas de dormir e inundava os lençóis. Pensou em Deus. Quis rezar. Desistiu quando se lembrou que Deus só é bom para os bons.

Fechou os olhos para procurar uma luz no pensamento. Via tudo escuro. Abriu. Continuava escuro. Pensou em telefonar aos amigos influentes. Procurou ressuscitar o telefone espalhado pelo chão: bateria para um lado, telefone para ali, a tampa para lá… o tremor da mão dificultava. O telefone voltou a cair. Irritou-se.

É quando um homem enfraquece que se percebe a força duma mulher. Estava deitada. Via, pelo nervosismo, a gravidade da situação. Recolheu o telefone caído e arrumou o puzzle das peças soltas na queda. Deixou-se estar sentada ao seu lado, em prontidão feminina. Interveio, sem perguntar nada, à distância de não interferir nos assuntos do marido, como fora sabiamente aconselhada. Juntou as mãos e fez uma concha, segurando a do homem ao jeito de uma reza. Apertou-a para conter a tremedeira. Manteve-se calada. O homem percebeu a pergunta muda.

Passou os dedos indicador e polegar pelos olhos, como se limpasse uma lágrima invisível. Foi aproximando os dois dedos até se encontrarem, na parte superior do nariz e permaneceu assim, como se aquele gesto o  aliviasse alguma dor.

— Está tudo lixado. Tudo.

— Tudo o que? — ousou a mulher, quando percebeu que o homem queria falar.

— Vou ser detido. Descobriram tudo.

— Tudo o quê? Os negócios? Qual deles?

Rodou bruscamente a cabeça. Olhou para a mulher com o sobrolho franzido, apercebendo-se que tinham sido muitos "negócios", o que agravou a sensação de culpa.

Baixou a cabeça. Uma gota de suor deslizou pelo rosto. Foi parar à ponta do nariz. Suspensa. A gota inchou, inchou, inchou como as suas contas bancárias. E soltou-se. Caiu. Ocorreu-lhe que as contas bancárias inchadas poderiam cair, à qualquer momento como aquela gota de suor.

— Vou ser detido. Acusam-me de estupro.

— Estupro?

— Dizem que estuprei a pátria. 

— Mas estupraste ou não?

Silêncio.

— …mas não fui o único. A pátria é estuprada todos os dias. E agora que está grávida e doente… Mas juro. Não fui eu quem a engravidou.

A mulher calou-se. O silêncio de uma mulher pode dizer muita coisa. Entre o medo de escutas e os problemas da telefonia,  não conseguiam ligar para os amigos influentes. A cabeça pesava. Pesava  cada vez mais. O ar estava mais espesso. Cheirava à podridão e ferrugem. Fossem talvez os portões enormes, metálicos, das celas da consciência, a trancarem-se.

 

Realizou-se em Lisboa, na Universidade Clássica o congresso “Cartógrafo de Memórias: a poética de João Paulo Borges Coelho”. Aí apresentei uma proposta para converter em peça de teatro o seu romance As Visitas do dr. Valdez. É o texto que se segue:

Está a literatura prenhe de intersecções e contágios. Quando Shakespeare pega em enredos italianos para escrever Romeu e Julieta ou Júlio César age como um fixador de mitos ou de situações dramáticas que lhe pré-existem; no caso de Romeu e Julieta a dos amores contrariados.

É comum aos temas atravessarem séculos à procura de quem os cristalize, o que não raro subentende uma transversalidade por géneros e suportes.

Por exemplo, o que catapultou Blade Runner para um sucesso transgeracional foi ser o feliz cruzamento do mito do Dr. Fausto com a problemática do Romeu e Julieta—Ridley Scott soube traduzir para a sua época essas ressonâncias anteriores. E o filme, mercê igualmente de uma sábia dosagem gráfica entre cenários futuristas e ambientes retro, foi um sucesso apesar de carregar às costas mitos perenes, ou as suas sombras.

Um dia antes de embarcar para Lisboa estive em Maputo com o fotógrafo moçambicano José Cabral e o crítico de arte Alexandre Pomar. E assistimos ao seguinte diálogo. Um neófito abordou o José Cabral e perguntou-lhe, Quando queremos tirar uma fotografia qual é a coisa mais importante que devemos ter em atenção? Respondeu prestamente o José Cabral, o principal, para fazer uma boa fotografia é ler adequadamente as sombras no enquadramento.

É neste mesmo sentido que antevejo a única possibilidade de realismo: é necessário ler as sombras, as sombras da época, as sombras dos mitos que tecem no presente e no quotidiano as linhas de visibilidade e lhe conformam os protocolos, as sombras das expectativas e dos desejos que emergem, paulatinamente. Só depois das leituras destes indícios ficam as nossas lentes aptas para discernir e separar sobreposições de aparências e para fazer coincidir o real com as suas imagens.

Já bons exemplos de contágios encontramo-los no modo como aquela faca que vai autonomamente ao encontro da mão ainda temerosa de Macbeth se tornará fulcro irradiante e nuclear em Faca só Lâmina de João Cabral de Melo Neto, ou na flagrante e exasperante coincidência entre o que se lê no fragmento 36 de Prosas Apátridas, do peruano Júlio Ramón Ribeyro, que foram publicadas em Paris na época em que Paul Auster por lá andou, e a fábula central do seu livro Invenção da solidão, a história de um filho que encontra o cadáver intacto do seu pai desaparecido havia décadas congelado nos Alpes e que está face a ele, paradoxalmente, com a metade da idade que é então a dele, filho.

É indisfarçável que a literatura participa também do hipertexto global e todos, de um modo transversal a uma época, perseguimos os mesmos temas, procurando ser os fixadores de um mito, de uma relevância ou situação dramática; sendo então inescapável o encontro e a sobreposição de fantasmagorias afins.

A mesma linha de contágio e diálogo se estabelece entre o Conto de Natal de Auggie Wren, de Auster, e As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho, mesmo que inconsciente. Em ambas as narrativas se exploram os mecanismos que Marivaux consagrou, usando a máscara e a mentira que rapidamente, por preciososmo, acabam por montar a auto-ilusão. Mas não nos adiantemos.

O conto de Auster resume-se em poucas linhas. Auggie vê do balcão da sua tabacaria um jovem larápio a enfiar revistas e paperbacks nos bolsos de dentro do blusão e grita-lhe. Enceta-se ali uma perseguição inútil porque o ladrãozito é mais ágil. Mas este, na correria, sob pressão, deixa cair algo, a carteira. Pelo estado dos inúmeros cartões de identificação que aí se apresentam e pelas fotografias que a carteira carrega, Augie percebe que o meliante é um pobre diabo e dilui-se o seu ímpeto justiceiro. Meses depois, no dia de Natal, estando sozinho e entediado sobrevém a Auggie o desejo de praticar uma boa acção e resolve entregar a carteira no endereço que se assinala num dos cartões.

Recebe-o uma anciã cega que o toma pelo neto, o jovem ladrão, e que o felicita por se ter lembrado de a visitar no dia de Natal. E Auggie, sem saber porquê, embarca no jogo, simula ser o neto, passa a consoada com a velha e retribui-lhe as carícias e abraços e mente-lhe doirando a pilula sobre a sua vida, i.é a do neto, e aquela manifesta-se orgulhosa e sente-se recompensada naquele jogo de fingimentos mútuos. Até que adormece de saciedade. Auggie, antes de sair, vai aos lavabos onde descobre uma série de caixas com máquinas fotográficas roubadas pelo neto e num impulso leva uma consigo. Quando, atacado pelo remorso, algum tempo depois volta a bater à porta da velha percebe que provavelmente esta morreu e que ele passara com ela o seu último natal. E (tentando sublimar a culpa?) auggie entrega-se à fotografia, que passa a ser o seu hobby.

Percebe-se pelo relato da anedota as afinidades com As Visitas do Dr. Valdez: a irmã Sá Caetana, afim de devolver à esmorecida Sá Amélia alguma motivação para a vida, monta com o seu jovem criado Vicente uma farsa, pela qual, este disfarçado, passará por um remoto dr. Valdez (aliás já morto), uma visita que alegrava no Ibo as viuvezes ensimesmadas das duas manas. A ilusão parece funcionar em pleno, até que no auge do jogo damos conta que as cegueiras são mútuas.

Contudo, até pela extensão diversa das duas narrativas, não chega a verificar-se no conto de Auster?—?o que acontecerá depois no roteiro que desenvolverá em Smoke?—?o que o argentino Ricardo Piglia, a meu ver acertadamente, traduz num axioma: um conto conta sempre duas histórias. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário.

No romance de Borges Coelho, apesar de não ser um conto, isso é claro, ou antes, subjaz.

O primeiro indício que nos faz suspeitar que se possa ler esta história muito para além do plano da narração da vidinha estreme e irrisória das manas Sá, na sua serôdia deriva de Ibo, a ilha natal, para a cidade da Beira, aonde se sentirão como peixes fora-de-água, prende-se com o baptismo dos seus nomes. A um segundo nível de leitura, em sombra chinesa, começa a entrever-se um drama cósmico, aquele que configura a mutação semiótica que antecipa as ruínas de um inteiro sistema de vida.

Lembremos o nome das personagens, Sá Caetana e Sá Amélia. Em conhecendo-se a História portuguesa não é desprovido intuir que o nome da mais velha ecoa o da última rainha portuguesa, D. Amélia, e coetânea do reforço administrativo do colonialismo português que se sucedeu ao sobressalto do Mapa Cor de Rosa, e que o da mais nova, Sá Caetana, pode derivar do último responsável pela herança de salazar, Marcelo Caetano. Entre ambos os nomes vai suspender-se o arco da automoribundia que, como diria Eduardo Lourenço, de irreais em irreais, crismou o colonialismo português.

Vicente por seu turno encarna o espírito da mestiçagem que o Estado português, ainda que tímida e ambiguamente espartilhado por laivos de racismo, acobertava. Não haja dúvidas de que Vicente seja negro mas ao participar do jogo de encarnar o dr. Valdez Vicente coloca-se nessa zona híbrida de dilemática alienação que o Franz Fanon cristalizou numa fórmula: pele negra, máscara branca.

Na novela, nas cenas do presente, há dois triângulos com diferenciado cunho social na novela, o A, constituído pelas manas e o seu criado Vicente, e o B, formado por este último e os outros dois criados vizinhos, Sabonete e Jeremias.

Entre estes dois triângulos posiciona-se como uma cunha o Dr. Valdez, uma personagem que catalisa em si a soma de todos os irreais, quer os vividos pelas duas velhas senhoras que procuram recapturar um passado que lhes escapou, quer a de Vicente, na sua condição de uma criatura que vive “entre”.

Outra coisa separa estes dois triângulos: elas vivem a fadiga de uma larga experiência, congeladas nas suas “interpretações”, são já simplesmente seres perceptivos, atidos ao presente, no caso de Caetana, e mais recessivamente atenuada pela bolha do passado no caso de Amélia, e por isso ambas mais não têm que uma vida reactiva, confirmada pela decisão de Caetana de que viveriam na Beira “como se vivessem numa ilha”, i.é, como mónadas.

Para o outro triângulo a possibilidade da ilusão está ainda a par do carácter emergente da realidade e das suas modulações históricas e por isso eles têm projecções, expectativas, futurizam e propõem-se a uma vida electiva. Um já se vê como coronel e o outro como juiz e até a prostituta Camba (uma personagem que todos partilham) sonha com uma promoção, continuar no ramo, mas mudar de esteiras para camas com dossel.

Só Vicente, apesar de estar cada vez mais fora de casa a procurar apropriar-se duma leitura das nuances do presente, não se decide, ele está “com os mundos misturados” e provavelmente aprendeu com as patroinhas que o muito imaginar pode trazer dano.

Outro aspecto que reforça a leitura do pequeno drama das duas velhas senhoras como uma alegoria que transcende a piquena economia de um drama de costumes prefigura-se com a introdução da máscara de Mapiko e a reinvenção paródica do Dr. Valdez.

É aliás nesta brilhante variação que Borges Coelho descola do simples efeito de marivaudage que havia em Paul Auster para obter uma significação que lhe é extrínseca e enriquece o jogo dramático.

É à quarta e última visita do Dr. Valdez que Vicente, provocatoriamente, enverga o elmo-máscara do Mapiko, subvertendo totalmente as regras da verosimilhança até aí concertada e o escalonamento hierárquico das acções na cena.

Antes, o papel do dr. Valdez fora-lhe atribuído pela patroa Sá Caetana, quem ordenava as marcações de cena, o permitido e o interdito. Na terceira “aparição de Valdez”, Vicente está sozinho no seu quarto e os seus dilemas passam a ser já discutidos com a presença fantasmática de Valdez, como se esta personagem já lhe fosse um alter ego ou dele se quisesse tornar autónoma. Atravessado este cabo das tormentas, num gesto de fuga para a frente, na “quarta visita” é Vicente quem estabelece o comando da cena, ao decidir fazer aparecer o Valdez sem ter sido convocado e envergando a máscara de Mapiko. Aí começa a assumir a sua condição de perversor das regras para depois, no decorrer da acção, ter o gesto inopinado de se desmascarar, gesto desconstrutor que reiteraria o seu papel de portador de autonomia, virando o sentido de quem estabelece as regras do jogo.

Não esqueçamos que a máscara do Mapiko tem um sentido tectónico, aliando-se à terra e a todos os mortos que a nutrem.

Tem então lugar na cena um volte-face surpreendente, que introduz a ironia. Para a compreendermos devemo-nos lembrar que, como dizia Walter Benjamin, «Na alegoria cada personagem, cada objecto, cada combinação pode significar outra coisa. Esta potencialidade emite sobre o mundo profano um juízo severo mas justo: ela define-o como um mundo onde o detalhe não tem importância» (citado em Cantinho: 2012:70).

Ora, com a introdução da máscara, Vicente, desincarnara o papel que lhe havia sido atribuído para apor-lhe uma alteridade que rompia a lógica do mundo duplicado. Mas quando Vicente tenta desmontar toda a farsa e dar um fim àquela encenação, desmascarando-se, dando azo a uma unidade que fosse só sua e constituísse uma afirmação identitária, num assomo até de alguma crueldade face às patroas, aí, para surpresa de todos Sá Amélia nem reconhece a mudança nele nem o furor do seu gesto pela razão mais inesperada: está cega (e desde quando afinal estava cega é o que fica por saber).

Vicente tirara a máscara mas afinal o detalhe de a tirar não logrou qualquer relevância pi rebentação climática, ficando o seu gesto a patinar no vazio. Ou seja, ele continua prisioneiro do mundo das representações que lhe mobilava a mente. O que o impedirá de afirmar junto dos seus amigos a mais minguada expectativa quanto ao futuro e ao suposto homem novo.

A ironia é reforçada pelo que se passa depois da saída de cena de Vicente. Sá Amélia, num último sopro de vida, denota que sempre soubera a verdade e que se implicara na ilusão como um jogo até ao ponto deste desembocar numa mudança relacional de âmbito estrutural, dado que, contra as regras antigas?—?e daí que felicite a irmã por ter deixado de arvorar ares de patroa e ter enfim servido a cerveja ao rapaz, leia-se ao Vicente, ele mesmo, e não a um famigerado doutor Valdez?—?e nesta inesperada revelação a cega assume-se como primeira testemunha lúcida da mudança de regimes sociais e interpessoais que os novos tempos impunham.

Mas a introdução da alegoria remete-nos para uma terceira perspectiva. Para a alegoria, recorde-se, não existe um rosto, o indivíduo e o singular perdem o seu estatuto, sendo que nela «um homem é sempre sinal de outra coisa diferente, isto é, ele não vale por si mesmo, pois toda a possibilidade de o encarar na sua individualidade esbarra nessa remissão infinita e dialéctica para um conceito que lhe é extrínseco». (Cantinho: 70:2002).

Para abreviar, pois só pretendemos explicitar a razão de ser dos critérios dramatúrgicos para o que a seguir apresentarei, temos então que

à ruína colonial se sucede a nova abstracção política do homem novo (aquele rosto a nu que a cegueira de Amélia impede de reconhecer), funcionando o romance como o gráfico dessa passagem de testemunho de uma irredenção colonial para a nova alegria infernal de mútuas cegueiras voluntárias e que satanicamente inscreverão o disfórico na ordem do dia.

Muito tchekovianamente, tudo isto é tratado como se nada se passasse. A acção de As Visitas do Dr. Valdez explora sobretudo o infra-domínio das baixas tensões de natureza interpessoal em vez de nos propor grandes enredos, conflitos com a aparatosa prestidigitação da aventura ou das causas nobres. Aparentemente fala-se de bagatelas. Porém basta escavar um pouco.

Voltaire teve uma sentença cruel sobre Marivaux (um bom percursor de Tchekov na arte de retratar o mecanismo da ilusão e da auto-ilusão) quando escreveu que o seu teatro não seria outra coisa que a arte de “pesar ovos de mosca em balanças de teias de aranha”. Não percebeu nada o pomposo Voltaire cujas peças já não se encenam enquanto as de Marivaux são das mais vistas no mundo. Com o livro de João Paulo é a mesma coisa: parece contar coisas de pouca monta mas é na hábil urdidura destas, ou nas suas sombras, que conseguimos ler o estado social das coisas.

E o que interessa agora é perceber como poderíamos operacionalizar o romance convertendo-o numa peça de teatro. Eis a minha proposta de uma sequência dramática, delineada num modo esquemático, e precedida de uma explicação cénica:

– Um ciclorama ao fundo enquadra dois estrados praticáveis, um mais alto e outro mais baixo.

Temos assim três níveis para o jogo cénico: no praticável mais alto dispõe-se a sala das manas, com três cadeirões e uma mesa com uma telefonia antiga, grande;

no praticável mais baixo tem lugar o quarto de Vicente, mobilado por um catre e uma cómoda velha, com um enferrujado retrovisor a servir de espelho. No banco que lhe serve de mesa de cabeceira vê-se o rádio transístor.

No terceiro plano, o do piso do palco, evoluirão as cenas com o triângulo B, Vicente, Sabonete e Jeremias, com presenças esporádicas da prostituta Camba, vendo-se a um canto uma mesa atamancada de esplanada de barraca, mais umas cadeiras desdobráveis de lona e madeira, a lona rota, e um suposto meio-bilhar, construído por eles.

No ciclorama são pontualmente projectadas imagens de arquivo e de época graficamente tratadas em negativo, ou acções encenadas e previamente gravadas em sombra chinesa, como o combate de Ganda e o monstro rodesiano John Dale, a cena da boneca de porcelana quebrada ou incursões de guerrilheiros pelo mato.

– Quando a peça começa ouve-se o assobio de Vicente e as manas discutem se o mesmo é uma impertinência ou não. Falam também da pacatez da vida no Ibo, da mansidão do pai de Vicente, Cosme, do labirinto da cidade grande e dos amores perdidos; bem como da beleza da mãe de ambas, Ana Bessoa, estiolada naquela infinita observação do mar. Ou fala sobretudo Caetana, Amélia é muito lacónica e só responde se insistirem com ela. Procura entusiasmar a irmã com o folhetim futurista que irá dar na rádio, mas esta pouco reage. Caetana sente-a muito lenta e perigosamente apagada e resolve fazer algo que salve a irmã.

Segue-se uma cena no quarto de Vicente, que Caetana invade. Mete o rádio na cama para se sentar no banco e urde com Vicente o plano das visitas do dr. Valdez.

A partir daí as acções em que Vicente, em silêncio se veste e maquilha de dr. Valdez e ensaia poses ou fragmentadas frases de brilho para as falas do médico, serão o fundo para as cenas dos outros criados, que comentam as mudanças do mundo, o futebol, o racismo e as mulheres, enquanto se entronizam no espírito da guerrilha e aludem à pronta queda do colonialismo.

Entretanto, estruturam-se em sequências alternadas as acções com as duas manas:

às diferentes visitas do dr. Valdez sucedem-se cenas em que as manas?—?Caetana, bordando, circunspecta e aflita com o que ouve, e Amélia meia alheia?—?ouvem na telefonia o folhetim. Este é uma breve montagem dramatúrgica de cenas da novela de JPBC Cidade dos Espelhos, que desde o primeiro momento, com o atentado terrorista com as bolas de sabão, as perturba, principalmente a Caetana, que acha tudo aquilo muito subversivo… Esta rádio-dramatização deve ser enfática e procurar obter sobre o seu ouvinte o mesmo efeito de choque que teve na sua época a Guerra dois Mundos, lida por Orson Welles…

Ao mesmo tempo em que vemos o susto das manas, noutro canto do palco, os criados, que têm igualmente um transístor, excitam-se com o folhetim, e Jeremias, exulta por o líder dos guerrilheiros no folhetim ter o mesmo nome que ele. Nestas cenas Vicente junta-se-lhes, embora mais comedido e irresoluto nas manifestações.

No ciclorama, vemos imagens do chilumi, o mato selvagem, a invadir as liana, os coqueiros, as propriedades delas do Ibo, e a alastrar, devagar.

A meio do terceiro episódio do folhetim, este é interrompido e a voz de um locutor esclarece que o mesmo foi censurado e os seus autores presos, por subversivos. O resto do que seria o tempo do folhetim é substituído pela emissão radiofónica de uma das Conversas em Família, de Marcelo Caetano.

Sá Caetana acha muito bem e aproveita para ler à parte?—?embora de vez em quando vigie a irmã, para ver se ela continua alheada?—?a carta em que Basílio Aliberto conta a morte de Cosme Paulino.

Ao mesmo tempo vemos que, nu e empurrado pelos amigos, Vicente, se prepara para ser iniciado sexualmente por Camba. Aí recortam-se nos pés os coturnos que sempre usou desde o início e nunca tira e que simbolizam como é um homem “entre”, um homem que nunca pisa inteiramente o chão do presente.

Camba leva-o para off. Só ouvimos os seus assobios de prazer, enquanto os amigos riem.

Dr. Valdez visita Vicente no seu quarto. Este, depois de ter estado sob influência, submetido à provação, resolve sacudir a “possessão” e envergar a sua máscara do Mapiko, que tinha debaixo do catre.

Última cena com o dr. Valdez. Amélia acaba por finar-se, logo depois de ter felicitado a irmã por ter servido uma cerveja ao rapaz.

O chilumi continua a invadir o ciclorama.

De modo coral, os criados dão conta das últimas notícias e palram entusiasmados com o espírito do homem novo conquistas do homem novo. Após, o que repartem entre si novos papéis sociais, só Vicente permanece abstraído.

O chilumi “tapou” todo a superfície do ciclorama.

Caetana, despedindo-se de Vicente, oferece-lhe num gesto magnânime o que já não tem: as suas propriedades no Ibo.

Com a mala de viagem e vestida para sair, Caetana relê a carta da sobrinha.

Vicente, bucólico, no seu quarto, mete uns novos coturnos para ficar mais alto e depois senta-se a olhar as imagens do mar que passam no ciclorama e que ressoam forte.

Está no seu purgatório, submerso nos seus irreais.

Os criados que julgavam viver no inferno, mudam-se para a casa das manas, julgando que doravante viverão no paraíso. Acendem a telefonia e ouvem um discurso contra os Xiconhocas (1).

Fecham-se as luzes.

E neste momento também eu me calo.

————–

Cantinho, Maria João, O anjo melancólico, Ensaio sobre o Conceito de Alegoria na obra de Walter Benjamin, Angelus Novus, Coimbra, 2002.

(1) Xiconhoca, no imaginário popular de Moçambique é a má rés, o aproveitador, o vigas que faz ronha e que subverte os processos em seu proveito. Durante uns anos foi símbolo dos sabotadores da Revolução

 

Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro

Cecília Meireles

 

Captada palavra a palavra, a poesia apresentada por M. P. Bonde no seu novo livro é muito acessível, afinal, sente-se que o poeta escreveu este A descrição das sombras de forma mais espontânea possível, respeitando a simplicidade que lhe caracteriza, em termos de imaginação e, sobretudo, da tradução desse exercício. Por isso, temos nesta proposta literária do autor, mais uma vez, uma escrita não apenas sedutora, mas igualmente inquietante por bem conseguir nos retirar do nosso ambiente de conforto. Assim, as vozes dos sujeitos de enunciação, agradáveis de ouvir em surdina, levam-nos a caminhar sem barreira em direcção a um encontro com o infinito, que nós sabemos que não vai acontecer, no entanto, entregamo-nos a essa odisseia como se partir na boleia da palavra constituísse um recomeço de alguma coisa diluída entre o complexo e o inexplicável.

De facto, com 41 poemas divididos em quatro partes, A descrição das sombras consegue fazer o que é obrigatório numa obra bem concebida: desligar-nos do que eventualmente julgamos ser bom no plano real para, em compensação, mergulharmos numa outra atmosfera bem desenvolvida do ponto de vista sensorial. Porque é isso o que acontece. Nesta obra de Bonde há muito resultado da percepção, quer dizer, da percepção conectada com a sensação. E tudo isto conflui numa série de diálogos, às vezes sem respostas – é o caso dos dois primeiros poemas “Amor futuro” e “Guilhotina” –, que tanto funcionam como tentativas de chamar um interlocutor distante à razão ou para lembrar que “não há atalhos para a dor” (“Sabor do álcool”).

Usando a cavaqueira com as entidades que lhe habitam, muitas vezes M. P. Bonde coloca-nos numa condição feita de subtileza, na qual somos convidados a mantermo-nos focados em determinados aspectos que, diariamente, vão deixando de merecer importância. Aí torna-se comum encontrar na apreciação que as entidades textuais fazem aos frutos, às flores, às plantas, à água ou ao corpo feminino – com poemas a insinuar um erotismo distante, por exemplo, “Desejo” e “Suspiro” – mil pretextos para dar vigor às palavras, o que acontece graças à capacidade do poeta, por via dos seus sujeitos, ouvir-se a si próprio. No poema “Mafurreira” temos um exemplo desta abertura ao universo interior: “Abro os meus ouvidos aos sons da alma, as pulsações do corpo tricotam a melodia ardente da flauta enquanto o sopro das folhas desterra a pauta do tripé” (p. 36).

Dando azo para os sujeitos exprimirem desejos sensuais, igualmente, Bonde valoriza a manifestação de outros de dimensão onírica. Por exemplo, no poema “Alma” – o que antecede a pior parte do livro (3ª parte), breve, efémera e pouco envolvente. Naquele poema, pode se escutar: “Queria ser uma onda, beijar a terra seca, vaguear pelas profundezas dos oceanos e expulsar as emoções que obstruem a razão” (p. 37).

Além de que escrever um livro a ser partilhado com os seus leitores, pode ser que M. P. Bonde, neste A descrição das sombras, lançado alguns meses depois do seu livro de estreia “Ensaios poéticos”, estivesse a iluminar as feições dos seus sujeitos mais desconhecidos, inclusive por si, assumindo o que nós consideramos diálogo como um motor de busca do que cada ser seu tem a dizer. Afinal, como poderia dizer Cecília Meireles, as palavras de M. P. Bonde, nesta obra, são a metade de um diálogo obscuro, que vão continuar, quem sabe?, em cada livro ainda por publicar, com a ressonância do que o poeta capta, sente e pretende exprimir ao mundo.

 

Título: A descrição das sombras

Autor: M. P. Bonde

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 13

A prosa é fatalmente juvenil, talvez mesmo pueril, indisfarçavelmente canhestra, mas genuinamente arrebatada. É o meu relato do meu encontro com Noémia de Sousa, quando a visitei na sua casa, de Algés, Lisboa, em Junho de 1988. Ao regressar à pátria debitei este texto para a “Gazeta”, que então editava, na revista Tempo: “Noémia foi quem abriu a porta e sorriu para mim largamente. Beijei-lhe o rosto tropical. Ela estendeu uma das mãos e convidou-me a entrar na sua casa de Algés. Camila, sua irmã, estava sentada num dos sofás da sala. O meu olhar dispersa-se pela pequena sala pintada de azul. Uma estante grande cheia de livros. Um pequeno televisor ligado. Num dos cantos da sala uma mesa circular. Os cestos com jornais. A casa está virada para a rua onde passa o eléctrico. Nesta casa vive uma mulher que me recebe com os olhos molhados de luz: de vida. Noémia de Sousa senta-se à minha frente.”

Eu tinha 21 anos e era o autor de uma carta na qual a saudava dois anos antes. Esse dia, 20 de Setembro de 1986, o dia dos seus 60 anos, foi para mim jubiloso. A minha missiva, redigida então aos 19 anos, fora lida no programa “Cultura Viva”, pelo Emílio Manhique – de grata memória. Noémia leria o meu texto no ano seguinte, quando foi publicado na “Gazeta”: “Escrevo-te em Setembro deste país de Junho. Sei que um dia disseste que o sol que te viu nascer na casa à beira do Índico voltaria a inundar a vida. É verdade, Noémia. Hoje esse sol entorna a sua luz sobre os olhos dos meninos brincando nas areias.”

Noémia de Sousa: “Quando eu nasci na grande casa à beira-mar, / era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico. / Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.”

Ali, naquela tarde, tarde longa e longínqua, nasceu a nossa amizade. Retornei a Maputo comovido com aquele encontro. Escrevi o aludido texto e mantive com ela contacto. No ano seguinte fomos a Lisboa para o Congresso de Escritores. Ela haveria de apresentar-me o Rui Knopfli, de quem eu falava com abundância indesmentível e entusiasmo irrepreensível. Nessa mesma ocasião o Rui apresentou-a ao Eugénio Lisboa. Lembrei-me na ocasião de um texto avinagrado do Lisboa. Dizia “que a Noémia de Sousa é um mito que não vale a pena manter de pé, por mais simpatia que possam merecer as boas intenções dos seus poemas tão prolixos como balbuciantes.” Eu lera isto que o Eugénio redigira para o prefácio às Mangas Verdes com Sal do Rui Knopfli e ficara escandalizado.

Noémia de Sousa: “Se me quiseres conhecer, / estuda com os olhos bem de ver/ esse pedaço de pau preto/ que um desconhecido irmão maconde/ de mãos inspiradas/ talhou e trabalhou/ em terras distantes lá do Norte.”

Tinha sido, no entanto, através do poema “Moças das Docas” que eu havia conhecido o nome de Noémia de Sousa. Isto numa antologia organizada pelo Orlando Mendes. Esta obra poética, prodigiosamente escrita entre 1949 e 1951, entre os 23 e os 25 anos, é indubitavelmente fundadora da poesia de raiz verdadeiramente moçambicana.

Noémia de Sousa: “Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. / Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines, / viemos do outro lado da cidade/ com nossos olhos espantosos, / nossos corpos submissos e escancarados.”

Foi Cassiano Caldas, a quem ele dedica o livro, tal como o dedica a João Mendes, que lhe daria a conhecer a revista Vértice onde ela leu, pela primeira vez, Nicolás Guillén. Uma importante referência. Leu depois muito sobre a vida dos negros americanos em traduções que vinham do Brasil. O sul dos Estados Unidos vivia uma circunstância que lhe parecia similar à que Moçambique estava submetido. Distante ainda da Negritude, que viria a conhecer nos anos 50 em Lisboa e em Paris, no convívio com as ideias e obras de Leopold Senghor ou Aimé Cesaire, de quem aliás irá traduzir o famoso “Discurso sobre o colonialismo”.

Noémia de Sousa: “E enquanto me vierem de Harlém/ vozes de lamentação/ e meus vultos familiares me visitarem/ em longas noites de insónia, / não poderei deixar-me embalar pela música fútil/ das valsas de Strauss. / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Mariam gritando comigo:/ Let my people go/ OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!”

Escreve em O Brado Africano. Para além do convívio com Cassiano Caldas, que ela me levou a conhecer em Lisboa, convive também com Henrique Dahan, Miguel da Mata, Victor Santos (irmão de Marcelino), Amália Ringler ou Dolores Lopes. Ainda conheceu Rui de Noronha, que ela via passar diante da sua casa. Não conviveu com João Dias. O autor de “Godido” fora estudar para Portugal, onde morreria em 1949. Noémia dedica-lhe um poema. Como o faz a Rui de Noronha.

Eduardo Mondlane, então estudante na África do Sul, vê recusado, pelo governo de Daniel François Malan, do Partido Nacional, o seu visto de residência temporária, o que impediria que ele continuasse os seus estudos na Universidade de Witwatersrand. Noémia redige uma nota n’O Brado Africano com manifestações de solidariedade para com o estudante moçambicano. A PIDE persegue-a. Os poemas indignados, esse grito de revolta, esse apelo à emancipação, as actividades ligadas ao MUD-Juvenil, os artigos cortados pela censura e o cerco que concitam tornam impossível a sua permanência em Moçambique e impõem-lhe o exílio. Mário Pinto de Andrade escreve-lhe a encorajar que parta. Convívio marcado com a Geração Cabral. Primeiro a casa da Tia Andreza, tia da santomense Alda do Espírito Santo, na rua Actor Vale 37; depois a Casa dos Estudantes do Império, o esteio da “geração da utopia” (Pepetela dixit).

Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Lúcio Lara, Agostinho Neto ou Francisco José Tenreiro são companheiros de jornada. Em Portugal, o cerco volta a apertar-se. Noémia está casada com o poeta Gualter Soares, tem uma filha pequena, Virgínia, salta a fronteira, com ela às costas, atravessa os Pirenéus, alcança Paris. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos. Só retornará em 1973, com um emprego na Reuters, em plena primavera marcelista e à porta da revolução de Abril.

Só regressaria a Moçambique em meados dos anos 80. Foi nessa década que a tomámos literalmente de assalto. Reivindicámo-la. Começámos a escrever sobre ela, a ler os seus poemas, a declamá-los nos Msahos do Jardim Tunduru, a recitá-los um pouco por todo lado. Não havia livro publicado. Os poemas circulavam, havia as antologias, as revistas. O Brado Africano, Itinerário, Msaho, Mensagem (em Luanda), Notícia de Bloqueio (Porto), Moçambique 58, Vértice, entre outras publicações em Moçambique e no estrangeiro. Tínhamos o registo desse nome soberbo da nossa literatura.

Poemas da Noémia tinham sido publicados no Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, de 1953, de Mário de Andrade e Francisco José Tenreiro, depois na edição de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, que Mário Pinto de Andrade fez publicar, em 1958, em Paris, quando estava na Presence Africaine. A separata da Mensagem, intitulada “Poesia em Moçambique” também consagrava a sua poesia. A Casa dos Estudantes do Império editará em 1960 e 62 duas antologias – Poesia de Moçambique – ambas prefaciadas por Alfredo Margarido, que motivaram a furiosa reacção de Eugénio Lisboa que citei acima. Mário Pinto de Andrade volta a incluí-la na Antologia Temática da Poesia Africana – Na noite grávida de punhais, de 1975. Manuel Ferreira, em 1985, publica seus poemas em No Reino de Caliban III, volume dedicado a Moçambique. Orlando Mendes, em Sobre Literatura Moçambicana, em 1982 e Fátima Mendonça e eu próprio, na Antologia da Nova Poesia Moçambicana, em 1993, coligimos a sua obra. Quando editei Nunca Mais é Sábado, na D. Quixote, em Lisboa, em 2004, publiquei os seus emblemáticos poemas.

O professor Manuel Ferreira, grande entusiasta das literaturas africanas em Portugal, o francês Michel Laban, outro imenso estudioso das mesmas em França e no mundo, ambos desaparecidos deste reino, quiseram publicar o seu livro. Noémia, naquela sua proverbial humildade, encolheu os ombros. Rui Nogar e Calane da Silva, Leite de Vasconcelos, Fátima Mendonça e Júlio Navarro tentaram-no em Moçambique. Em 2001, no ano em que faria 75 anos, ela confiou-me essa grata tarefa de editar o seu Sangue Negro. Fátima Mendonça e Francisco Noa fizeram ensaios como posfácios do livro, eu redigi o prefácio. António Sopa cuidou do design gráfico. Lançámos o livro no dia 20 de Setembro, com a chancela da AEMO. Liguei-lhe a dar-lhe conta do nosso entusiasmo. A voz já muito fraca.

 “Para lá daquela curva/ os espíritos ancestrais me esperam” – escreve ela no seu poema “A Mulher que Ri à Vida e à Morte”. Ela tem 65 anos quando escreve isto. Vê-se que não perdeu a verve. A veia poética está lá. Tem uma força brutal, uma força telúrica. de Sousa. Este belíssimo poema foi inspirado na senhora Eva, de S. Tomé e Príncipe, que ficou eternizada na retina sagaz do Carlos Pinto Coelho para o livro A Meu Ver.

Noémia de Sousa: “Breve, muito breve/ tomarei o meu lugar entre os antepassados// À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil/ as unhas córneas de todos os labores/ este invólucro sulcado pela aranha dos dias. // Enquanto não falo com a voz do nyanga/ cada aurora é uma vitória/ saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo// Oyo, oyo, vida!”

Esse dia infausto chegou a 4 de Dezembro de 2002, passam agora 15 anos. Tenho um ilimitado afecto pela Noémia de Sousa. Ainda hoje tenho a sua mão na minha passeando ao largo do Tejo, ou então conversando infatigavelmente.  Foram muitos anos. Era viva a irmã Camila, o irmão Rui, o sobrinho Guilherme Ismael, que trabalhava na BBC, em Londres. Entre almoços partilhados lá em casa, ou na Nortenha ali à frente, ou num restaurante da Fonte Nova, no Benfica, perto da Lusa, ou ainda os cafés, no bar do prédio da Lusa, ou as chamadas frequentes, as notícias urgentes, as viagens que haveríamos de fazer, entre tudo isso, fica uma grata e cúmplice amizade e uma memória emotiva desta mulher raríssima, que eu evoco sempre à beira das lágrimas, e que não cabe nestas breves e precárias palavras de circunstância. 

 

 

 

 

 

 

Temos uma nova direcção no Ministério da Juventude e Desportos. No seu alto critério de escolha, o Presidente da República substituíu Alberto Nkutumula, pela senhora Nyelete Mondlane, o que não deixou de causar grande surpresa nos desportistas.

Isto porque se antes se alvitrasse entre os agentes do desporto hipóteses de nomes para novo titular do MJD, seguramente que o da nova ministra não entraria na lista, pois não se lhe (re)conhece um passado de acções nesta área.
Afinal, contínua actual e actuante, o ditado “desporto, é paixão”.

Consonância com o passado…

Desde a Independência Nacional, sempre estranhei o apenas “espírito de missão” que, à excepção de Joel Libombo e Carlos de Sousa, guiou a fugaz presença dos anteriores ministros dos desportos.

Vamos ao concreto: Mateus Kathupa, Fernando Sumbana, ou Pedrito Caetano, no que toca ao desporto, foram “meteoros” que marcaram presença nos campos, palestras, viagens e outras acções, nalguns casos porque a sua ausência seria notada. Muito próximo de um “frete”.
Após a missão ministerial cumprida (ou comprida?), nunca mais se lhes viu o rasto nos acontecimentos e actividades desportivas.

Não é propósito deste artigo, contestar as nomeações, mas parece legítimo questionar a falta de paixão, e nalguns casos vocação da maioria dos titulares indicados para este pelouro. A menos que nos convençam que não há pessoas da área, com competência para a dirigirem.

Comparativamente, direi que seria impensável vermos um ministro das Finanças sem passado de Economista, da Justiça sem ser uma pessoa do Direito ou da Saúde sem passado nesta área.

Daí que o critério de nomeação de ministros sem passado para o desporto, talvez encontre explicação num “slogan” que parece actual e que cataloga o MJD como o… Ministério das Brincadeiras!

 

Nunca o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) reuniu a sua cúpula, perante tamanhos e complexos desafios como os que têm de resolver hoje, para que se mantenha como um importante actor na esfera política em Moçambique.

O II Congresso do MDM é um momento decisivo, se colocarmos em consideração as guerras internas de poder, amplificadas agora em Nampula, a gestão centralizada a partir da Beira, a falta de combatividade própria da oposição, as próximas eleições, e, principalmente, o facto do partido ainda não ter atingido aquilo a que se propôs: ser uma alternativa à Frelimo e à Renamo.

Nas eleições presidenciais de 2014, o presidente do MDM, Daviz Simango, teve um resultado abaixo do pleito anterior. Em 2009, Daviz Simango obteve 8.59% dos votos totais, contra 6.36% de 2014, representando uma erosão de mais ou menos 30 mil eleitores. Cresceu, nessa altura, a ideia de que o avanço do MDM é explicado pelos momentos mortos da Renamo.

O recuo do líder da terceira maior força política também pode encontrar explicação na hipótese de que o seu discurso e a linha programática do MDM não sejam suficientemente diferenciadores, não tenham marca própria, não galvanizem nem mobilizem os eleitores a optarem por tal escolha.

A demissão, em 2011, de uma ala académica e ideológica do partido, em particular o seu secretário-geral, Ismael Mussá, e o chefe de departamento de Planificação e Estratégias, João Colaço, associada as acusações de ditadura, nepotismo e ilegalidades, afectaram a percepção de que o MDM é um movimento aglutinador do pensamento divergente e de pessoas provenientes dos diferentes sectores da sociedade.

O afastamento de Mahumudo Amurane, seguido do seu recente assassinato, bem como as telenovelas gratuitas dos edis interinos, mais do que um problema circunscrito a representação do MDM em Nampula, passou a afectar o partido no seu todo, mostrando a falta de métodos para gestão de crise e vaidades pessoais.

Um partido que quer ser governo não pode desobedecer duas vezes consecutivas, qual curto espaço de tempo, instituições estabelecidas, como o fizeram os edis interinos do MDM em relação à decisão do Tribunal Administrativo de que não deveriam exonerar vereadores.

Os estilhaços da tensão na capital do norte podem, assim, influenciar nos resultados nacionais do MDM – eleições gerais –, na medida em que levantam questões sobre os critérios de selecção dos membros, qualidade dos quadros escolhidos para funções importantes, democracia interna e papel dos órgãos de disciplina.

O primeiro grande teste serão as eleições intercalares de 24 de Janeiro, onde o MDM avança fragilizado, num quadro em que a Frelimo e a Renamo vão jogar o tudo ou nada para conquistar o poder.

Um partido novo, que emerge em democracia e que pretende ser alternativa de oposição e governação, tem de fazer um caminho menos sinuoso e, acima de tudo, servir de referência e exemplo, tentando ser melhor que os seus rivais.

Os partidos políticos, pela sua natureza, têm dinâmicas próprias de luta e acesso às funções de poder, mas devem geri-las com métodos subtis sem passar, cá para fora, a imagem de que a ambição de grupos é mais importante que a visão colectiva.

O II Congresso do MDM é uma oportunidade de instrospecção, de questionamento, de discussão da vida interna, que pode reforçar a coesão e recuperar o eleitorado desiludido, sem perder de vista os ciclos eleitorais à porta.

 

 

Numa altura em que o país é largamente conhecido pelo mundo fora como o que contrai irresponsavelmente dívidas que depois não consegue pagar e muito menos usar o dinheiro emprestado para os objectivos que ditaram a sua contratação (caso da EMATUM, MAM e ProÍndicus) ou mal aplicado (caso do Aeroporto de Nacala), acrescenta-se a isto a má gestão de quase todas as empresas públicas que, apesar de poderem ser lucrativas, são deficitárias, eis que se nos apresenta uma excepção.

A Hidroeléctrica de Cahora Bassa sobressai como esse exemplo que vale a pena mostrá-lo ao mundo e dizer que afinal podemos fazer as coisas de forma diferente, a gestão nas empresas públicas pode ser responsável, eficiente e lucrativa. E esse mérito vai para o seu primeiro PCA moçambicano Dr. Paulo Muxanga e o seu Conselho de Administração que congregava quadros excepcionais como Gildo Sibumbe, Max Tonela entre outros.

O Estado moçambicano foi buscar quase 800 milhões de dólares para pagar ao Estado Português pelos 92,5% das acções da empresa e a administração da HCB pagou todo esse valor com 18 meses de adiantamento. E ainda fez investimentos consideráveis para garantir fiabilidade nos processos produtivos que incluiu a reabilitação da barragem, da central eléctrica, da subestação de Songo, das linhas de transporte de energia e do capital humano. De 2007 a esta parte, a empresa que era gerida quase na sua totalidade por portugueses, agora é gerida na tua totalidade por moçambicanos, a maior parte dos quais formados dentro do país e na Universidade Eduardo Mondlane. Tudo isso feito em 10 anos.

Acções de responsabilidade social são tantas, mas há que destacar a segunda faixa da Av. Joaquim Chissano, o Hospital Distrital de Zumbo que permitiu que nossos compatriotas deixassem de ir a Zâmbia receber cuidados médicos, o Hospital de Songo, a reconstrução da Vila de Songo e Chitima e a distribuição de energia eléctrica para a população de Songo que durante mais de 30 anos, mesmo vivendo ao lado da hidroeléctrica, não tinha acesso à energia eléctrica. E tudo isto tenho dúvidas que empresas como Vale, ENI e Anadarko venham a fazer um dia, tal como ainda não fizeram a Mozal e a Sasol. Apenas para mostrar a diferença que faz ao nível social um grande projecto orgulhosamente moçambicano.

Gestão responsável e rigorosa como a que tem sido feita na HCB teriam sorte diferente, empresas públicas como LAM, Mcel, TDM, CFM, EDM e para já EMATUM, MAM, ProÍndicus, isto só para citar algumas. Por isso, por favor não deixem que o bom exemplo daquilo que deve ser a liderança e gestão das empresas públicas nacionais se perca na HCB. Aliás, é o exemplo que mostra que afinal nós moçambicanos, como uma nação, não somos maus gestores, sabemos pagar as dívidas e podemos pôr em pé um grande e exigente projecto. E mais, a HCB mostrou que nenhum grande projecto precisa de isenção de impostos, porque ela paga impostos como qualquer outra empresa de direito privado a operar em Moçambique. Por estas e outras razões, defendo que a HCB é património de todos os moçambicanos e por isso não devia ser alienada.

Parafraseando Rui de Noronha digo… “Moçambique SURGE AT AMBULA”.

Dezembro. Dia um.

A noite caíu. Com a escuridão húmida veio o burburinho inconfundível das noites sem vento nos bairros de lata: o silêncio do luar, a música distante das barracas, o grito inconformado dos grilos, o ronco dos carros lá na estrada… tudo abafado na poeira que aura o bairro.

Ruelas estreitas. Um muro de alvenaria inacabado. Dois corpos. Um encostado ao outro. Os dois encostados ao muro. Ela gazeteara as aulas no curso nocturno e ele, o turno de vendedor ambulante. Por entre a folhagem das árvores o luar espreita com feixes prateados. O calor húmido não dava tréguas mas os corpos relutavam em manter-se aquecidos um no outro para que nem o menor dos mosquitos  tivesse espaço entre eles. Abraçavam-se e beijavam-se, demarcando o espaço físico do seu Jardim de Eden, protegendo a soberania dos seus corações. 

No beijo os beiços selavam-se e os corpos fundiam-se. Eram cada vez mais o mesmo corpo, a mesma carne. Alimentavam-se de saliva como os pássaros que alimentam suas crias pelo bico.

E o amor cresceu na braguilha e tornou a mão mais atrevida. Ela assustou-se, púdica. Censurou a mão ousada, empurrando. Ele cedeu ao gesto.  Sabia que era um "nao" simbólico. Um "nao" no tom amolecido de um "sim". Beijaram-se.

Ela sentiu o vento a arrepiar-lhe até  as unhas, enfraquecer-lhe as pálpebras e derreter-lhe a voz, quando ele sussurrou em tom melado e falso de amantes:

— Quero te lobolar.

Os olhos acenderam-se-lhe como duas luas e sorriu o marfim amarelado da dentadura. Até poderia ter-se socorrido dos conselhos infalíveis da mãe: "não aceita promessas dos homens, eles só querem a fruta", mas um frio quente com formigueiro à mistura trepou-lhe pelas pernas tornando-as bambas, suando-lhe as mãos, engasgando-lhe as palavras, esgazeando-lhe os olhos. Ele destrancou a capulana. 

Não conversaram para além dos sons da fricção dos lábios e dos corpos. Morderam lascivamente, na boca um do outro, a fruta que apetece por ser proibida. O tempo não existiu até um ronco no abdómen lhes despertar para o mundo:

— Namorar dá fome né, mor?

— Hmmm!

O ronco, não se soube de que barriga veio, mas foi suficiente para arrefecer as hormonas, descalçar os desejos, recomporem-se nas vestes e aprceberem-se da hora.

— Já é  tarde. Tenho de ir.

— Fica mais um pouco.

— Hiii! Meu pai…

Ele acompanhou-a, abraçados, até ao canto discreto mais próximo de casa e a lua testemunhou a declaração de amor:

— Tê manhã, mor.

— Tê  manhã…

No beijo de despedida os olhos fecharam-se para que não houvesse interferências indiscretas. Os corpos viajaram para dentro um do outro. Pela boca trocaram de almas como quem troca fotografias e experimenta um jogo de identidades: toma, guarda-me dentro de ti e dá-me a tua.

Da sombra da enorme mafurreira ele viu a amante manipular, com gestos delicados, o portão de chapas. Dizer tá-tá com um sorriso. Beijar a palma da mão, assoprar um beijo e desaparecer quintal adentro.

Trocaram sentimentos, saliva, corpo, Almas e deixaram pedaços de um no outro. Seguiram cada um para o seu lado. Semana depois, o afeto desprotegido com que se amaram gerou um inesperado feto e a afeição foi tanta que resultou em infecção.

Era Dezembro. Dia um…

 

A única certeza que tenho neste momento é de que o dinheiro está caríssimo. Dentre tantas explicações para esta realidade, nenhuma convenceu. Continuamos ignorantes e escravos da imposição das taxas de juro dos bancos, ou melhor, dos “big four” do sistema financeiro nacional. Há alguns anos, as explicações resvalavam para o risco do mercado, para as taxas directoras pouco atractivas ou mesmo para as grandes empresas – os maiores detentores de liquidez – que determinam as taxas de juro a serem remuneradas nos seus depósitos. Hoje, ninguém perde tempo em explicações. É um toma e vira-te que está a desgraçar empresas e particulares, que viram as suas prestações subirem sufocantemente no agudizar da crise que elevou para a casa dos 30% as taxas de juro.

A taxa de esforço que se observa no início do contrato é ignorada no meio do percurso. E entre cobranças e desculpas, num diálogo de surdos, o resultado pesa na estatística do crédito malparado, que cresceu 50% de 2015 para 2016. Os créditos de longo prazo, com riscos maiores para os bancos e para os mutuários, ameaçam fazer emergir estatísticas de suicídio. Isto para não falar de stress ou depressão, doenças que já abundam na nossa sociedade, reduzindo o espaço da felicidade.

O ministro da economia e Finanças e antigo governador do Banco de Moçambique, Adriano Maleiane, desafiou os bancos a serem mais transparentes na fixação das taxas de juro, quando intervinha no evento que apresentava a pesquisa sobre o sector bancário. Maleiane, num desabafo tardio, mas ainda pertinente, disse: “Parece que temos que trabalhar muito para a transparência na fixação da taxa de juro.

Aparentemente, quem olha para as nossas taxas de juro, parece que não têm nenhuma ligação entre o custo de funding, a inflação e o risco. Parece que as coisas estão de certa maneira dissociadas. Portanto, eu quero desafiar o sistema financeiro para me trazer um indexante a prazo: para 90 dias, 180, 360 dias, um indexante que o sector pode esclarecer.”

Esta frontalidade que outrora vinha de agentes económicos e académicos, hoje, vem de um governante que já regulou e supervisionou as instituições financeiras durante 15 anos, assim como orientou e controlou políticas monetárias de um país que só conhece momentos menos maus quando se fala de taxas de juro, quando afinal almeja uma satisfação possível.

Que o desafio do ministro Maleiane ao sector financeiro se traduza em imposição legal, para que ninguém tenha dúvida sobre o preço que paga pelo dinheiro e haja clareza dos limites dos bancos comerciais nesta matéria. Que as suas palavras não caiam em letra morta, como uma simples declaração de intenção. Já é sabido que as fontes de liquidez no mercado são reduzidas e que os bancos vêem nas taxas de remuneração dos depósitos uma saída; que a Facilidade Permanente de Cedência tem um impacto pouco significativo na redução do custo de financiamento, porque a liquidez da banca comercial não provém do funding via Banco Central, mas ainda não é informação suficiente para explicar o custo do dinheiro.

Os bancos geram lucros fabulosos até em momentos de crise. Uma lucratividade atípica, atendendo ao contexto macroeconómico, caracterizado por um desaceleramento do crescimento económico em quase 100% e inflação de dois dígitos. O sector financeiro foi o que mais cresceu e mais sólido se apresentou, em plena crise que o país vive. Portanto, tem uma pujança que infelizmente reforça a fraqueza da economia. é um mal necessário que deve dosear o aperto, para melhor contribuir para o crescimento da economia.

O poeta olha o passarinho/ por dentro do seu canto

Rogério Manjate

Já nos referimos ao facto de muitos poetas – no sentido mais vasto da criação – encontrarem na dor um motivo para fabricar sorrisos, como se o sofrimento servisse para inspirar alegria. Assa Matusse faz parte desse conjunto de artistas que, recorrendo às suas próprias intempéries, faz da música um produto além do efeito estético. Uma prova é o seu álbum de estreia, + Eu, no qual a cantora efectua uma trajectória que, partindo de experiências intimistas, tão ligadas a si e aos seus, desagua na superação.

Na verdade, + Eu é um disco de apresentação de uma cantora que almeja ser um exemplo de luta, vencendo o medo, a solidão e o pessimismo mesmo por acreditar nas suas potencialidades. A primeira música, a que empresta o título ao CD, é peremptória a esse respeito, quando apresenta momentos de uma história sintetizada na força interior como garantia do sucesso. A letra é simples e a música não passa de três minutos e meio. Ainda assim, consegue transportar uma mensagem que em princípio deveria nortear quem persegue o horizonte e as suas incertezas. Com efeito, faz todo o sentido que “+ Eu” seja a primeira música do álbum, por conter uma caracterização dissimulada de quem a canta e a linha temática do que se pretende com esta aparição.

Explorando até à exaustão os ADN dos seus sujeitos poéticos, Assa não evita a sua origem. Pelo contrário, em “Menina do bairro”, canta seus labirintos, a meninice, sua e de todos que da miséria dos subúrbios concretizam sonhos sem olvidar de que lama foram feitos. “Menina do bairro” também exprime essa capacidade de superação, imposta mesmo em momentos desfavoráveis.

Enquanto canta, Assa conta quem é e, no caso do tema “Xihono”, questiona tudo o que a angústia justifica a todos que buscam respostas. Dizendo quem é, com toda elegância que se pode exigir, encarna a vida de moçambicanos que venceram a humilhação ao lutar pela sobrevivência na África do Sul. Além de ser a melhor música do álbum, nossa apreciação, “Nitxitxile” é a melhor representação de Assa Matusse. Ali temos uma estória narrada de outro modo. Ao contrário de um Regresso do morto, de Suleiman Cassamo, em que o protagonista volta a casa destruído, em Assa Matusse há uma mudança que no final faz do humilhado um vencedor em potência, não permitindo mais ser vulgarizado. No fundo, o valor semântico é idêntico a “Grito Negro”, de Craveirinha, mas aqui, obviamente, sem alusão colonialista.

Avaliando a temática das músicas e a forma como as mesmas são concretizadas, percebe-se que + Eu é um CD a revelar uma maturidade precoce, incomum numa estreia. Assa sabe conter-se na palavra. Evitando a vaidade de querer dizer tudo, acaba dizendo muito com tão pouco – como bem calha, por exemplo, no Balanço ou Mutema, de Deodato Siquir – e sem ser desnecessariamente explícita. Concorre para que as músicas sejam sedutoras o facto de Assa as cantar com emoção, como se sentisse tudo o que diz na sua plenitude.

Este + Eu funciona como uma espécie de antídoto para os que ainda trilham o difícil percurso rumo à superação dos seus problemas. É um disco tendencialmente moralístico, alicerçando-se na melancolia como factor primário para se ultrapassar perdas difíceis de aceitar – oiça-se “Carinho de mãe” – ao mesmo tempo que orienta a direcção da prosperidade. Aqui, “Pfukane” também revela-se com uma sonoridade de pasmar. 

Se “Carinho de mãe” e “Pfukane” dirigem-se mais para as mulheres, ao mesmo nível criativo encontra-se “Nsinyeni”, história de quem não sabe o significado da ajuda, do calor dos pais, que bem nos conduz ao drama dos “meninos de ninguém”.

Enfim, + Eu é um álbum para fortalecer o espírito. E a expressão dos sujeitos de enunciação assume-se como um mecanismo que induz persistência, pois sem isso a vida tem tudo para ser uma mierda.

 

Título: + Eu

Autor: Assa Matusse

Classificação: 16

 

Todas as manhãs tudo se repete.

O poeta Eduardo White se despede de mim

à porta de casa, 

agradece-me o esforço que é mantê-lo

alimentado, vestido e bebido

(ele sem mover palha)

me lembra o pão que devo trazer,

os rebuçados para prendar o Sandro,

o sorriso luzidio e feliz para a Olga,

e alguma disposição da que me reste

para os amigos que, mais logo,

possam eventualmente aparecer.

(…)

O poeta, visto-o depois

e é com ele que amo

escrevo versos

e faço filhos.

 

Eduardo White

 

1.

 

Leio esta noite, de 21 de Novembro, Eduardo White. Ele é, indubitavelmente, o maior poeta da minha geração, e um dos mais intensos e belos e luminosos poetas moçambicanos de sempre. Escreveu sempre sobre o amor. O corpo da mulher, a nave da sua permanente viagem. Cito-o de novo: “Felizes os homens/ que cantam o amor./A eles a vontade do inexplicável/ e a forma dúbia dos oceanos.” Estes quatro versos definem muito, ou mesmo tudo, da poesia de Eduardo White, um homem que amava a felicidade de ser poeta, amava o ofício, assumia sem pudor o amor à mulher, à poesia, às palavras. À felicidade de amar o corpo da mulher: “Teu corpo é uma casa feliz”. Creio que este tema, recorrente na poesia do Eduardo, mas também na de outros poetas seus contemporâneos, tem muito que ver com a necessidade incontornável de fugir de um quotidiano opressivo, obsidiante, violento, de guerra, de desencanto e desespero. Era, por assim dizer, uma forma de resistência. O amor em vez do desespero. Lembram-se dos anos 80? Como se verá mais tarde, ao longo do seu excurso de trinta anos, a poesia do Eduardo White irá denunciar um crescente desencanto. A Pátria doía-lhe e condoía-lhe. Ele abominava a mediocridade, não se cansava de a cauterizar. Inconformado e incompreendido, não deixava de ser o poeta do amor, sempre exaltado, mesmo quando perpassava pelos seus versos uma certa ternura magoada. Foi assim que a sua poesia nasceu, que fez de Eduardo White um tradutor de inquietações, um poeta audaz, na contra-mão do sistema, nos antípodas do establishment. Um rebelde por excelência. Poeta de um apelo extraordinário, de um poder encantatório, de um soberbo imaginário, de um esplendor na língua, que amou e cultuou como poucos entre nós, sempre com os seus temas eletivos: o amor, a mulher, o mar, o Índico, a Ilha de Moçambique, o Oriente. A língua portuguesa. Este foi o seu programa poético, por assim dizer, a sua viagem esplêndida e vasta. Assim foi Eduardo White no seu profundo ecletismo, na sua solidão e na solidariedade, na sua iconoclastia e inconformismo, fiel à sua forma de estar e de ser, na sua exuberância, por vezes irracional, ou provocatoriamente irracional, levando até às últimas consequências o seu ideário poético, sempre transgressor e disruptor daquilo que para muitos seria a ordem. Poeta culto, premonitório, exigente e, sobretudo, um grande esteta, soberbo na sua linguagem caudalosa, que soube sempre ser um magnífico intérprete da complexa moçambicanidade sempre com a sua extraordinária paixão e minuciosa exegese.

 

2.

 

Aqui cito alguns versos, livro a livro, para que o próprio ilumine, com a sua poesia, o que tentei dizer acima:

 

Amar sobre o Índico (1984):

 

“Tu/ doce acre/ linfo possuído que a terra grita./ Amo-te assim/ neste lado do barco”

 

 “Filho que fosse/ a metade justa/ da oferenda”

 

“Deixa que me vista/ com a cor nua da tua fenda”

 

Homoine (1989):

 

“é o pássaro lento do esquecimento”

 

“com a morte explodindo como um tiro”

 

O País de Mim (1989):

 

“Eu já amava e escrevia versos/ nas paredes do útero de minha mãe.”

 

“Assume o amor como um ofício/ onde tens que te esmerar”

 

“Não gosto do pudor de certas palavras.”

 

“Quando morrer/ quero fazê-lo sem rumor algum, / sem ninguém que me chore/ ou a quem doa.”

 

“Diário é também/ o ofício da morte neste país”

 

“Não há enigma maior/ e que nos aflija tanto/ como o da morte.”

 

“Eu prefiro o respeito/ que não é medo nem coragem/ e que é parte de tudo aquilo/ que nós ganhámos/ depois de mortos.”

 

Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (1992):

 

“Voar é uma dádiva da poesia”

 

“Eu gosto do modo como desarrumam os meus assombros, os meus desesperos ante tanta podridão e também como me alarmam quando quero não admitir cercas coisas. Estou contente, mãe, deste-me a poesia por eternidade embora me doa tanto criá-la, aqui, na pátria da lassidão.”

 

Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza (1996):

 

“onde igualmente possa chorar a minha trágica fatalidade de poeta”

 

“porque cedo me deram a poesia, essa voz cândida, funda, pela qual empobreço escrevendo versos”

 

“Não há pão para a fome que o amor fabrica, não há perdão.”

 

“Todos os dias enlouqueço de uma loucura qualquer, de qualquer sentido doente que sobre o meu sangue se curva. Todos os dias tenho perguntas para tudo e não tenho respostas nenhumas e a minha mente, que é carnal de medo e memória sem propósito, não descansa”

 

“A vida que é um suposto mal-entendido como, aliás, eu próprio.”

 

“Estou cansado de trazer este peso comigo, este abismo para onde me atiro.”

 

“Por isso é que deixei que os versos me desvanecessem a juventude até onde podiam.”

 

“Por isso é que não há tranquilidade para quem se põe a escrever. E por isso também é que pergunto porque escrevo e que sentido é que terá a escrita dessa maneira que ninguém a lê.”

 

Janela para Oriente (1999):

 

“Escrever é uma razão forte, é uma audácia profunda.”

 

“Para que precisa um poeta de glória quando não pode escrever?”

 

“Não quero outra coisa senão este mistério em que me invento.”

 

“A janela do quarto de onde escrevo é de um esplendor que dá vontade de saltar por ela.”

 

Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001):

 

“Vivo intensamente todos os dias esse milagre de não parecer estranho o que se parece estranho em mim, porque posso perguntá-lo, tentar conhecê-lo porque posso traduzi-lo traduzindo-me.”

 

“Doer-me-ia se tivesse que viver exilado dela, morreria se a ela fosse impossível voltar. Tem uma origem divina esta língua quando a pronuncio e me embevece, um bálsamo para o que choro. Preciso dela, pois é tudo o que tenho como ferramenta e como trabalho, como propósito e intuição. Escrevo para que se entenda.”

 

O Manual das Mãos (2004):

 

“Sim, é verdade, e dou-lhes razão porque não é justo que um homem desista de sonhar com o melhor da vida tão-somente pelo facto de que pôs na cabeça que deveria escrever livros e poemas e fosse viver disso.”

 

“Aqui ninguém liga peva à poesia. Nem à poesia e nem a outra coisa nenhuma que cheire a cultura.”

 

“Amor. Um poeta que anda descalço, sobre a língua, tem muitos sonhos na cabeça e não tem cabeça nenhuma.”

 

“Um poeta não é para se perceber, é para sentir-se.”

 

“Alguém perceberá porque usará um poeta, óculos escuros à noite?”

 

“Nos poetas cada palavra tem o seu milagre.”

 

O Homem A Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004):

 

“Todos os dias me deito mestiço e pardo e acordo mestiço e pardo, feliz porque me sinto bem a sonhar e a viver com isso, sem estigma que me incomode ou revolte, porque jamais me concebi de outra maneira que não fosse esta e nem de outra forma vi o Mundo.”

 

“Deste meu passado orgulhoso de que me levanto e deste algum do meu presente em que sonha e cresce o meu pardo mestiço Eduardo White, moçambicano sem o favor de ninguém, a ser na vida a grande palhota dos palácios das suas cores.”

 

Até Amanhã Coração (2005):

 

“Adeus, coração, adeus. Nunca fui tão grande em todo o significado da minha existência e nobre, como deveria, ao senti-la.”

 

3.

Recordo esta noite um poeta inspirado. Um poeta genial. Um poeta assombrado pela vida e pelo destino do amor. Talvez o único, entre nós – falo dos poetas da minha geração! -, que encarnou a figura do poeta “maldito” e que a assumiu até às últimas consequências. Amou implacavelmente a vida. A morte desde sempre rondou os seus versos. A morte, esse pássaro lento do esquecimento, como ele a designava. Esse ofício. O ofício da morte que nos deixou sem um dos seus mais brilhantes oficiantes. Um prodigioso esteta. Morreu a 24 de Agosto de 2014, em Maputo. Tinha nascido em Quelimane, a 21 de Novembro de 1963. Leio-o esta noite, com júbilo, como sempre. Leio-o no dia dos seus anos. Para que ele não seja deslembrado – essa tarefa inclemente dos prosélitos da pátria e do esquecimento primoroso a que votam os que divergem ou os que simplesmente não levam trela no pensamento ou na criação. Porque a invenção literária é o território da liberdade. É preciso amar-se a liberdade para se ser um poeta. Leio-o como se o acenasse para esse país para onde ele terá emigrado, esse moçambicano sem favor de ninguém, livre e rebelde, genial e exuberante, que foi em vida um absoluto iconoclasta e se chamava Eduardo White.

 

 

 

Não é preciso fazer muito esforço, para constatar que são raras e honrosas as excepções dos que, abraçando ao mais alto nível a carreira de futebolistas no nosso país, acabaram-nas sem outra profissão e condições para manterem um padrão de vida à altura do nome que granjearam.

Não importa citar nomes. Uma pequena inventariação desta realidade no pós-Independência, traz-nos o cenário de que o profissionalismo – ou pseudo? – do nosso futebol, é como se fosse algo descartável, ao estilo “usa e deita fora”. Com actualizações e “nuances” para cada época, mas sem nunca ter alterado a génese: o atleta preteriu a escola para brilhar nos campos até onde pôde e depois… desenrasque-se!

Mudam-se os tempos alteram-se os riscos
No chamado tempo do carapau, a assinatura dos contratos, em muitos casos contemplava a entrega de uma casa, que os clubes conseguiam adquirir. Uma vez arrumadas as botas, o imóvel passava a ser o único capital para a ex-estrela, que o alugava, ou simplesmente vendia para sobreviver.

O ex-jogador, numa primeira fase, era enquadrado nas estruturas do clube, trabalhando, porque sem formação, na “deformação” das camadas jovens.

Depois mudaram-se os tempos e as realidades, excepto uma: é que tudo continua a ser feito “debaixo da mesa”, sem divulgação dos valores, logo sem tributação de impostos e como tal, sem acesso à Segurança Social.

Há um ditado português que cabe neste caso como uma luva: “enquanto dura, vida e doçura, em se acabando, gemendo e chorando”…

Nos dias que vivemos, aumentaram as incertezas e os riscos. O Moçambola, de Norte a Sul, com mais tempo no ar que em terra, impossibilita a compatibilização com qualquer tipo de formação que garanta um pós-futebol tranquilo. Daí que o atleta tente ganhar o máximo, enquanto ainda tem quilómetros nas pernas.

Mas tudo é imprevisível, começando nas viagens muitas vezes sem seguro de vida, com campos de pisos irregulares e como tal propiciadores de lesões, a que se juntam improvisados departamentos médicos, atrasos salariais e outras suficientes “insuficiências”.

É, seguramente por isso que, ao contrário do que se passa no basquetebol, em que a escola está presente na maioria dos jogadores e jogadoras, determinadas classes sociais da nossa praça não encorajem os seus filhos a optarem pelo desporto-rei, ao contrário do que esta modalidade experimenta no mundo desenvolvido, em que é um assunto de Estado. Ter na família um futebolista de eleição, é motivo de orgulho e por isso muitos jovens abandonam promissoras carreiras de Economia ou Direito, para “fazerem o gosto ao pé”.

E a pergunta é: “para onde vai o nosso futebol”? Será candidato, cada vez mais, a ser uma actividade marginal, para produzir marginalizados?

Esta semana, num café, um gestor de topo de uma empresa controlada pelo Estado contou-me, em segredo, que, em pleno período de pagamento de salários, não tem condições de honrar o compromisso, a tempo e horas, com os mais de 500 trabalhadores sob sua responsabilidade.

No meio da conversa, ele ia explicando que 30% da massa laboral é dispensável, não por ser preguiçosa ou maus trabalhadores, mas porque tornou-se ociosa, sem função, face à falta de adaptação da empresa ao mercado dos nossos dias.

Vi nestas palavras a fotografia actual do estado de saúde do sector empresarial público: acostumadas com as injecções do Estado, muitas destas empresas ficaram pelo caminho, operam no vermelho, estão contabilisticamente falidas, paralisadas, à espera do socorro de um governo também sem meios, e que por isso pressiona o crédito interno, indo buscar financiamento à banca nacional em concorrência desleal com o sector privado.

A recente crise económico-financeira, que esvaziou os cofres do governo, é uma tempestade para maior parte destas empresas e convoca-nos a uma reflexão sobre as oportunidades perdidas, ao longo dos anos, para reformular o papel do Estado no sector empresarial.

Lembra-nos que sempre se ensaiou – sem nenhum avanço determinante – a revisão da Lei das Empresas Públicas para ajustá-la à realidade; lembra-nos a timidez em o Estado alienar participações em empresas saudáveis, cuja vocação de gestão é privada; lembra-nos os pareceres do Tribunal Administrativo sobre os rios de dinheiro desembolsados, sem critério, às empresas subsidiadas pelo Estado; lembra-nos a posição do Tribunal Administrativo de que o IGEPE é incapaz de controlar e gerir os investimentos do Estado no capital social de 113 empresas; lembra-nos os alertas do Fundo Monetário Internacional sobre a falta de controlo das finanças públicas, principalmente dos valores destinados às empresas onde o Estado é dono; lembra-nos a voz de especialistas de que, numa economia de mercado, o Estado é árbitro, controlando apenas as empresas de ramos sociais e sem lógica de viabilidade.

Na recente visita aos ministérios, o Presidente da República confirmou que boa parte das empresas controladas pelo Estado estão depauperadas, com modelos de gestão retrógrados e sem rumo perante a falta de recursos que possam sustentar um plano de reestruturação. Ficou evidente que estas empresas sobreviveram às custas do Estado e que hoje estão num beco sem saída, pois quem as mantinha em pé caiu em recessão.

Esta crise tem os seus efeitos negativos na vida do país, mas nos ensina, à força, a repensar nas nossas contas e a valorizar cada metical dos cofres do Estado. Agora já não é uma questão de vontade, de estratégia, de discutir na especialidade ou na generalidade. É uma obrigação mudar. Afinal, o Estado-pai acabou, faliu.

Em contraciclo com muitas destas empresas, há pequenos sinais de mudança, reveladores de que não é preciso ficar refém do governo nem de leis para fazer novos caminhos. A Electricidade de Moçambique tem sido um exemplo [mal compreendido] de reformas, que passam pela diminuição de chefias, transparência no sistema de procurement, nomeação de cargos de direcção por concurso público, publicação de relatório e contas dentro dos prazos recomendáveis, aumento da tarifa de energia e “limpeza” de 300 trabalhadores fantasmas.

Se desta crise saírem empresas sustentáveis, disciplinadas, ajustadas às regras de mercado, ela terá sido uma oportunidade, como se tornou costume dizer.

 

Senti que não cabia nas calças. Sinal óbvio de ter minguando. Ou será que as calças alargaram?, perguntei-me, procurando disfarçar a frustração de sequer preencher as próprias calças, o que é grave para a reputação de um homem.

O cinto, nem ao último furo conseguia resolver o problema. Com um gesto irritado, desengatei a fivela e puxei-o como que a despromove-lo da função. Com a folga das calças, deslizou pelo cos, sem esforço. Enrolou-se na minha mão, como uma serpente envergonhada.

As calças, irrequietas, recusavam-se a manter-se no lugar. Sem o cinto soltaram-se. Escorregaram pelas pernas como moluscos embriagados. Percebi que me queriam dizer, na língua têxtil dos vestuários, que o cinto não é apenas um adorno para a cintura. Tem a missão insubstituível de segurar a dignidade de um homem: as calças! Mas o meu nem ao último furo mostrava-se competente.

Desanimado, arrastei os pés até a esquina do sapateiro, para me inventar no cinto, um buraco, que me permitisse ajustá-lo a minha medida. Era uma missão deprimente, mandar fazer aqueles buracos tão próximos da fivela. Um homem tem de acrescentar buracos é na parte exterior do cinto, longe da fivela, sinal de cintura alargada, barriga próspera.

O sapateiro estava sentado num jardim de sapatos velhos. O corpo sacudia-se ao ritmo com que engraxava o sapato de um fulano sentado à sua frente. Olhou, de soslaio, para a minha sombra, quando me sentiu aproximar. Esperou, sem parar de engraxar, até ver os meus pés surgirem no seu campo de visão. Arrastou a voz e atirou-me um “bom dia”, sem levantar a cabeça, reforçando-me a convicção de que o sapateiro reconhece as pessoas pelos sapatos.

– Não usaste cinto? – eu trazia o cinto enrolado na mão e segurava as calças, fazendo de suspensórios as próprias mãos.

– Como sabes que não usei cinto se nem olhaste para mim?

– Vê-se pela forma como a bainha toca os sapatos. Está toda a gente assim –  voltou a olhar para os meus sapatos quando disse "assim" – São os dias de hoje. Até essa forma de pisar sem entusiasmo, arrastar os pés como se o sapato fosse um casco inútil… são preocupações isso.

Deu, com a escova de engraxar, dois toques no sapato engraxado, sinal para que o fulano trocasse de pé. 

– Percebe-se a pessoa pela forma como pisa. Repara de que lado sofre a sola. O teu sofre na popa. O sapato fica inclinado, até parece barco da Ematum.

Riu-se. Os solavancos da gargalhada interromperam-lhe a engraxa. Contagiou o riso ao fulano engraxado. Dei por mim também a rir-me, algo que não me lembrava de fazer, nos últimos tempos.

O fulano rebuscou moedas no fundo do bolso. Vieram a custo ainda assim não chegava. Encabulou-se. Fizeram contas imperceptíveis e somaram com saldo de outros dias. Foi-se embora.

– É  assim mesmo – disse o sapateiro, encolhendo os ombros – em tempos difíceis temos de ser compreensivos. Não há dinheiro. E os que têm não engraxam sapatos. Compram novos.

Estendeu o braço. Entreguei-lhe o cinto. Apreciou a fivela. Acariciou o material. Contou os buracos. Abanou um "não" com a cabeça. 

– É o quê?

– Não dá.

– Não dá o quê? 

– Para acrescentar furos. Bom cinto mas já não dá. 

Devolveu-me o cinto. Fiquei especado, a olhar para o sapateiro,  para o cinto, para o nada. Pegou num sapato com a sola a descolar-se. Pôs-se a estudá-lo com muita ciência. Vendo-me assim, respondeu à minha pergunta silenciosa:

– Repara quantos buracos são. Não são doze?

Contei. Eram. 

– Pois, o primeiro é Janeiro. O segundo é Fevereiro. Março, Abril, Maio… até Dezembro. Depois de Dezembro não há nada. Não pode haver mais furos. Não há décimo terceiro mês. Pior este ano que, dizem, nem vai haver décimo terceiro salário.

– Agora vou andar assim com as calças a caírem?

– Toda a gente está assim – Levantou a cabeça, olhou para mim nos olhos, pela primeira – Não és o único. 

Recolhi o meu cinto inútil. Segurei as calças para não caírem. As mãos tinha de aprender a ser suspensórios. Despedi-me sem entusiamo. Senti um aperto indescritível. Fui-me embora com as calças na mão

 

 

John Dalberg-Acton, mais conhecido como Lord Acton, historiador, jornalista e político britânico, numa missiva que se tornaria lendária, dirigida ao bispo Mandell Creighton – chegou a ser Bispo de Londres -, disse a sua proverbial frase em 1887: “Power tends to corrupt, and absolut power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad man” (“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de tal modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.”) Isto foi dito em 1887, há 130 anos, e permanece actualíssimo! Dir-se-ia: é um pensamento daquele, deste e de todos os tempos.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez lembrou-se do Lord Acton e da sua lendária frase quando escreveu a sua obra seminal sobre o poder absoluto – sobre os ditadores: O Outono do Patriarca. Mas antes vira, na madrugada de 23 de Janeiro de 1958, em Caracas, o avião que levava Pérez Jiménez, a sua mulher, as suas filhas, os seus ministros e alguns amigos em fuga da Venezuela. O ditador, que tinha a cara inflamada por uma neuralgia – conta-se – estava furioso com o seu ajudante: na precipitação da fuga, este esquecera, no chão da pista do aeródromo, uma maleta com onze milhões de dólares. A queda de Jiménez, a primeira queda de um ditador naquela geografia mítica, levou o escritor colombiano a escrever aquele livro. Contou-o mais tarde a Plinio Apuleyo de Mendoza, seu amigo igualmente indefectível, numa conversa que está no livro de ambos – O Cheiro da Goaiba.   

Plínio Apuleyo de Mendoza: “Disseste-me que todos os teus livros têm como ponto de partida uma imagem visual. Qual foi a imagem de O Outono do Patriarca?

Gabriel García Márquez: “É a imagem de um ditador muito velho, inconcebivelmente velho, que fica só num palácio cheio de vacas.”
O tema do ditador e do caudilho é um tema importante na literatura latino-americana. Aliás, num texto exemplar sobre o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, que morreu no exílio em Londres, em 2005, o escritor peruano Mario Vargas Llosa considera a América Latina o “continente dos ditadores”. À época em que García Márquez publicou o seu famoso romance – que ele dizia ser o seu melhor livro, mesmo tendo escrito antes o soberbo Cem Anos de Solidão, o cubano Alejo Carpintier publicara O Recurso do Método, o paraguaio Augusto Roa Bastos, Yo, El Supremo, e o venezuelano Arturo Uslar Pietri, Oficio de Difuntos, entre outros. O poder, o poder absoluto, é um tema fascinante para o escritor colombiano. Por que tanto se interessava pelo tema?  
Gabriel García Márquez: “Porque sempre acreditei que o poder absoluto é a realização mais alta e mais complexa do ser humano, e que por isso resume, ao mesmo tempo, toda a sua grandeza e toda a sua miséria”. Aliás, Márquez não deixou de lembrar o aforismo certeiro de Lord Acton – “O poder absoluto tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. “É um tema inevitavelmente fascinante para um escritor”, sentenciou o colombiano.

Mario Vargas Llosa também escreveu um romance notável sobre o tema – A Festa do Chibo -, baseado na figura do ditador dominicano Rafael Leónidas Trujilo. Para mim, tanto O Outono do Patriarca (1975) do colombiano, como A Festa do Chibo (2000) do peruano, são as duas obras magistrais sobre o tema na literatura latino-americana. Tenho-me recordado tanto destas obras nestes dias!

África também tem ou teve muitas figuras literárias deste escopo. Recordo-me de ver o escritor nigeriano, Wole Soyinka, a falar no dia da morte de Sani Abacha, a 8 de Junho de 1988, e eu a pensar que seria inevitavelmente um tema literário aquele homem que acabara, inesperadamente, naquele dia. Soyinka estava então exilado, como muitos escritores africanos acossados, ou porque optaram pela sedição ou porque foram forçados a fugir perante regimes autoritários dos seus países, e não foram poucos. A literatura é o domínio da liberdade. As ditaduras ou os poderes despóticos ou monolíticos querem a desinência dos escritores – dos intelectuais. Não o contrário.

Nos anos 80 líamos com fascínio os escritores latino-americanos e exultávamos com as suas obras. Muitas vezes me interroguei por que razão não éramos capazes de escrever livros mais arrojados. Ou de ter posições públicas mais livres. Parece-me evidente que há constrangimentos: a proximidade do poder, por vezes a relação concupiscente com o mesmo, a auto-censura, a noção do preço da dissensão, a complacência, a resignação mesmo diante de um evidente opróbrio. O silêncio como forma de não pôr em causa o fim último. Tenho para mim que discordar não faz de quem diverge necessariamente anti-patriota. Antes pelo contrário, revela-se interesse e não descaso. Mas isso não serve perante os prosélitos do regime.

Tenho pensado muito, nestas semanas, em dois belíssimos escritores zimbabweanos. Dambuzo Marechera, que morreu prematuramente, em 1987, aos 35 anos, e Chenjerai Hove, que morreu no exílio, na Noroega, em 2015, aos 59 anos. Marechera era um iconoclasta absoluto – poeta e contista notável. Morreu cedo injustamente, vítima de SIDA.

Zimbabwe perdeu ali a sua esperança mais potente em termos literários nos anos 80. Ficou um marco – o livro de contos The House of Hunger.
Conheci, em Harare, em 1989, Chenjerai Hove. Colaborei, pela mão do Mia Couto, na Agência Internacional de Notícias – IPS, alternativa, sediada regionalmente no Zimbabwe, que tinha Chenjerai como coordenador. Hove era um homem probo, optou pela sedição e pela denúncia do que era e é absolutamente inaceitável. Acabaria por ser o mais importante escritor do país do pós-independência, não só pelo livro Bones, mas por uma imensa obra, que incluía poesia e ensaio, para além da ficção. A sua dissensão valeu-lhe o exílio. O vetusto Patriarca não se permite a tolerar liberdades, muito menos críticas.

Gostava imenso de ler o que eles escreveriam ou como eles descreveriam estes tempos que marcam, inelutavelmente, o fim do velho e alucinado Patriarca no seu país. O Outono deste Patriarca. O Inverno deste Patriarca. Felizmente, a notável escritora NoViolet Bulawayo não só escreve, como é lúcida e ferozmente crítica. Numa entrevista ao The Guardian, de Londres, há quatro anos, disse sobre o velho Patriarca: “There was a time when he was good for the country but I feel like that time is gone”. Não poderia haver melhor tradução para aquilo que intuía Lord Acton: “Houve um tempo em que ele foi bom para o país, mas eu sinto que esse tempo se esgotou…” (tradução livre).

É esta percepção que me parece ineludível. O seu tempo está esgotado. O Patriarca está fora do seu tempo e vive alucinado com e pelo poder. Poderia ser, evidentemente, um tema literário. Mas é muito mais do que isso. Porque aquelas imagens patéticas e cómicas encerram, indubitavelmente, uma grande tragédia. Não só por aquilo que foi, provavelmente, a grandeza deste homem – e sou capaz de reconhecê-lo -, mas a sua miséria, agora escancarada. Ou, sobretudo, a miséria humana e material a que condenou aqueles que agora o querem ver apartado do poder e gritam-no livremente nas ruas.
Como teria advertido Lord Acton, na célebre epístola ao futuro Bispo de Londres, quando falava do poder absoluto e dos seus efeitos devastadores, um grande homem que se tornou inevitavelmente num homem mau.

PS – O Patriarca haveria entretanto de resignar, depois de redigido este texto. O júbilo dos zimbabweanos comoveu-me até às lágrimas. Há muito que eu não vivia algo tão exaltante. Eu sou um implacável sonhador da liberdade. A ignomínia com que se cobriu no fim este homem releva da estupidez que o poder absoluto e a corrupção são pródigas em impor.

A pele branca de Lucky Luke estava corada. Cozida. Parecia um  mutlhutlhu, uma “água e sal” de sol e suor. A cor clara e os fiapos lisos do cabelo, não desmentiam: era estrangeiro àquele bairro em que o sol, severo, escurecia as peles para tons da ferrugem das chapas de zinco com que as casas são contruídas.

Luke atracou ali, na casa de Dube, como as naus da história, que vieram à procura de especiarias para trocas comercias. Queria comprar a especiaria “da boa” que Dube vendia: tabaco do arbustro que “basta crescer um pouco e roçar o tornozelo, já se pode colher as folhas” para deixar secar e enrolar numa mortalha.

Uma mulher atravessou o quintal. Desviou a atenção de Lucky Luke. Era Guidinha. Irmã de Lucky Dube. Passou por eles como um cometa de cauda leve, ao ritmo esvoaçante da capulana. O corpo vergava ao peso da bacia de roupa lavada. Parou. O quadril alargou-se quando inclinou para pousar a bacia. Levantou-se com uma peça de roupa na mão. A roupa gotejava. Estirou os braços com delicadeza feminina para alcancar o fio do estendal. As gotas molhavam-lhe a capulana. Misturavam-se-lhe ao suor. Voltou a dobrar-se para apanhar outra peça de roupa. O quadril alargou-se…

Luke elogiou os recursos naturais da Guidinha. Dube, visionário, convidou-o a entrar. Poderiam assim conferenciar a volta do assunto e desenvolver parcerias.

Por baixo duma mafurreira estéril sentaram-se sobre tijolos. Colocou um pequeno embrulho na coxa. Abriu e preparou as ervas e acendeu o cigarro. Fumaram.

A roupa no estendal pingava. Molhava a capulana, na fachada frontal da Guidinha. O sol incidia nas gotas com o mesmo resplendor que no suor dela. Inclinou para a bacia, para apanhar a última peça de roupa. O quadril alargou. Luke voltou a elogiar-lhe recursos naturais.

Ao primeiro trago do cigarro começaram a conferenciar. Estreitaram os laços, consolidaram a parceria de tal forma que Lucky Luke passou a desembolsar fundos e financiar os projectos de Dube. Em troca o rasta concessionou a Luke o direito de uso e aproveitamento pleno da irmã.

Dube prosperou e buscou mais parceiros. A uns concessionava, para exploração, as riquezas do sul,  outros as do centro, outros as do Norte da Guidinha.

Um dia Lucky Luke surpreendeu Guidinha, no quintal, a estender roupa. Estava com um fulano de pele amarela e olhos puxados. Um muchina. Quando ela inclinasse e o quadril alargasse, ele acocorava-se. Ela apanhava a roupa e ele as molas. Ela estendia e ele prendia. Depois olhavam um para o outro, entre as peças de roupa molhada e sorriam. Luke não gostou. Chamou a Guidinha para uma auditoria e instaurou Inquérito: às perguntas de Luke, Guidinha encolhia o ombro, negava, depois atirava um olhar furtivo para o muchina e continuava a estender a roupa, com gestos nervosos.  

Zangado, Luke cancelou a ajuda financeira. Dube prevendo uma crise, acendeu um cigarro daqueles. Luke rejeitou qualquer cachimbo de paz.

Entre as frestas da roupa estendida a irmã via os dois. Primeiro em gestos diplomáticos. Depois intensos.

Percebia-se  que os argumentos esquentavam. Um levantou o dedo, apontou. Outro também. Calaram, com os peitos um contra o outro,  desafiadoramente. Empurrões. Palavrões. De repente uma pistola, da  algibeira cowboy de Lucky Luke.

Guidinha fechou os olhos, abraçou o chinês. Ouviu um estrondo. Imaginou as árvores a estremecerem. Os pássaros a debandarem.

O tiro sacudiu o homem. As dreads pareciam folhagem duma palmeira enlouquecido. Dube cambaleou, três passos para trás, como se pisasse a percussão duma bateria reggae. Levou a mão ao ferimento. Olhou para a mão, confirmou o sangue. Olhou para o branco. Disse "why?" sem falar. A voz vertia pela ferida. Voltou a segurar a ferida para que não lhe vertesse a vida. Lentamente cedeu à gravidade. Caiu.

Guidinha abriu os olhos. Viu o irmão prostrado. O sangue no areal a misturar-se às gotas da roupa do estendal. As pernas fraquejaram. Cedeu. Caiu de joelhos. O choro era um grito soluçado que o vento alongou: 

— why?!

 

Numa altura em que muito se fala em academias para que os talentos encontrem espaço para explanarem as suas qualidades, veio-me à mente a experiência que considero inédita há pouco mais de uma década, do Pembinha, onde se forjaram alguns dos melhores futebolistas dos últimos anos, com Riquito como figura de proa.

A ideia surgiu porque os então astutos dirigentes do Costa do Sol, verificando que a equipa principal possuía estrelas de primeira grandeza como Gil, Nito, Caldeira, Semedo, Luís, Ramos e outros, deveriam criar condições para preparar, sem pressões, a “fornada” seguinte, a partir dos jovens que despontavam nos juniores.

O Pemba, então integrado nas EDM e na qualidade de filial do Costa do Sol, foi um “laboratório de experiências” que produziu resultados que servem de modelo, em toda a linha.
Como mentor e executor, um nome de referência e dedicação, tanto nos clubes como na Selecção Nacional: Arnaldo Salvado, que subiu na difícil função de treinador, não de elevador, mas através das escadas que a profissão exige. Foi adjunto de Rui Caçador e Bondarenko e o seu currículo fala por si, sendo o mais titulado do país.

Desencanto
Há uns anos, desencantado, decidiu afastar-se do futebol. O Ferroviário de Nampula conseguiu convencê-lo a abraçar um projecto no Moçambola que não teve o sucesso esperado. Aguentou, enfrentando algum racismo e anti-machanganismo de premeio, resistindo até onde pôde, até que, recentemente, anunciou que iria, em definitivo, deitar a “toalha ao chão”.

É pelo Salvado, raridade como cidadão e como homem do futebol e pelos outros que vão passando ao esquecimento, que devem os dirigentes (re)pensar. Onde param Miguel dos Santos, Euroflin, Geneto, Calton, Zainadine e tantos outros? Temos um Moçambola cada vez mais estrangeirado, dentro das quatro linhas e agora também no banco técnico. E se é bom que possamos ter desportistas de fora que representem mais-valias, a subalternização dos nossos não nos levará a lado algum.

No caso particular do “mister” Salvado, a FMF, poderia utilizar a sua vasta experiência e sensibilidade, para liderar um projecto ligado a uma Academia, como a Mário Coluna da Namaacha, para algo inovador que, estou seguro, produziria resultados e em poucos anos atingiria a auto-suficiência.

É desolador acompanharmos as frequentes descidas do nosso país no “ranking” FIFA e augurarmos avanços somente a partir dos Mambas. Os clubes, em regra, apostam no imediatismo, gastando mais dinheiro em meia dúzia de reforços para os seniores do que em toda a área de formação. O exemplo de uma acção no sentido inverso, vindo de cima, poderia “contagiar” as bases pela positiva, ressurgindo novos “Pembinhas”.

Porém, de uma coisa eu estou certo: o nosso futebol não pode dispensar, de ânimo leve, pessoas com provas dadas, em áreas em que estamos tão carenciados. Daí o apelo: salvemos, com projectos sérios, os Salvados que por várias razões se encontram desmotivados!

 

 

Há duas semanas, o Governador do Banco de Moçambique veio a público dizer, com todas as letras, que se o Governo não chegar a entendimento com o FMI, aproximam-se novos tempos difíceis; 2018 voltará a ser igual a 2016, ou seja, a inflação vai disparar para números históricos e agravar-se-á a incapacidade da nossa economia de gerar divisas para fazer face a despesas chave.

Aparentemente, ninguém ligou importância a Rogério Zandamela, pelo menos aquela que mereceria da parte de quem tem a responsabilidade de gestão do país e de evitar que o país caia em nova hecatombe. Do Parlamento ao Governo, todos assobiaram para o lado.

Chegar a entendimento com o FMI significa, e todos o sabemos, a nossa Justiça avançar de forma decisiva com o dossier das dívidas ocultas e responsabilizar os culpados. É isto que eles pedem. É isto que nós recusamos a dar.

É esta, de resto, como deixou claro o Governador Rogério Zandamela, a distância que separa os moçambicanos do sofrimento ou do bem-estar nos próximos tempos.

O tom muito afirmativo da declaração do Governador do Banco de Moçambique de que sem o FMI vamos cair a pique, sugere que Rogério Zandamela já percebeu as hesitações do poder executivo e está a fazer soar o alarme para chamar à consciência “quem é de direito”.

Rogério Zandamela foi nomeado para restabelecer a ordem na Política Monetária e Cambial do país e facilitar a ponte com o FMI face ao dificílimo contexto de 2016 nas nossas relações com aquela instituição.

Quando, há cinco meses, veio anunciar, publicamente, que o Banco de Moçambique já não estava a gerir a crise, Zandamela estava também a dizer que ele fez a sua parte, na parte monetária e cambial, e que a bola estava agora do lado do executivo, na parte fiscal.

Na altura, o destinatário desta mensagem fez ouvidos de mercador. Agora, o Governador do Banco de Moçambique repetiu-a com toda a dose de dramatismo: o ni?vel de endividamento pu?blico interno continua a aumentar, de forma assustadora, o que traduz a prevalência de um risco fiscal elevado. Com todo o esforc?o que a Autoridade Tributa?ria fac?a, na?o ha? como, no curto prazo, compensar esses cortes substanciais da ajuda externa.

Contudo, o Governador do BM voltou a ter como resposta o mesmo silêncio de há cinco meses. Porquê, interrogam-se, certas pessoas.

Porque, aparentemente, a Frelimo ainda não consensualizou o caminho que quer seguir. Se entrega à Justiça o grupo que manifestamente atirou o país para a lama, ou preserva os mais de 25 milhões de cidadãos que, incautos, assistem e sofrem com tudo isto. É uma decisão difícil, fracturante mesmo, dada a qualidade dos sujeitos envolvidos e a complexa teia que se tece em torno do assunto.

O Presidente Nyusi disse, no discurso de encerramento da reunião do Comité Central que antecedeu o XI Congresso, que havia indícios de crime na forma como foram contraídas as dívidas ocultas.

O Presidente da República tem um excepcional privilégio no acesso à informação. Quando diz algo, fá-ló porque já tem elementos suficientes para o fazer. E se disse que há indícios de crime no processo de contratação das dívidas ocultas, é porque os há. Ponto final. Mal seria de nós se tivéssemos um Presidente cujos discursos são meras especulações.

Ora, o Estado tem o dever de investigar todos os indícios de crime e, havendo, de facto, matéria, responsabilizar os seus autores. Mas as vozes que, amiúde, temos ouvido de alguns membros proeminentes da Frelimo sugerem que o país não precisa de negociar e sujeitar-se aos ditames do FMI, que pode sobreviver “sem eles”.

A última investida da Autoridade Tributária junto das empresas com uma campanha para “aumentar a receita” é prova viva de que há quem acredita que é possível compensar os cortes substanciais da ajuda externa, sugando mais o sector produtivo.

Num contexto normal, essas palavras seriam uma elogiosa afirmação da nossa soberania. Mas no actual contexto querem dizer muito mais coisas, nomeadamente que não devemos ceder ao FMI.

Ao que tudo indica, esta corrente de que o FMI e a ajuda dos parceiros não nos fazem falta tem adeptos significativos dentro das correntes do poder e são estes adeptos que têm estado a inibir a PGR de ir para a frente com este processo.

Todo o esforço e compromisso do Presidente em combater a corrupção perde consistência se o caso das dívidas ocultas não for alvo de uma investigação, mas uma investigação séria, transparente e honesta, e não uma caça às bruxas. Até para salvaguardar a honra de pessoas já consideradas culpadas pelo nem sempre justo tribunal popular.

Direccionar o combate à corrupção como estão a fazê-lo, ultimamente, as instituições da Justiça já é um bom passo, é certo, mas insuficiente. As dívidas ocultas poderiam ter o condão de recredibilizar as nossas instituições (e como tanto precisam elas disso) e a confiança dos cidadãos. Este caso seria para nós o que são a “Operação Marquês” e a “Lava jacto” para os portugueses e brasileiros, respectivamente.

Mas para isso, é preciso que os políticos se definam de uma vez, libertem a Dra. Beatriz Buchili e sua equipa das amarras políticas e lhes dêem luz verde para fazer o que eles já provaram ter competência para fazer…

PS1: faz hoje uma semana que não temos Governador em Cabo Delgado. Uma província tão estratégica para a economia nacional, não pode ficar tanto tempo com um vazio de liderança…

PS 2: as opções de investimento dos fundos do Estado continuam a ser questionáveis. Mal digerimos a gestão criminosa de Setina Titosse no FDA, já estamos com outro investimento duvidoso, agora do Fundo de Desenvolvimento de Transportes. O ministro Mesquita (oh, sô ministro, por que está sempre no centro da polémica?) muito se embrulhou na (tentativa de) explicação, mas pouco convenceu. O Governo convida-nos à contenção, mas investe balúrdios de recursos públicos em negócios de retorno duvidoso, atabalhoadamente explicados, quando milhares de moçambicanos penam em carrinhas abertas e sem segurança, todos os dias?
Onde está o estudo de viabilidade que sustentou esta opção de investimento, que nos convença de que não estamos em presença de mais uma operação ruinosa para as finanças públicas? E o segmento executivo é, nesta altura, a prioridade para uma companhia aérea pública, que se queixa de falta de aviões e deixa sistematicamente passageiros em terra?

Estou indignado e envergonhado: no Centro de Estudos Africanos, em plena Universidade Eduardo Mondlane, um painel de Malangatana Valente Ngwenya foi ultrajado, vituperado. Parece surreal: um tubo de canalização atravessa o mural do grande Mestre. Como é possível praticar-se semelhante crime? Ninguém viu nada? Num lugar frequentado por professores e estudantes universitários, ninguém se apercebeu de tamanha barbárie? Viram e ficaram todos calados? Provavelmente, o canalizador, ou quem teve a inditosa ideia, não sabe quem é Malangatana, nem tem a mínima ideia da sua relevância. Provavelmente, quem o fez é vítima da falta que a cultura faz no nosso ensino, da falta e ausência de verdadeira cidadania, num país onde, quando se fala de cultura, se confunde com o folclore e a sua desinência política. Dou de barato. Mas e todos os outros frequentadores daquele espaço não se aperceberam daquela alarvidade? Isto é preocupante. O silêncio e a passividade com que se assistiu e com que assistimos a actos tão inconcebíveis como este são inconcebíveis e indiscerníveis.

Aprendi com o tempo a ser menos irascível e mais desapaixonado nas opiniões. Ou simplesmente a não emiti-las. Mas silêncio perante isto é cumplicidade. Por isso, manifesto aqui a minha sedição. Não é impossível qualquer fleuma e não consigo conter a minha cólera: que país é este? Onde é que nós estamos? Seremos assim tão ignobilmente desavisados, impreparados, incultos? Como é possível algo assim acontecer numa universidade? Isto é demais! Isto é bastante grave! Isto é bastante feio! Isto é absolutamente indigno!

Malangatana Valente Ngwenya (1936-2011) é um nome que não discute. O seu génio, a sua importância, a sua relevância. Poeta, cantor, pintor, escultor. Um dos grandes intérpretes da moçambicanidade. Um dia ele disse: pinto ódio, feitiço, crime, angústia, paixão pela vida e pela poesia. Foi e é um nome audaz, um nome vigoroso, um nome soberbo. Aqui, lá fora. Homem de estatura universal. Onde devia ser valorizado, onde a sua obra devia ser estudada e protegida, é onde se vitupera o seu nome e a sua obra.

Este não é o único painel que Malangatana nos legatou. O painel do Centro de Desenvolvimento Sanitário, no Benfica, é um bom marco para fazer um roteiro pela cidade dos murais de Malangatana. Foi executado em 1985. Não é o mais antigo. Na vetusta sede do Banco de Moçambique há um painel de 1964. O mural não foi pintado directamente sobre a parede, mas em painéis de unitex e depois fixado. Foi para o então BNU. Num outro banco, o Barclays, no extremo da 24 de Julho, há um trabalho com 50 anos. Na Avenida do Trabalho, na Igreja Anglicana, na LAM, no bairro do Aeroporto, encontramos trabalhos do género do Mestre.

A Polana, a Ponta Vermelha e a Sommerschield não estão incólumes ao génio de Malangatana. A Presidência tem um mural, o Museu de História Natural tem também um mural, iniciado em 1977 e terminado em 1979. Em 1978 o pintor permaneceu em Nampula e isso explica o interregno. A Casa Velha, na Avenida Patrice Lumumba, também foi eternizada nas suas paredes com a arte de Malangatana.

À entrada da Faculdade de Medicina encontramos um mural importante de Malangatana: seringas, pessoas com ligaduras, corações – alusão indeclinável ao domínio da medicina. Mais adiante, o Palácio dos Casamentos, um painel que Eduardo White, outro criador indubitavelmente genial, chama-lhe “um milagre”: “Um sopro táctil para o amor. Uma rosa abrindo-se”, escreve a propósito o poeta de Amar sobre o Índico.

No edifício do Centro de Formação das TDM, ou onde está sediada a UNICEF, na Avenida do Zimbabwe, encontramo-nos perante a espantosa arte do Mestre. Este vilipendiado painel do Centro de Estudos Africanos, executado entre 1998 e 1999, seria para assinalar os 30 anos do assassinato de Eduardo Mondlane, o patrono da universidade. Ali foi assassinada Ruth First, em 1982, importante activista anti-apartheid, companheira de Joe Slovo, outro nome jubiloso da mesma luta.

Perante esta ultrajante imagem, perante este vitupério, perante este insulto ao Mestre, sou incapaz de redigir estas palavras de forma desapaixonada. Isto revela algo de grave. Muito mais grave do que a irresponsabilidade de um incauto canalizador. Vivemos um tempo em que o sucesso material tem concitado o entusiasmo de quem ignora a cultura. Por outro lado, não se fala nem se ensina sobre os nossos artistas. Lá fora, os miúdos vão aos museus ver as obras que estudaram na escola. Aqui existe um real desprezo pela cultura. A cultura – ou melhor, o folclore – serve para abrir comícios. Para muitos, cultura é apenas quando se levanta poeira. Dançar e cantar. Não existem outras manifestações culturais.

Perante isto e para além das cólicas e náuseas que isto me provoca, ouso dizer duas coisas: a universidade que se retrate e que promova, o mais breve possível, o restauro e valorização daquela obra. E que promova o conhecimento não só deste mural como de tantos outros. Citei alguns do Mestre para advertir os néscios.

O silêncio perante esta rudeza, perante esta incultura, perante esta boçalidade, é um silêncio cúmplice – disse-o. Pior do que isso, será permanecer-se perante a incúria, a indignidade, a indiscernibilidade, a ignorância, a indigência, a miséria, a sordidez, eu sei lá!… que aquele acto ignominioso representa. Não só para o Malangatana, mas para um país que não se pode reconhecer naquele tubo de canalização estuprando assim o património comum. Nós não merecemos semelhante opróbrio.

 

 

 

 

 

Começa a tornar-se muito moçambicano este hábito de correr para fazer políticas, planos, leis ou rever o que já existe, com objectivo – em linguagem dos proponentes – de harmonizar, uniformizar, adequar à realidade, como se esses documentos, por si só, tivessem iniciativa própria e fossem capazes de substituir a atitude necessária para melhorar a vida em sociedade.

A resposta para parte das grandes preocupações do país têm sido dada com propostas de nova legislação, políticas sectoriais e planos estratégicos, ignorando-se o facto de que, muitas vezes, não se está a introduzir nada de novo e que no lugar de mais papéis falta precisão na acção.

Na nossa esfera pública, não faltam sinais desta tendência e há actualmente dois exemplos que chamam atenção a esta ideia de privilegiar a burocracia para resolver os problemas, ao invés de cumprir o mais elementar nos instrumentos existentes. São os casos das propostas de criação da Política de Segurança Rodoviária e a revisão da Lei de Terras. Começemos pelo primeiro:

Em Agosto deste ano, o Instituto Nacional de Transportes Terrestres lançou uma consulta pública, em todo o país, para elaboração da Política de Segurança Rodoviária com vista à redução, em metade, dos acidentes de viação. De acordo com a polícia, as principais causas dos acidentes de viação são a condução em estado de embriaguez, excesso de velocidade, fraca formação dos condutores e desrepeito às regras de trânsito.

Ora, estas quatro razões dos acidentes de viação têm tratamento no Código de Estrada, actualizado em 2011 com a introdução de penas severas, como sejam a inibição do condutor em casos de embriaguez, excesso de velocidade e não uso do cinto de segurança. Acresce-se ao Código de Estrada, a existência de um Conselho Nacional de Viação, regulamentos para os subsistemas de transporte urbano, inter-urbano, inter provincial e internacional, além, por exemplo, da proibição do transporte de passageiros de longo curso entre as 22h00 e 04h00.

As perguntas que se impõem são as seguintes?

Que vazio pretende preencher a proposta de Política de Segurança Rodoviária que não seja possível fazê-lo no actual quadro?

O que falta ao Conselho Nacional de Viação, Código de Estrada e aos demais regulamentos se o seu papel é regular o trânsito, o comportamento na via pública e o transporte de passageiros?

Por que o Código de Estrada, tão severo, não serve como um elemento dissuador, quando condutores moçambicanos obedecem à risca as mesmas regras na vizinha África do Sul?

Na semana passada, no contexto do Fórum de Consulta sobre Terras, ficou consensualizada a ideia de revisão da Lei de Terras, passados 20 anos desde a sua entrada em vigor.

Um argumento de que produzimos documentos em que não nos revemos é o facto de que o princípio geral da Lei de Terras nunca foi respeitado desde 1997. É o tal princípio de que “a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida ou, por qualquer forma alienada, hipotecada ou penhorada”.

A lei que foi feita para também assegurar os direitos das comunidades e que estabelece que a terra é do povo moçambicano por direito parece não existir nos reassentamentos em Palma, onde o ministro da Terra, Ambiente e Desenvolvimento, Celso Correia, reconheceu irregularidades e mandou parar as consultas públicas, em 2015.

Somos, em muitos sectores de actividade, um país com leis sem resultados; com estratégias sem estrategas; com políticas sem soluções; com planos sem metas. Somos um país com os melhores papers, mas com imensas dificuldades de passar para o plano prático o preâmbulo do que nos propomos realizar.

A capulana a fazer de cortina. A luz, violenta, trespassa o pano. A mulher cerra os olhos. Cobre o rosto com a mão. Protege o sono. Num impulso busca o telemóvel. Tacteia, desesperada, a cama. A cabeceira. O chão. Resgata o telefone celular, entre as roupas despidas à pressa. Aguenta a luz. Abre um olho. Espreita as horas.

– Epa!

O susto afugenta o sono. Pestaneja. Esfrega os olhos. Mas não melhora a visão embaciada. Vai outra vez ao telemóvel. Confirma a hora.

– Caraças!

Dá um salto. Do sono para a vigília. Da cama para o chão. Enrola-se na capulana mais à mão.

– Acorda, comparsa.

O homem abre meio olho. Resmunga. Estica o corpo. Rebola. Devolve-se ao sono.

– Acorda comparsa. Está na hora.

Circula apressada. Faz volutas de vento com as partes sacudidas, ao andar. Vai. Vem. Desesperada.

– Acorda, comparsa.

 Uma gaveta emperra. O móvel está velho. Irrita-se. Mas não perde o respeito

– Comparsa.

Sacode-o. O homem acorda. Mas não se aviva. Demora deitado

– Comparsa. Estamos atrasados.

Dobra uma toalha. Pousa ao lado do marido. 

– Perdemos a hora.

Pendura uma camisa como se vestisse a cadeira.

– Não ouvimos o despertador

Acaricia as calças como se a  engomasse  com as mãos. Vê as horas. Vê o homem sonolento. Segura-se para não explodir. O respeito supera a irritação.

– Levanta, comparsa.

Levanta-se a custo. Nem deve ser tão tarde, pensa. As mulheres exageram, continua a pensar. Espreguiça. Uma, duas, três vezes.

– O que significa “comparsa”?

Ela não ouve. Não está ali. Esta na cozinha. Toalha no ombro. Fecha-se na casa de banho. A rosca seca da torneira chia: não sai água. Ouve-se um som grave de carretar no tambor: whooo! A música do balde a despejar na pia: whaaaa! Ritmo compassado da caneca a atirar água para o corpo: Tchá! Tchá! Tchá… Volta do banho. Atira a toalha ao acaso. Ajeita-se na roupa.

– Não engomo porque não há energia – desculpa-se ela.

– Está bom assim – conforma-se. Limpa os sapatos. Ajusta o cinto. Pára diante da porta. Vê as horas. Impacienta-se.

– Vamos, mulher.

Ela está ao espelho. Dá  uma última  demão no rosto. Arruma a toalha húmida de há pouco. Recolhe o telemóvel. A bolsa. A sacola com a clássica tigela de mangungo para o almoço. Diz "vamos comparsa" antes mesmo de estar pronta. Ele franze o sobrolho: o que quer dizer comparsa?

Não há tempo para perguntas. Correria. Ele vai a frente. Posição do alfa. A desbravar caminhos. 

Ela ajeita a saia para alargar a passada. Na pressa, tropeça. 

– Cuidado 

Contornou buracos. Lixo  no chão. Engarrafamento de viaturas no passeio. Poças de água das sarjetas entupidas. Depois de uma casa em ruínas, em frente a um muro que cheira à casas de banho públicas, com a escrita "aviso: proibido mijar", é a paragem. 

Os chapas estão abarrotados. Como latas de sardinhas prontas para exportação. Um camião atraca ao jeito salvador das arcas bíblicas. As pessoas correm. Trepam  como formigas desesperadas. É um transporte público improvisado. Um "my love".

O casal vê as horas. Troca um olhar cúmplice. Os olhos dele perguntam, quase decretam: vamos? Os dela, resignados, obedientes, dizem: vamos. E vão.

O homem trepa com agilidade masculina. Ela protege a bolsa na axila. O celular no sutiã.  Seguro a borda da carroçaria. Levanta a perna. Pisa a roda. A saia sobe. Ajeita. Em vão.

Ela sobe sem esforço. No espírito de entreajuda, cavalheiros solidários empurram-na pelas nádegas esponjosas. O camião acelera. O vento esvoaça os penteados. Assim apertados nem sentem os solavancos. Três batidas na chapa, sinal de paragem. É  o ponto dele. Pergunta: Tens dinheiro para a volta?  Ela diz que sim com a cabeça. Paga pelos dois. Salta do camião. O telemóvel cai do bolso. Esparrama-se. Enquanto recompõe  vê  o camião a afastar-se. A mulher entre o gado de passageiros, sorri e acena. Percebe os lábios dela a pronunciarem "comparsa". Na dúvida franze  a testa. O que significa "comparsa"?

Acácias amareladas de urina emolduram a via. O camião enfrenta  o esburacado do asfalto. Avança sob um dístico que atravessa a estrada e cria um portal majestoso, com a escrita "Parabéns cidade de Maputo pelos 130 anos". E desaparece.

 

O segredo do sucesso é conquistar aquilo que o dinheiro não pode comprar

In O vendedor de sonhos (Jayme Monjardim)

A cidade de Maputo completa, hoje, 130 anos de existência. Como forma de celebrar o aniversário, resolvemos, no texto que se segue, deixar ficar uma mensagem para um autor que tanto representa a capital na sua obra lá vão 30 anos. Nada ao acaso, afinal, a cidade das acácias, por via do Conselho Municipal, homenageou o escritor na Feira do Livro de Maputo deste ano. Quisemos fazer parte dessa iniciativa. 

Começaríamos esta intervenção, feita numa ocasião importante para a cidade de Maputo, por felicitar um grande autor da nossa literatura. E quando afirmamos grande, não nos referimos ao tamanho físico, é mesmo de espírito, porque aí, nesse espírito, mora a linha contínua que nos mantém sempre unidos numa atmosfera que se chama Moçambique. Mas apenas felicitar um autor que, em 30 anos de percurso literário conseguiu aglutinar todo um universo feito de fragmentos que nos caracterizam, a nós, como povo que sonha, vibra, celebra, canta e dança, mesmo quando as lágrimas são rios que não secam, parece-nos pouco, insignificante até. Por isso, ao invés de o felicitar por toda a obra que conseguiu erguer com sacrifício, suor e uma entrega árdua ao poder da imaginação, assumindo a presunção de representar o leitor moçambicano, cada vez mais sedento da sua obra, preferimos agradecer: obrigado, Aldino Muianga; obrigado por nos transportares para as letras e, a partir disso, conduzires-nos a uma infinita viagem pela nossa realidade (e cidade), que, seguramente, nos escaparia da memória sem a ficção que nos habituaste. A obra de Aldino tanto consegue nos purificar a alma com esse poder catártico, como possui uma incrível capacidade de nos devolver a nossa História, naturalmente, feita de várias estórias. E mais, os 15 livros do escritor são instrumentos que permitem aos moçambicanos e quem gosta de Moçambique conhecer o advento da construção de um país que bem sabe o valor da liberdade.

Por via da escrita de Aldino Muianga, aprendemos a ser pássaros que sabem voar bem alto e contradizer os ponteiros do tempo. Porque, a partir da obra, aprendemos que podemos recuar ao passado e projectarmo-nos para o presente sempre que nos der vontade. Então, nunca fiques com Asas quebradas porque te ter como escritor é um privilégio… a tua obra é a personificação de um ser que em cada lusco-fusco brinda-nos com a esperança ainda mais reluzente. Por isso felicitar-te é pouco. Agradecer resume todas as nossas emoções, sensibilidades, convicções e desejos, de forma sincera e autêntica, porque também sabemos dar “uma mão cheia de nós, das boas coisas que somos”, como nos diria o nosso Eduardo White.

Numa altura em que Maputo celebra 130 anos desde a sua elevação à categoria de cidade, sinceramente, consideramos estas linhas coerente. Afinal, quem não sabe que a escrita de Aldino Muianga é uma ode à cidade de Maputo e a tantos mbongolwenes que nela habitam? Quem não sabe que a obra de Aldino é um guia que nos consegue levar de pés descalços por aqueles kavieira (Maxaquene) para, em troca, nos encher de sorrisos resultantes das artimanhas desses domadores de burros de outros contextos? A forma como o nosso escritor configura a capital, os hábitos dos cidadãos e as cores da sua alma, de tão encantador, prende-nos, pois, como disse Noel Langa uma vez, Aldino Muianga não escreve o que vê, escreve o que sente. E escrever o que nos vai à alma representa o mais elevado grau do que nos sintetiza como pessoas feitas para o bem dos outros.

O Aldino é um vendedor de sonhos, sem que isso implique um retorno monetário. O Aldino é a nossa voz em silêncio, essa que, quando a conseguimos escutar, faz-nos alcançar uma dimensão mais plural da nossa singularidade.

Com efeito, agradecer-te, Aldino Muianga, é reconhecer o que ainda és capaz de fazer por esta cidade que tanto precisa de todos nós. Esta cidade que acolhe gente de todas etnias, de todas cores, culturas e origens. Uma cidade orgulhosamente moçambicana, mas humildemente aberta ao mundo. E o mundo que cá vive está consciente disso.

Obrigado por nos contares cada um dos 130 anos que Maputo tem. Pelo poder da pena, tu consegues dizer o que nos custaria uma eternidade a tentar compreender como se faz. Contigo, mais do que ser fácil, é prazeroso conhecer esta que jamais deixará de ser a pérola do Índico.

Obrigado, Aldino Muianga; obrigado, Maputo, por resistires às intempéries.

Esta semana, o jornal “Notícias” publicou uma reportagem dando conta de que a fábrica de montagem de veículos automóveis “Matchedje”, sediada na Matola, está sem mercado e em vias de fechar, pois os consumidores preferem importar viaturas a comprar aquela marca nacional.

A fábrica “Matchedje” foi inaugurada há apenas três anos pelo então Presidente Guebuza e, como foi dito na altura, ela é resultado da implementação da política nacional de industrialização ,que prevê a criação de um modelo de desenvolvimento industrial eminentemente moçambicano.

Entre outros, esta fábrica tinha o objectivo de reduzir a importação de viaturas ao país e alegrar a nossa auto-estima como moçambicanos.

Para alicerçar aquilo que parecia um cometimento genuíno do governo com o que apregoava, um ano após a sua inauguração, a fábrica recebeu o selo “Made in Mozambique”, do Ministério da Indústria e Comércio, para deixar inequívoco que esta é uma marca moçambicana e reforçar o lema “Produza, consuma e exporte moçambicano”.

Três anos volvidos, não se vislumbra que esteja em curso nem um modelo de desenvolvimento industrial endógeno ao qual a fábrica esteja ligada nem reduzimos a importação de viaturas por passar a comprar as fabricadas localmente e muito menos, pelo que se vê, há na actual situação da “Matchedje” motivos de nos enchermos de auto-estima. Antes pelo contrário.

Poderíamos dizer que os gestores da “Matchedje” não calcularam devidamente o risco que representa o nosso mercado e contaram com um conjunto irrealista de premissas, que não se concretizou. Mas um Estado que queira induzir o consumo do produto nacional, tem ele próprio que assumir a iniciativa. Afinal, o nosso Estado ainda é o principal agente na nossa economia.

Ora, neste caso, vemos as mesmas pessoas que clamam por investimento para o País a desvalorizarem-no, quando este chega, porque é mais importante assegurar os seus interesses que os do Estado.

Por isso que, estranhamente, nada mudou na política de aquisições do Estado, no tocante a viaturas, apesar de termos ido mobilizar um investidor para “torrar” 150 milhões de dólares numa fábrica que sabíamos que não lhe ligaríamos nenhuma.

A apetência de quem toma decisões no procurement do Estado continuam a ser os mercedes e outras marcas estrangeiras, porque os slogans de auto-estima, made in Mozambique, são apenas para debitar em discursos oficiais.

Outrossim, a fábrica Matchedje foi anunciada, na inauguração feita pelo Presidente Guebuza, há três anos, como fabricante de autocarros de transporte de passageiros a preços mais competitivos, em meticais, e com toda a assistência técnica, mas precisamente esta semana, a vice-ministra dos Transportes e Comunicações anunciou a importação de cerca de 300 autocarros, o primeiro lote dos quais é esperado este mês de Novembro.

Estranho, não é, quando se tem uma fábrica, no nosso próprio país, que o próprio Governo nos disse que fabricava autocarros.

Daqui a mais ou menos um ano, estaremos aqui a discutir, como se viu na recente visita do Presidente da República aos TPM, que muitos destes 300 autocarros estão parados por falta de acessórios no mercado. Aliás, nos últimos três anos, o Governo, sem exagero, importou cerca de 400/500 autocarros para as principais cidades do país. Parte significativa deles está parada e não deve ter circulado mais do que dois anos.

Dá para entender?

Nos últimos anos, tem sido dada a conhecer, por meio do Gabinete Central de Combate à Corrupção, a abertura de centenas de processos-crime, sejam de pouca monta, sejam os que tocam algumas das altas figuras ligadas aos sectores público e privado.

Se olharmos atentamente para os números, compreendemos que a investigação à corrupção melhorou, de 2014 a 2016. Senão vejamos: 2014 (906 processos-crime); 2015 (1 051 processos-crime); 2016 (1 235 processos-crime). Em 2016, os 1 235 processos-crime conduziram a 500 acusações e mais de 160 detenções.

As recentes condenações do antigo administrador financeiro da LAM, Jeremias Tchamo, e do ex-ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Abdurremane de Almeida, o julgamento do “caso FDA” e a investigação em curso do “caso LAM/EMBRAER”, entre tantos outros, são sinais de que o Gabinete Central de Combate à Corrupção ganhou alguma margem para enfrentar o poder.

Esta actuação, associada ao discurso do Presidente da República de que a corrupção é um cancro que dizima a sociedade, é reveladora de uma intenção que pode significar intolerância ao desvio de fundos no aparelho de Estado.

Contudo, o mais importante no combate à corrupção, hoje, ainda não foi feito e é aqui onde o discurso do Presidente da República perde pragmatismo e coerência, e a Procuradoria-geral da República deixa a imagem de estar paralisada, de ser selectiva em todos os momentos em que é rápida. É o caso das dívidas ocultas, tecnicamente designados processo Nº 2/PGR/2015, relativo à EMATUM, e processo Nº 15/PGR/2016, ligado a PROINDICUS e MAM.

É nosso entender que, enquanto não houver esclarecimento e responsabilização pelos erros na contratação das dívidas destas três empresas, todo o esforço e discurso de combate à corrupção será muito pouco para convencer os moçambicanos de que a nossa justiça é confiável e funciona.

Se ficar provado, as dívidas ocultas serão a maior fraude da história de Moçambique, mas há contas que nenhuma projecção pode ainda determinar: quanto custa o bloqueio dos Parceiros de Apoio Programático ao Orçamento de Estado? Quanto custa a imagem descredibilizada do país? Quanto custa o encerramento da embaixada da Dinamarca? Quanto custa reconstruir a confiança?

É por isso que as dívidas ocultas poderão ser a maior prova de (in)justiça em Moçambique, acima  de qualquer caso, não só pela necessidade de esclarecimento e responsabilização, mas pelos danos ao tecido social, à economia e às famílias.

O relatório da Kroll apontou inconsistências no propósito declarado relativamente aos USD 500 milhões do empréstimo da EMATUM, discrepâncias nos preços dos activos e serviços, inoperância das empresas, lacunas na emissão das garantias do Estado, evidência de falhas na gestão das empresas auditadas e bloqueio de informação por parte dos gestores das três empresas. A questão de fundo é: que elementos faltam à Procuradoria-geral da República para avançar?

Esta segunda-feira, o influente The Wall Street Journal – o jornal de maior circulação nos Estados Unidos – revelou que a justiça americana está a investigar os bancos envolvidos nas dívidas ocultas. Dito de outra forma, há uma parte do trabalho que não precisamos de ser nós a fazer, os outros fazem por nós com os métodos mais modernos do mundo.

Nunca tenhas medo do horizonte, não há prazer mais saboroso que o trajecto

Raquel Lanseros

Com “O bebedor de horizontes”, Mia Couto chega ao fim da linha, no que diz respeito “As areias do imperador”, não fosse aquele o último dos três livros que ficciona parte da história de Ngungunyane. No livro, encontramo-nos com um Leão de Gaza debilitado, por ter sido capturado por Mouzinho de Albuquerque. Assim, a narrativa dá-nos a imagem de um rei comum como os seus subalternos, com tanto medo do horizonte que se configura no seu olhar e na sua imaginação a cada dia da sua condição de prisioneiro. Em cada trago desse horizonte angustiante, Ngungunyane enxerga a morte, situação suficiente para o tornar obsessivo, paranoico e desconfiado. É por consequência da humanização desse rei extraordinário que a narradora da estória consegue-o desmascarar. Por causa de Imane Nsambe, temos a imagem de cada ruga do Leão de Gaza e do seu comportamento diante do medo. Nisso, Mia Couto consegue tornar Ngungunyane, por via da personagem, mais conhecido e mais perto de nós.

Ora, se, por um lado, Mia desenterra uma estória em letargia, do séc. XIX, desrespeitando completamente o rigor da história oficial, por outro, ao contar uma outra versão dos factos, depois de uma exigente e impressionante pesquisa, torna a sua estória sobre Ngungunyane um subterfúgio para narrar sobre a condição da mulher. Para o efeito, o escritor apega-se a uma relação amorosa, entre a chope Imane Nsambe e o português Germano de Melo, que já vem de “Mulheres de cinzas”.  

Tem se dito que por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher. No caso de “O bebedor de horizontes” essa mulher não está atrás de um grande homem como é o caso de Ngungunyane. Está ao lado, e, não poucas vezes, até passa à frente em termos de importância discursiva. É Imane essa mulher – narradora autodiegética com igual protagonismo do imperador – que nos dá pelo menos duas narrativas em paralelo: a do fim de um império (Gaza) e a do surgimento de um pesadelo (sua própria história).  

Com Imane no enredo, Mia explora com acutilância a subalternização da mulher. Imane é exemplo disso, afinal a personagem é obrigada a deixar o seu amor para trás e embarcar numa viagem como tradutora de Ngungunyane. É uma condição de servidão que abraça Imane, em relação ao imperador e em relação aos portugueses, pois, a certa altura do trajecto a Portugal, tornam-na uma espiã ao serviço da coroa lusitana. A filha dos Nsambe é uma rapariga sem controlo da sua vida e tão-pouco de Sanga, o fruto do amor partilhado com Germano. Por isso, tempos depois do parto, a sogra arranca-lhe o bebé, mesmo a cumprir o desejo de Germano. Mais do que isso, a violência de Laura de Melo impede Imane de ser mãe, com filho vivo.

Enquanto ao Ngungunyane é-lhe dado a oportunidade de partir com sete esposas e ficar com o filho Godido no exílio, sem saber o que é sede, de tanto beber dos horizontes, à Imane é-lhe retirada tudo o que tem de mais valioso por não ser além de um instrumento do poder. Sem o amor e sem o fruto dessa árvore, a personagem apenas aprende a perder até o chão. Mal vista pela sua gente e pelos portugueses, nem em Portugal pode ficar. Quando deixa de ser útil, primeiro é levada a São Tomé e, depois, de volta a Moçambique, sem nunca reencontrar Germano. A vida é o próprio exílio da personagem, condenada a ser pouca coisa.

Ora, este “O bebedor de horizontes” é um livro riquíssimo do ponto de vista de verosimilhança. A fronteira entre o real e a ficção é invisível. Aqui temos um Mia como que no auge do seu poder criativo, conseguindo respeitar na trama a atmosfera de um período movido por outros comportamentos. É deveras apreciável a maneira como a narrativa evolui ao longo dos espaços. Depois, há ainda as personagens, com o poder de nos colocar à espera de ouvir a beleza causada pelas palavras bem combinadas: “quem mais sofre? Aquele que espera para sempre ou quem nunca esperou por ninguém?” (p. 349). Essa é Dabondi.

Portanto, esta é uma história que nos mostra como a mulher é tratada ao longo do tempo. Ao fazer-nos sentir as dores de Imane, “O bebedor de horizontes” coloca-nos por alguns instantes no lugar da personagem, quem sabe, para deixarmos de colocar a mulher por detrás de um grande homem. É mesmo ao lado que ela deve ficar.

 

Título: “O bebedor de horizontes”

Autor: Mia Couto

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 17

 

 

1.

Leio o conto “A carruagem”, de Nikolai Gógol. A história passa-se numa cidadezinha B…, que vive mergulhada num tédio profundo, mas passa a ser um lugar muito animado quando  nela se aquartela um regimento de cavalaria. Num grande almoço, que reunia homens apenas, dos mais influentes da cidadezinha, onde se encontravam desde oficiais a proprietários de terras, eis que o mais conhecido aristocrata, de seu nome Pifagór Pifagórich Tchertokútski, quando o anfitrião exibia o seu novo cavalo,  se gabará  da sua nova carruagem.

            Nikolai Gógol:

            “- Qual? Aquela com a qual chegou?

– Ah, não! Esta é própria apenas para as minhas viagenzinhas, mas a outra… é um espectáculo, leve como uma pena e, quando a gente se senta nela, então…! Excelência, se me permite, é como se uma aia o embalasse em um berço!

– Então é bem confortável?

– Muito, muito confortável; as almofadas, as molas…tudo parece uma pintura.

– Que beleza!

– E as acomodações, então? Eu nunca vi coisa igual, Excelência. Quando eu ainda estava em serviço, cabiam no seu maleiro dez garrafas de rum e umas vinte libras de tabaco, sem contar, Excelência, que ainda levava comigo uns seis uniformes, roupa-branca, dois cachimbos dos mais compridos, e nos bolsos ainda dava para colocar um boi inteiro.

– Que beleza!

– Paguei por ela quatro mil rublos, Excelência.

– A julgar pelo preço, deve ser boa mesmo. E foi o senhor mesmo que a comprou?

– Não, Excelência, consegui-a, assim, de ocasião. Meu amigo comprou-a, pessoa muito rara, amigo meu de infância, com o qual o senhor se daria muito bem. O que era de um era do outro, tanto fazia. Ganhei-a dele no jogo de cartas. Se Vossa Excelência me der a honra de vir almoçar comigo amanhã, então poderá vê-la também.

– Não sei bem o que lhe dizer. Eu assim sozinho, não sei bem… A não ser que o senhor me permita ir acompanhado por dois oficiais.

– Claro, por favor, os senhores oficiais também. Senhores, será para mim uma grande honra ter prazer de recebê-los em minha casa!

            O coronel, o major e os demais oficiais agradeceram com cortesia e fizeram uma reverência.

– Eu mesmo, Excelência, também penso que, quando compramos alguma coisa, tem de ser boa, caso contrário, é melhor não comprar nada. Amanhã, em minha casa, por exemplo, quando me derem a honra de me visitarem, mostrar-lhes-ei algumas aquisições de uso doméstico.

            O general observou-o e deixou a fumaça escapar da boca.

            Tchertokútski ficou muito satisfeito de ter convidado os senhores oficiais, e mentalmente começou desde logo a encomendar os patês e molhos, olhando alegremente para os senhores oficiais, que, de sua parte, também pareciam agora redobrar a simpatia para com ele, o que podia ser notado pelos seus olhos e pelos pequenos movimentos do corpo na forma de ligeiras saudações.

            Tchertokútski passou a conduzir-se de modo mais desenvolto, a voz tornou-se então mais relaxada, com uma entonação plena de contentamento.

            – Vossa Excelência conhecerá também a dona da casa.

            – Com muito prazer – disse o general, acariciando o bigode.”

 

Tchertokútski quis sair cedo e voltar para casa para preparar o almoço do dia seguinte, mas hesitou e foi ficando. Primeiro foi um copo de ponche, bebido num gole, depois foi outro, e ainda outro e outro e outro. Entre o copo e a diversão no jogo do whist ficou até de madrugada, tendo chegado a casa completamente embriagado.

 

Nikolai Gógol:

“Em casa todos dormiam profundamente. Custou muito ao cocheiro encontrar o camareiro, que conduziu o seu senhor pela sala de estar, entregou-o à criada de quarto, com a qual Tchertokútski alcançou cambaleante o quarto de dormir e se aninhou ao lado da jovem e bela esposa, que estava deitada de forma encantadora em seu traje de dormir, branco como a neve. Ela despertou com o movimento produzido pela queda do marido na cama. Estirou-se, ergueu as pálpebras e, depois de semicerrar rapidamente os olhos três vezes seguidas, abriu-os com um sorriso algo amuado, mas ao certificar-se de que desta vez ele não lhe dispensaria a menor carícia, virou-se para o outro lado com certo desgosto e, apoiando a bochecha fresca na mão, pegou no sono.

            A manhã já ia bem adiantada, o que para o campo não é nada cedo, quando a jovem acordou ao lado do marido, que roncava. Ao lembrar-se de que ele voltara para casa às quatros horas da manhã, teve pena de despertá-lo. Calçou então as pantufas que o marido mandara vir de Petersburgo e, vestida em uma camisola branca cujas pregas ondulavam ao longo de seu corpo como cascata, entrou em seu toucador, lavou-se com água tão fresca quanto a sua tez e aproximou-se do espelho. Depois de se olhar uma duas vezes, concluiu que não estava nada mal naquela manhã.”

 

Sentada mais tarde, na alameda sombreada, de onde se divisava a longa estrada, esquecida da hora e do facto de o marido estar a dormir, para lá das 12 horas, avistou, perante uma nuvem de poeira, várias carruagens e adivinhou que se trata de visitas que se dirigiam à sua casa.

 

Nikolai Gógol:

“- Será que estão vindo para cá? – pensou a dona de casa. – Ah, meu Deus! É mesmo, eles viraram na ponte! – Ela soltou um grito, ergueu os braços e correu pelo canteiro de flores directo para o quarto de seu marido. Ele dormia como um morto.

– Levante. Levante! Levante rápido! – gritava, pegando-o pelo braço.

– Hein? – murmurou Tchertokútski e espreguiçou sem abrir os olhos.

– Levante, meu pomponzinho! Não está ouvindo? Temos visitas!

– Visitas, como visitas? E dizendo isto, emitiu um pequeno grunhido como um bezerro que procura com o focinho as tetinhas da mãe.

– Mm…- resmungou. – Traga aqui esse pescocinho, minha mumu, que vou te dar um beijinho.

– Levanta, meu amorzinho, pelo amor de Deus, rápido! Vem aí o general e seus oficiais! Ah, santo Deus, você tem bardanas nos bigodes.

– O general? Então ele já vem vindo? Por que diabos ninguém me acordou? E o almoço, então já está tudo pronto para o almoço?

– Que almoço?

– Será possível que eu não encomendei?”

 

Tchertokútski decidiu esconder-se, cogitou fazê-lo na cocheira, mas quando estava lá, percebeu que poderia ser encontrado. Então, lembrou-se da carruagem e abaixou o estribo e meteu-se lá dentro e fechou-se, cobrindo-se de uma manta e de uma cobertura de couro.

 

Nikolai Gógol:

“- O senhor não está em casa – disse um lacaio, aparecendo no terraço da entrada.

– Mas como não está? Mas deve estar para o almoço, não?

– De modo algum. Estará fora o dia todo. Talvez amanhã por volta deste mesmo horário já esteja por aqui.

– Mas veja só isso! – disse o general. – Como é possível?

– Aposto que é uma brincadeira – exclamou o coronel, rindo.

– Ah, não, isto não se faz! Prosseguiu o general nada satisfeito. Arre! Que diabo! Se não nos podia receber, então por que convidou?”

 

O coronel resignado propõe que se vão embora, mas o general antes de abandonar a casa procura pelo cavalariço e pergunta pela carruagem que Tchertokútski adquirira recentemente. Vão todos até à estrebaria.

 

Nikolai Gógol:

“O general e os oficiais deram uma volta ao redor da carruagem e examinaram cuidadosamente as rodas e as molas.

– Bem, não vejo nada de especial – disse o general. – É uma carruagem das mais comuns.

– Sem graça nenhuma – confirmou o coronel. – Absolutamente nada de especial.

– Me parece, Excelência, que não vale nem quatro mil rublos – acrescentou um dos jovens oficiais.

– Quê?

– Eu disse, Excelência, que ela não vale quatro mil rublos.

– Mas que quatro mil rublos! Não vale nem dois mil. Ela não tem nada de nada. A não ser que dentro tenha algo de especial…Por gentileza, amigo, levante a cobertura de couro…

            E diante dos oficiais surgiu Tchertokútski, envolto no roupão, encolhido de uma forma bem esquisita.

– Ah, então você está aqui!… – exclamou o general estupefacto.

Dito isto, no mesmo instante o general bateu as portinholas com violência, atirou de novo a cobertura sobre Tchertokútski e foi embora com os senhores oficiais.”

 

Este belíssimo texto, resumido aqui de forma canhestra, oriundo de uma tradução btrasielira, aqui adaptada, data de 1836. Nikolai Gógol viveu entre 1809 e 1852. Tanto ele como Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que escreveu Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov ou O Jogador; Ivan Turguêniev (1818-1883), que foi o primeiro autor russo a adquirir fama fora da Rússia, que escreveu Pais e Filhos, ainda hoje considerada uma obra-prima;  Anton Tchekhov (1860-1904), autor de peças como A Gaivota ou Tio Vânia, são importantes na minha formação literária, nos anos 80, quando eu fazia teatro radiofónico. Tchekhov abandonaria o teatro e ficaria na história da literatura como um grande contista, tendo influenciado nomes que me são caros, como John Cheever, Ernest Hemingway, Raymond Carver, entre outros, só para citar os mestres americanos; Lev Tolstói (1828-1910),  o da Guerra e Paz, mas também da Ana Karenina. Estes são os grandes nomes da literatura russa anterior à revolução bolchevique de Outubro de 1917, que fez por estes dias – 7 de Novembro –  100 anos. Viveram a revolução ou os anos da revolução Maximo Górki (1868-1936), de quem li muito jovem o romance A Mãe; Boris Pasternak (1890-1960), autor de Dr. Jivago, famoso por ter recusado o Prémio Nobel dois anos antes da sua morte;  Isaac Bábel (1894-1940), que lembro de ter em casa dos meus pais e de ler Os Contos de Odessa, que muito me impressionaram; ou ainda Vladimir Nabókov (1899-1977), muito conhecido pelo romance Lolita, autor russo e simultaneamente anglo-saxónico. Alexander Soljenítsin (1918-2008) nasceu um ano depois da Revolução. O autor de Um Dia na vida de Ivan Denisovich e Arquipélago de Gulag foi laureado pelo Nobel em 1970.

 

2.

Fany Mpfumo morreu há 30 anos. Procuro, na noite de 3 de Novembro, o disco Nyoxanini. Sei que o tenho algures. “Famba ha hombe” traz-me de volta aquela voz. Sobressalto de emoção. Cresci a ouvir Fany Mpfumo. Eu ouvia vezes sem conta “Hodi”, “A vasati va lomu”, “Georgina”, “Unga hlupheki” ou “Lesvi wene unga xonga”. Retorno, nesta noite de sexta-feira, à minha infância. Vi-o duas vezes – no vetusto Scala e no pavilhão do Estrela Vermelha. Creio que foi o último espectáculo que ele deu. Já estava carcomido pela doença e pelo infortúnio. Lembro o seu virtuosismo e a sua voz atravessando a sala. Vibrante. Ele era um espectáculo. O espectáculo. Representa uma época que, de certo modo, terminou. A época de grandes compositores e cantores populares que hoje são autênticas lendas. Talvez Xidiminguana e Dilon Djindji tenham sido aqueles que mais prolongaram essa aura. Fany Mpflumo também representa a dureza da nossa tragédia colectiva: a condição social do artista. Legou-nos uma obra exemplar. Porém, morreu pobre e desgraçado.

 

Para os adolescentes, as questões da puberdade, da intimidade, dos relacionamentos, do amor, do sexo, da saúde reprodutiva, incluindo a contracepção, são complicadas. Para os jovens com deficiência, navegar neste terreno é muito mais difícil.

Por exemplo, Betty tem 26 anos e é natural do Uganda. Apesar de ter desafios físicos, ela tem também necessidade de saúde sexual e reprodutiva. O mesmo acontece com a maior parte das pessoas que sofrem de várias deficiências.
Como mulher jovem com desafios físicos, Betty diz que se sente sem apoio e incapaz de usufruir da sua saúde e dos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Segundo ela: os “jovens com deficiência, especialmente as mulheres, enfrentam um triplo desafio”.

 “És marginalizado pela sociedade que vê a tua deficiência de forma negativa. Portanto, se és jovem com deficiência, és estuprada, és negligenciada. Em seguida, a sociedade responsabiliza-te por teres engravidado. Ninguém se quer identificar com uma rapariga grávida com deficiência”.

Kelvin, jovem zimbabweano de 24 anos, tem a mesma experiência. Nasceu com osteogenesis imperfecta (vulgarmente conhecida como doença dos ossos frágeis) e é seropositivo.
Segundo ele: “Somos marginalizados na comunidade. As pessoas acreditam que as pessoas com deficiência não têm desejo sexual e, pior do que isso, não temos acesso a informação ou a serviços”.

Desafio global
Entre 180 e 220 milhões de jovens de 10 a 24 anos, a nível mundial, vivem com deficiência mental, intelectual, física ou sensorial. Além disso, 20 milhões de mulheres ficam com deficiência anualmente resultante de complicações durante a gravidez ou parto, tal como, a fístula obstétrica.
Cerca de 80% das pessoas com deficiência vivem em países em desenvolvimento, com uma estimativa de 15% de africanos com deficiência moderada a grave.

Os jovens com deficiência têm três vezes mais probabilidade de sofrer violência física, sexual e emocional do que as pessoas sem deficiência.
A sua situação é exacerbada pelas leis, políticas e atitudes que são insuficientes para proteger a sua saúde e os seus direitos sexuais e reprodutivos.
Os jovens com deficiência representam, de forma evidente, um segmento da sociedade esquecido. Na maior parte dos casos, este é o grupo mais esquecido quando se trata do acesso a serviços básicos.
 

Acção colectiva
A responsabilidade dos jovens, incluindo os com deficiência, e as suas necessidades de saúde e direitos sexuais e reprodutivos são uma consideração multissectorial que envolve os Ministérios da Saúde, da Educação, da Juventude e da Previdência Social, além da sociedade civil, do sector privado, das organizações baseadas na fé e das universidades.

Permitir que os jovens com deficiência usufruam da sua saúde e dos seus direitos sexuais e reprodutivos, incluindo da sua capacidade de prevenir o abuso sexual, a gravidez precoce e a não desejada, o HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis ajudará, por sua vez, a garantir o usufruto de outros direitos, tais como à educação, a oportunidades económicas, à independência financeira e ao empoderamento social. Esta mensagem está destacada no Relatório do Estado da População Mundial de 2017, ‘Worlds Apart: Reproductive health and rights in an age of inequality’. O relatório descreve 10 acções para um mundo mais igual, incluindo a protecção social universal, que exige que todos tenham acesso a um rendimento básico seguro, que inclui maternidade, deficiência, filhos e benefícios semelhantes essenciais para o bem-estar.

Devido à lacuna no usufruto da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivas dos jovens com deficiência na região da África Oriental e Austral, o FNUAP em parceria com a AID do Reino Unido, as Comunidades Económicas Regionais, tais como a SADC e a EAC, os governos, a sociedade civil e a participação activa de jovens com deficiência, elaborou orientações estratégicas regionais informadas por evidências que expandirão o acesso e a procura de informação e de serviços de saúde sexual e reprodutiva. Milhões de jovens com deficiência poderão, potencialmente, beneficiar.

Vários obstáculos em torno da concepção e implementação de soluções baseadas nas novas tecnologias estão também incluídos em grande parte da forma de pensar no FNUAP. Na sequência da revolução digital em curso, vários centros de novas TI e inovação estão centrados na concepção de soluções de mercado que tendem a excluir minorias e grupos marginalizados. Portanto, apoiar os jovens empresários no desenvolvimento de soluções inovadoras para os principais desafios da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos assumiu-se o desafio que enfrentam para o acesso.

O FNUAP, através da iniciativa de aceleração da inovação (iAccelerator), procura formas inovadoras para trabalhar com 15 start-ups de quatro países da África Oriental e Austral. A iniciativa beneficiará jovens empresários de populações marginalizadas, incluindo os jovens com deficiência, e dá também prioridade às soluções para os desafios enfrentados pelos grupos marginalizados, incluindo os YPD.

O desenvolvimento de iniciativas, juntamente com os governos, que desbloqueiam o poder das parcerias privadas e, em última instância, garantem uma vida mais saudável aos jovens com deficiência é parte fundamental do nosso compromisso.

Jamais viver com indignidade
A visão dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (SDG) é garantir que ‘ninguém seja esquecido’. Se essa visão for para ser alcançada, devemos fazer mais para nos concentrarmos nos direitos, incluindo a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos dos jovens com deficiência.
Segundo a Directora Executiva do FNUAP, Dra.

Natalia Kanem: “Todos os jovens devem ter acesso a educação sexual abrangente e aos serviços que necessitam para proteger a saúde, o bem-estar e a dignidade. Os jovens com deficiência deverão, nunca, ter que suportar o trauma da violência física, psicológica ou sexual, nunca”.

É responsabilidade de todos garantir que as pessoas que vivem com deficiência possam viver com dignidade e ter capacidade para usufruir dos seus direitos, incluindo os relacionados com o sexo, a sexualidade e a reprodução.

Com os jornais à tiracolo, Nhinguito, o ardina, caminhava de tronco vergado ao peso. Eram as últimas notícias que os tornava tão pesados, até lhe esmagavam o ombro. Deslocou, sem pressa, o palito, de um canto da boca para outro. Pousou o xidjumba de jornais e dispôs no chão, em montículos, ao jeito das vendedeiras, de modo que ficassem com as apetitosas manchetes expostas. Em parangonas, lia-se: O PREÇO DAS VIATURAS.

O sol era quente. Parecia ter saído das tórridas reuniões do recente congresso. Ergueu-se, imponente, reforçando a impressão de que com o calor intenso à que já nos habituou, os dias, depois da agitação do congresso, voltariam à normalidade.

Nhinguito sentou-se sobre uma caixa de engraxar. Enquanto vendia jornais poderia ir dando lustro ao mundo, pelos sapatos. O sol não dava tréguas. Fez o gesto instintivo de desabotoar a camisa, percebeu que estava já aberta e sentiu-se impotente por nada poder fazer para se refrescar.

Os curiosos que acercavam os jornais e interpretavam ávidos as manchetes quentes, entupiam a circulação do ar e chamavam o ardina ao debate, como se, por ele transportar jornais, fosse responsável pelo conteúdo. Nhinguito irritou-se. Moveu o palito, devolve-o para outro canto da boca e ficou a olhar para o pousa pés da caixa de engraxar, enquanto o pensamento olhava para sabe-se lá onde.

– Nhingutô! Estes preços, estas viaturas… É verdade isto?

Apesar de irritado, com o calor, com as perguntas, com os preços ou sabe-se lá o quê mais, o ardina alimentava, com inocente arrogância, a ideia de que ele era conhecedor da verdade por detrás daquelas notícias, por ser muito próximo dos jornais:

– Ohôooo! Brincas? Há mola neste país.

Falou sem olhar, enquanto tentava distrair a irritação na transparência que o sol causava na capulana da vendedeira de amendoins torrados que circulava sem pressa por ali.

Uma sirene estridente cortou a manhã. Era um batedor de trânsito a abrir alas. Os pescoços rodaram instintivamente para ver, sem entusiamo, a caravana passar. O ardina moveu apenas o olhar para aquela direção, lentamente, enquanto mandava o palito, de um para outro canto da boca.

O batedor acelerou na contramão para ultrapassar a fila de veículos que se entupia no semáforo. Mandou tudo afastar, tudo parar. O chapa, em manobras que se sabe, teve de travar bruscamente, percebendo-se, por leitura labial, o peso bélico das palavras que o motorista contrariado proferiu. A moto descreveu em grande ginga um, dois, três círculos no cruzamento das avenidas, desautorizando o semáforo, irritando o mundo.

– Em vez de comprarem machimbombos. Ntlha!                     

Um buraco na estrada contrariou a gincana. A moto caiu. O agente gordinho esparramou-se no chão. Ouviu- se “ooohhh!”, com os olhos arregalados e mão sobre a boca. Depois silêncio.

Do fundo do silêncio, do nervosismo dos automobilistas, da irritação dos passageiros do chapa, do desespero da gente aglomerada na paragem, da indiferença da vendedeira, dos leitores das manchetes do ardina, do rosto amuado do Nhinguito, de todo o lado despontou uma gargalhada sem maldade, enquanto o batedor se recompunha no uniforme, na moto, na vergonha…

Nhinguito apanhou do chão o palito caído com o descuido da risada e devolveu-o à boca.

O crescimento da violência, dentro e fora dos campos, com compra de árbitros e resultados à mistura são alguns dados demonstrativos de que a temporada futebolística de 2017 em Moçambique, que está praticamente concluída, merece um sério repensar.

Sendo o futebol o desporto-rei, transportando responsabilidades acrescidas, tanto na componente física como na socialização dos cidadãos, esta modalidade deveria contribuir para a fraternidade e unidade entre as pessoas, desde o núcleo ao país inteiro. Porém, se quisermos fazer um balanço honesto, tanto sob o ponto de vista técnico como social, o ano prestes a findar não foi positivo.

E não é necessário procurar muito, pois os “venenos” estiveram à vista de todos, tanto no Moçambola, como na Divisão de Honra. Os “contra-venenos”, aplicados tarde e a más horas, é que não foram suficientemente eficazes, ficando a certeza de que importa rever a legislação, humanizar a prova e criar espaços para educar os intervenientes, de forma a conhecerem os limites e as fronteiras entre a rivalidade sã e a confrontação de quem quer ganhar a todo o custo.

Nos jogadores, tudo passa por uma boa maior dedicação à causa, respeito pelos colegas e pelas exigências da profissão. Trabalhar o pormenor, cultivar a superação. Nos dirigentes, importa valorizar a paixão e o profissionalismo, reduzindo o espaço para infiltrados e “chicos-espertos”, cuja motivação é o “show-off” nos camarotes e a caça aos passeios.

Quem vai ao futebol?
Cada vez mais, o nosso futebol tem sido lugar de indisciplina e arruaça. Levar a família e incentivar os filhos é um risco, pois os campos não são um lugar pacífico. Há que ir preparado para ouvir ameaças e impropérios vindos de todos os lados.

Num país em que os cidadãos têm no seu dia-a-dia mais razões para andarem tristes do que alegres, os campos deveriam ser um “refúgio salutar”, um sítio em que só perde quem os não frequenta. Mas não. Os recintos do desporto-rei tornaram-se locais para quem não tem ou não sabe fazer mais nada, os depreciativamente chamados de “pés-descalços”. Aquele que se considera “gente fina” não vai, não se mistura, preferindo acompanhar a modalidade em casa, girando o botão da TV ao mesmo tempo que vai degustando uns aperitivos.

Diz-se que a qualidade do espectáculo não é atractiva, e é verdade. Mas essa será só uma parte da questão. A outra, talvez a mais marcante, é que, entre nós, o futebol tornou-se uma coisa menor, havendo a sensação de que ser adepto de um clube nacional é algo desprestigiante. Prova disso, é que os que rejeitam o Moçambola, são os mesmos que exibem quadros com fotografias consideradas por eles históricas, de episódicas passagens pelos estádios da Luz ou de Alvalade. Aí sim, ganha-se prestígio e cria-se inveja.

Números podem ajudar a melhorar
Não é só no atletismo que os praticantes são comparados através dos números. Hoje em dia, o futebol e outros desportos, são também mensuráveis. Agora que estamos em final de época, impõe-se a criação de um espaço para que os técnicos avaliem, com substância, os quês e porquês de tão baixos coeficientes, que começam no ritmo, nos exíguos contra-ataques e no baixíssimo índice de conversão.

Há que ver e comparar com os mais exigentes campeonatos em que em regra se marca o triplo dos golos, apesar de os cifrões serem bem mais apetecíveis que os do nosso seio, o que, à partida, consubstancia a tendência de arriscar menos.

Será que se treina por cá, mais o anti-jogo que o jogo? Ou há crise de desequilibradores? Ou ainda as razões têm a ver com as deslocações, que quase obrigam as equipas a treinarem-se nos aviões?

Diz-se, com grande dose de razão, que o futebol é espectáculo. E que o golo é o sal e a pimenta do jogo.

Portanto, se os tentos – bonitos, diga-se –, têm acontecido em tão escasso número, é por aí que se terá que buscar factores para mudar a face.

Sem “politiquices” e busca de protagonismo, o defeso é uma boa ocasião para os profissionais da área técnica aprofundarem as questões de fundo que impedem que as nossas principais provas sejam atraentes, numa modalidade que em todo o mundo arrasta multidões.

Ao choque e estupefacção generalizada do país perante a dura e inaceitável verdade de que os direitos e regalias dos dirigentes superiores do Estado são prioritários mesmo perante a miséria e o sofrimento da esmagadora maioria dos cidadãos, o esclarecimento do Governo foi estarrecedor.

“São compras de 2015, foram feitas antes da suspensão do apoio por parte dos parceiros e só 6 viaturas são deste ano”, sentenciou o Secretário Permanente do Ministério da Economia e Finanças. Em 2005, lê-se pelas palavras deste zeloso SP, éramos tão ricos que era normal gastar 90 milhões de meticais no bem-estar de meia dezena de dirigentes.

Esqueceu-se o bom do SP que, a 15 de Janeiro desse mesmo ano 2015, no discurso da sua posse, o Presidente Nyusi prometera ter um governo austero (e não é austero Governo que gasta 90 milhões de meticais em 39 viaturas num país onde o povo sossobra no “My Love”); que nove meses depois, mais exactamente a 29 de Outubro desse mesmo 2015, o Presidente Nyusi revelou, no jantar dos 20 anos do BIM, que encontrara os cofres do Estado vazios e era o presidente que estava a governar em piores condições na história recente do país (que rico cofre vazio, senhor presidente!).

Então, bem vistas as coisas, nada mudou entre 2015 e 2017: há dois anos, o Estado estava com os cofres vazios e numa governação difícil e, ainda assim, encontrou espaço para financiar uma despesa supérflua.

Este ano, as finanças públicas estão em derrapagem, não há doadores para cobrir o défice e o Governo financia-se à custa de um cada vez mais insustentável recurso ao endividamento interno. Em consequência disso, cortou de forma significativa na despesa, na contratação de novos funcionários, mas encontrou folga para pagar 29 milhões por 6 viaturas, duas das quais para um antigo primeiro-Ministro e um antigo Presidente da Assembleia da República, que custam, juntas, quase 22 milhões de meticais.

O problema não tem nada a ver com o contexto, mas sim com hábitos há muito enraizados num Estado em esvaziamento, em que a dignidade dos dirigentes se mede pela dimensão da cilindrada e preço da viatura que lhe está afecta. O problema é que as contas do Estado não são independentes da sua economia.

Um país com uma economia em coma profundo, como o admitiu há uma semana o Governador do Banco de Moçambique, dá-se ao luxo de distribuir Mercedes e outras marcas pelos membros da Comissão Permanente do Parlamento e seus cônjuges e gastar perto de 22 milhões de meticais por apenas dois antigos dirigentes.

Se juntarmos as regalias e remunerações de todos os antigos presidentes da República, presidentes do parlamento, primeiros-ministros, ministros, procuradores-gerais, aos actuais incumbentes nos mesmos cargos, ficamos com uma soma certamente assustadora, mas que ninguém conhece a sua verdadeira dimensão.

Infelizmente, há uma espécie de pacto de silêncio dentro do poder político para manter em segredo a lista dos antigos dirigentes que recebem as chamadas pensões “douradas” ou subvenções mensais vitalícias, os valores que aqueles recebem, bem como as regalias associadas.

É esta a reflexão que se impõe: pode um país como o nosso dar-se ao luxo de sustentar os devaneios de antigos e actuais dirigentes e ainda atender às necessidades básicas dos seus cidadãos? É justo para os inúmeros cidadãos honestos deste país, que trabalham uma vida inteira de sacrifícios, sustentarem, vitaliciamente, as extravagâncias dos seus dirigentes, só porque estes estiveram cinco anos num cargo público?
Urge, pois, construir uma plataforma de entendimento entre o Governo e o Parlamento sobre a necessidade de revisão da legislação sobre os direitos e regalias dos dirigentes superiores do Estado para a ajustar às condições económicas do país. Um cargo político não é um emprego.

No seu estilo sui generis, o governador do Banco de Moçambique, Rogério Zandamela, transmitiu, semana passada, sinais preocupantes de desrespeito à lei, mostrando que prefere seguir convicções próprias a respeitar as decisões das instituições estabelecidas.

Isto vem a propósito das últimas declarações de Rogério Zandamela sobre o controverso processo de recapitalização do Moza Banco. O governador do Banco de Moçambique disse e passamos a citar ipsis verbis: “Nós não vivemos de comentários, compete a nós tomar decisões. Eu, pessoalmente, assumo a cem por cento as decisões que tomei. Para mim, foi uma operação de sucesso, foi uma operação certa. Quer criticar, que critique. Foi a decisão milagrosamente certa.

Na minha vida, se há uma coisa que estarei orgulhoso de ter feito com sucesso, é esta. Para mim, o processo está fechado e é irreversível”.

Estas palavras são de um significado perigoso não tanto pelo tom de desafio a que nos habituou Rogério Zandamela, mas pelo desprezo às instituições, à cultura de Direito e às regras de jogo.

Por deliberação de 19 de Julho deste ano, a Comissão Central de Ética Pública acusou directamente o governador do Banco de Moçambique de ter atropelado a Lei de Probidade Pública, por adjudicar o controlo do Moza Banco à Kuhanha.

A deliberação concluía que, na qualidade de servidor público, Rogério Zandamela decidiu a favor da Kuhanha, de que é Presidente do Conselho de Administração, pisando a linha do conflito de interesses. Se quisermos resumir, Rogério Zandamela foi juiz em causa própria.

Pelos seus recentes pronunciamentos, fica claro que a posição da Comissão Central de Ética Pública não passa de letra-morta para o governador do Banco de Moçambique. Mais: ao afirmar que a adjudicação do Moza Banco à Kuhanha foi uma “decisão milagrosa”, “operação de sucesso” e “que não vive de comentários”, é como se assumisse que a sua decisão está acima de qualquer suspeita, incluindo de ter violado a Lei de Probidade Pública.

É na lógica deste raciocínio que o governador do Banco de Moçambique diz que o processo está “fechado” e que é “irreversível”, como se agora fosse juiz de tribunal de recurso, a quem compete tomar decisão definitiva sobre os processos judiciais. É pouco provável que Rogério Zandamela agisse da mesma forma no Fundo Monetário Internacional, onde fez carreira e onde as regras de compliance são cumpridas como se fossem uma religião.

As nossas instituições não devem admitir que as suas decisões sejam banalizadas, visto que enfraquece o seu papel na sociedade, descredibiliza-as e cimenta a ideia de que “a nossa justiça é forte para os fracos e fraca para os fortes”.

A deliberação da Comissão Central de Ética Pública sobre a recapitalização do Moza Banco está depositada na Procuradoria-Geral da República e no Gabinete Central de Combate à Corrupção, desde Julho passado. Portanto, está em mãos certas para que se possa fazer cumprir a lei.

Tal como a PGR repôs a legalidade no caso dos memorandos assinados entre o ministro dos Transportes e Comunicações, Carlos Mesquita, e o administrador da Cornelder Moçambique, Adelino Mesquita, por flagrante conflito de interesses, é expectável que as instituições de justiça sinalizem que a lei não pode ser suspensa em função de determinadas circunstâncias ou indivíduos. Dura lex, sed lex, senhor governador, dirão os juristas.

PS: Nas páginas de anúncios do jornal Notícias desta terça-feira, ficámos a saber que o Governo está a comprar 45 viaturas de luxo, incluindo de marca Mercedes Benz, num valor de perto de 120 milhões de meticais. É revoltante. Não é necessário mais nenhuma prova de que somos um país do faz de conta. Faz de conta que somos um Estado de justiça social, faz de conta que estamos em crise, faz de conta que não há dinheiro para pagar subsídios aos professores e aos enfermeiros…
 

 

Em 2003, o partido MDM consolidou, nas eleições autárquicas, a posição de terceira força política nacional, espaço que tinha começado a conquistar cinco anos antes, nas eleições gerais, onde tinha conquistado oito assentos na Assembleia da República.

A posição consolidada nas autarquias de 2003, com a conquista de quatro autarquias, foi uma espécie de crescimento natural de um partido que soube aproveitar os espaços abertos pelas retecências da Renamo e o desgaste da Frelimo.
Estes foram, em parte, os factores bem aproveitados pelo Galo, que soube ainda enamorar o eleitorado jovem, com um charme de galã e promessas de um “Moçambique para Todos”.

O Galo chegou às eleições de 2014 e continuou a beneficiar do estado de graça e do embalo dos ciclos anteriores. Com mais deputados, consolidou-se como a terceira maior força parlamentar, ainda que, no global, os resultados eleitorais ficassem aquém das expectativas que vinha até então gerando.
Cronologia à parte.

O facto é que, desde o ano passado, os sinais começam a mostrar que algo vai mal no reino do Galo.
Nascido e “abrigado” a assumir posição de adulto em corpo de criança, começa agora a denotar uma espécie de crise de adolescência. Um adolescente que se assumiu adulto com uma identidade por consolidar e ideologia política por alinhar junto da sua base de militância, que se foi agregando ao ritmo de um embalo eleitoral.

As clivagens mal resolvidas com o então edil de Nampula, Mahamudo Amurane, os questionamentos à liderança feitas a vários tons por quadros superiores do partido, a mal gerida situação do “tocovismo” e o silêncio quase ensurdecedor do Rei Galo mostram um futuro sombrio.

Com os punhais a serem afiados para o conclave de Dezembro em Nampula, tendo pelo meio as intercalares no mesmo município, tudo conspira para que os próximos meses sejam de muito sururu no reino do Galo.

Mais desafiante ainda, e com o regresso da Perdiz nos próximos ciclos eleitorais, o xadrez político nacional parece estar a dar a entender que o palco terá menos espaço para mais dançarinos.    

Existe alguma terra onde o batimento cardíaco é o criador do próprio coração?

Raquel Lanseros

Sou do tempo em que, na cidade onde nasci, era possível fazer turismo de Moçambique para Moçambique; tempos bonitos, em que eu e tantos da minha malta, por via da escola primária, conhecemos locais sagrados pela importância, como a Fortaleza de Maputo, Museu da Moeda, da Revolução, a Casa de Ferro, o Tunduru ali ao lado, a Praça da Independência e, claro, o Zoológico, na outra margem de Maputo. Sou de um tempo em que esses locais tinham um simbolismo acentuado, e, novo, percebia que existia uma espécie de um roteiro turístico, ainda que incipiente, da capital. Os anos passaram e mudaram-se as vontades. E a mudança, aqui, parece-nos algo reacionário, no sentido de que nos coloca a remar contra a maré, num esforço tão redundante quanto desnecessário.

Se, há alguns anos tivemos uma rota turística em Maputo, mesmo de faz-de-contas, hoje já nem sabemos o que isso significa, por desinteresse nosso e por negligência. Isto é assombroso, porque à semelhança da cultura, o turismo é a porta de entrada de um país, e isto não se constrói apenas com praias bonitas ou com infra-estruturas atraentes. Mais do que o belo, essa componente tornada mais complexa por Marcel Duchamp, com o seu famoso urinol, é necessário investirmos no simbolismo das coisas, engrandece-las como merecem na mesma proporção que as divulgamos e valorizamos. Ninguém vai nos dizer que as casas onde viveram José Craveirinha ou Malangatana são santuários que se devem manter abertos para o mundo, deixando, assim, de pertencer aos filhos ou netos daqueles artistas da palavra e da cor. Aquelas casas são dos moçambicanos porque nos apropriamos daquelas figuras de forma total e completa.

A propósito destas duas palavras, total e completa, que me devolvem a imagem de Samora, pensemos agora no que é feito da casa onde viveu o primeiro Presidente da República. Quantos de nós a conhecemos? Qual o estado e como contribuiria para o turismo da capital se tomássemos uma decisão acertada? Quem diz Samora, aqui, também refere-se a Chissano, Mucumbi, Caliano, Eusébio, Fany Mfumo, Ricardo Chibanga e etc.

A Associação IVERCA tem feito um trabalho notável, quanto à divulgação das potencialidades da Mafalala e não é de hoje. Mas é um caso quase que isolado. A intervenção pujante do Ministério da Cultura e Turismo é indispensável. Quer para tornar o bairro um espaço super aproveitado, com um roteiro claro, quer em activar espaços com história, que suscitem curiosidade, mexam com emoções, com arte e com a intelectualidade, como é o caso do antigo Grémio Africano de Lourenço Marques, hoje esquecido no esquecimento – a ser supérfluo de propósito. Como conseguimos mandar pastar a casa de O brado africano, tão bem feito pelos irmão Albasini?

Depois de termos colocado um rei de chinelos no antigo Instituto Negrófilo (Ntsindya), corrigimos e bem o erro. Aquilo voltou a activar os feitos do primeiro locutor preto da Rádio Clube de Moçambique (RM) em pleno regime colonial, o professor Samuel Dabula, e de tantos outros que por lá passaram, como a Orquestra Djambo, Mondlane, Josina e outros estudantes do NESAM. Mas a pergunta volta ao de cima: estamos a fazer do Ntsindya um verdeiro celeiro das artes, no qual o passado e o presente conectam-se de maneira que a instituição seja uma referência nesse sentido? Quantos da década 80 – e não me quero referir aos que nasceram em noventa e tal, coitados – visitaram os espaços mencionados? O turismo começa connosco, com a convicção de que o que estamos a promover é muito bom. Quer dizer, corrijo. Não só é muito bom como é o melhor do mundo. Para o efeito, quiçá, os responsáveis pela área turística de Maputo (e do país inteiro) precisem estagiar no mercado do Xipamanine ou mesmo na Baixa da capital. Mas o melhor é no Estrela, que ali aprende-se num instante os truques inabaláveis para vender um produto, com ousadia, determinação, persuasão e até dissuasão. Ali, os fundamentos da oratória defendidos por Górgias ou por Isócrates, pensadores da Antiguidade Clássica que há mais de 2000 anos preocuparam-se com a ornamentação da linguagem no acto discursivo, são captados num ápice, à velocidade supersónica, porque lá a conversa para boi dormir desperta.

Moçambique precisa abrir-se para si próprio e acabar com a ladainha de que Nelspruit é o melhor que uma classe média fantoche pode alcançar. Devemos olhar mais para a nossa realidade, convictos de que aqui temos coisas bonitas, suficientes para fazerem a diferença se houver o mínimo de bom senso e criatividade.

O Conselho Municipal tem uma iniciativa extraordinária, a Feira do Livro de Maputo; a Khuzula, tem o AZGO, que tanto deve nos orgulhar; Minó tem o Zouk, que mexe com muita gente; o Girassol tem o Festival Internacional Teatro de Inverno; o Xiquitsi tem a temporada de música clássica; a More Promotins, agora, tem o Festival Internacional de Jazz de Maputo – tão apostada em envolver-se na divulgação do turismo nacional, vamos ver o que vai dar –; a BDQ, tem o Moments of Jazz; o nosso Ministério, o Festival Nacional da Cultura; o Franco, a Festa da Música. E pergunto, de que modo estas actividades todas estão conectadas para proporcionar uma dinâmica cultural e turística acentuada à cidade? Temos uma conexão? Conseguimos, com efeito, unir arte com outras realidades ao nosso redor, de tal forma que, ao sair de Maputo, Benson, Miller, Ocean, Bona, Afonso Cruz, Helder Macedo (um pouco nosso), uma Bethânia, Gadú, etc., levem consigo um desejo de cá voltarem de férias ou de espalhar elogios pelo país além-fronteira? Ou tudo acaba no tão afamado intercâmbio cultural?

É preciso fazer mais e melhor. Alguém disse isso. E para fazermos mais e melhor, se não soubermos como se faz, devemos ter a grandeza de ser pequenos e aprender dos outros. Não é possível que não estejamos a ver o que a South Africa Airways tem estado a fazer pelo turismo sul-africano, unindo cultura e conhecimento. Veja-se o caso do INDABA e o Essence Festival. Eles têm dinheiro? Têm, mas é certo que a maquia não é tudo. Com uma cidade velha, como a nossa capital, podemos impressionar, desde que haja organização. Por exemplo, o turismo na Europa, em parte, vinca devido às cidades velhas que lá existem. A cidade invicta, Bruxelas e Amsterdão reflectem essa realidade. Porque ali não se constrói a torto e a direito como nós fazemos, sem cumprir prazos de construção em muitos casos e sem abandonar as obras. As praças, favorecem os transeuntes, ao invés de viaturas, como calha nas nossas. Lá há um respeito pelo velho, que cá não temos nem pelo Homem e tão-pouco pela obra. O Museu Van Gogh, no Museumplein, Amesterdão, e tantos outros ali em redor, são espaços que rendem milhões de euros porque houve um pensamento e uma comunicação que os torna valiosíssimos. Se nós próprios não valorarmos os nossos produtos continuaremos nesta previsibilidade decadente, de uma cidade que extermina salas de cinema como cresce em densidade populacional sem criar parques de diversões e de lazer a sério, para adultos e para crianças.

Temos de olhar urgentemente para o nosso passado e ressuscitar todos aqueles que devem ficar imortalizados e fazer disso uma forma de promover a cultura, o turismo e ganhar dinheiro. Temos de voltar a acreditar que aqueles passeios escolares feitos por alguns de nós, na meninice, têm uma importância na formação de uma personalidade íntegra e na construção de um território limpo, mais do que na via, em nós mesmos. Estamos carentes desse território invisível e devemos recuperá-lo porque quem gosta e tem a noção do que o turismo vale, quem aprende a partilhar a beleza com os outros e sente-se parte disso, não atira uma casca de banana do interior do “chapa” para a rua; não condena às árvores a um ácido cruel e é o primeiro a dizer que existe alguma terra onde o batimento cardíaco é o criador do próprio coração. Moçambique pode ser essa terra, se diferentes intervenientes unirem-se por um propósito, porque Moçambique, nem mais, é maningue nice!

 

Ninguém dúvida que o 11 de Setembro de 2011 mudou por completo a forma como o mundo lida com o terrorismo. A resposta imediata do ataque da Al Qaeda nos Estados Unidos da América foi o reforço dos serviços de inteligência americana e com base nisso foi possível perseguir células terroristas no mundo e os seus cérebros, o que culminou com o assassinato de Bin Laden.

Os ataques iniciados a 6 de Outubro corrente na vila da Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado não pode de jeito algum ser ignorado ou equiparado a um ataque isolado, sem nenhum significado subjacente. Muito pelo contrário, aquilo é um indicativo de que qualquer um de nós, em qualquer canto deste país pode acordar no manto de um ataque terrorista. Todos podemos ser vítimas e por isso o combate a esse fenómeno deve fazer parte da agenda nacional.

Aqui já não estamos perante um conflito militar entre o Governo e a Renamo, onde os alvos estão bem identificados. Lembremo-nos que naqueles ataques, os homens armados abriram fogo na Esquadra da Polícia, onde de forma indiscriminada espalharam terror com os violentos disparos de armas de fogo tipo AKM. Podiam estar cidadãos queixosos naquele instante e podiam ter morrido. Nas comunidades onde os mesmos se refugiaram depois dos ataques a polícia fez uma rusga e também disparou, recorrendo, até, à artilharia pesado, pelo que podiam ter morrido cidadãos inocentes.

Semana passada o Conselho de Ministros anunciou a aprovação da Lei que combate actos terroristas. Salvo o erro é a primeira na história do país. Já é um passo, mas falta o essencial: orçamento que fortifique os serviços de contra inteligência policial e das Forças de Defesa e Segurança. Podem questionar a prioridade da segurança num país que sofre de fome, de crise financeira aguda, etc. A resposta podemos encontra no vizinho Zimbabwè, por exemplo, onde mesmo com a crise sempre subiu o orçamento para a área da segurança do Estado.

Mas isso é futuro! Olhando para o passado e o presente ficou indignado: como se explica que grupos de jovens armados tenham se incubado durante três anos e os serviços secretos não conseguiram os desactivar? A Polícia, ali perto foi comunicada e não agiu para evitar o pior. Consequência, 17 pessoas morreram naquele ataque dos chamados homens do Al Shabaab. Alguém devia ser responsabilizado. O comandante distrital seria o primeiro a cair. Só como estamos num país…”queixa a andar”, como escrever Mia Couto.

Um bom médico não é avaliado pelo mínimo número de erros que comete, mas sim pelos erros que não comete. Então, um bom serviço secreto de segurança do Estado é aquele que é capaz de interceptar e desactivar planos de atentados. No nosso caso, a “secreta” chumbou.

Mas tenho também questões por fazer. Quem são aqueles homens armados? Quem os financia com armamento de guerra? Com que intenção? E porque é que escolheu Mocímboa da Praia? Justamente ali na vila onde fica o aeródromo bastante usado pelas companhias que estão envolvidas nos projectos de gás em Palma, também naquelas bandas? Que mensagem queriam passar ao atacar a Polícia?

Na entrevista publicada na edição de ontem deste, o filósofo Severino Ngoenha abordou a questão do ressurgimento dos grupos étnico-regionais e fez uma relação com a descoberta dos recursos minerais no Norte que podem polarizar ainda mais este mal social. Numa das passagens disse algo que achei muito interessante: “Suspeito (também) de que alguma comunidade internacional ou algumas empresas internacionais não estão completamente livres ou independentes deste fenómeno. Algumas pessoas têm interesse em que este fenómeno se alargue, isto é extremamente perigoso para um dos fundamentos da vida de Moçambique, que é a nossa Unidade Nacional”.

Concordo plenamente com esta visão do Professor Severino e acho que pors detrás dos homens armados que criaram terror em Mocíboa da Praia há interesses que devem ser investigados e desmascarados. Não nos esquecamos que a segurança dos mega-projectos de gás do Rovuma é um negócio bastante lucrativo. Armando Guebuza, enquanto chefe de Estado, fez um investimento na área militar, onde sabemos que parte da frota de barcos encomendados em nome da Ematum, afinal de contas outros era para o exército (fiscalização das águas territoriais moçambicanas). Infelizmente a forma como esse investimento foi feita fez com que fosse completamente combatido – as chamadas dívidas ocultas que nos levaram ao túnel da crise do qual nem temos perspectivas de sair. Verdade, porém, é que as empresas multinacionais do ramo de segurança privada não iam gostar de perder o negócio em Moçambique. Com efeito, os ataques na Mocímboa da praia não seriam uma forma de desacreditar a capacidade nacional de garantir segurança a esses projectos para legitimar a contratação de empresas internacionais por parte dessas companhias?

Ademais. Porque é que esses ataques não aconteceram na província de Gaza onde não há qualquer investimento de vulto?

O que quero dizer é que o “timing” em que os ataques acontecem (quando se caminha para o início da exploração do gás que nos coloca no espectro do mundo dos gigantes como a Rússia e Estados Unidos), o local e os alvos escolhidos não foi ao acaso e cabe aos Serviços de Informação e Segurança do Estado investigar profundamente e evitarem o desenvolvimento de movimentos terroristas como assistimo. 

Escuro. Noite. Ele achegou-se com intenções claras. A mulher esquivou o olhar com timidez acesa de pirilampo. Pôs as mãos no peito do homem, defensiva, naquela recusa que atiça a libido. Sentiu a mão áspera percorrer-lhe a cintura. A carícia evoluiu para um leve arrepio, depois cócega:

– Hiiii!

– É o quê?

– Cócegas.

A mão avançou pelo trópico de capricórnio, entre a blusa e capulana, por onde o corpo se greta em estrias. Pelas dobras da cintura. Pelo trilho agradável do fio de missangas que lhe segurava os amuletos. Pelas listras da pele tatuada à lâmina com a caligrafia dos antepassados. Pelo rio de suor que lhe percorria as costas. Num súbito acesso de razão, repeliu-o:

– Pára!

O homem pressionou-a contra a árvore. Ela cedeu, naquela submissão sem inocência com que as mulheres adestram os machos. Abraçou-a. Adivinhou-a a fechar os olhos quando disse:

– Hmmmmm!

– É o quê?

– Sinto.

– Sentes? O quê? – Perguntava com  o lábio à porta do pavilhão e o a voz a humedecer-lhe o ouvido. A mulher estremeceu. Sentiu o suor da camisa do homem quando correspondeu ao abraço e pousou a cabeça no peito largo. Ouvia-lhe os batuques acelerados do peito.

– Sinto coesão!! Forte coesão entre nós.

O homem sorriu, encostou-se nela com mais malícia, convencido que “coesão” significa “coisa grande”.

Ela repeliu-o, sem sair do abraço e tentou, em vão, falar sem mel no tom de voz:

– Sabes… – Levantou a cabeça para olhá-lo nos olhos – sabes…

Ele calou-lhe com um beijo e continuaram ali,  duas silhuetas irrequietas, a fazer aquilo que os amantes fazem no escuro, ao luar, em noites quentes, húmidas e enluaradas, como aquela.

 

Um mosquito tentou protagonismo como em todas noites quentes, húmidas e enluaradas, mas não foi ouvido porque os beijos chiavam mais alto do que o zumbido e arfavam mais do que o croachar de rãs dum charco próximo.

A mão percorreu, sem permissão, os corredores do amor, a sala de espera, de reuniões, a secretaria… e antes que adentrasse em compartimentos vedados à estranhos, ela repeliu sem convicção na voz:

– Pára!

Como uma flor que se abre em pétalas a capulana desabrochou sem se desamarrar da cintura. A mão ousou pela pele arrepiada:

– Pára!

O homem parou subitamente. A mão desfaleceu, desapontado, quando percebeu, na coxa, a textura duma ceroula, daquelas intransponíveis com que elas decretam feriado no corpo e anunciam suas greves.

– Tira – sugeriu desesperado.

– Esquece – disse ela, com malícia no sorriso.

– Porque?

– Estou cansada de você me gastar…

– Eu sou teu namorado. É meu direito.

A mulher levantou o queixo e as sombracelhas, desafiadoramente.  Rebuscou o fundo da enciclopédia de conselhos maternais e atirou a frase mestre:

– Então me lobola.

Silêncio.

– Enquanto não me lobolares, és interino. Namorado interino. Se queres ser namorado efetivo, com direitos plenos, lobola-me.

O homem ficou a olhar, em silêncio, para o reflexo da lua nos olhos dela. Um mosquito segredou-lhe algo, na língua zumbida dos mosquitos, talvez a explicar o significado de “interino” que, no curto universo lexical, lhe soava à “inteirinho”. Não percebia como podia ser um namorado “inteirinho” mas não gozar de direitos inteirinhos.

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