O País – A verdade como notícia

As rotas do turismo

Existe alguma terra onde o batimento cardíaco é o criador do próprio coração?

Raquel Lanseros

Sou do tempo em que, na cidade onde nasci, era possível fazer turismo de Moçambique para Moçambique; tempos bonitos, em que eu e tantos da minha malta, por via da escola primária, conhecemos locais sagrados pela importância, como a Fortaleza de Maputo, Museu da Moeda, da Revolução, a Casa de Ferro, o Tunduru ali ao lado, a Praça da Independência e, claro, o Zoológico, na outra margem de Maputo. Sou de um tempo em que esses locais tinham um simbolismo acentuado, e, novo, percebia que existia uma espécie de um roteiro turístico, ainda que incipiente, da capital. Os anos passaram e mudaram-se as vontades. E a mudança, aqui, parece-nos algo reacionário, no sentido de que nos coloca a remar contra a maré, num esforço tão redundante quanto desnecessário.

Se, há alguns anos tivemos uma rota turística em Maputo, mesmo de faz-de-contas, hoje já nem sabemos o que isso significa, por desinteresse nosso e por negligência. Isto é assombroso, porque à semelhança da cultura, o turismo é a porta de entrada de um país, e isto não se constrói apenas com praias bonitas ou com infra-estruturas atraentes. Mais do que o belo, essa componente tornada mais complexa por Marcel Duchamp, com o seu famoso urinol, é necessário investirmos no simbolismo das coisas, engrandece-las como merecem na mesma proporção que as divulgamos e valorizamos. Ninguém vai nos dizer que as casas onde viveram José Craveirinha ou Malangatana são santuários que se devem manter abertos para o mundo, deixando, assim, de pertencer aos filhos ou netos daqueles artistas da palavra e da cor. Aquelas casas são dos moçambicanos porque nos apropriamos daquelas figuras de forma total e completa.

A propósito destas duas palavras, total e completa, que me devolvem a imagem de Samora, pensemos agora no que é feito da casa onde viveu o primeiro Presidente da República. Quantos de nós a conhecemos? Qual o estado e como contribuiria para o turismo da capital se tomássemos uma decisão acertada? Quem diz Samora, aqui, também refere-se a Chissano, Mucumbi, Caliano, Eusébio, Fany Mfumo, Ricardo Chibanga e etc.

A Associação IVERCA tem feito um trabalho notável, quanto à divulgação das potencialidades da Mafalala e não é de hoje. Mas é um caso quase que isolado. A intervenção pujante do Ministério da Cultura e Turismo é indispensável. Quer para tornar o bairro um espaço super aproveitado, com um roteiro claro, quer em activar espaços com história, que suscitem curiosidade, mexam com emoções, com arte e com a intelectualidade, como é o caso do antigo Grémio Africano de Lourenço Marques, hoje esquecido no esquecimento – a ser supérfluo de propósito. Como conseguimos mandar pastar a casa de O brado africano, tão bem feito pelos irmão Albasini?

Depois de termos colocado um rei de chinelos no antigo Instituto Negrófilo (Ntsindya), corrigimos e bem o erro. Aquilo voltou a activar os feitos do primeiro locutor preto da Rádio Clube de Moçambique (RM) em pleno regime colonial, o professor Samuel Dabula, e de tantos outros que por lá passaram, como a Orquestra Djambo, Mondlane, Josina e outros estudantes do NESAM. Mas a pergunta volta ao de cima: estamos a fazer do Ntsindya um verdeiro celeiro das artes, no qual o passado e o presente conectam-se de maneira que a instituição seja uma referência nesse sentido? Quantos da década 80 – e não me quero referir aos que nasceram em noventa e tal, coitados – visitaram os espaços mencionados? O turismo começa connosco, com a convicção de que o que estamos a promover é muito bom. Quer dizer, corrijo. Não só é muito bom como é o melhor do mundo. Para o efeito, quiçá, os responsáveis pela área turística de Maputo (e do país inteiro) precisem estagiar no mercado do Xipamanine ou mesmo na Baixa da capital. Mas o melhor é no Estrela, que ali aprende-se num instante os truques inabaláveis para vender um produto, com ousadia, determinação, persuasão e até dissuasão. Ali, os fundamentos da oratória defendidos por Górgias ou por Isócrates, pensadores da Antiguidade Clássica que há mais de 2000 anos preocuparam-se com a ornamentação da linguagem no acto discursivo, são captados num ápice, à velocidade supersónica, porque lá a conversa para boi dormir desperta.

Moçambique precisa abrir-se para si próprio e acabar com a ladainha de que Nelspruit é o melhor que uma classe média fantoche pode alcançar. Devemos olhar mais para a nossa realidade, convictos de que aqui temos coisas bonitas, suficientes para fazerem a diferença se houver o mínimo de bom senso e criatividade.

O Conselho Municipal tem uma iniciativa extraordinária, a Feira do Livro de Maputo; a Khuzula, tem o AZGO, que tanto deve nos orgulhar; Minó tem o Zouk, que mexe com muita gente; o Girassol tem o Festival Internacional Teatro de Inverno; o Xiquitsi tem a temporada de música clássica; a More Promotins, agora, tem o Festival Internacional de Jazz de Maputo – tão apostada em envolver-se na divulgação do turismo nacional, vamos ver o que vai dar –; a BDQ, tem o Moments of Jazz; o nosso Ministério, o Festival Nacional da Cultura; o Franco, a Festa da Música. E pergunto, de que modo estas actividades todas estão conectadas para proporcionar uma dinâmica cultural e turística acentuada à cidade? Temos uma conexão? Conseguimos, com efeito, unir arte com outras realidades ao nosso redor, de tal forma que, ao sair de Maputo, Benson, Miller, Ocean, Bona, Afonso Cruz, Helder Macedo (um pouco nosso), uma Bethânia, Gadú, etc., levem consigo um desejo de cá voltarem de férias ou de espalhar elogios pelo país além-fronteira? Ou tudo acaba no tão afamado intercâmbio cultural?

É preciso fazer mais e melhor. Alguém disse isso. E para fazermos mais e melhor, se não soubermos como se faz, devemos ter a grandeza de ser pequenos e aprender dos outros. Não é possível que não estejamos a ver o que a South Africa Airways tem estado a fazer pelo turismo sul-africano, unindo cultura e conhecimento. Veja-se o caso do INDABA e o Essence Festival. Eles têm dinheiro? Têm, mas é certo que a maquia não é tudo. Com uma cidade velha, como a nossa capital, podemos impressionar, desde que haja organização. Por exemplo, o turismo na Europa, em parte, vinca devido às cidades velhas que lá existem. A cidade invicta, Bruxelas e Amsterdão reflectem essa realidade. Porque ali não se constrói a torto e a direito como nós fazemos, sem cumprir prazos de construção em muitos casos e sem abandonar as obras. As praças, favorecem os transeuntes, ao invés de viaturas, como calha nas nossas. Lá há um respeito pelo velho, que cá não temos nem pelo Homem e tão-pouco pela obra. O Museu Van Gogh, no Museumplein, Amesterdão, e tantos outros ali em redor, são espaços que rendem milhões de euros porque houve um pensamento e uma comunicação que os torna valiosíssimos. Se nós próprios não valorarmos os nossos produtos continuaremos nesta previsibilidade decadente, de uma cidade que extermina salas de cinema como cresce em densidade populacional sem criar parques de diversões e de lazer a sério, para adultos e para crianças.

Temos de olhar urgentemente para o nosso passado e ressuscitar todos aqueles que devem ficar imortalizados e fazer disso uma forma de promover a cultura, o turismo e ganhar dinheiro. Temos de voltar a acreditar que aqueles passeios escolares feitos por alguns de nós, na meninice, têm uma importância na formação de uma personalidade íntegra e na construção de um território limpo, mais do que na via, em nós mesmos. Estamos carentes desse território invisível e devemos recuperá-lo porque quem gosta e tem a noção do que o turismo vale, quem aprende a partilhar a beleza com os outros e sente-se parte disso, não atira uma casca de banana do interior do “chapa” para a rua; não condena às árvores a um ácido cruel e é o primeiro a dizer que existe alguma terra onde o batimento cardíaco é o criador do próprio coração. Moçambique pode ser essa terra, se diferentes intervenientes unirem-se por um propósito, porque Moçambique, nem mais, é maningue nice!

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos