A capulana a fazer de cortina. A luz, violenta, trespassa o pano. A mulher cerra os olhos. Cobre o rosto com a mão. Protege o sono. Num impulso busca o telemóvel. Tacteia, desesperada, a cama. A cabeceira. O chão. Resgata o telefone celular, entre as roupas despidas à pressa. Aguenta a luz. Abre um olho. Espreita as horas.
– Epa!
O susto afugenta o sono. Pestaneja. Esfrega os olhos. Mas não melhora a visão embaciada. Vai outra vez ao telemóvel. Confirma a hora.
– Caraças!
Dá um salto. Do sono para a vigília. Da cama para o chão. Enrola-se na capulana mais à mão.
– Acorda, comparsa.
O homem abre meio olho. Resmunga. Estica o corpo. Rebola. Devolve-se ao sono.
– Acorda comparsa. Está na hora.
Circula apressada. Faz volutas de vento com as partes sacudidas, ao andar. Vai. Vem. Desesperada.
– Acorda, comparsa.
Uma gaveta emperra. O móvel está velho. Irrita-se. Mas não perde o respeito
– Comparsa.
Sacode-o. O homem acorda. Mas não se aviva. Demora deitado
– Comparsa. Estamos atrasados.
Dobra uma toalha. Pousa ao lado do marido.
– Perdemos a hora.
Pendura uma camisa como se vestisse a cadeira.
– Não ouvimos o despertador
Acaricia as calças como se a engomasse com as mãos. Vê as horas. Vê o homem sonolento. Segura-se para não explodir. O respeito supera a irritação.
– Levanta, comparsa.
Levanta-se a custo. Nem deve ser tão tarde, pensa. As mulheres exageram, continua a pensar. Espreguiça. Uma, duas, três vezes.
– O que significa “comparsa”?
Ela não ouve. Não está ali. Esta na cozinha. Toalha no ombro. Fecha-se na casa de banho. A rosca seca da torneira chia: não sai água. Ouve-se um som grave de carretar no tambor: whooo! A música do balde a despejar na pia: whaaaa! Ritmo compassado da caneca a atirar água para o corpo: Tchá! Tchá! Tchá… Volta do banho. Atira a toalha ao acaso. Ajeita-se na roupa.
– Não engomo porque não há energia – desculpa-se ela.
– Está bom assim – conforma-se. Limpa os sapatos. Ajusta o cinto. Pára diante da porta. Vê as horas. Impacienta-se.
– Vamos, mulher.
Ela está ao espelho. Dá uma última demão no rosto. Arruma a toalha húmida de há pouco. Recolhe o telemóvel. A bolsa. A sacola com a clássica tigela de mangungo para o almoço. Diz "vamos comparsa" antes mesmo de estar pronta. Ele franze o sobrolho: o que quer dizer comparsa?
Não há tempo para perguntas. Correria. Ele vai a frente. Posição do alfa. A desbravar caminhos.
Ela ajeita a saia para alargar a passada. Na pressa, tropeça.
– Cuidado
Contornou buracos. Lixo no chão. Engarrafamento de viaturas no passeio. Poças de água das sarjetas entupidas. Depois de uma casa em ruínas, em frente a um muro que cheira à casas de banho públicas, com a escrita "aviso: proibido mijar", é a paragem.
Os chapas estão abarrotados. Como latas de sardinhas prontas para exportação. Um camião atraca ao jeito salvador das arcas bíblicas. As pessoas correm. Trepam como formigas desesperadas. É um transporte público improvisado. Um "my love".
O casal vê as horas. Troca um olhar cúmplice. Os olhos dele perguntam, quase decretam: vamos? Os dela, resignados, obedientes, dizem: vamos. E vão.
O homem trepa com agilidade masculina. Ela protege a bolsa na axila. O celular no sutiã. Seguro a borda da carroçaria. Levanta a perna. Pisa a roda. A saia sobe. Ajeita. Em vão.
Ela sobe sem esforço. No espírito de entreajuda, cavalheiros solidários empurram-na pelas nádegas esponjosas. O camião acelera. O vento esvoaça os penteados. Assim apertados nem sentem os solavancos. Três batidas na chapa, sinal de paragem. É o ponto dele. Pergunta: Tens dinheiro para a volta? Ela diz que sim com a cabeça. Paga pelos dois. Salta do camião. O telemóvel cai do bolso. Esparrama-se. Enquanto recompõe vê o camião a afastar-se. A mulher entre o gado de passageiros, sorri e acena. Percebe os lábios dela a pronunciarem "comparsa". Na dúvida franze a testa. O que significa "comparsa"?
Acácias amareladas de urina emolduram a via. O camião enfrenta o esburacado do asfalto. Avança sob um dístico que atravessa a estrada e cria um portal majestoso, com a escrita "Parabéns cidade de Maputo pelos 130 anos". E desaparece.