O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada. O Búzi nega em deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila.

O sono de Nyaswa evapora-se ao sentir o líquido percorrendo-lhe as costelas. A princípio pensou que a filha, embebida pelos sonhos infantis, se tivesse borrado de novo. Não leva muito tempo para afastar essa ideia. A quantidade da água é o advogado silencioso da criança que dorme.

A mãe ergue-se num pulo. Suas pupilas dilatadas tacteiam o escuro. A menina desperta, aos choros, da sua viagem pelo mundo da inocência. A água galgou-lhe a esteira que ameaça flutuar. Nyaswa puxa por uma capulana e coloca a criança nas costas. Há ruídos estranhos no exterior da palhota. Não são mochos. São pessoas em debandada.

«Usore!», grita uma voz. «Cheias!»

A água já passou da barriga da perna. Sobe para os joelhos. A escuridão não deixa Nyaswa contemplar todos os seus bens que, agora disputam espaço com o líquido na diminuta palhota. Mas o seu coração sabe onde está cada peça de vestuário comprado nas calamidades; o sal, a farinha e o açúcar que não se podem molhar; os papéis da família, sobretudo a cédula e o cartão de vacinas da filha. Sabe onde está tudo o que lhe pertence. Tudo o que faz de si gente.

Haverá espaço para salvar alguma coisa? O que dirá o marido Magumisse quando voltar das minas e descobrir que ela não foi mulher o suficiente para proteger os bens da família?

A água não pára de subir. Está agora na cintura. A corrente forte já se sente. Tudo no interior da palhota está aos círculos. As panelas, os pratos e as duas cadeiras plásticas chocam-se.

«Usore!», a voz volta a ouvir-se. «Cheias!», e desta vez é de mais distante. Nyaswa percebe que o que sobra para salvar é a própria vida. Dela e da pequena, que não pára de chorar.

Ela deixa a palhota para trás e entrega-se à madrugada. Um raio risca os céus e ilumina os ares. Compreende, então, que o Búzi deixou de ser um rio. É um mar. Um oceano cheio de pedaços de pessoas à deriva. Tudo está em desnorte. Apenas o rio evadido do leito tem a certeza do que faz: destrói.

O andar de Nyaswa não pode ser mais rápido. A água não pára de lhe galgar o corpo. Agora apalpa-lhe ligeiramente os seios. Ela puxa o bebé das costas para o colo. Quer protegê-lo melhor.

O ronco do céu abana a madrugada. A chuva é torrencial. Muito vento à mistura. Já não há para onde ir. Nyaswa faz o que toda a menina da sua aldeia fez a infância toda. Trepa uma árvore. É uma amendoeira plantada longe dos quintais para espantar a viuvez precoce das aldeãs. A árvore é frondosa, mas não lhe custa nada subir alto e deixar a corrente para baixo.

Ela refugia-se num ramo forte, que resiste às investidas do vento e da chuva. Nyaswa ora pela vida, pelo futuro e pelo amanhã. As suas lágrimas imiscuem-se com o leito das águas da chuva que escorrem nas suas faces e desaguam lá em baixo, no mar que teima em crescer.

Nyaswa está agarrada à sua pequenita, escoltando o limbo do vento. Tem a vã esperança de que o raiar do sol vá secar as águas que dos céus continuam a molhar o seu futuro. O alvorecer até acontece, mas a chuva continua a cair. Miudinha, a salpicar o rosto desesperado da Nyaswa.

Os seus olhos fixam-se num pequeno recanto da amendoeira que se mexe. Um par de olhos devolve-lhe o olhar de forma incisiva. É um mocho. É o raramente visível ninho do pássaro da noite. Nyaswa não se move. Não tem para onde ir. A ave da morte também está encurralada. Encolhe-se e aguarda pelo destino.

Nyaswa desvia o seu olhar para o infinito lençol de água que cobre a sua aldeia. Objectos flutuantes seguem a corrente num desfile sem fim. Todas as palhotas desapareceram do mapa. A água atingiu níveis espantosos.

Não há como largar o ramo da amendoeira. Não há como descer para desbravar os caminhos da sobrevivência. A vida resume-se a este ramo. O meio de subsistência é aqui que não se obtém. Em baixo é o caos. É o mar.

Nyaswa apega-se ao ramo da amendoeira. O bebé apega-se ao peito da mãe. Suga-o em busca de gotas de leite, que a fome começa a fazer escassear. O tempo corre devagar, neste duro teste de resistência. É a luta pela vida.

Só ao quinto dia é que a chuva abranda. O sol não espreita. Um ensurdecedor ruído de motor aproxima-se lentamente. Não pode ser carro algum. Com tanta água, todas as vias só podem estar cortadas. Passados alguns minutos de escuta há uma convicção que vira certeza. Os motores roncam pelos ares. Um helicóptero vem salvar homens, mulheres e crianças, que iguais a pássaros, estão empoleirados em árvores. Fugiram da terra que deixou de ser firme.

A aeronave voa baixo. Lança cordas pelas quais iça as vítimas. Os ventos fortes descabelaram os ramos da amendoeira. Não custa muito que a Nyaswa e a sua filha sejam descobertas pelo enorme pássaro de aço.

Nyaswa segura a corda com toda a força. Entrelaça um nó na cintura. O bebé está nas costas. Estão as duas prontas para subir em busca de água para beber. Em busca de pão. Em busca de salvação. Em busca da vida.

A corda sobe lentamente. O coração da Nyaswa palpita forte. É um misto de emoções. Medo de estar a esvoaçar pelos ares, presa a uma simples corda. Ansiosa por alcançar o helicóptero.

A escassos metros da aeronave sente a capulana do colo a desprender-se. Larga a corda e procura segurar o seu bebé. Nyaswa está presa pela cintura, mas não tem flexibilidade suficiente para evitar que a pequena se lhe escape.

Solta um grito de pânico. Esperneia. Mas a gravidade é impiedosa e chama pela criança que se esborracha nas águas, levantando uma enorme nuvem de espuma. Na água segue-se o silêncio. No ar o helicóptero continua a içar uma mãe que já nem sabe se vale a pena continuar viva.

CARL SAGAN (EUA, 1934 —1996) foi um escritor, cientista, astrónomo, astrofísico, cosmólogo, entre outros oficios. Ele é autor de mais de 20 livros, entre ficção científica e diversas publicações científicas.

Sagan tornou-se conhecido não só pelos seus livros como também pela famosa série televisiva de 1980 “Cosmos: Uma Viagem Pessoal”, que ele mesmo narrou e co-escreveu. É considerado um dos divulgadores científicos mais carismáticos e influentes da história, graças à sua capacidade de transmitir ideias científicas de forma simples e compreensível para o público comum. Foi também um dos promotores da busca por inteligência extraterrestre através de vários projectos, entre os quais o SETI.

Foi ele igualmente quem instituiu o envio de mensagens a bordo de naves espaciais concebidas para viajar para além do sistema solar, destinadas a possíveis civilizações extraterrestres, informando sobre a nossa existência aqui na Terra. E uma dessas mensagens, talvez mesmo a mais refinada, é a que foi acoplada às naves Voyager. Trata-se de um Disco de Ouro, com indicações sobre a nossa localização na galáxia (Via Láctea), e inclui imagens e vários sons naturais, tais como trovões, vento, ondas do mar, cantos de pássaros, entre outros. Foi incluída também uma coletânea musical com obras de diferentes épocas e culturas. Foram igualmente registadas saudações em 55 línguas, das quais algumas africanas, como é o caso de Nyanja e de Nguni, entre outras. As sondas que levam esta mensagem foram enviadas em 1977 e, neste momento, encontram-se no espaço profundo, fora do sistema solar.

Foi a partir de livros e outras publicações científicas de Carl Sagan que comecei a desanuviar algumas áreas da minha cosmovisão, na verdadeira acepção da palavra, em relação às questões fundamentais como, por exemplo: “quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos, onde começa e termina o universo?”. Tenho dito que desde que me conheço como pessoa, fui sempre um agnóstico em matéria de religião e filosofia. E Sagan não só abriu como também alargou o meu campo de visão e compreensão, impactando desde modo, e de forma profunda, a minha relação com as coisas, com o mundo e com a própria vida.

A oitava edição do relatório Riscos Globais, do Fórum Económico Mundial, de 2013, listou uma série de factores como, por exemplo, a descoberta de vida alienígena, o uso de “anabolizantes” para aumentar a capacidade cognitiva, a mudança radical das condições climáticas na Terra, que podem implicar em grandes dilemas éticos e provocar alterações na maneira como a civilização humana se organiza e em como ela se vê a si mesma. Com efeito, qualquer descoberta científica de fundo pode impactar, sobremaneira, tanto a nível individual quanto colectivo a nossa maneia de ser e estar no mundo.

A ciência leva sempre a melhor por ser uma forma de conhecimento que advém da observação e experimentação e, por isso, quanto a mim, é o único conhecimento credível. Mas então o que é realmente a ciência? No livro “Deus não Joga aos Dados”, escreveu Laborit: “Quando o homem do paleolítico encontrou um mamute, percebeu imediatamente que não podia enfrentá-lo. Fugiu correndo e, na incoerência aterrorizada da corrida, caiu e feriu o joelho num sílex. Compreendeu que o sílex era mais duro que o joelho. Ora, o homem é o único animal que reuniu essas diversas experiências para formular uma hipótese de trabalho (…) ‘após construir uma arma para enfrentar o mamute, o homem’ concebera uma hipótese de trabalho e verificara experimentalmente o seu valor. Era sem dúvida uma atividade científica."

Carl Sagan, na introdução ao seu livro “Cosmos”, escreve que “Em nossos dias, descobrimos um modo poderoso e elegante de compreender o universo, um me?todo chamado cie?ncia; ele nos revelou um universo ta?o antigo e ta?o vasto que as questo?es humanas parecem, a? primeira vista, ter pouca importa?ncia. Crescemos distantes do universo. Ele parecia remoto e irrelevante para nossas questo?es do dia a dia. Mas a cie?ncia descobriu na?o so? que o universo tem uma grandeza vertiginosa e exta?tica, na?o so? que ele e? acessi?vel a? compreensa?o humana, mas tambe?m que somos, num sentido muito real e de grande alcance, parte desse cosmos, nascidos dele, nosso destino profundamente conectado ao dele. Os mais ba?sicos e triviais eventos que dizem respeito ao homem levam ao universo e a suas origens”.

E noutro livro “Bilhões e Bilhões” Carl Sagan diz que “Vivemos num Universo em expansão, cuja vastidão e antiguidade estão além do entendimento humano. As galáxias que ele contém estão se afastando velozmente umas das outras, restos de uma imensa explosão, o Big Bang. Alguns cientistas acham que o universo pode ser um dentre um imenso número  – talvez um número infinito – de outros universos fechados. Uns podem crescer e sofrer um colapso, viver e morrer num instante. Outros podem se expandir para sempre. Outros ainda podem ser delicadamente equilibrados e passar por um grande número  – talvez um número infinito – de expansões e contrações. O nosso próprio universo tem cerca de 15 bilhões de anos desde a sua origem ou, pelo menos, desde a sua presente encarnação, o Big Bang”.

Perante esta realidade, se os humanos compreendessem e interiorizassem a sua insignificância quer no panorama espacial quer temporal neste universo em constante movimento, certamente que muitos dos conflitos existentes no mundo não teriam lugar nos tempos em que vivemos. Mas como os “capitalismos”, os “neoliberalismos”, os “individualismos“,  característicos dos tempos actuais, falam mais alto do que a nossa própria ignorância, estes configuram uma das pandemias da humanidade, a par daquele espanto e daquela embriaguês ante a nossa própria existência. Escutemos um conselho de Carl Sagan: “Cada um de nós é, sob uma perspectiva cósmica, precioso. Se um humano discorda de você, deixe-o viver. Em cem bilhões de galáxias, você não vai achar outro.”

É nesta vastidão da nossa galáxia, para não falar deste universo sem limites, é neste “pálido ponto azul” visto de longe, onde habita a humanidade. Com a teoria do “Big Bang” agora entendemos um pouco mais sobre donde viemos e podemos, por assim dizer, lançar algumas hipóteses sobre quem somos e para onde vamos. Podemos, naturalmente, não saber tudo sobre nós mesmos, mas temos pistas que nos podem levar, ainda que timidamente, a conjecturar sobre o nosso desígnio aqui no mundo. Carl Sagan, em “Pálido Ponto Azul” diria assim, referindo-se justamente ao nosso Lar comum, ao nosso planeta Terra: “(…) Olhem de novo para o ponto. E? ali. E? a nossa casa. Somos no?s. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem ja? ouvimos falar, todos os seres humanos que ja? existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inu?meras religio?es, ideologias e doutrinas econo?micas, todos os cac?adores e saqueadores, hero?is e covardes, criadores e destruidores de civilizac?o?es, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e ma?es, todas as crianc?as, todos os inventores e exploradores, professores de moral, poli?ticos corruptos, “superastros”, “lideres supremos”, todos os santos e pecadores da história da nossa espe?cie, ali – num gra?o de poeira suspenso num raio de sol.”

Note-se que até à morte de Sagan ainda não se tinha descoberto o “Bóson de Higgs”, não tinham sido detectadas as “Ondas Gravitacionais”, não tinham sido registadas as primeiras imagens de um “Buraco Negro”, mas Carl Sagan, ainda assim, foi capaz de compreender muito bem como o universo funciona. Mesmo o LHC – Grande Colisor de Hadrões – o maior acelerador de partículas do mundo, também nem sequer existia ainda. Hoje sabe-se com alguma precisão que a idade do universo é de cerca de 13,7 mil milhões ou, como se queira, 13,7 bilhões de anos.

À semelhança de autores/cientistas como Albert Einstein, Stephen Hawking, Marcelo Gleiser, entre outros, Carl Sagan realmente atordou-me muito e de forma positiva ao ponto de  despreconceituar a minha mente e a visão que eu então tinha em relação às coisas e ao mundo em que vivemos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Por: Marcelo Panguana

 

Não somos os únicos, mas é urgente que se diga: pertencemos ao grupo de certos povos que cuidam pouco, ou quase nada, dos seus escritores. Daquilo que escrevem e pretendem transformar em memória. Por isso, principalmente para fechar essa lacuna de fixação da memória, de análise crítica literária, decidi não hesitar, decidi estar aqui, não porque seja capaz de elaborar o melhor exercício crítico sobre o poeta Sangare Okapi, mas sobretudo porque, mais do que  nunca, é preciso escrever, não apenas sobre os que escrevem, mas sobretudo sobre aquilo que escrevem. As palavras que se seguem não podem, de maneira nenhuma, ser consideradas verdades insolúveis, mas sim, e acima de tudo, simples vertigens de afecto que sinto em relação ao poeta e àquilo que escreve.

Sangare Okapi. Sem dúvida nenhuma um nome estranho. Como, aliás, são estranhos os nomes dos grandes artistas. Os nomes são estranhos, dizia o escritor e Prémio Nobel da Literatura, José Saramago. Os nomes são justos, como ensinaria Platão no seu Crátilo. Um dia, perguntei ao poeta, a origem do seu nome, e ele disse-me: Sangari é um nome que me foi sugerido pelo meu amigo e poeta Ruy Ligeiro. Eu apenas lhe acrescentei o epíteto Okapi, nome de um quadrúpede característico da região do Congo, na África Central, mas também conhecido como navalha, nos meandros do crime, África do Sul. E depois o poeta acrescentou: “Sangari Okapi é o que é, armadura do cidadão Cardoso Lindo Chongo.

Começo esta conversa modesta com uma afirmação que é um lugar comum para os que acompanham atentamente a poesia moçambicana, isto é, que Sangari Okapi é uma das vozes poéticas mais interessantes dos escritores “mais novos”, digo “mais novos”, e não da nova geração, porque sempre detestei situar os escritores em termos geracionais. Os escritores são aquilo que são, aquilo que escrevem é aquilo que os representa, identifica, os projecta ou coloca na periferia da literatura. Apenas isso. E arrisco-me a proferir, talvez, uma afirmação exagerada: a de que Sangari Okapi é um poeta genial. Genial é para mim um poeta que teve a capacidade de não entrar em lugares-comum, de não escrever como o outro, de ter uma voz própria. É isso que o identifica, embora considere alguns dos seus escritos “demasiadamente elaborados”, talvez porque o Sangare, utilizando a feliz expressão do escritor Suleiman Cassamo, constrói a sua poesia com a mesma delicadeza de um ourives a concertar um relógio suíço. Confesso que me deixo surpreender, muitas vezes, pela poesia de Sangare Okapi, a reinvenção da palavra, a frase exacta, a ideia poética funcionando como uma fórmula matemática. Esta preocupação com a palavra faz recordar o poeta Sebastião Alba ao afirmar que escrevia com terrível dificuldade. “reescrevo, colo, interpolo, publico um poema como quem o espelha. Armo a oficina em qualquer parte, sem tabuleta que o indique. Ninguém sabe, mas ali sua-se”. E eu digo: deve suar muitas vezes o poeta Sangare quando escreve os seus versos! Talvez seja por esta razão que nunca construiu uma poesia de distraído rigor, a sua escrita é elitista, se me permitem utilizar esta expressão, e entrecruza-se com a poesia mais erudita que se produz nos nossos dias.

Como uma pequena provocação, e não mais que isso, direi que pertenço a uma geração onde a poesia fluía como um rio, a palavra límpida, directa, talvez influenciado por julgar que as pessoas são pouco propensas à ler uma coisa que não entendem, entre aspas. Por essa razão, por exaltar a simplicidade, sempre admirei o Craveirinha, o Mutimati Barnabé João, o Khambira Khambirai ou a narrativa densa e simples duma Paulina Chiziane. Mas entendo, também, que é necessário promover a pluralidade da escrita, para que a literatura não seja enfadonha, quer dizer, repetitiva.  É necessário que aconteça a tal subversão da escrita a que um dia fiz referência na revista Charrua, de modo a substituir uma literatura de combate, panfletária, própria dos tempos que se atravessavam, do contexto histórico-cultural e dos valores sociais e estéticos dominantes desse momento. Tornava-se, pois necessário, criar uma outra forma de discurso poético, arriscando-se por caminhos complexos que, muitas vezes, o discurso engajado não proporciona.

De resto, essa minha preocupação sobre a subversão, viria a ser retomada tempos depois por Jéssica Falconi em As margens da Nação, na poesia de Sangare Okapi, onde se referia ao facto de que terminada a longa noite colonial, com toda a sua violência e a indefectível mentira do império ultramarino, seus poetas  procuram desconstruir os cânones impostos pelo colonizador europeu enaltecendo, por meio do verbo poético, o chão moçambicano e a pluralidade étnica ”. E digo: essa desconstrução poética também exigiu e continua a exigir, uma outra forma de palavrar, de construir a poesis, de buscar a sua autenticidade num universo literário em que é preciso ter, mais do que nunca, uma voz própria, sem deixar de evocar os lugares de pertença, de recuperar a herança cultural e de exaltar a cidadania. Penso que este é, nos nossos tempos, o maior desafio do escritor moçambicano.

Senti uma imensa satisfação ao ler os livros do Sangari Okapi. E também essa sensação de agrado que se sente quando se lê aquilo que nos pertence, provavelmente porque nós, os escritores moçambicanos, temos uma imensa dificuldade de nos lermos uns aos outros. Falava, aliás, o Luís Carlos Patraquim, dessa sua suspeição, que também é minha, que os autores moçambicanos não lêem os outros autores moçambicanos, e enquanto isso não acontecer é porque estamos descentrados, é porque há uma excentricidade  no sentido etimológico do termo que ainda não nos precipita para dentro. Na verdade é preciso que entremos no texto do outro, que aconteça um cruzamento de expressões narrativas, que haja um conhecimento mútuo. Se isso não acontecer, é muito difícil falar em literatura moçambicana, porque esta vai aparecer como um corpo fragmentado.

Voltemos ao Sangari Okapi. Sei que escreveu seis livros. li o “inventário de angústias” com aquela curiosidade com que se lêem os livros de estreia. O primeiro livro na vida de um escritor, exceptuando o dos génios, é uma dor de cabeça para toda a vida. Há os que não se revêm nele depois que o livro é publicado. Alguns o rejeitam. Fazem dele um filho órfão de pai. Sangare teve o privilégio de escrever “o inventário de angústias” com a bênção dos seus deuses. A crítica lhe foi favorável. As portas para a sua visibilidade poética se abriram e Sangare, entrou através dessas portas com a mesma altivez com que entrava, amiúde, nos agitados lugares de folia do Bairro de Aeroporto, sem nada nos bolsos, sem nada nas mãos, mas com muita poesia na alma.

Para o filósofo Dionísio Bahule, o «Inventário de Angústias ou Apoteose do Nada» do Sangare Okapi traduz esta estética ?losó?co-literária que se instala no centro do trágico e na visão dramática da condição humana, como também, nas contradições e carências do País que se chama Moçambique. E acrescenta, o filósofo Bahule, as palavras-Chave que constituem o epicentro do livro e que são: Ser. Angústia. Poesia. Existência. Literatura. E é exactamente o conflito existencial que encontramos neste verso:

“Antes estar só era casual.

 Agora estar só é um ritual”

Estar só é uma espécie de dádiva do homem. Está-se só quando se nasce. Está-se só quando se morre. Mas o maior calvário da solidão é a solidão que se vive enquanto estamos vivos. Sangare Okape sabe disso. O seu inventário de angústias é  interminável, e aqui me socorro a estudiosa Sara Jona que no seu estudo “homenagem grandiosa a angústias surgidas do nada”, fez o inventário de algumas delas extraídas do livro em questão: “a angustia me acontece, me atravessa”- “guardo as minhas mágoas como se de lagoa se tratasse, pois sou todo uma mágoa” – “a angustia invade, sufoca e castiga” – “nada mais quero ser senão esta apoteose do nada que me cerca”. E as citações das angústias do Sangare prosseguem. Mas para além de todas estas angústias, de todas estas solidões, existe a pior de todas, que é, indiscutivelmente, a solidão do artista, que o vitimiza devido a sua fragilidade emocional acentuada pelo esforço da criatividade literária. Mas o Sangare já se habituou, porque “agora estar só é um ritual”.

Num outro momento li Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo. São poemas de amor. Esse amor que escasseia na sociedade. Ou então se expressa de forma incongruente. O amor que as nossas palavras e os nossos discursos apregoam mas que nunca acontece. São poemas de amor os poemas deste livro. Embora seja um amor desencontrado, ou impossível, ou porvir, é de amor que o livro nos fala. É de paixão. É o amor pela mulher. Pelo seu corpo, esse altar que todos anseiam pisar para excomungar os seus desejos. É o amor pela Ilha, lugar onde a pátria começou e a ideia da nação se tornou mais forte, lugar onde Lacerda, Knopfli, Nelson Saúte, Adelino Timóteo e outros poetas apaziguaram as suas almas nas águas de Muhipiti. E como diria Nelson Saúte, “falas e gentes, culturas e povos reencontram-se, em sagração, na encruzilhada secular desta Muipiti, incrustada no Índico, mirrando pachorrenta o Oriente, na inédita cumplicidade entre o macúti e a pedra e cal, o maulide e o açafrão, o m’siro e o colar de prata, o caril e o tufo!”. É nesta sagrada ilha para onde Sangare decidiu aportar com o seu barco e é nela que o seu amor se revitaliza:

A luz solar dos teus olhos líquidos

Chega-me suada pela vidraça da fortaleza

  E a tua voz, que é música, se erguendo no ar,

  Salgada e nua sinto-te no litoral da língua

  E nenhuma garça agarrada ao estendal do vento

  Me ensina o poema.

  Sou agora a música, o poema, a garça sem graça

  No falso relógio da demora.

E em mais uma viagem para dentro de si próprio, Sangare escreveu e depois fez questão de nos apresentar “Os poros da concha”, que algumas vozes auguravam como sendo o livro da consagração do poeta. Não sei se o terá sido. Porque se isso acontecesse seria, sem dúvida nenhuma, a morte anunciada do poeta, porque uma obra literária nunca é completa, nem insuperável, ela apresenta sempre algumas lacunas, incongruências, e as vezes alguma incompetência comunicativa. E ainda bem que é assim, para que o escritor sinta sempre essa vontade de superação, para o bem dele e da literatura.

 Recordo-me que o lançamento desta obra seguiu um ritual diferente. Os discursos longos e fastidiosos colocaram-se de lado. Privilegiou-se a conversa aberta sobre o autor e a obra. O novo livro de Sangari tornou-se o protagonista principal. O efeito foi agradável. Escreveram-se alguns ensaios sobre o livro. José dos Remédios emprestou-nos a sua análise da seguinte forma: “Os poros da concha é um bom livro do ponto de vista do rigor vocabulário. Por isso, o poeta consegue sugerir situações eróticas sem baixar o nível da linguagem ou sem dizer o que é bom de imaginar: “estirpe e tese teu corpo/ alguma realidade oculta/ ou doce vagem insepulta// à vista apetecível o ninho/ na blusa lis em desalinho” (p. 29). Onze páginas antes, encontramos o seguinte texto: “atalhados sentidos na erecção do caule// maduro o fruto adocicado entre as coxas/ ou húmido o musgo na bexiga que a mão/ te alcança nua e secretamente vegetal” (p. 18). Erecção, caule, frutos e coxas são palavras agradáveis de ler neste livro constituído por 54 páginas. Há também o peito, os seios: “como o antílope pulando na savana rubra/ vejo-te os seios rijos no peito convidando/ a fome apetecida e excelsa sem candonga (p. 52)…).

Mas os melhores ensaios sobre “os poros da concha”, foram aqueles que nunca se escreveram e obviamente nunca publicados. Foram os que amiúde se escutavam nos corredores das conversas literárias e nas mesas dos bares, entre um cigarro, uma bebida e um riso solto, terá sido nesses corredores informais, nessas conversas descomprometidas, que o último livro de Sangare se fez presente e se  divulgou, tornando-se um ponto de referencia sempre que se falava da poesia que hoje se escreve em Moçambique. A observação mais interessante sobre “os poros da concha” foi a do próprio Sangari Okapi, quando sobre a sua última obra, disse e cito: “Os que leram o livro dizem que é um dos meus melhores projectos literários. Quero acreditar que o amor vem à tona, com exercício na construção da imagem, investimento ao nível de técnicas de escrita para mostrar que a minha literatura não está estática, é dinâmica e de uma oficina de trabalho árduo”. Fim de citação. Quem realça os atributos da obra é também o escritor e académico Lucílio Manjate, ao afirmar que “É um livro forte de emoções, com uma visão de crítica social extremamente exacerbada. Há um tom de desilusão, do apontar o dedo, do tocar a ferida, mas tudo feito num tom poético altamente conseguido. Eu me atrevo a dizer que este é um livro altamente conseguido do ponto de vista poético”

E para colocar um ponto final a esta tentativa de conversa sobre o poeta Sangare, nada melhor que citar um outro poeta, o Álvaro Taruma, ao dizer: “Admiro ainda quem impune passa pelos livros, alheio a toda esta névoa solar,  eu soçobro em febres como o animal ferido de um incendiário espanto”. Fim de citação. E eu admiro todos aqueles que passam impunes diante da poesia de Sangare Okapi, sem que se sintam seduzidos, sem que haja um chamamento capaz de os conduzir a viagens poéticas passiveis de modificar a percepção que tem da literatura moçambicana. Sem que sejam capazes de se enternecer perante um Sangare Okapi que vem se consolidando como o mais radical e inovador poeta de sua geração.

 

10 de Março de 2020

Ricos cada vez mais ricos
Pobres cada vez mais pobres!

Importação e exportação. Também no desporto. Envia-se matéria-prima para (de?) lapidar e recebem – o país de origem e as estrelas – migalhas do que os talentos por lá produzem. Muitas vezes, os jovens até ficam “indisponíveis” para representar a selecção dos seus países, uma vez colocados “entre a espada e a parede” da naturalização.

Lurdes Mutola contou-me um dia, a extrema pressão que sentiu para optar pela nacionalidade americana. O seu falecido pai, João Mutola, é que lhe disse que não gostaria de viver o momento em que a sua filha, para vir a Moçambique, tivesse que solicitar um visto de entrada.

DINHEIRO, DINHEIRO E…
MAIS DINHEIRO!

Soa a insulto para um ser humano, por exemplo, um jovem jogador de futebol principiante, como o ex-benfiquista João Félix, ser transferido para o Atlético de Madrid por um valor superior a 100 milhões de euros!!!

Não é fácil encontrar quem se predisponha a EMPRESTAR esse montante a Moçambique, para acudir a situações calamitosas como os ciclones Idai e Kennet, para ser reembolsado em 10 anos, com juros!!!
As verbas que circulam no futebol, particularmente na Europa, representam um pontapé no bom senso e equilíbrio das pessoas. Na realidade, pode dizer-se que a bola já não é redonda.
Porquê?

Atente-se numa lista dos 20 clubes (mais) milionários de Europa e do Mundo. Compare-se depois com o destino das maiores competições do planeta. Facilmente se constatará que a divisão é, e será sempre, entre eles. E agora, com o vídeo-árbitro, tecnologia que nem daqui a décadas chegará à Catembe ou a Nicoadala, cada vez maior vai ficando o fosso… Daí que, nem com a maior sorte deste planeta, um Munhuanense Azar, ou mesmo um Costa do Sol, poderão, mesmo em sonhos, infiltrar-se naquele nível, uma única vez!
O que conta, em primeiríssimo lugar, é o investimento. O resto vem logo a seguir.

ESPÍRITO OLÍMPICO
A DESVANECER-SE

No Comité Olímpico Internacional, patrão-mór da maior movimentação desportiva planetária, a tendência também não é diferente. Há umas décadas, os países menos fortes tinham quotas de participação, para lá dos mínimos.

Assim, havia atletas/promessas que acompanhavam, alguns sem competir, os representantes dos seus países, com a finalidade de “sentirem o cheiro” àquele nível de competição, para daí saírem motivados e mobilizadores para outros jovens, nas suas origens.

A fase eliminatória dos Jogos Olímpicos, era mais para contacto, no terreno, super-potências versos sub-desenvolvidos, conferindo a estes a oportunidade de medirem as diferenças reais, no terreno.

Lurdes Mutola, em Seul, com todo o potencial, ficou-se pelo quinto lugar numa série. Viu, vivenciou e interiorizou. Depois cresceu física, técnica e também mentalmente. Quatro anos depois, em Barcelona, já era uma séria candidata a uma medalha olímpica.

Angola, em basquetebol, na Olimpíada de 92, teve a “sorte” de lhe ser oposto o “dream team” de Michael Jordan, Magic Johnson, Larry Bird & Companhia. A meta era perder por 50 pontos. Não conseguiu. Perdeu por 116-48 (68 pontos de diferença). Mas a lição foi bem estudada. Em pouco tempo transformou-se numa indiscutível potência africana.

Nos dias que correm, cada vez mais a lógica da confraternização, que fazia parte do espírito olímpico, vai ficando para trás.
Tive o privilégio de cobrir para o nosso país, as Olimpíadas de Seul 88 e Barcelona 92. Na retina, ficaram-me imagens de um super-campeão americano, Edwin Moses, correndo a eliminatória dos 110 barreiras a fazer passada, enquanto, a seu lado, os adversários se “esfalfavam” para não o deixarem fugir; na maratona – 42 km + 125 metros – os últimos, cortaram a meta, quando o vencedor da prova já havia tomado o seu banho e lugar nas bancadas.

E cá fora? Na hora do “tacho”, eram visíveis as diferenças. Se algumas estrelas, habituadas às mordomias, apenas comiam o que os seus nutricionistas permitiam, os dos países menos abastados, aproveitavam a oportunidade para matarem a fome com as deliciosas guloseimas e bebidas gratuitas e à mão de semear!

No ano em que a Fundação Fernando Leite Couto comemora o seu quinto aniversário de actividades culturais, exibe na Galeria, a segunda exposição de 2020, a individual de cerâmica, intitulada: ”Mistérios e tendências da Capulana” do artista moçambicano Arsénio Massunga (Massunganhane de nome artístico).

Massunganhane fala connosco através da sua arte, rasgando o tecido do quotidiano com as suas obras bordadas de aspectos chave, que contam as nossas histórias e nos levam imediatamente a múltiplas questões sobre a forma como representa o corpo humano, simultaneamente criativo e provocativo aos nossos olhos.

A representação humana, tem constituído ao longo dos tempos um desafio e uma preocupação para os artistas plásticos, em todas as vertentes da arte, na pintura, na escultura, na fotografia ou mais modernamente nas artes digitais.

A Cerâmica não poderia constituir excepção na representação do corpo humano que, em África, data de tempos imemoriais sempre intimamente ligada aos costumes, tradições, língua, religião e cultura das diversas regiões. Uma representação que é constantemente modificada e alterada segundo determinam os acontecimentos de cada época, sejam de ordem sociais como política. 

Ver e descobrir aquilo que as imagens criadas pelo artista nos sabem dizer sobre as identidades individuais de cada delas e sobre a forma como “conversam” entre si, os pormenores ocultos que sintetizam as nossas mulheres é desafiante.

O jovem Massunganhane procura, através das suas esculturas de formas bizarras alojar uma série de práticas e percepções, seguindo um rumo onde coexistem fenómenos e processos no espaço e no tempo.

Explora o tema do corpo humano e relaciona-se com a sociedade através de um mundo utópico de figuras modificadas que os nossos olhares vão percorrendo e filosofando a cada uma delas, à medida que avançamos através da exposição.

Inspira-se nos modos, hábitos e costumes das comunidades por onde anda, dos lugares que visita durante as suas pesquisas e, em particular, do meio social onde vive.

O artista examina constantemente a história, investiga e interconecta-se com ela para representar as emoções, os sentimentos, as convicções, as ambições de cada um. É deste modo que utilizando o barro Massunganhane vai moldando o passado e o futuro.

Habilmente vai recriando as formas esculturais e os movimentos sensuais do corpo humano representando os seus modos de ser e de estar. Nas suas figuras adota uma abordagem própria das multiplicidades inerentes à prática artística dos ceramistas de várias regiões.

Com perspectivas intemporais e físicas percorre a história do seu País e das suas gentes, recolhendo sentimentos e identificando através dos instrumentos e hábitos a sua cultura e tradições, tal como o uso da Capulana, que, com origem há muitos séculos atrás, vai adquirindo outras nuances sociais, sem nunca perder valor.

O artista desenvolve um verdadeiro trabalho de procura e de respostas para a relação da mulher e do mundo. Uma espécie de comunhão entre o feminino e o seu corpo enfeitado de capulana, que de maneiras diversas encontra a formulação para as questões da nossa diversidade cultural

É assim a escultura de Massunganhane, que se transforma e molda docemente nas suas mãos e que se redimensiona à condição de vivente no mundo. É assim como a Capulana, símbolo de riqueza, prestígio e poder no século XV e hoje um importante acessório de vestuário rico em cor e design.

As obras de Masdunganhane sabem guardar segredos. São assim também as Capulanas que enchem os baús das belas esposas, mães e avós moçambicanas e que calam os seus segredos trazendo, cada uma, o seu propósito. São assim as obras de Massunganhane enigmáticas, plenas de sensibilidade e nuances que sabem dar voz à realidade do Moçambique contemporâneo.

 

 

Na edição transacta, procuramos trazer o regime jurídico relativamente ao qual a matéria concernente à Protecção de Dados [Pessoais] está respaldada, exercício que nos ciceronizou até a seguinte conclusão: tendo, as normas corporizadas no texto da “Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais” sido recepcionadas no ordenamento jurídico moçambicano tal e qual foram adoptadas naquela Convenção e, sendo certo que a partir da respectiva ratificação, tais normas passam a (con)figurar como diploma infraconstitucional, em igualdade de circunstâncias com as demais leis aprovadas no solo pátrio, podemos, com arrojo e ousadia, acrescida de certeza inequívoca, afirmar que, à semelhança, por exemplo, do que se sucede no Brasil (Lei Geral de Protecção de Dados Pessoais ou LGPDP – Lei n.º 13.709/2018), nos Estados Unidos (California Consumer Privacy Act of 2018 ou CCPA), em Portugal (Regulamento Geral de Protecção de Dados ou RGPD – Lei n.º 58/2019) – sublinhando-se que no, caso português e em todos os países-membros da União Europeia, as respectivos RGPD obedecem à Directiva da União Europeia plasmada na Directiva (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Directiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados), que é congénere da Convenção da União Africana acima referenciada, também ela de obediência obrigatória para os Estados-membros africanos que a ratificaram – a Resolução n.º 5/2019 (que ratifica a Convenção) traduz-se no RGPD de Moçambique (ainda que não seja essa a denominação legal expressa atribuída pelo referido diploma legal).

É chegado o momento de dissecar a Resolução n.º 5/2019, tendo em conta que ela encontra-se dividida em três capítulos: (i) Transacções Electrónicas, (ii) Protecção de Dados Pessoais e (iii) Promoção da Cibersegurança e a Luta contra o Cibercrime.

Capítulo I – Transacções Electrónicas
 
As normas da Convenção aprovada pela Resolução n.º 5/2019, enquadradas no capítulo subordinado às “transacções electrónicas” são, no geral, coincidentes com as que já se encontravam em vigor, no solo pátrio desde a entrada em vigor da Lei de Transacções Electrónicas (aprovada sob a égide da Lei n.º 3/2017), o que pode ter a sua explicação no facto de, a despeito de a Convenção ter sido ratificada em 2019 (através da Resolução n.º 5/2019) e só a partir daí tornada vigente em Moçambique, na verdade, ela foi adoptada em 2014, portanto, período antecedente à aprovação da Lei de Transacções Electrónicas (em 2017).

Dito de outro modo: Moçambique adoptou (sem ter ratificado) a adesão às normas da Convenção em 2014, e antes mesmo de a ter ratificado e tornado vigente no seu ordenamento jurídico – nos termos do n.º 1 do artigo 18 da Constituição da República, que estabelece que «os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique» – como consequência do reconhecimento da necessidade de implementação da “Política da Sociedade da Informação (Resolução n.º 17/2018, que reformou e revogou a “Política de Informação” ora aprovada no ano 2000), aprovou, em 2017, a Lei de Transacções Electrónicas. Daí a redundância que actualmente se observa quando se compulsam muitos dos artigos estabelecidos nesta Lei quando conjugados com as normas da Convenção aprovada pela Resolução n.º 5/2019.

Há, pois, relativamente à matéria aqui objecto de debruço (Cap. I), um encontro simbiótico de ideias entre o pensamento legislativo do Estado moçambicano, em especial, com o do continente africano, em geral.

A Convenção já estabelecia: que os Estados-membros devessem garantir que qualquer indivíduo que exerce o comércio electrónico tivesse de assegurar que os destinatários da prestação desses serviços ostentassem acesso directo, fácil e permanente, com a obrigação de uso de normas genéricas para informações relativas à identificação precisa dos provedores de serviço (n.º 2 do artigo 2 da Convenção que corresponde aos n.ºs 1 e 2 do artigo 44 da Lei de Transacções Electrónicas); a obrigação das pessoas, singulares ou colectivas, que exercessem comércio electrónico, com ou sem contrato, caso mencionassem preços por eles praticados ou a praticar, tivessem de o mencionar de forma clara e não ambígua (n.º 3 do artigo 2 da Convenção que corresponde aos n.ºs 3 e 4 artigo 44 da Lei de Transacções Electrónicas).

Conforme tivemos oportunidade de advertir na Parte III da presente “série”, não podemos perder de vista que nos referimos a transacções electrónicas (ocorridas no mundo digital, com particular enfoque para a internet) e, como tal, é imprescindível que o destinatário da prestação do respectivo serviço tenha, à sua mercê e ao seu dispor, todos os elementos identificativos das empresas com as quais celebrará contratos conducentes a adquirir bens e/ou solicitar serviços. Este aspecto ganha relevância subida, porquanto, se esses elementos não estiverem precisa, clara, suficientemente identificados e identificáveis ou não forem de fácil acesso, o risco de ocorrência de, por exemplo, burlas e outros tipos de fraudes, é de uma verosimilhança iminente. Naquele mesmo local, chamamos a atenção que exemplos do que se disse atrás são de verificação quotidiana, podendo ser apreendidos quer na avultada compra de viaturas ou mesmo na aquisição de uma mera peça de roupa.

Igualmente, os critérios de responsabilidade contratual do fornecedor de bens e serviços por meios electrónicos (artigo 3 da Convenção), no que tange às regras em torno das quais está sujeita a disciplina do comércio electrónico – e-commerce – subdivididas em transporte de bens, publicidade e marketing electrónico, segurança de instrumento de pagamento (artigo 4 da Convenção), e obrigações contratuais em forma electrónica (artigo 5 da Convenção), – contratos electrónicos estão, outrossim, em ambos os diplomas acima sindicados (Lei de Transacções Electrónicas e Convenção), casados entre si em plena comunhão de princípios normativos.

É importante sublinhar que a norma contida no artigo 3 da Convenção faculta, de forma expressa, a cada Estado-membro o direito que esse mesmo Estado possui, como corolário da sua soberania, de adoptar, segundo os princípios prevalecentes no respectivo ordenamento jurídico, as normas que reputar mais adequadas para regular as relações decorrentes da actividade do comércio electrónico, `a qual diz a Convenção, está sujeita a intenção expressa comum entre a pessoa (singular ou colectiva) que exerce a actividade e o destinatário dos bens e serviços daquela actividade.

Significa isto dizer que tais relações não estão sujeitas a quaisquer normas imperativas da Convenção, mas sim subordinadas ao que internamente vem codificado sobre a matéria, nos termos conjugados entre a Lei de Transacções Electrónicas, Código Comercial, Lei de Defesa do Consumidor (e respectivo Regulamento) e, de forma supletiva, Código Civil, visto que, por exemplo, sempre que estiverem em causa situações de incumprimento contratual nas relações jurídicas entre fornecedores/prestadores de bens e serviços e consumidores, a par dos princípios específicos plasmados na Lei de Defesa do Consumidor, há sempre a faculdade de se chamarem à colação as regras de responsabilidade civil, cujo domínio encontra-se nos termos conjugados entre o Código Civil e o Código de Processo Civil.

Podemos, assim, contrariamente ao que acontece com a maioria das normas ínsitas na Convenção, apelidar esta norma de meramente programática, pois, deixa ao exclusivo pecúlio de cada um dos Estados-membros a prerrogativa de delinear os critérios normativos que acharem mais convenientes, dentro do espírito dos respectivos sistemas jurídicos, visando a fixação do correspondente regime jurídico.

Atrás, se fez referência às normas de caracter genérico que inspiram as relações contratuais baseadas nas transacções electrónicas, sendo curial realçar que na “Parte III” da presente “série” – Direito Digital na Ordem jurídica moçambicana –, tivemos oportunidade de nos debruçar de forma específica à protecção do consumidor, sendo que este particular aspecto, não tendo sido directamente transplantado das normas da Convenção para a Lei das Transacções Electrónicas, constituiu, e bem, uma atenção especial que o Estado moçambicano considerou por bem conferir aos consumidores, tendo em vista à particular defesa e protecção dos interesses/direitos destes, adaptando as normas protectoras já prevalecentes tanto na Lei n.º 22/2009 – Lei de Defesa do Consumidor – bem como no respectivo regulamento – Decreto n.º 27/2016 – aos desafios específicos e peculiares que são impostos às relações jurídicas de consumo, quando originadas e desenvolvidas em ambientes digitais/tecnológicos/electrónicos.  

Os princípios norteadores dos documentos em formatos electrónicos nos termos da Convenção – escrita electrónica (artigo 6) – bem como a legalidade das comunicações electrónicas, encontram consonância (e são inclusivamente regulamentadas) no Capitulo IV da Lei de Transacções Electrónicas, artigos 24 a 32, com a fixação dos critérios de validade das mensagens de dados, das assinaturas electrónicas, da admissibilidade e força probatória das mensagens de dados, assunto que, pela sua peculiaridade e importância no tráfego jurídico, merecerá nas edições vindouras um tratamento exclusivo em artigo próprio, sobretudo na vertente relativa a forma de comunicação e legalidade desses documentos electrónicos junto dos Tribunais moçambicanos. Igual tratamento merecerá a matéria relativa `a “garantia de segurança das transacções electrónicas” (artigo 7 da Convenção) quando interpenetrada com “escritas electrónicas” e “assinaturas electrónicas”

Capítulo II – Protecção de Dados Pessoais Electrónicos

Ao ter aderido à Convenção, Moçambique comprometeu-se a criar um quadro jurídico objectivando reforçar os direitos fundamentais e liberdades públicas, nomeadamente, protecção de dados físicos e reprimir qualquer infracção relativa a vida privada, isto sem prejuízo do princípio da liberdade de circulação de dados pessoais.

O que se disse acima assume uma natureza paradoxal, pois, nem sempre é límpida a fronteira entre, por um lado, os dados que dizem estritamente respeito à vida privada dos respectivos titulares e os que, por outro, inspirados nos universais princípios da transparência, assumem uma natureza pública, ou, não sendo, dependendo dos interesses que estiverem em causa ou em disputa ou em análise, passam (esses dados de natureza privada) a ter o mesmo tratamento que teriam os dados de natureza pública.

É precisamente aqui onde se suspende o presente artigo e, concomitantemente, a partir daqui – protecção de dados pessoais electrónicos, enquadrado como capítulo da Convenção relativa à Protecção de Dados Pessoais – que continuará a presente dissertação na edição.

Já tinha passado muito tempo desde que o sono tomou o corpo de Olímpia. A noite, também, se tinha ocupado de tomar as ruas da cidade de Nampula. A noite é por excelência a hora em que muitas pessoas dormem. Mas para pessoas como aquela mulher que morava num daqueles bairros da periferia da cidade, onde a malta de lá de cima só vai pedir voto, era muito difícil apreciar o charme de fechar os olhos naquela hora em que a cidade tinha sido engolida pela escuridão.

É Verão; e como em qualquer outra cidade moçambicana, os mosquitos juntam-se ao pessoal. Com os miseráveis serviços de saneamento que as autoridades que geriam a cidade prestavam naquele ano, os mosquitos multiplicavam-se em milhões. Multiplicavam-se em milhões e distribuíam Malária por corpos negros e lindos como o daquela mulher, depois de cantar repertórios enfadonhos no seus ouvidos e lhes chuparem os colos que ficavam nus para não sucumbirem ao calor que não entra nas casas luxuosas dos empregados do povo.    

A noite sempre será o colo de uma mulher. O colo feminino é uma mina misteriosa onde todos brincámos de caçadores de tesouros; há muitos mistérios em volta de lugares onde repousam os tesouros deste mundo. Qualquer fatalidade pode acontecer no colo de uma mulher. Em qualquer noite há sempre lugar para uma fatalidade.

Apesar das picadas que recebia dos mosquitos, Olímpia dormia e de vez em quando despertava para com uma capulana dispersar os insectos que sugavam o sangue do seu filho de dois anos, que com ela partilhava a cama. A noite é para dormir e ela não podia fazer outra coisa; Olímpia tinha de aproveitar aquelas horas para descansar, porque antes da cidade acordar e do marido, que trabalhava num dos armazéns da cidade como guarda-noturno, chegar a casa, tinha de levantar-se, nenecar o bebé e ir à praia comprar o peixe que revenderia durante o dia. Gente humilde, gente que vive do próprio suor, meu Deus!

Diferente dos filhos das elites do país que esbanjam dinheiro pelo qual não suam, naquela zona periférica da cidade de Nampula vive gente que sua pelo dinheiro que não esbanja; gente que acaba o dinheiro sem satisfazer as necessidades básicas e com casas cobertas com capim ou zinco; esculturas de pau preto talhadas pela pobreza.

Quando Olímpia se deitou naquela cama que ocupava quase todo espaço do único quarto da casa algo socava as chapas de zinco que cobriam o tecto. Aqueles socos produziam o som de uma guitarrada que os casais apaixonados preferem juntar a duetos que espantam todas as tristezas. Olímpia adormeceu ao som daquele som, vendo ela e o seu marido a cantarem loucuras por cima do som daquela chuva; imaginando ela e o seu marido a viverem a rica vida que nunca tinham tido.  Enquanto Olímpia adormecia, a chuva que caía sobre a cidade tornava-se cada vez mais intensa e era acompanhada por uma rajada de ventos que derrubava árvores. Era Janeiro e naquela altura a maldição se repetia várias vezes e por muitas cidades de Moçambique.

Um choro de bebé irrompeu no meio da noite. Uma sombra se aproximava pela janela. Nestas noites há sempre algum aproveitador, e nestes bairros são sempre tantos.

 Na cama, Olímpia abriu os olhos e se deu conta do que estava a acontecer; em poucos segundos Olímpia ficou sobressaltada. Ela já tinha experimentado aquilo muitas vezes, mas sempre que aquilo acontecia mantinha o ar de desespero e surpresa que tinha tido na primeira vez.

Olímpia estendeu os braços para levar o menino ao seu colo ao mesmo tempo que o tranquilizava,

 não chora meu bebé. Daqui a pouco a chuva para.

Com o bebé no colo, Olímpia olhou para o tecto e se perguntou por quanto tempo aquela casa coberta com chapas de zinco, mas construída com adobe continuaria em pé. Olímpia não respondeu, aquela pergunta calou-se quando se ouviu o estrondo de alguma coisa a entrar na casa com violência.

Qualquer fatalidade pode acontecer no colo de uma mulher. Em qualquer noite há sempre lugar para uma fatalidade, sobretudo nestes bairros.

 

Um convite à viagem: olhar a cidade com outros olhos

O primeiro livro de Amosse Mucavele, “Geografia do Olhar. Ensaio fotográfico sobre a cidade” , publicado no inicio de 2017, inaugura a coleção Filhos do Vento, exclusivamente dedicada à poesia, que se inscreve no projecto esboçado por Mbate Pedro (Cavalo do Mar edições, Maputo, Moçambique), para dar expressão aos autores moçambicanos, de diferentes géneros literários. O titulo tão sugestivo e o interesse do conteúdo talvez merecesse uma organização mais cuidada, sobretudo um índice completo, para facilitar a leitura, embora tal pormenor não faça diminuir a qualidade nem o interesse da obra.

Entre as múltiplas leituras a que o livro se presta tocou-me o convite implícito à viagem pela geografia intima do autor, que nos guia pelos lugares, reais e imaginários, que feriram a sua sensibilidade poética, situados tanto aquém como além das suas fronteiras naturais. O autor está focado na cidade, propondo uma viagem no espaço e no tempo, como “um rio calado pelo tempo” (22), onde se sedimentam registos intemporais das suas memórias e quotidianas deambulações. O olhar pessoal balança, pois, entre reflexões sobre a cidade, do conceito mais abstrato às vivências mais pessoais, fazendo forte zoom sobre Maputo e Lisboa.

O viajante que percorra estas duas cidades e tenha este livro como guia constata o apego do autor pelo mar e a importância da água e dos rios no desenho urbano. O mar e os rios têm a capacidade impar e ambivalente de separar e de unir. Será por isto que o rematou com um veemente apelo á cooperação, a uma mítica terceira margem, como no conto de Guimarães Rosa, que apenas se pode alicerçar a partir dum efetivo diálogo baseado na cultura e nos afetos. É sempre comovente imaginar a fusão entre as águas do Atlântico e do Índico ou o Tejo, o Zambeze e o Incomáti desaguarem no Amazonas.

Os poemas são enquadrados, aqui e ali, por citações que apontam o rumo e delimitam o território onde o autor almeja poetar. Cavalo do mar, o nome da editora, provêm, ficamos a saber, dum “animal do século treze” que, “segundo a tradição, só vem à costa pelo cheiro das éguas”, se fizermos fé no Livro dos seres imaginários, publicado por Jorge Luís Borges, em 1957. A arte poética de Amosse Mucavele tem, por outro lado, a incerteza da linguagem cara a Maurice Blanchot, cuja trave mestra assenta no sentimento e na dimensão mitológica para a existência, na senda do que foi insistentemente perseguido por Louis Aragon e outros modernistas. Porque o autor foca o seu olhar na cidade, abre o livro, naturalmente, com um extenso poema, “Lição de urbanismo”, publicado por JL Tavares, em 2008, para quem “uma cidade é essa intérmina ameaça/ de luzes”, uma “feérica paisagem” que para “colori-la com demão,/ é oficio de prosa obesa”, já que para “da cidade mostrar/ a agudeza e a simetria, requer poesia chã”.

É neste chão que Amosse Mucavele pretende cultivar a sua poética e se dispõe lavrar a sua Geografia do olhar.

 

Geografia do olhar: é obrigatório olhar com outros olhos

A geografia vivida deste “sonhador por excelência” resulta dum intenso trabalho de campo no seu território de afetos em demanda de fragmentos que alimentem a sua poética. O caminho que percorre é profundamente autobiográfico, como se depreende dos temas que aborda e dos lugares onde demora o olhar, ora contemplativo ora reflexivo, que revisita amiúde para alimentar uma geografia tão intima e particular.

A obra está, pois, impregnada de profunda e latente geograficidade a avaliar pela recorrência de temas que fazem uma agenda de reflexão, assente em palavras-chave que estruturam um discurso concreto. As múltiplas geografias que a leitura dos versos proporciona mostra que não estamos perante um simples ensaio como, modestamente, insinua no subtítulo. A sê-lo, nunca seria exclusivamente sobre a cidade nem meramente fotográfico. Embora o insinue quando refere que “reescrevo com os olhos/ a fonte do imaginário desta cidade/ sem rumo” (24), o olhar, porque poético, nunca se deixa resumir a um simples olhar fotográfico. Apesar de fotografia, etimologicamente, não deixar de ser uma forma de escrever com a luz.

O recurso à fotografia tem de ser entendido como um recurso, um meio mas nunca um fim, uma mera técnica de produzir ou simular imagens, sobretudo quando “os olhos vagueiam sob a multidão em chamas” (35). O permanente jogo de sombras que resulta do olhar condicionado pelo sol remete para uma permanente alternância entre o dia e a noite, a luz e o escuro, na tentativa de almejar a profecia de Jorge Luís Borges: “eu vi o sol em toda a sua glória”. O sol que daqui emana percorre todo o livro: “haverá ainda este sol/ a murmurar na água” (23); “anoiteço no corpo do poema/ onde voa o sol em toda a sua glória” (24); “contemplo na voz do barco/ a condução do sol em toda a sua glória” (29); “o Sol transborda/ no caminho apagado” (38).

Será sempre “Luz do mistério” (33), mesmo quando “com luzes apagadas/ faço da escuridão a condição pela qual vivo” (20). O subtítulo, ensaio fotográfico sobre a cidade, sugere, explicitamente, a preocupação de centrar o olhar no urbano, evitando com isto escapar a outro tipo de catalogações.

 

Palavras e temas chave: coordenadas para uma cartografia

O livro é percorrido por um permanente confronto (poético) entre a terra e a água. A terra firme, normalmente mais desbravada pela prosa, é aqui representada pelo chão da cidade, enquanto o elemento aquático, predominante, é representado pelo mar, a praia, as ilhas e os rios. A obra é ainda percorrida por um discreto e subtil erotismo: as praias douradas e o azul cobalto do Indico convidam a “esconder-me/ na floresta densa/ de um naufrago/ que toca as conchas do silêncio/ com o trompete do tempo” (Ilhas nua: 33); “mãos leves/ sem retorno/ festejam por detrás do amanhecer// (a verdade deste silencio que nos ilumina)” (Ponta do Ouro, o caminho longo: 31); tentando remar para o mesmo lado (Magumba: 26), há a expetativa que se “dispa o baton que ensurdece o teu destino/ caminhe com a saudade no deserto/ onde repousa a esperança” (A carta que nunca te escrevi: 39).

Com a terra e o mar sempre no horizonte é-nos proposta uma viagem que se desdobra em diferentes caminhos paralelos e complementares: o movimento constante entre a cidade e o mar, o permanente vaivém da cidade para a costa acaba por regressar do mar à cidade. Este vaivém expande-se, posteriormente, quando a deslocação chega a Lisboa, cidade doutro continente. A escala aumenta em dimensão e em complexidade quando a geografia abrange os dois hemisférios, do sul e do norte.

 

O itinerário desta geografia tem alguns temas e certas palavras como referências, verdadeiras bússolas que pautam o rumo imposto pelo autor. O livro é percorrido por três temas centrais: a cidade, em sentido lato, que se expande do centro aos subúrbios; o mar, esse litoral marítimo povoado de praia, de ilhas e de sereias; a viagem, esse caminho longo que fica cada vez mais longe, quando se procura o outro e se demandam lugares de aquém e além-fronteiras.

(i) A cidade e o (impossível) silêncio. A cidade é-nos apresentada como um território de angústia, de silêncio e de exclusão, onde é mais fácil depararmos com ”os carris da incerteza” (32), sobretudo para os amarrados às suas margens e se veem obrigados a ter de “pernoitar na estação” (32). Só a “veloz saudação dos chapas” (19) acaba por romper os pesados silêncios que habitam a cidade, onde há sempre “um eco que se fecha em silêncio” (19), razão para nos sentirmos sós no meio da multidão, porque é aí “onde o sonho se abre em charco” (20). A cidade é, pois, um permanente vaivém de esperas, paragens, regressos, chegadas (34), de engarrafamentos de chapas, comboios, passageiros, distâncias (32). A rugosidade deste lugar dificulta o quotidiano e acirra o violento confronto entre o formal e o informal, entre o estado que reprime ao tentar impor a sua ordem e um povo que resiste numa permanente luta pela subsistência. Na versão do autor, esta tensão atinge o seu clímax no Mercado Xipamanine: “Como se fosse um cemitério,/ todo o mundo chora/ os vendedores ambulantes,/ os chapeiros/e a polícia com as multas anuncia/ a melodia da tristeza” (36). Apesar de todos estes silêncios e incertezas a cidade nunca deixará de nos atrair nem perderá a capacidade de nos surpreender “na melancólica procura de um sonho” (21).

(ii) A água e o mar: imaginário oceânico povoado de praias, de ilhas, de sereias. A terra ou é imanência ou tem sempre por perto o mar: “Hoje de novo sigo o rumo do mar/(…) aqui a distância mantém o seu laço com a terra”(29), na presunção de “a fome dos barcos alcançar a terra” (23). Para um agrónomo a terra não devia ter semelhante carga nem tamanha conotação negativa, porque é sempre eminente que “O resto da terra caiu em lágrimas” (22), onde parece que reside toda a origem do mal. A geografia que prevalece é líquida, um imenso lago amniótico formado pela omnipresença da água, sobretudo do mar: “Morri no mar/ e ressuscitei no rio/ tenho saudades do sal” (37); os rios são mais distantes, longínquos, destinados, quando muito, em desespero de causa, a poder ressuscitar. “Num rio calado pelo tempo/ feito de náufragos” (22) mostra como a água pode ter vários desideratos, incorporar múltiplos condimentos, onde “remo os dias todos/ como uma pedra na água” (27), na expetativa de alcançar o “porto de águas profundas” (33), onde “Haverá ainda este sol/ a murmurar na água” (23). É constante a presença do mar, onde “Haverá esta tamanha glória/ no corpo insaciável dos remos/ que sugam o mar todo” (23). O imaginário do autor está amarrado a um litoral batido por marés, temperado pelo sol e pelo sal, com ilhas no horizonte, onde se impõe o apelo inabalável de conviver com pescadores, barcos e remos. A dialética entre o peixe e o pescador ou entre a palavra e o horizonte deixou-a expressa quando remeteu para o mar a (im)possível (re)conciliação: “Ouvi dizer que no mar/ o peixe tenta conservar tudo que lhe resta/- a palavra – o pescador sobre o barco/ desperta a aliança/ que se estende em torno do mar/ – o horizonte” (28). Ao pescador são dedicadas diversas canções (27e 28) e os barcos circulam, “os barcos vacilam geometricamente/ no corpo húmido do silêncio” (25). Este constante fluxo e refluxo é tão errante como o que se inscreve “Na maré do meu diário” (24); entre o litoral e a ilha cede perante “a ilha/ um anel/ sem voz” (30); mais adiante avisa que “partirei para a ilha/ encarcerado de conchas e garças/ no litoral da espera” (38). Não será por acaso que “é no mar onde se desnorteia a vítima” (26), pois é aí que está mais vulnerável e definitivamente à sua mercê. É lá que “sigo o rumo do mar/ para o silêncio” (29) em demanda de remos e de rumos: “Se tu remas e eu remo/ eu me remo rumo a ti” (26).

 

(iii) A viagem: entre a cidade e o caminho longe. Viajar na cidade é um pesadelo imposto pela dificuldade de transportes, que deixam o transeunte à mercê dos chapas. Mas é aqui que “costuro a inadiável viagem” (33) e, apesar de tudo, persiste “com os olhos continua(r)mos a desfolhar a distância?” (23). Nestas viagens quotidianas, de proximidade, de cabotagem entre bairros, que percorre o “caminho apagado pelas cinzas da memória” (38), onde ousa aventurar-se e a sonhar em chegar “No porto de águas profundas/ celebro o batismo do caminho longe” (33). Esta ambição de fazer tal caminho, de percorrer o caminho longe, acaba por o levar até As Flores-de-Lisboa. A deambulação na cidade alheia faz-se em terra, roteiro que passa pela Lapa, Chelas, Rato, Amoreiras, S. Pedro de Alcântara. Completam este itinerário incontornáveis lugares que qualquer sentimental não dispensa: Fado(54), Silêncio (52) e Rio Tejo (51). O incontornável Solar dos Galegos, qual catedral gastronómica, também se atravessam no caminho; é lá que é possível “Pensar que as nuvens não descem do céu com os seus próprios pés” (50) ou “que a sinfonia dos copos tombados de alegrias é uma carta sem destinatário e cheira a exílio” (50). Rematar o livro com Mafalala x Kinaxixe não é só homenagear José Craveirinha e Luandino Vieira, mas colocar Luanda na rota do vértice de um triângulo que não fica completo com apenas três lados.

 

O universo real e imaginário de Amosse Muscavele têm as suas fundações em Maputo, varanda sobre o Indico, fronteira azul definida por um rosário de praias e ilhas dispersas no mar que fecha o horizonte. Este sucinto mapa mental, tem outras fronteiras além-mar, terrestres, multicolores, que se espraiam das franjas urbanas aos subúrbios mais longínquos, lá longe onde a cidade penetra e se começa a confundir com a savana. A juventude urbana, formada nas margens da cidade grande, imagina o interior do país como uma enorme ausência, um imenso espaço vazio violado por um ou outro rio. A reduzida extensão do livro não significa conter que a peregrinação deste filho pródigo seja breve pois o inevitável regresso às suas origens é uma constante sempre anunciada.

1. Origens: cidade, bairros, subúrbios; entre o centro e a periferia. Os poemas que abrem o livro situam-nos e enquadram a cidade, dão-nos o mapa onde o autor desenhou a sua perspetiva da morfologia social e urbana que irá desbravar. A geografia urbana do percurso que irá fazer vai levar-nos do centro à periferia, arranca na cidade de cimento, onde se desenrola uma “Guerra popular”, pois “a cidade é um inventário de angústias” (19), primeiro verso que abre o livro e, em jeito de epitáfio lapidar, retrata uma facetas da vivência contemporânea. Nascido para a vida algures “num bairro onde confluem a estação ferroviária, o aeroporto internacional, a vala de drenagem e o vaivém dos chapas” (57), o “Passageiro clandestino”, como se define o autor, guia-nos a desbravar a periferia, a sua pátria de afetos, onde tem as raízes, como demonstra a sucinta biografia que serve de posfácio ao livro: assim atravessaremos o Bairro Magude (20) a caminho do Subúrbio (21). A rugosidade urbana impõe contrastes agrestes que atinge o seu auge na periferia, realidade comum às cidades de todos os continentes. Nestes territórios de exclusão, social e urbana, como o Bairro Magude, o vocabulário é mais palpável e tangível, donde se faz o “regresso ao avesso/ com luzes apagadas” (20). Nesses territórios, “Nas margens das cidades/ as acácias são como almas adiadas” (20), uma vida fervilhante convive com os abandonados à sua sorte, onde “nenhum peão resistirá aos buracos” (21).

2. Peregrinação: entre a terra e o mar. A cidade imaginada é aquática cujo limite parece mergulhar no mar, donde sobressaem as praias e as ilhas que abundam no litoral de Moçambique. Esta geografia tem por coordenadas Macaneta onde, segundo Manuel Gusmão, facilmente se perde o caminho para o mar (22). Com o mar sempre por perto, chegamos a Magumba onde, como já sabemos, é “no mar onde se desnorteia a vítima”. Um simples encontro, contudo, pode mudar o rumo dos acontecimentos: “se tu remas e eu remo/ eu me remo rumo a ti” (26). Na Inhaca, “a distância mantém o seu laço com a terra/ sem nenhuma rede a espelhar o destino” (29); Xefina, a ilha, parece “um anel sem voz” (30), há A ilha nua (33) e a longínqua Ilha do Ibo (38). Na praia da Ponta do Ouro (31) é possível um fraterno convívio enquanto se escuta a recorrente Canção do pescador (27 e 28).

3. Regresso: a cidade aqui tão perto. A primeira parte do livro fecha uma viagem interior, entre a terra e o mar, mas com o regresso à cidade sempre na agenda. O regresso é atribulado, pode ter pernoita na Estação (Comboio dos duros, 32), dos que ficam “À espera do chapa/ numa paragem qualquer” (34), com passagem por Xiquelene, “na veloz hora de ponta/ desnorteado, o chapa fala outra língua” (35), pelo icónico e incontornável Mercado Xipamanine (36). O roteiro de regresso a casa é entremeando de divagações, de visitas a locais longínquos (Ilha do Ibo, 38) ou a “oásis” que funcionam como portos de, enquanto se espera que “dispa o baton que ensurdece o teu destino”, em “A carta que nunca te escrevi” (39). Na hora do regresso, quando faz “a síntese da fuga” e tem “a avenida Julius Nyerere” à vista é mais clara a consciência que “o vulcão chora/ da boca da lixeira” (Bocaria, 40).

 

A terceira margem: (re)construir o diálogo perdido

O autor viajante tem o propósito de alcançar a terceira margem do oceano para encetar um diálogo mais abrangente que não se resuma a Maputo e Lisboa, como deixou explicito no poema final dedicado a José Craveirinha e Luandino Vieira. Mafalala e Kinaxixe (56), locais emblemáticos de Maputo e de Luanda, viveiros de futebolistas e outros artistas, tiveram sortes diferentes: se Mafalala permanece como bairro semiperiférico que preserva uma certa identidade, Kinaxixe pode preservar alguns edifico modernistas, construídos em Angola, durante as décadas de 40 e 60, por vários arquitectos formados em Portugal, mas viu demolido o Mercado do Kinaxixe, provavelmente o mais emblemático de todos, para no seu lugar nascer um centro comercial com seis pisos e duas torres.  

Os melhores exemplos desse "modernismo tropical" não resistem aos sinais dos tempos nem à forte gentrificação que não respeita a memória das cidades. “As flores são luzes”, diz o poeta, enquanto “os frutos são o escuro/ que elas iluminam/ na penumbra do subúrbio” (56). Que mais flores desabrochem para um frutuoso diálogo de reciproca e fraterna cooperação entre gentes que, embora longe da vista, não deixam de estar perto do coração.

 

Amosse Mucavele (2017) – “Geografia do Olhar. Ensaio fotográfico sobre a cidade”. Cavalo da Mar Edições, coleção Filhos do Vento, Maputo, Moçambique.

A invasão à minúscula cela prisional iniciou-se pelas primeiras horas de madrugada. Primeiro foram os ventos fortes. Entraram e saíram pelas várias fissuras deste edifício já a vergar ao sabor da idade. Novas fendas o próprio vento criou. As grades rangeram, o tecto abanou, mas a estrutura permaneceu firme. O colono fez aqui um bom trabalho!

Ao vento juntaram-se as águas turvas. A escuridão da madrugada não permitiu descortinar a proveniência do líquido pastoso que lentamente galgava os pés dos dois prisioneiros. Não cheirava mal. Mas subia-lhes os pés tal como formigas chatas das quais não há como fugir.

A microscópica cela localiza-se por de trás do edifício principal do posto policial da povoação. É de uma estrutura de betão erguida primariamente para aprisionar os fugitivos do chibalo ou os que se furtassem ao pagamento do imposto de palhota. 

As suas paredes interiores, enegrecidas pelo tempo e pela falta de pintura, albergam dois inquilinos frequentes. Um é um pilha-galinhas. Especialista em invadir, na calada da noite, galináceos da população para surripiar as aves ou os seus ovos e vendê-los numa aldeia vizinha. O que ele mais deseja na vida é sempre juntar algum dinheiro para gastar nas sessões de nipa. Entrar e sair desta cela é uma questão rotineira.

O assunto do outro prisioneiro são as mulheres. Dormiu com quase toda a aldeia. Durante vários anos usou um amuleto mágico, arranjado em Mambone, que lhe permitia atrair qualquer mulher. Bastava-lhe colocar a pequena semente na boca e molhá-la com um bocado de saliva para que a mulherada à sua volta sentisse fortes calores e sorrisse para ele de orelha a orelha. Os maridos, fartos de serem traídos, juntaram-se, amarraram e sovaram-no a valer até ser salvo pela Polícia.

Votou para Mambone e trouxe um novo amuleto. WiFi. Agora faz as coisas à distância. Várias mulheres juram a pés juntos terem sido penetradas e molhadas à distância. Basta um olhar penetrante e um abanar ligeiro do joelho para invadir, sem pedir licença, as entranhas de qualquer mulher.

Os homens voltaram a juntar-se. Estão de novo no seu encalço. Ele antecipou-se e foi à Polícia pedir para ser preso. Está mais seguro na cela que em casa. É essa segurança que esta água chata está a pôr em causa. O nível subiu agora até aos joelhos.

«E se isto sobe até nos afogar?», indaga aterrorizado o pilha-galinhas.

«Cala essa boca!», o berro não disfarça o pânico.

Chegou a hora da introspecção. O pilha-galinhas lembra-se das vezes sem conta que invadiu quintais alheios. O sonho de um natal farto que negou aos vizinhos; e os ovos alimentadores da justa ambição dos aldeões em multiplicar a galinhada e que ele roubou; Recrimina-se. Sente a hora da morte aproximar-se. Não teme pela justiça divina. Esse é assunto dos mortos. Ele lamenta sim pelo mal que fez aos vivos. Penitencia-se por ter enveredado pelo álcool.  Agora sim, ele compreende que se não fossem os malefícios do vício teria seguido um outro caminho. Suplica. Reza. Pede misericórdia a Deus. Clama por uma nova oportunidade e promete virar um homem melhor. A água não deixa de lhe galgar o corpo.

Mais do que a surra que levou, é hoje que o homem do wireless também se arrepende dos amuletos que andou a consumir. Dormiu, ou melhor, penetrou a mulher que quis, causou inveja e ódio a todos os homens e com altivez destratou a quem quis destratar. Tudo acaba hoje. Está a mercê da água. Simples água. Teme que ela continue a subir lentamente até lhe invadir a narinas e lhe encher a boca de lama. Teme morrer neste minúsculo espaço. Se pudesse, hoje era capaz de trocar os testículos pela oportunidade de voltar a viver.

Os dois agarram-se às barras das grades. Fitam o exterior da cela onde a água destrói tudo à volta. Desatam aos gritos. Em coro. É a hora do pedido de socorro. O desespero é total. O grito é a arma que lhes sobra para espantar a morte. Suas vozes rasgam os ares, mas são engolidas pelo trovão ensurdecedor que domina os céus. Ainda assim há a crença de que é possível sair desta. Não querem morrer. As vozes, essas resvalam já para a rouquidão.

A salvação não cai do céu. É o próprio carcereiro, já com a água acima da boca do estômago, que se lembra dos dois prisioneiros. Não foi difícil pensar nos reclusos. É ele que lhes guarnece, dá-lhes de comer todos os dias, escolta-os durante os banhos de sol. Até entabulam conversas e já trocaram confidências diversas. Parece estranho neste teatro da vida, mas um precisa sempre do outro. Os bandidos precisam do polícia para lhes proteger – sim proteger – da fúria popular. É claro que polícia também precisa de bandido (vivo). O bandido é a razão da existência do polícia. Imagine o que seria da vida deste agente da polícia se o homem do WiFi não andasse aí a palmilhar territórios alheios?

A porta da cela escancara-se. O vento forte que invade o cubículo não é suficiente para abanar a ânsia pela salvação. Os dois homens fazem-se à enorme corrente de água que arrasta tudo o que lhe atravessa o caminho. É necessário encontrar um ponto seguro, se é que existe.

«Cuidado! Vocês não estão livres», recorda o carcereiro, «sigam-me e ai de quem tentar fugir!», a ameaça é simbólica. É uma tentativa vazia do polícia fazer recordar que ele é a autoridade. E se os dois tentassem se escapulir o que ele faria totalmente cercado de água e com um modesto chamboco na mão? A verdade é que não há para onde fugir. A devastação é total. 

Há então que seguir o carcereiro. É uma caminhada lenta. O curso da água não deixa andar mais depressa. Têm que arrastar as pernas com cuidado, por entre objectos sólidos diversos levados a grande velocidade em direcção a uma foz qualquer distante e desconhecida.

Poucos passos de caminhada. O polícia detém-se abrupta e instintivamente. Abre os braços em forma de Cristo, tentando esbarrar os que lhe seguem. Estes também se detêm. O corpo de uma criança de cara voltada para baixo navega indiferente aos ditames da força da água. Sua alma ingénua habita a paz celestial longe do entulho em que o seu corpo foi transformado. O polícia até ensaiou um gesto como quem quer acudir a criança. Mas não se acode a quem já não pode ser salvo. O polícia tem que lutar pela sua própria vida e gerir os seus prisioneiros.

A caminhada lenta é retomada e o destino é um tanque elevado, a cerca de vinte e cinco metros, que outrora abasteceu a vila. Foi construído pelos portugueses já lá vão várias décadas. Hoje não passa de uma simples estrutura com os pilares oxidados. Um escadote liga o chão a uma portinhola no topo. É por esse escadote que os reclusos têm que subir. O carcereiro segue-lhes pelas costas.

O vento continua forte. A chuva segue-lhe o exemplo. O mar de água flui com cada vez mais intensidade e os seus níveis aumentam a olhos vistos. O escadote coloca-os em poucos passos fora do alcance do líquido que hoje não dá vida, simboliza a morte. 

Chegam ao cimo. A portinhola impede a progressão. Está trancada. O polícia tira do bolso um molho de chaves totalmente ensopado. Passa-o ao pilha-galinhas, que é quem está na dianteira do escadote, para abrir o cadeado. Invertem-se os papéis. É o recluso com a chave da sua nova cela na mão. Abre-a.

O tanque é de um betão maciço. A ausência de qualquer feixe de luz exterior confere-o a escuridão das trevas. Cada passo que se dá é como se o pé fosse pousar no vazio. O eco da chuva provoca ondas de som incessantes. O polícia fica-se pela portinhola. Tem a chave de volta na mão. Quer trancar a portinhola e descer o escadote.

«Não faça isso», protesta o pilha-galinhas, «se tranca a portinhola a gente morre asfixiada aqui. É o mesmo que nos tivesse deixado morrer afogados na cela lá em baixo.»

«Mas vocês estão na cadeia. Têm que estar trancados», replica o polícia.

«Deixa a portinhola aberta. Está tudo cheio de água lá em baixo. Não temos para onde fugir.»

«Eu deixo a portinhola aberta», consente o carcereiro, «mas fico lá em baixo de olho em vocês.»

«O nível de água subiu bastante. Se descer morre afogado. Fica aqui connosco com a portinhola aberta.»  

O polícia está entre a espada e a espada. Como deixar-se aprisionar no tanque com os seus próprios reclusos? A sua face esculpe marcas de estupefação. A testa enruga-se e as suas feições enrijecem-se. Quer manter a pose. Não quer resvalar para a banalidade que o ciclone lhe impõe: 

«Nem pensar! Bandidos são vocês», a sua voz sobe um pouco de tom, «eu fico no escadote e vocês aí dentro.»

«Vai ficar quantos dias e quantas noites pendurado nesse escadote?», indaga o pilha-galinhas, «esta água não vai vazar tão já. Fica connosco aqui.»

Rendição total. O polícia não tem opções. Tem que partilhar o interior do tanque com os seus próprios prisioneiros, de portinhola aberta. É um pacto de sobrevivência.

Os dias que se seguem são de cumplicidade. A portinhola não só se transforma na fonte do ar que insufla as suas vidas, mas também na montra do que a aldeia deixou de ser. É por ela que assistem ao entulho que corre mar abaixo. Os corpos de familiares e amigos, os destroços das palhotas e carcaças de gado, seguem com a corrente sem deixar história para amanhã se contar às crianças. As lágrimas que derramam não são lágrimas de um polícia e dois bandidos. São lágrimas de três humanos entregues a uma estrada nublada que conduz a um deserto de sonhos. 

 

 

Um dos aspectos, com que me divirto, ao longo dos tempos, é o estudo do carácter de gente ruim. Faço esse exercício já há bastante tempo, não apenas por mera necessidade de diversão, mas também porque os resultados daí advindos me são úteis para traçar o perfil das minhas personagens de ficção narrativa. Sem recorrer a Sigmund Freud , é quase trabalho da psicanálise.

Com esse exercício tenho analisado atitudes de algumas pessoas com quem me relaciono, ou as vislumbro a distância, tendo chegado a seguinte conclusão: gente de coração ruim procura, socialmente, substituir o seu coração mau, com o de outra pessoa, de preferência com o de quem é bonzinho, de facto, indivíduo de quem esperam algo e lhes tarda chegar, ou então lhe admiram maliciosamente o talento. 

Para lograr tal substituição de coração, de ruim para bom, essa espécie de gente recorre a uma técnica bem simples que, por uma questão de método, entendi designar "Táctica de Inversão ao Espelho". É como se o indivíduo ruim chegasse diante de alguém de boa índole, e o visse como a sua própria imagem invertida ao espelho. Deste modo, o de coração ruim passa a ser visto na sociedade como o bonzinho, e o de bom coração fica pintado e visto aos olhos do mundo como o mauzinho. Mas, infelizmente gente de coração ruim é ruim mesmo, com ou sem esta ilusória troca de carácter.  

Foi por força dessa imagem gerada pela “Táctica de Inversão ao Espelho” que alguém, vendo-me assim pintado, perguntou-me: “o que fizeste ao José Remédios?”

Essa questão me foi colocada um pouco depois da publicação do texto de Remédios "Os Números e o BCI". Nesse texto, algo patente, a saltar a vista de qualquer leitor, foi o seu grande empenho, em querendo afastar o meu livro, Saga d’Ouro, da possível atribuição do prémio: “Se os membros do júri estão a pensar em premiar Saga d’ouro com o BCI de Literatura, talvez detestem o teor deste artigo. Claro que o objectivo do texto não é confrontar, questionar qualidades ou idoneidades. Longe disso. Sem nenhum tipo de presunção, aqui o interesse é apenas expressar publicamente o que não me sai da cabeça há alguns dias (…) eu não distinguiria Saga d’ Ouro” (Remédios, In o País, 25.02.20)

 Assim resolvi retirar o Saga d’Ouro da lista das obras candidatas, pois supus  que, sem o saco de pancada, daí em diante os golpes desferidos cairiam no vazio. Aliás, uso desde a infância essa táctica de tirar o corpo para o outro bater no ar, é a uma lição de sobrevivência que aprendi dos gafanhotos.

Sempre que eu fosse do Bairro Malhangalene ao bairro de Xipananine, para passar alguma temporada de férias a casa dos meus primos, malta Pedro, Ângelo e Paulo, via alguns meninos, da mesma faixa etária que a nossa, entretidos a caçar  gafanhotos. As vezes, quando um desses meninos apanhava e puxava o gafanhoto pela perna, o insecto pura e simplesmente soltava a perna, deixando-a para trás, agarrada aos dedos do menino de Xipamanine apanhador de gafanhotos. Daí se via o gafanhoto a voar livre pelos ares, com uma perna a menos, mas livre.

Nada satisfeito com o voo livre do gafanhoto, o menino de Xipananine, continuava, por alguns instantes, com a perna do gafanhoto entre os dedos. Mas, num repente, os olhos do menino do Xipamanine voltavam a relampejar, cheios de malícia. Metia a mão no bolso, riscava o fósforo e queimava a perna do gafanhoto que se convertia gradualmente em cinzas, a deixar no ar um cheiro que lembrava camarão a grelhar. A primeira vez que presenciei  cena igual fiquei estarrecido, tentando compreender o porquê daquele menino de Xipamanine gostar de puxar a perna do gafanhoto. Meu primo Pedro apressou-se a dizer que também não achava resposta para essa crueldade: "Mas, ó Manuel, usa a atitude do gafanhoto como uma lição de vida. Se um dia alguém procurar arrancar-te algo para além da liberdade, não lute por isso. É uma perca de tempo. Deixe-o com a coisa, seja lá o que for. O importante é a tua liberdade." – Depois que cresci, descobri que, nalgumas crenças, o gafanhoto também é símbolo de liberdade e independência.

Melhor clarificado, foi à luz dessa lição do gafanhoto que retirei Saga d’Ouro do rol de livros candidatos ao Prémio, para curtir a minha liberdade, longe de Remédios e Pereiras. Mas mesmo assim, continuaram a publicar textos de vanglória e acesas faúlhas, tudo isso para chamuscar-me.  

Realmente, hoje, José Remédios, parece-me aquele menino de Xipananine, já na fase adulta. No seu segundo texto O golo que não meteu o árbitro”, José Remédios atinge o extremo máximo da piromania, tentando queimar-me as pernas a nível profissional e literário. Ora vejamos: a que propósito vai cavar a minha vida profissional, de assessoria de imprensa no Ministério da Cultura, para este debate? Qual é a razão de chamar para esse debate a possibilidade de um dia eu vier a ser Secretário-geral da AEMO? 

Passemos agora a demonstração da “Táctica de Inversão ao Espelho”, tomando como estudo de caso o texto O golo que não meteu o árbitro”, José Remédios:

1 – José Remédios refere que “Lembro-te, ainda há pouco tempo andavas pelos corredores do Ministério da Cultura e Turismo. Escada para ali, escada para lá. (…) Das duas, uma, ou o super Collina quer cuspir na fonte onde matou a sede ou quer é sujar a fonte por lá não ter continuado. Coisa feia!

2 – Como se pode ver, essa é a imagem do próprio Remédios, e socorrendo-se do facto de eu ter afirmado que “os Prémios Fundac, promovidos pelo Ministério da Cultura, deixaram de existir e, na literatura os olhares viraram-se para os concursos promovidos pela AEMO, tenta passa-la para mim, aos olhos da sociedade, pois desde a minha saída do Ministério, nunca formulei palavra que consubstancie essa imagem de “cuspir na fonte onde comeu”, pelo contrário, continuei a manter, a distância, relações cordiais e profissionais com o Ministério. Como evidência, facto mesmo do domínio público, depois da minha saída do Ministério, fui contactado e escrevi o texto do jogral apresentado no Estádio da Machava, aquando da celebração, em 2015, do quadragésimo Aniversário da Independência Nacional, isso é de domínio publico; mais recentemente, em 2018, na realização do último Festival Nacional da Cultura, com lugar em Lichinga, escrevi a letra da canção oficial,  desse tido como o maior evento cultural do país, interpretada pela Banda Ulongo, etc. Como se pode ver, mantenho, um óptimo relacionamento com o Ministério, ao contrário Remédios, exímio em  sujar a fonte por não continuar por onde algum dia prestou serviço.

3 – Tendo falado em sujar a fonte, ainda na demonstração da “Táctica de Inversão ao Espelho”, Remédios tenta sujar um dos prémios promovidos pela AEMO, agremiação que, por dois momentos, o convidou para integrar um júri, facto que lhe valeu uma nada desprezível quantia, para seu próprio desafogo. Primeiro, em 2016, do Concurso Literário TDM 2016 e ainda no mesmo ano, 2016, integrou o júri do Prémio 10 de Novembro de Literatura e,  em citando Remédios: “é sujar a fonte por lá não ter continuado. Coisa feia!” – vejam, é assim como funciona a “Táctica de Inversão ao Espelho”. Quem está cuspir na fonte onde matou a sede?

Contrariamente a minha pessoa, que continuei a prestar serviços de fora, e jamais teria posto em causa o prestigio do Ministério, onde prestei serviço, veja-se como é que Remédios suja a imagem de uma instituição por onde passou: “Que o Prémio BCI de Literatura [promovido pela AEMO] tem perdido credibilidade já não é novidade nenhuma. Qualquer coisa tem acontecido para que leitores como eu questionem algumas decisões.” (Remédios, In O País, 25.02.20)

Por outro lado, tenta fazer a sociedade crer que eu estou, de alguma forma, contrariado por não ter sido contemplado com o prémio, mas não sabe que o Celso Cossa, por pouco, também teria submetido uma carta a AEMO, a solicitar a retirada do livro O Menino que Odiava Números, por causa da paranóia lançada pelo Refila Boy da literatura, e secundada por Remédios. E eu esgrimi argumentos, a fim de convencer o depois laureado celso, para não retirar O Menino que Odiava Números. Como se pode ver na fotografia anexa ao texto, momentos depois do anúncio do vencedor, fomos brindar o prémio atribuído ao Celso, alguém vê o Remédios na imagem? Não. Porque quem está com bílis não celebra êxito alheio. E mais, Remédios sabe quem patrocinou o brinde? Por isso, a ideia de que estou magoado é a própria imagem do Remédios, vista ao contrário, na sua excelência de uso da “Táctica de Inversão ao Espelho”.

Quase a finalizar, questões de ética, que Remédios e companhia defendem que me falta, outra inversão  na edição do dia 4 de Fevereiro em curso, o jornal O País, que muito prezo, publicou o texto Uma palavra em torno da minha saída do Prémio BCI, de minha autoria e assinado por mim. Qual não foi o espanto, folheando as páginas do jornal, vejo enxertado no artigo um trecho, entre aspas, em latim, totalmente alheio ao texto que enviei a Remédios. Que ética jornalística é essa? Usar texto dos colaboradores para coloca-los palavras na boca, ainda por cima, ca entre nós, quase verdadeira língua de papagaios… Depois, mesmo a moda do gueto, alude, num dos seus textos verborreicos, que faço “generalizações excêntricas aos jornalistas, quando os que estão em causa no debate são somente leitores”, quando me referia a ele e ao Quive. Ora, Remédios, isso é molwenice de um desesperado. Quando ainda andavas no xipamanine a assar pernas de gafanhotos, e espero que os ares da repartição de salubridade municipal não te tenham feito mal a cabeça eu já estava no meio jornalístico, como jornalista. Depois, a ficção falou muito mais alto em mim. Então, se queres alguma solidariedade de classe, peça-a de forma mais convincente. Não com molwenices cobardes do tipo lholhotelar, incitar, bem à moda dos caça-gafanhotos, mas essa não cola. Os jornalistas muito bem conhecem o meu respeito por eles e pela nobre profissão!

Podia até continuar a fazer algumas demonstrações, mas tudo é mesma verborreia de Remédios. Magoado por nunca mais ter sido convidado a fazer parte de algum júri da AEMO, e me tem como culpado disso, outrossim, é aquela velha mágoa que persegue alguns críticos literários, o sonho fracassado de ser escritor. Calma, agora digo eu, pois cada macaco no seu galho Remédios. E, como gosta de títulos de livros ou citar escritores, essa táctica de desvirtuar o carácter dos outros, para camuflar a má índole do vilão em ti, aqui muito bem cabe no título do romance de Mia Couto: Venenos de Deus, remédios do diabo. Qualquer semelhança é pura realidade!

 

A gente, às vezes, tem mais medo das palavras do que dos actos.
Mia Couto e José Eduardo Agualusa

 

Aurélio, tens cá uma capacidade de atribuir títulos sugestivos aos teus livros: De medo morreu o susto, As hienas também sorriem ou, já agora, O golo que meteu o árbitro. Espectacular! Este último, inclusive, parece-me mais intrigante, afinal, embora o árbitro faça parte do jogo, por exemplo, de futebol, não é suposto que ande por aí a marcar golos. Mas apenas o título faz todo o sentido. Há por cá tipos que definem as regras do jogo que vão apitar (muitas vezes inclinando o campo a seu favor), arbitram e ainda querem marcar golos.

Como diria Saramago, para um bom entendedor meia palavra sobra. Todavia isso não é o que eu quero que aconteça neste texto. Sem sobras, digo-te directamente, as tuas acções e, agora, os teus posicionamentos revelam que és esse tipo de árbitro ou de árbitro-jogador capaz do inimaginável para ganhar. Felizmente, não o Prémio BCI de Literatura para melhor livro de 2019. Esse tinha mesmo de ir para O menino que odiava números, e está bem entregue. Quer dizer, bem entregue para alguns, porque uns e outros estão em chamas de tanta irritação. Se passam perto de uma bomba de combustível, meu Deus, só Ele sabe o que pode acontecer.

Deves saber, li o teu texto, “Uma palavra em torno da minha saída do Prémio BCI”. Confesso-te, gostei. Foi bom sentir o teu aborrecimento e necessidade de te justificares. Mas julguei que irias acrescentar alguma novidade em relação ao que já me tinhas dito no dia do anúncio do vencedor do prémio, naquela tarde em que, falando sem tréguas, vieste com a ladainha de que eu nem deveria criticar a iniciativa da AEMO por não ser filiado, lembras-te? Ficou claro. Não soubeste lidar com a crítica, conversar ou debater ideias de forma educada com quem sempre dirigiu-se a ti com um sorriso no rosto. Carrancudo, preferiste fazer parte dessa gente que nem mostram os dentes num sorriso, mesmo a seguires cegamente as ideias de Solânio. Contigo é mesmo na onda da zanga, do bom afinal mal perdedor. E ainda nos vens com essa de que “ser escritor não é apenas escrever e publicar livros, é acima de tudo uma questão de atitude que se deve ter ao longo da carreira”. Os meus amigos do Xipamanine e Chamanculo diriam sinceramente… Ou compreendeste mal o White ou então subvertes os ensinamentos do poeta. Neste momento não me pareces o escritor mais indicado para falar de atitude. Logo tu, Aurélio… a estas alturas com um narcisismo exacerbado a roçar a petulância. Tudo isso por causa dos 200 paus? Para quem tem a convicção de que os prémios não determinam o êxito e/ou o fracasso de um escritor fizeste um excelente trabalho nesta edição do BCI de Literatura, ao promovê-lo ao mais alto nível na mesma proporção que o teu livro. Nunca antes tinha visto um escritor a apostar em tantas frentes na promoção de um prémio literário e do seu título. Enfim… Felicito-te pelo trabalho.

Criticas-me por ter publicado um texto sobre o BCI de Literatura na véspera do anúncio do vencedor. Curioso, igualmente na véspera, vi um belíssimo prefácio de Saga d’ouro na página do Notícias, que meses antes tinha sido publicado n’O País. Não há nenhum problema aqui. Já estou a ver, coincidências apenas. Do meu lado, ó Aurélio, não houve interesse dessa coisa a que chamas abalar a decisão do júri. A minha pretensão foi ao contrário disso, no entanto sem a vaidade de refilar contra os políticos ou de importar politiquices para o mundo das artes. Entre nós, quem tem essa capacidade és tu, camarada escritor (ou preferes confrade?). Lembro-te, ainda há pouco tempo andavas pelos corredores do Ministério da Cultura e Turismo. Escada para ali, escada para lá. O árbitro que NÃO meteu o golo não deve ter-se esquecido disso. E não esqueceu, certamente. Das duas, uma, ou o super Collina quer cuspir na fonte onde matou a sede ou quer é sujar a fonte por lá não ter continuado. Coisa feia! Com a tua idade devias eras estar a ensinar os mais novos como White fez contigo. Se tivesses sido um bom aluno… Não foste! Então não me venha com essa contra-informação refém de uma arrogância crassa, com generalizações excêntricas aos jornalistas, quando os que estão em causa no debate são somente leitores. Cuidado!

Depois, por teres ajudado a criar prémios na AEMO não faz de ti o Dono Disto Tudo como queres transparecer. Na verdade nem deverias ter falado disso e tão-pouco dessa cena de se estar a tentar mergulhar o BCI de Literatura numa infâmia. A torto ou a direito a intenção é tornar o prémio melhor, com a convicção de que a iniciativa e a própria AEMO são partes de todos os moçambicanos. Associados ou não. A AEMO É um património nosso, Aurélio Furdela, à semelhança da literatura. E a esse património quero bem. Se como um simples vogal já tens uma postura possessiva em relação à Associação dos Escritores, não quero imaginar no dia que fores eleito Secretário-Geral. Minha vida! Nossa, como diriam os brasileiros.

Ah, outra coisa. Se, no passado, tipos como eu não bradaram em relação à distinção de um livro do Mia e/ou depois do Ungulani, tendo-o feito agora em relação a ti, deves procurar compreender as razões (a propósito, eles estiveram tão implicados na definição dos livros que poderiam concorrer, como tu estás?). Precisas de uma introspecção. O segredo é estares em paz, sem o peso de consciência que encarcera as pessoas. Quero muito o teu bem, Aurélio. Preocupo-me contigo. A valer, gosto de ti. Por isso digo-te: tens de esconjurar as mágoas, os teus fantasmas, e investir mais na purificação interior. Não te deixes contaminar com a cólera de GatsiRucere, esse personagem de A noite e Saga d’ouro que te valeu o 10 de Novembro, em 2017, e Eugénio Lisboa, em 2018.  

Ao replicares este texto (sei que não vais resistir em ficar em silêncio, por isso ser “só louvável numa língua de vaca fumada”. Por favor, não demores), gostaria de te sentir mais leve, sossegado e amigo dos teus amigos. Se não conseguires ficar tranquilo, não há problema. Ficas já a saber que também gosto da tua cara aborrecida. É inspiradora. E os escritores como tu, parece, são muito produtivos quando estão contrariados.

Já agora, parabéns por teres retirado o Saga d’ouro da lista dos livros candidatos a melhor do ano. Seja qual for a justificação que quiseres dar a isso, foi um gesto interessante.

Neste momento final desta troca de palavras personalizadas, em jeito de até já, ocorre-me apenas mais uma coisa, senhor árbitro-jogador. Como os miúdos lá do bairro têm dito em circunstâncias idênticas, fica um conselho, tu precisas muito para baixar esse nervosismo e aprender a marcar golos bonitos: “agarra uma calma”.

 

-Vovô, o que é isto? –  questionou o Kensane ao vovô Zacarias, que se encontrava a fazer o seu habitual banho de sol do final de tarde em frente ao portão de zinco, enquanto contemplava, com os seus olhos encovados que se escondiam por detrás dos óculos escuros, a poeira que era levantada pelos carros em frente a rua do Silex, no Chamanculo.

O Kensane segurava na mão uma caixa abarrotada de rolos empoeirados que, expostos ao sol, deixavam transparecer diferentes imagens a cada secção do rolo. O jovem não sabia ao certo se aquilo era um brinquedo ou um jogo de infância do madala Zacarias, como toda a zona lhe chamava.

– Deixa-me ver isso rapaz –  respondeu o madala sem deixar de lado o seu misterioso sorriso.  Era ainda misterioso para o Kensane ouvir o velho dizer “deixa-me ver” pois há muito que ele tinha perdido a visão, por isso passou a esconder os olhos por detrás dos óculos.

– Onde encontraste isto? –  Perguntou vovô Zacarias, após tatear um dos rolos, visivelmente emocionado como se, por um minuto, o escuro tivesse desaparecido dos seus olhos – gostas de mexer muito rapaz, isto não é um brinquedo, é um rolo de fotografias que não foram lavadas. Explicou pacientemente ao jovem como era o moroso e antiquado processo entre o click do fotógrafo até as imagens chegarem às mãos dos fotografados.

– Como é que tu tens tantas fotografias vovô? Eras fotógrafo? – questionou mais uma vez o Kensane com a sua habitual avidez.

– Depende do que chamas de fotógrafo miúdo. Mas não, não empunhei nenhuma câmara e saí por aí prendendo imagens das pessoas. Eu fazia muito mais. Os meus ouvidos e os meus olhos sempre foram a minha máquina fotográfica e os rolos ficaram todos no meu coração. Eu trabalhava no Conselho Municipal, andava com uma carrinha de mão e recolhia lixo no mercado SMAE, no tempo do Artur Canana e depositava no contentor.

Uma vez, passei pela Foto Feliz, um estúdio fotográfico que situava-se bem em frente a Escola Primária Unidade 13 e esses rolos estavam sendo colocados para o lixo.  Com as suas cores azuis, no exterior, e as pinturas paisagísticas, no interior, que imitavam na perfeição lindas terras verdes cobertas pelas águas dos rios e habitadas por lindos animais selvagens, Foto Feliz era o estúdio de referência para tirarmos fotos em todo bairro do Chamanculo”C”: B.I, matrícula, cartão do machibombo, foto do serviço, passaporte, cartão de estudante… tudo isso. Era também onde, geralmente por felicidade, os que queriam registar um dia histórico, iam para se deixar fotografar e eternizar aquele dia.

Nos dias 25 e 31 de Dezembro o estúdio ficava cheio, era fila para tirar foto, fotos em família, entre amigos, vizinhos e até desconhecidos apareciam nas fotos. Eram também os dias em que se revelavam os novos casais do bairro. Aquilo era uma algazarra. Um dos estilos mais amados pelos jovens era aquele em que os fotografados se davam a mão como se estivessem a se saudar. Quem não tem uma fotografia assim, não foi jovem, pelo menos não nos meus tempos.

Outros que chamavam atenção eram os madjonidjonis. Sempre de cabelo grande e umas bocas de sino da última moda, para tirar as fotografias carregavam os seus recém-adquiridos rádios nas terras do rand e saíam do estúdio transpirados a protestar “mara lomu kaya ka hissa mani” [aqui em casa é muito quente].

No dia 14 de fevereiro enchia de noite, era engraçado ver aquilo. Eram só casais a tirar foto e no momento não ousavam se aproximar. Ficavam abaixados em frente a paisagem que era oferecida pelas paredes do estúdio, a olhar um para o outro e quando o fotógrafo gritava “atenção” soltava-se um sorriso tímido que ficava para a eternidade. Muitos de nós só têm essas memórias físicas das suas amadas.

Foto Feliz não era um simples estúdio onde se tiravam fotografias, eram um templo onde vários chamanculezes iam se confessar e deixavam lá registadas as suas histórias. Entendes miúdo, eu não poderia deixar esses rolos irem ao contentor de lixo, levei a caixa comigo e durante estes anos todos fui estudando cada fotografia nesse rolo.

– Vovô conhece toda essa gente?;  – Maior parte delas sim, as que não conheço me contaram; – Me conta vovô, me conta todas as histórias destas pessoas; – Para quê que queres saber?; – Não sei, mas quero saber; – Estou cansado, vou me deitar, ajuda-me com a bengala. Volte na próxima semana, no mesmo dia da semana, tu me dizes o que vês nos rolos e eu te conto a história delas; – Mas vovô, espera, me fala, pelo menos, da primeira foto; – Como sabes que é a primeira e não é a última? – Porque está logo aqui em cima; – Vira o rolo do avesso e o coloque debaixo para cima, o que vês?; –  A primeira foto agora é a última; – Nunca te deixes enganar pelos olhos rapaz, próxima semana começaremos da primeira fotografia.

– Vovô…. espera. A Foto Feliz ainda existe?

– Não sei. Tu tens os olhos e as pernas em dia, vai lá em frente a Escola Unidade 13 e veja pessoalmente se ainda existe. Só não te esqueças de, na próxima semana, vir me contar o que viste.

 

Introdução

O lugar onde os eventos narrados no conto “Os ossos do Tio Elias”, publicado no primeiro volume destas memórias, faz parte de um universo suburbano que cercava a cidade de Lourenço Marques, e era então denominado bairro Chilepfane.

Como era, e ainda é, tradicional em aglomerados populacionais desta natureza, as áreas habitacionais tomavam o nome do “cantineiro” (ou a sua alcunha), proprietário da mercearia mais importante das proximidades. Assim era no Chilepfane, no bairro Zanza, no Tinga, no Cordeiro, no Mateus Serra, no bazar do Adelino, eu sei lá!

Pois, a casa da família do Tio Elias encontrava-se situada no coração do bairro Chilepfane, e tinha as seguintes coordenadas: do lado nascente corria a (então) recém-inaugurada Avenida Craveiro Lopes (actual Avenida Acordos de Lusaca). (Será que alguns dos leitores têm ideia de quem foi o Presidente Craveiro Lopes?). Esta via tomava início na 7ª Esquadra da Polícia e terminava no Aeroporto Gago Coutinho (Mavalane). A sul, o mesmo bairro fazia fronteira com a Lixeira Municipal, mais conhecida por Bucaria, lugar de estórias de moluenes, de vagabundos, de escavadores de restos de alimentos e doutros “ tesouros”, e em cujas valas se descobriam corpos de cidadãos assassinados nos becos dos caminhos. A norte, e para quem caminha em direcção ao Aeroporto, já sufocava de fregueses e de vendedores a miniatura do bazar do Adelino, onde se mercavam produtos desembarcados do nwamalata (comboio da cinco horas da manhã) proveniente de Marracuene e da Manhiça, carregado de mercadorias (lenha, carvão, fruta variada e hortícolas, cabritos, frangos) e passageiros-mão-de-obra na ponte-cais (Estiva), nas empresas da capital, ou apenas portadores de sonhos de ir viver na cidade-luz, na prostituição, na residência dum colono como empregados domésticos, ou de passagem para o El-Dourado que era (e ainda é) o Djone. A leste existia outro aglomerado chamado Justo Menezes, que era uma grande empresa  que se dedicava ao comércio de artigos eléctricos, ferragens e motorizadas. Defronte desta empresa, e paralela à Craveiro Lopes, corria (e ainda corre) a Avenida de Angola.

Entre as várias “secções” deste enorme subúrbio cruzavam-se ruelas, becos obscuros sem nome, nas esquinas dos quais se entrechocavam os habitantes; onde baldes excrementos transbordavam e eram viveiros de moscas e de focos de doenças.

Maioritariamente os habitantes destes povoados eram emigrantes do campo para a cidade. Para aqui vinham render a sua vassalagem à omnipotência da luz, àquilo que supunham ser o desenvolvimento. Consigo traziam parte das suas famílias, não haveres porque não os possuíam, mas o sonho longínquo de ser bem-sucedido, feliz e próspero. O Tio Elias fora um desses, parte dessa multidão anónima, apostada em dar-se de todo para possuir alguma dignidade na vida.

Era nesses fogos que pulsava o quotidiano desses cidadãos, com as suas alegrias, efémeras muitas vezes, com as suas aspirações, com as suas artimanhas que garantiam a sobrevivência (molhinhos de tomate, de couve murcha, de bolos caseiros à porta dos quintais, onde se fecundavam amizades, – e inimizades, porque não? –, de burlões vendedores de ilusões, de foragidos surpreendidos a assaltar uma casa alheia, de amantismos mal sucedidos que culminavam em esfaqueamentos, onde se dançava de embriaguez nas rodas do uputso, do xicadju, do ukanhu e se festejava a sorte de se estar vivo, mas que marcavam, afinal de contas, dia-sim, dia-sim, o pulsar da vida do que eram os subúrbios da cidade de Lourenço Marques.

   Iniciemos então este roteiro ciceroneados pela imaginação e pela memória que, ao longo do mesmo, espero não nos irão atraiçoar. O ponto de partida é mesmo – como poderia ser doutro modo? – a cantina do Chilepfane.

 

…dos eventos avulsos nas proximidades da cantina do Chilepfane…

 

O senhor Chilepfane era um homem barbudo, de cara redonda como uma lua cheia negra. Era bondoso; porém, tinha algo de malvadez se lhe deviam nos créditos ou se lhe azedassem os humores. O seu nome era Pedro, uma pedra no sapato dos vigaristas e dos zaragateiros que rondassem ou provocassem distúrbios nas proximidades do seu estabelecimento. Que o digam os mabandido que, vindos da cidade, em grossas quadrilhas, sempre a trote ligeiro a caminho do Mavalane, lá nas traseiras do Aeroporto Gago Coutinho, para se matarem à pancada; enfim, para ajustar contas, que nem sequer as havia, mas acertar rivalidades entre emigrantes de diferentes grupos étnicos que trabalhavam nas casas dos colonos como empregados domésticos. Porque daqueles havia os naturais de Chibuto, mais conhecidos por Chimbhutso Muzaya, os tais que derrubavam troncos de árvores sólidas à cabeçada e pagavam seus lobolos com folhas daquelas, e aquelas eram todas do mesmo tamanho!; os da Macia, tropa de Bilene-Macia, com a poupa xivika-ndhuku característica, os mesmos que assopravam a mesma, sempre a mesma canção, de gaitas desafinadas; os do grupo de Mavekane, oriundos de Mabunganine-Manjacaze, cowboys lourenço-marquinos que envergavam camisas de gola-marinheiro, franjadas nos peitilhos e calções justos de cujos bolsos traseiros espreitava sempre um pente pronto para alisar a crista de galo que era o cabelo.

O Tio Pedro Chilepfane, que era assim como gostava que o chamassem, punha-se à frente destes grupos que afugentavam a clientela da frontaria da loja, de cavalo-marinho em punho. E este “entrava de serviço”, como ele dizia. Desferia golpes certeiros sobre essas turbas com uma violência tal que deixava estatelados os mais valentes. O resto sabe-se_ cada um por si e Deus por todos! – era um salve-se quem puder. À uma, atravessavam a estrada em debandada a proferir injúrias e promessas de vingança, doridos e amassados. Não havia quem se não atemorizasse com os golpes de cavalo-marinho do Chilepfane. A partir de uma determinada altura os mabandido, logo que farejassem as proximidades da cantina, atravessavam a estrada e utilizavam o passeio do lado oposto. E lá iam, a trotar, a esgrimir murros no ar, em gestos de falsa valentia. 

   Os mabandido conquistaram um estatuto triste e singular: eram os donos e senhores dos habitantes e instilavam pânico nos lugares por onde passassem ou que frequentassem. Que o digam os residentes dos bairros de Xipamanine, do Tlavane, das Lagoas, da Bela Rosa, da Malhangalene e doutros mais. Eram quadrilhas de terror. Preencheriam livros volumosos as narrações dos episódios protagonizados pelos mabandido. E não resisto, nem me coibo a relatar aqui algumas estórias que ilustram quão abusivos esses indivíduos podiam ser.

Alguém lembra-se das Lagoas? Pois é, todos lembramo-nos, e muito bem. Tal como o Matlotlomane da Mafalafa, a Zona Perigosa no Chamanculo, eram lugares de iniciação sexual dos rapazes, muitas vezes à custa duma gonorreia ou duma sífilis, adquiridas ao preço de vinte escudos, ou de dez, se o cliente calhava ser estudante. Porque sempre havia espaço de manobra para negociações e descontos para casos especiais.

Naquela tarde dum sábado, um sujeito pacato, já entradote em anos repousara o seu cansaço junto ao balcão duma leitaria. Leitaria era o nome que se dava aos barracos onde se vendia leite fresco, chocoleite e masse, que era uma espécie dum yogurt. Grande parte da clientela achava este produto tonificante e afrodisíaco. Era comum dele se abastecerem e consumirem antes de se aventurarem para as intimidades com as “mulheres da zona”. Assim, aquele sujeito pediu uma garrafa de chocoleite, ao que foi servido com prontidão e delicadeza pela rapariga do balcão. Enquanto sorvia a bebida com evidente gosto e calma, nisto senta-se a seu lado um homenzarrão vestido à moda que não deixava dúvidas sobre as suas qualidades pugilísticas. Mirou o cliente franzino com desprezo e soltou o vozeirão para dizer:

“…quando acabares a tua garrafa de chocoleite vais pagar esta também…”. Referia-se ao “masse” que consumia, com uma suspeita serenidade.

“…mas eu não te conheço…”, balbuciou o outro, com o corpo a esfriar de medo.

“…não me conheces, mas conheces este aqui!…”. Este aqui era o punho direito, enorme, que balouçava erguido no ar, do qual podiam distinguir-se algumas escoriações frescas e cicatrizes que cruzavam os dedos em todos os sentidos, provas de muitas e violentas contendas.

O cliente franzino não quis esperar por mais detalhes. Depositou uma moeda de zuca sobre o balcão e, sem pedir pelos trocos, desmontou do banco e pôs-se a andar sem mais demoras. Acautelado, virava e revirava a cabeça para a leitaria a ver se o valente o seguia.

Noutra ocasião, isto sucedeu numa tarde dum Domingo, ia aquela jovem, desprendida e distraída, à compra de qualquer coisa na cantina do Mussa, perto do bazar de Xipamanine. Mas eis que, na dobra dum beco, é envolvida por um bando de homens a trote a caminho do Espada. Sem perceber como nem porquê, vê-se levantada do chão, nos braços de dois matulões. O mínimo que lhe fizeram foi transportá-la assim no ar, no meio de muitas gargalhadas, a ela e ao cesto onde ia meter as compras, até à portas do lugar que era o seu destino, isto é, aos portões do Zundap, defronte do recinto do Espada. Quanto mais ela esperneava e gritava, mais alto eles se riam. A moça viu o inferno em pleno dia e achou que o momento da sua morte acabava de chegar. Ela tinha sido carregada nos braços daqueles mastodontes mais de quinhentos metros. Não a molestaram, apenas perguntaram-lhe se tinha gostado da boleia!

Eram estes alguns dos exemplos das inúmeras demonstrações do poder de avassalamento dos mabandido à população.

Naquele lugar, ao lado da loja do Chilepfane havia um largo caminho que comunicava o bairro da Bela Rosa com a Bucaria, uma espécie de passadeira invisível que, a existir na realidade, cruzaria o asfalto da Avenida Craveiro Lopes. Quem viesse da Bela Rosa e desejasse ir, por exemplo, ao forno crematório ou ao Bairro Indígena, teria de transpor aqueles quase cinquenta metros de asfalto. O problema era o tráfego. Muitos peões, na maioria crianças da escola, eram ali atropelados por veículos que sempre tinham pressa de chegar aos seus destinos. Durante as férias escolares aquelas acorriam à varanda da loja do Chilepfane para comprar guloseimas tais como chewingas, matortor, badjias, e tifiosse. Aí perdiam vidas ou ficavam gravemente feridas no curso daqueles acidentes. Alguns bêbados não conseguiam chegar ao passeio oposto da estrada. Eram violentamente arrancados da vida, vítimas dos seus descuidos e da falta de atenção dos motoristas. Mães que vinham de compras especiais do mercado de Xipamanine eram ali esmagadas por camiões e por machimbombos. Era um lugar assombrado. Não passava uma semana sem que ocorresse algum acidente fatal. Infelizmente, não havia outra solução senão correr o risco de morte sob o rodado daqueles veículos. Os historiadores da zona diziam que naquele chão havia cadáveres de antepassados sepultados. Ou se os não houvessem, os espíritos das vítimas dos acidentes deambulavam por ali e ofuscavam a visibilidade aos motoristas.

 

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

No dia 25 de Fevereiro, retirei o livro “Saga d’Ouro” do rol de obras candidatas ao Prémio BCI de literatura, em situação de equívocos trazidos a público por alguns “escritores ” que entendiam haver “conflito de interesses” intrínsecos a minha condição de escritor e colaborador da AEMO. Entendo que devo explicar o porquê de colocar entre aspas o termo escritor.

Ao longo da minha carreira literária, tive o privilégio de, ainda em fase iniciática, partilhar momentos de conversa com escritores com maior experiência de vida literária. Dessas conversas, retenho um precioso legado de Eduardo White, que conservo em memória, muito a ver com a atitude que se deve ter enquanto escritor. Dizia-me White, numa dessas distantes cavaqueiras: “ser escritor não é apenas escrever e publicar livros, é acima de tudo uma questão de atitude que se deve ter ao longo da carreira ”.

Ciente desta condição, face ao entendimento de que “um dos escritores é colaborador directo, o escritor Aurélio Furdela, em condição de conflito de interesses”, decidi retirar o livro da lista das obras candidatas ao prémio. A atitude não se deveu, de modo algum, a nenhum acaso de conferir justeza a pseudoapreciação de Pedro Pereira Lopes e companhia. Entendi, sim, que devia resguardar o prestígio do Prémio BCI de Literatura da infâmia que se lutava por mergulhá-lo, um prémio que dura há dez anos.

O Prémio BCI de Literatura foi criado com o intuito de incentivar a produção literária no seio dos escritores moçambicanos. Ora, antes de ser colaborador directo da AEMO, existe em mim a condição de escritor, aliás condição essa que levou a direcção da AEMO a convidar-me para ajudar a agremiação a materializar os seus objectivos.

Nessa mesma qualidade de colaborador da AEMO, ajudei a criar todos os restantes prémios, que hoje Pedro Pereira Lopes, Eduardo Quive, José dos Remédios dão rosto a ideia de que devo ser excluído de qualquer possibilidade de atribuição, por razões meramente extraliterárias.

A ideia de criação dos prémios da AEMO visava, acima de tudo, galvanizar a vida associativa, buscando a sã concorrência entre os membros da AEMO e, por outro lado, atrair outros escritores que, embora não filiados, ajudam a desenvolver a cultura moçambicana, através da sua criatividade literária. Desde esses tempos, confiamos a um júri, constituído por escritores consagrados e académicos –  verdadeiramente académicos –   a tarefa de apurar o vencedor. Para o caso do Prémio BCI de Literatura, que é o de melhor livro do ano, pesam como critérios de avaliação aspectos meramente literários, ao contrário, por exemplo, do Prémio José Craveirinha da AEMO (PJCL), que ainda se ponderam outras qualidades do candidato. Essa foi a tónica da linha dos prémios ao serem criados. Nessas circunstâncias, Mia Couto ganhou o PJCL, sendo Presidente da Mesa da Assembleia-geral (o mais alto órgão da AEMO), e Ungulani Ba Ka Khosa ganhou o Prémio BCI de Literatura, na condição de Secretário-geral (o mais alto cargo executivo). Ora, essa condição de titular de cargos não serviu, de modo algum, para consubstanciar algum conflito de interesses, pois acima de tudo prevalece na literatura a ideia de que somos escritores, membros da AEMO, que gozam dos mesmos direitos, à luz dos estatutos da agremiação. Estamos no campo literário e valem critérios literários. Confiamos no veredicto do júri e, com os vencedores, festejamos a atribuição do galardão, sem ataques, nem ódios estampados nas páginas dos jornais e contas do facebook; claro, isso antes da aparição do Refila Boy da literatura.

Se hoje entende-se que as regras devem sofrer mudanças, existe sempre a possibilidade de revisão do regulamento, bem diferente de perpetrar ataques, autênticas emboscadas jornalísticas, para abalar a decisão do júri com declarações do tipo: “Se os membros do júri estão a pensar em premiar Saga d’ Ouro com o BCI de Literatura, talvez detestem o teor deste artigo. (…) Começo por descartar Saga d’ Ouro, de Aurélio Furdela, pois a mim faz confusão que um autor candidato a um prémio literário integre o grupo que o promove, divulga ou regulamenta como se tratasse de um assessor. Quer dizer, é uma questão de princípios (e eu nem tenho princípios melhores do que ninguém). Ou se trata de concorrer ao prémio ou se trata de o divulgar.”

 Devo dizer ao jornalista José dos Remédios que todos os membros activos da AEMO integram o grupo que o promove e divulga os prémios instituídos pela agremiação. Regulamentar? Todos regulamentamos os prémios. Se for necessária uma revisão dos regulamentos, por que não? Agora, bater-se por coagir a mudança de regras nos derradeiros dias da divulgação do vencedor é mera emboscada, no mínimo, desqualificável, uma importação do paradigma político moçambicano. 

Quando Ungulani ganhou o Prémio BCI de Literatura, eu concorria nessa mesma edição com o livro as Hienas Também Sorriem. Não me foi atribuído o prémio, felicitei-o pelo reconhecimento do júri ao livro Entre as Memórias Silenciadas. Muito recentemente, o actual secretário da AEMO, Carlos Paradona Rufino Roque, na edição de 2018, concorreu com o seu último livro, o romance Carota N’tchakatcha, e ninguém saiu a levantar a questão de conflito de interesses. Hoje, sou um simples vogal, nada igual ao estatuto de Presidente da Mesa ou Secretário-geral, e os co-participantes ao concurso e companhia arreganharam os dentes, destilaram peçonha, a fim de afastar-me do convívio, pois os prémios literários sempre constituíram um dos momentos mais altos do convívio literário ou, pelo menos, assim foi até que entrou em cena um comboio que anda de chinelos, que a todos os vencedores e candidatos procura abalroar.

Embora gritante, esta não é a primeira vez que o literato de comboio achinelado se fez aos carris, antes saiu e apitou três vezes,…e a quarta. Apitou, quando atribuiu-se um prémio a Professora Fátima Mendonça. Apitou contra o prémio conferido a Luís Bernardo Honwana. Apitou, aquando do prémio outorgado a João Paulo Borges Coelho. Agora, apita e deita muita fumaça pelo prémio atribuído a Celso  C. Cossa, ribomba que há conflito de interesses. Outro vício de reclamar por tudo mais alguma coisa, importado da política à literatura. Qualquer associação congrega grupos de interesse, defende interesses colectivos, através de regras estabelecidas. Como se pode impor que uma instituição do género exclua das actividades que promove os membros que colaboram em prol da mesma? Qual é a razão de Eduardo Quive entender que “O caos foi criado pela AEMO? [ que deve ] impedir que os seus colaboradores directos façam parte?” – Grande absurdo

Sendo o Prémio BCI de Literatura o galardão atribuído ao melhor livro do ano, se nos batermos por retirar do certame as obras dos colaboradores da AEMO, ainda teremos a garantia de se estar a apurar o melhor livro do ano? Não foi essa a ideia que norteou a criação do prémio. Entendo que, escondidos na liberdade de expressão, procura-se hoje desenhar um quadrado, para o qual se empurra os escritores a fim de nele habitarem em pensamento, assim torná-los iguais a funcionários públicos, a políticos, ou “académicos” – desses deformados pela escolástica mal assumida, a procura aqui de glória como escritores, já que na academia constituem mera insignificância. Não basta ser alfabetizado para sentirmo-nos escritores. Que livro de referência tem Pedro Pereira Lopes, para hoje autoconferir-se galões de escritor, de regulador literário? Simples menções em exames escolares, de títulos de libretos que assina? Ou prémios em pinhos a quinarem a sorte ao vento, mas que depois ninguém consegue ler tal livro até a décima página? Quem já leu o tal Mundo Grave, da primeira a última página? (Possivelmente os seus próprios estudantes, por razões óbvias.) Não são os prémios literários que fazem um escritor, nem a maledicência faz o homem gozar da liberdade de expressão, pois quem a cultiva vive preso na amargura do rancor e do ódio que sempre saltou a vista dos olhos do novel Refila.

Habituados a refilar contra os políticos, agora confundem a AEMO com a CNE. Basta de politiquices importadas para o mundo das artes. Se não ficou claro, posso desenhar: Uma associação cultural, no sentido restrito do termo, funciona a semelhança de um clube desportivo, amador bem a nosso contexto, contando com a entrega dos seus associados em muitas tarefas do dia-a-dia. Imaginemos que essa febre de “conflito de interesses” venha um dia a chegar ao desporto. Por hipótese, o Ferroviário envolve alguns atletas do clube na organização de um torneio. Pouco antes da realização da prova, vai alguém alegar que quem esteve a trabalhar não organização, divulgação e assessoria da direcção nos afazeres do certame não deve  jogar porque aos árbitros podem favorecê-lo em campo. Este pseudodebate peca, a priori, pelo facto de ignorar a natureza das instituições. A esse nível, de legitimação da criatividade de cada membro-candidato,  os argumentos aplicáveis a CNE, acrescentam patavina a uma agremiação como a AEMO, a AMMO, Núcleo d’Arte, SOMAS ou Ferroviário e Maxaquene.

Que ninguém procure conferir-se mérito a mercê da minha atitude de retirar Saga d’Ouro, pois fi-lo por duas razões: primeiro, para evitar que continuassem a conspurcar gratuitamente o prémio que ajudei a criar; segundo, nenhuma concessão saber-me-ia à glória, depois de toda a vilipendiação. A gula, a vanglória, o ódio e a inveja são matéria de trabalho do escritor nas personagens que cria, mas nunca parte do carácter que o deve marcar. Deixem ao menos o escritor ser diferente, pois merece alguma diferença para sê-lo, é uma atitude e escolha de vida. Deixem-no fora dessa caixa para a qual o empurram, pois, ainda na ressaca dos  Pink Floyd,  We don't need no thoughts control.

 

“É fácil nos esquecermos do que se tenha falado,

mas o mesmo não posso dizer do que se tenha escrito.”

 

Raramente escrevo ou leio SMS, sigla de Short Message Service, ou serviço de mensagens curtas, dito em português, para não incorremos no risco de confundirmos a sigla em questão com o que tem pairado a cabeça de algumas pessoas que se vêem no direito de poder dizer tudo o que lhes venha a cabeça pelo simples facto de terem uma conta em alguma redes social. As pessoas do meu círculo de amizades tão bem sabem disso que já não fazem uso desse meio para se comunicarem comigo, seja por que plataforma for (minhas sinceras desculpa aos membros dos vários grupos sociais em que estou inserido; as razões do meu silêncio serão expressas nas linhas que se seguem).

Apoio-me numa razão muito simples: o que falamos, por mais que deambule pelos quatro cantos do mundo, se nunca for escrito, em última instância acabará sempre pertencendo ao domínio do vento; e o que escrevemos, sem que seja necessariamente o que se tenha falado, não nos acompanhará para os sete palmos de terra da nossa última morada.

Deixa-me ser menos poético: se o que escrevemos fosse comparado a um crime, sem sombra de dúvidas este seria classificado como sendo um crime premeditado. Posso ser mais específico. Falar não tem correcção automática. O que falamos se apaga logo que fechamos a boca. Podemos até copiar o que os outros falaram, mas duvido que seremos capazes de igualar a carga emotiva, a entoação, o ritmo, as pausas de quem tenha falado (Os lideres norte-americanos que não me deixem maldizer alguns discursos de lideres africanos).

Vou tentar ser mais retórico. Escrever é diferente. Distancia-se do falar. Ao escrevermos, dispomos de tanta “ferramenta (para desmontar a noite)”, vai tanta coisa pensada que pouco nos valerá as lágrimas do arrependimento mais tarde. É pela via do que se escreveu que hoje podemos dizer de boca cheia: “Samora vive!” E através do que será (falado e) escrito que o nosso amanhã nos dirá quem continuará vivo e quem será apagado.

Umbert Eco, em suas ideias sobre as redes sociais e tecnologias, defendeu que “a Internet deu voz aos idiotas”. E, a meu ver, ele é todo revestido de razão. Pelo contrário não veríamos nas redes sociais e em alguns canais televisivos homens comuns fazendo alardes de si mesmo em detrimento de Deus; não veríamos o romantismo a ceder o lugar para um homem que, sem o mínimo de pudor possível, insulta a sua própria pátria; não veríamos comentários incendiários de homens que acreditam que o futuro deste pais está, como diria Laerty, “O Menino que Odiava Números”, em punhos cerrados e levantados, e não num aperto de mão ou num abraço.

Quando fui convidado a fazer o uso da palavra na entrega da minha mais recente distinção, o Prémio BCI de Literatura 2019, eu terei dito que não conhecia nenhum país no mundo onde um livro infanto-juvenil teria ganho o espaço de melhor livro do ano. Mas nestas linhas, sem o calor do momento, despido de nervosismo, talvez eu possa por em causa o que disse, pois é fácil nos esquecermos do que se tenha falado, mas o mesmo não posso dizer do que se tenha escrito.

Uma pergunta: será que temos lido o que temos escrito nas redes sociais? Eu acredito que muitos de nós não o fazemos porquanto não seriamos recorrentemente ridículos e infinitamente infundados naquilo que pretendemos transmitir aos outros. Um companheiro de trincheiras literárias (e outras trincheiras), em tom de brincadeira, disse-me no Facebook: “Escreves melhor do que falas.” E eu, em tom também de brincadeira, não a esse confrade mas a todos nós, escritores ou não, faladores ou não, para terminar, talvez perguntaria: do que nos valerá falar melhor do que escrevemos, sabendo de antemão que os homens morrem mas as suas ideias perduram?

Ferramentas para desmontar a noite de Japone Arijuane é o segundo livro do autor, após a publicação de Dentro da Pedra ou a metamorfose do silêncio em 2014.

O poeta insere-se na linha dos artífices da palavra, que estabelecem uma relação quase oficinal entre a mão e a escrita, onde a inicial simbologia da pedra revela o papel de um sísifo que tenta transformar o silêncio em palavra, na árdua tarefa de resistência face ao mundo e à escrita. A dualidade energética entre mão e matéria cria a força da metáfora e a dinâmica contida do acto de esculpir o silêncio.

A imaginação material revela uma psicologia do “contra”, que toma a dureza como forma intangível de resistência. Por isso a dimensão táctil que se estabelece entre o sujeito e o mundo, a mão e a escrita, cria a energia quase operária que produz o verso. E de certa maneira é o que lemos no título deste novo livro com o uso do verbo “desmontar” e do nome “ferramentas”. Trata-se de um labor similar ao de um mecânico, mas que exerce a sua oficina sobre matéria imaterial, a noite. Constatamos então que começa de imediato com o título o inusitado propósito, paradóxico, que a arte da escrita executa, colocando a dimensão imaterial (a noite) a ser imaginada como matéria desmontável. Estamos perante um tipo de metáfora que se vai revelar como um dos processos mais enérgicos na escrita deste livro do poeta Japone Arijuane, o uso da hipálage.  

A hipálage é uma figura de linguagem que se caracteriza pelo desajustamento entre a função lógica das palavras, quanto à semântica e por vezes à sintaxe, de forma a criar uma transposição de sentidos. A hipálage é no caso da poesia de Japone um expediente retórico, uma qualidade de associação metafórica, que faz a passagem da abstracção para o domínio do concreto, ou vice-versa, usando complementarmente vários outros instrumentos como a personificação, a animização, a sinestesias. Não deixa de ser verdade que a riqueza é concretizável visto que se revela através do múltiplo e do diverso, ao passo que a miséria é a escassez, a ausência objectal, o lugar propício para a abstracção. Estabelece-se, assim, uma inadequação entre as palavras e o que elas designam e entre as palavras e as coisas, ou sua ausência. Este procedimento é usado na poesia moçambicana em especial na poesia de José Craveirinha, criando violentos efeitos de contraste, com que ele sempre denunciou a injustiça colonial e pós-colonial, e que tornam a língua num instrumento de plasticidade quase animada e orgânica.

Embora o discurso poético de Arijuane se articule nas diferentes partes do livro com citações introdutórias de diferentes poetas, como veremos, o recurso subliminar citacional, ou formal do verso, na sua organização metafórica, é sem dúvida devedor da poética craveirínhica, de que ele se torna um exemplar e inovador herdeiro. Com efeito, a poesia de Japone faz do exercício da hipálage um elemento fundamental para marcar os tremendos contrastes humanos, sociais, económicos, ideológicos, existentes no mundo actual moçambicano.

A inadequação entre o mundo imaginado, sonhado e a realidade, como se de mundos paralelos se tratasse, é de tal modo violento que apenas o confronto entre a metaforização da materialidade da abstracção pode dar conta dela. Citemos apenas alguns exemplos: “metalurgia sóbria das almas ébrias” (5); “onde se deita a noite a mil decibéis “(5); “o mastigar angústias” (6); “eu sou trote inverso da noite às panelas ébrias de sonhos para cada país que invento” (12); “urge amassar gritos para acordar o pão” (15); “tudo é pureza e o maxakene altivo no vácuo do pão/à cesariana imagem da tarde intrínseca dentro das mães “(16); “Por dentro de tudo isto está içada a fuligem da náusea” (21); “a inacabável loucura/manufacturada na hora do noticiário” (23); “o silêncio se instalou nos tímpanos do futuro” (26); “no bolso a fórmula para extinguir a oxidação da noite” (32); “Por vezes sinto que meu coração é um país em guerra” (38); “o ser é uma poltrona de veludo onde nunca estive” (39);  “basta a kalash exibida a meia haste” (43).

É esta uma importante dimensão de trabalho da linguagem, que se intensifica neste segundo livro do autor, com imagens inesperadas, um livro muito apurado na sua matéria verbal, com a organicidade difícil de um corpo único. O título escolhido por Japone recorda-nos outro, de um poeta também de Quelimane, Armando Artur, No Coração da Noite (2007), para o qual este livro remete, mesmo que não intencionalmente, como forma de diálogo:

 

 a velha noite tece o fim de todos os sonhos/a felicidade rasga-se para sorriso dos deuses/onde a erva ilumina a liberdade incendiada/os vultos têm destreza para encantar feras/e a resina tinge o coração das coisas engasgadas no escuro/é por isso que estamos todos/misericordiosamente no imaginário do pão/o supersticioso pão nas entranhas da noite. (8)

 

Ferramentas para Desmontar a Noite inicia-se com uma epígrafe de Rui Knopfli que orquestra a obra em pano de fundo: “Amanhã seremos outros. Por ora /nada somos senão o imperfeito/limbo da legenda que seremos.” Esta escolha citacional é, pensamos, reveladora de uma outra herança formal que a escrita de Japone reivindica de forma exposta, e que orienta os propósitos temáticos do livro, a temporalidade entre um passado e presente imperfeitos e a esperança de um futuro revolucionado. A noite, metáfora expandida de distopia que o livro vai longamente expôr, num processo de metáfora em cadeia, corporifica em múltiplas imagens o desencanto das utopias sonhadas às zero horas de Junho, não cumpridas:

 

Então mergulho a pupila no futuro que me foge/ reluzente, a faca de vários gumes verte a agonia dos meus pulsos /a verter converte-se em dor a esperança /entre cinzas e escórias a imaginação do futuro cidadão (21).

 

Com sessenta e quatro poemas este livro constitui-se como uma proposta de escrita poética de resistência, contra o mundo e a palavra que o institui, em que cada poema é uma parte de um tema maior, centrado em torno da Noite. Da Noite de Junho. Há uma espécie de prólogo, ou intróito, o ABC para pôr as mãos na massa, constituído por três poemas, que arquitectam os trilhos da escrita das três partes que se seguem.

Na primeira parte, Ferramentas para desmontar a noite, com dezanove poemas, o sujeito descreve esse estado de quase sonambulismo da noite:

 

 Vejo que todos somos sonâmbulos nas bermas da vida/ em procissão exibimos a loucura /de gengivas cerradas o ronronar ao peito / há uma fábrica de angústias a esgotar o tempo/a cidade é um sanatório imune a sonhos (23).

      

Fala-nos da necessidade da revolução, através do desdobramento do sujeito em figuração colectiva: “Eu sou milhares cavando com os olhos a insurreição/de cabeças ondulando nos porquês milenares” (22). Esta secção é acompanhada de uma citação de Eduardo White: “Moram aqui as raízes do afecto”. Japone reivindica do autor do País de Mim, as ferramentas do amor e do sonho, em tempos submersos na indiferença: “já nem me lembro do amor e quem sou eu sem o amor…?/O amor daquelas zero horas/urge plantar novos junhos na herança dessa noite.” (21), o amor contra o cifrão, o medo, a fome:

 

adorno de onça a acobertar a muralha do medo/algibeira onde cabem todos os sonhos da tarde/pássaros d’ouro na geometrização da distante aurora/onde rostos censurados à boca do cifrão pululam (21).

 

A segunda parte, O Bailado da Ausência Própria, inicia-se com uma citação de Herberto Hélder, “Beijar os teus olhos será morrer pela esperança”, sendo composta por vinte e dois poemas, que se desdobram em variações sobre uma reflexão da noção de sujeito que se multiplica, subtrai e ausenta, num jogo de títulos provocatório como por exemplo: “oficina para não ser, a memória do que nunca fui, divindade de mim”…Aqui se começa a resgatar a felicidade da infância, e do amor, em simultâneo ao reconhecimento de alguma plenitude e realização na física encantada do corpo que resgata sonho telúrico, em reinvenção da esperança:

 

teu corpo no húmus da vida/uma vida nua nas vestes da aurora/no bolso a fórmula para extinguir a oxidação da noite/voltarei com punhos serrados de esperança/dançar as vénias da luz encostadas ao futuro (32).

    

Finalmente a terceira parte do livro Fermento das Angústias, composta por vinte poemas e antecedida de uma citação de Heliodoro Baptista, “saberás que o amor é tudo e o tudo nunca foi cognoscível. Como o nada”, discute a possibilidade do amor e do futuro no quadro desse paradoxal choque entre a noite e o amor, entre desconhecido e desconhecível:

 

Ao menos amemos essa noite que não cessa/na curva densa da esperança fuzilada/os resquícios lacónicos dessa visão ofuscada/mais nipa menos tudo eis a equação (66).

Nesta secção final do livro de Japone Arijuane se desmontam poeticamente também, entre outros tópicos, algumas das divisões culturais e políticas conflituais que dramatizam o país entre norte e sul:

 

Hoje vamos escalar o norte das nossas angústias/contornar a muralha da sulização que prolonga a noite/precisamos contornar as dores da rua/abrir outra garrafa para um novo quotidiano/vamos embriagar o medo encarnado que nos sepulta/ escuta a noite longínqua, vasta e fulminante/música aos ventos nortenhos a fogo (70)

Julgo que o leitor vai apreciar, como eu muito apreciei, a nudez com que o poeta inventa a farda do amor, o incêndio que planta na noite para a exorcizar, e a insurrecta voz com que os poemas revolucionam o silêncio.

                                                                                                 

 

Mais conhecido por HERGÉ, Georges Prosper Remi (1907 — 1983), foi um desenhista de banda desenhada, escritor e artista, nascido na Bélgica francófona.

Hergé é autor das revistas de aventura do célebre personagem Tintim. Para além de Tintim Hergé criou também outros personagens entre os quais os irmãos Quim e Filipe que, pela qualidade dos desenhos e histórias, constituem igualmente um clássico da literatura em banda desenhada.

Mas nem todas histórias que ele escreveu e desenhou foram bem aceites pelo público, pois algumas delas sofreram críticas como é o caso da aventura de Tintim no Congo. Hergé foi acusado de racismo e de encorajar o colonialismo, isto em relação ao então Congo Belga, hoje República Democrática do Congo. Aliás, toda a sua obra ou parte dela tem alguns “laivos” de eurocentrismo, talvez típico da época e daqueles exploradores clássicos chamados de “descobridores” de novos mundos e outras gentes. A propósito dos descobrimentos, eu tenho dito que não se descobre o que sempre existiu, principalmente quando se trata de terras e povos! Porém, ignorando isso, podemos tomá-lo simplesmente como um viajante, um demandante de outras terras e outros horizontes.

Entretanto, esta série em quadradinhos evoluiu bastante ao longo do tempo, como não podia deixar de ser, face à evolução também da cosmovisão do próprio autor. Estamos a falar de um período relativamente longo que vai dos anos 30 a 80 do século XX. O exemplo disso é o facto de Hergé, já nas suas histórias ulteriores, apresentar situações de luta dos povos latino-americanos pela sua autodeterminação.

Mas seja como for, Tintim foi o meu herói. Hoje, quando releio as suas aventuras remete-me àquele imaginário de embalar dias e noites da segunda metade da década 70 do século XX. Note-se que a banda desenhada de Hergé adequa-se e estende-se a um universo de leitores que pode variar dos sete aos setenta e sete anos de idade. Existem igualmente filmes sobre as aventuras de Tintim, como é o caso de “O Segredo de Licorne”, 2011, produzido por Peter Jackson e realizado por Steven Spielberg.

“A perseverança de Tintin como ícone cultural é a prova de que Hergé tocou em algo universal, algo tão básico e comum a todos nós que a essência dramática das suas histórias permanece tão actual como o seu jovem protagonista”, escreveu Steven Spielberg.

É realmente emocionante rememorar aqueles personagens das minhas intermináveis gargalhadas, associados ao Tintim como, por exemplo, o Capitão Haddock (ébrio e refilão inveterado), o Professor Girassol (o sempre abstraído cientista e inventor), os gémeos Dupond e Dupont (desastrados mas profissionais polícias da Interpol), o Milú (seu cachorro inseparável), entre outros. Tintim levou-me a vivenciar as suas aventuras, como herói, e levou-me igualmente a viajar para locais longínquos, para mundos exóticos, em busca de tesouros perdidos e/ou de desmascaramento de criminosos. É este Tintim que, a par daquele adolescente que até hoje permanece em mim, mesmo tendo vivido 82 anos perdura no tempo, permanece aquele eterno rapaz, aquele protagonista que aparenta ter apenas 18 anos.

Portugal foi um dos países a internacionalizar a obra de Hergé ao traduzir e publicar Tintim em língua portuguesa, através da revista “Renascença – Ilustração Católica”, já que até aí – 1930 a 1934 – apenas circulava em língua francesa.

A obra de Hergé tem sido aclamada não só pelas cores e clareza dos desenhos como também pela consistência e riqueza temática das suas histórias, o que revela um trabalho preliminar de pesquisa e investigação. Aliás, o rigor e o pormenor com que Hergé pesquisava para cada uma das aventuras de Tintim, são pura e simplesmente extraordinários, a ponto de,  para criar muitas das suas histórias, como é o caso de Tintim na Lua, Hergé ter-se munido de quase toda a documentação disponível na época,  como livros, almanaques, revistas culturais e científicas, filmes, entre outros. E um dos grandes autores lidos por Hergé foi Júlio Verne, de quem falarei a seguir.

***

JÚLIO VERNE (1828 — 1905), foi um escritor francês e é considerado o pai da ficção científica. Senhor duma vasta cultura geral, através da sua obra, fez predições sobre descobertas e avanços científicos, como submarinos, artefactos aéreos e espaciais e, inclusivamente, viagem à Lua. Escritor prolífico com mais de 100 livros foi, igualmente, um dos autores mais traduzidos em toda a história da literatura. De acordo com a UNESCO foi traduzido em mais 148 idiomas.

Como, aliás, acontece com muitos dos escritores que se iniciam no mundo da exposição pública, isto é, da publicação dos seus primeiros textos literários, Júlio Verne não teve a vida facilitada para publicar o seu primeiro livro “Cinco semanas de Balão”. Tais foram as dificuldades que encontrou tendo sido rejeitado por cerca de 15 editoras. Mas a principal razão de tanta recusa era a da alegada ousadia revestida de ingenuidade de o seu autor querer prever o futuro. Se calhar tenha sido por razões religiosas ou de outros preconceitos da época. Mas quando a revista “Magazine d’Éducation  et Récréation ” se predispôs a publicar, tanto a história quanto a própria revista tiveram um enorme sucesso de público e crítica.
 
É simplesmente fascinante, de um modo geral, a forma como Júlio Verne faz a descrição nas suas histórias. Ele fá-la com mestria e profundidade, tornando assim as situações tão reais que até confundem o próprio leitor. Por isso é que mais de 30 livros seus foram transpostos para o cinema, resultando em mais de 90 filmes, para além de seriados televisivos. Os livros “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, “Viagem ao Centro da Terra”, entre outros, são os que mais filmes inspiraram.

Em “Vinte Mil Léguas Submarinas”, por exemplo, é interessante a maneira como ele faz incursões às mundividências dos povos, neste caso, às do povo timorense:

“A 13 de janeiro, o Capitão Nemo avisou-me que já estávamos no Mar de Timor e à vista da ilha do próprio nome. Esta ilha, cuja superfície é de mil e seiscentos e vinte e cinco léguas quadradas, é governada por rajás, príncipes que se dizem filhos de crocodilos, o que para eles significa que são descendentes da mais nobre origem a que um ser humano pode aspirar. Os seus escamosos antepassados enchem os rios da ilha e são objectos de uma veneração especial. São protegidos, mimados, adorados, e alimentados com jovens virgens em ocasiões especiais. Desgraçado do estrangeiro que puser as mãos num desses animais, como é o caso desses enormes lagartos sagrados.”

Dos livros que Verne escreveu o mais curioso ainda é o ”Da Terra à Lua”, um livro cuja descrição coincide quase em tudo, desde o tipo de artefacto, número de tripulantes, local de lançamento, duração da viagem, as voltas à Lua e mesmo o local de aterrissagem, com a viagem à Lua feita pelos norte-americanos em julho de 1969. Simples coincidência ou a NASA ter-se-ia inspirado nele para mandar homens à Lua? É caso para dizer que Júlio Verne foi um “feiticeiro” que previu o futuro um século antes de muitos dos seus sonhos fossem tornados uma realidade.

Foi igualmente deslumbrante, para mim, descobrir, através da história “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, o fenómeno do tempo ganho no calendário para quem viaja em direção à Leste dos Pontos Cardeais, e do tempo que também se perde no calendário para quem viaja ao contrário, isto é, em direção à Oeste. Que maravilha! Mas em 1522 este fenómeno já era conhecido quando os marinheiros da expedição de Fernão de MagaIhães perderam um dia no seu calendário, viajando justamente para o Oeste.

Ler HERGÉ e JÚLIO VERNE foi um dos maiores prazeres que alguma vez a literatura me proporcionou na minha adolescência e não só. Fosse de dia ou de noite só interrompia a leitura de qualquer uma das suas obras que me chegasse às mãos por razões (só) de força maior! Ambos escritores, de emocionantes histórias de aventuras e desventuras, acabaram criando em mim uma espécie de fome insaciável de leituras e mais leituras, de conhecimento e mais conhecimento, de imaginação e mais imaginação. Ler cada um deles era como se viajasse  de um comboio com paragens nas disciplinas de geografia, história, cultura e religião, matemática, física, química, astronomia, biologia, entre outras. E eram viagens intermináveis fossem elas de um continente para outro ou então à volta da Terra ou da Lua. Os dois autores de estilos e temáticas algumas diferentes outras semelhantes, numa coisa me marcaram: o espírito de aventura e de imaginação científica.

 

 

 

 

Desde o dealbar da “série” Direito Digital na ordem jurídica moçambicana, excursionamo-nos pelos seus aspectos genéricos e propedêuticos, para depois mergulhar nas principais áreas de incidência daquele Direito no ordenamento jurídico do solo pátrio, principiando com a sua interpenetração no Direito Penal/Processual Penal (Parte I), tendo-nos, depois, emigrado para o Direito Civil/Processual Civil, Política para a Sociedade da Informação, aprovada pela Resolução n.º 17/2018, e Lei de Transacções Electrónicas, adoptada pela Lei n.º 3/2017 (Parte II) até o debruçamento respeitante relação entre o Direito Digital e o Direito do Consumidor, acompanhadas de breves considerações ao Comércio Electrónico – e-commerce – ao Direito das Telecomunicações e, novamente, à incontornável Lei de Transacções Electrónicas (Parte III), sendo que na presente explanação (Parte IV) confinar-nos-emos exclusivamente à incidência do Direito Digital no Direito da Protecção de Dados.

Por uma questão de economicidade temporal e, sobretudo, espacial (que nos é imposta pelo sacrossanto número limite de caracteres permitidos), temos sido coerentes no desiderato de evitar inúteis e redundantes sínteses recapitulativas relativas a conceitos definidos e abordados nas edições anteriores, pelo que, insistentemente, recomendamos, para uma melhor contextualização e compreensão, a leitura das “Parte I – sobretudo esta –, II e III”, encontráveis, cada uma delas, no seguinte link: http://opais.sapo.mz/autor/telio-chamuco.

O autor português, A. Barreto Menezes Cordeiro, proprietário, no seu país, do primeiro Manual de Direito da Prote[c]ção de Dados, assevera que (sic): «Apesar de o Direito da prote[c]ção de dados não ser um ramo jurídico novo, apenas recentemente assumiu uma importância indiscutível no panorama jurídico (…). A emergência do Direito da prote[c]ção de dados surge como um reflexo da revolução imprimida pelo RGPD [Regulamento Geral da Protecção de Dados], com destaque para a densificação dos direitos dos titulares de dados pessoais, o agravamento dos deveres dos responsáveis pelo tratamento e dos subcontratantes, o reforço das competências das autoridades de controlo e a obrigatoriedade de designação de encarregados de prote[c]ção de dados. O Direito da prote[c]ção de dados assume-se como um ramo jurídico eclético, que pressupõe uma constante intera[c]ção entre o Direito privado e o Direito público, o Direito português e o Direito europeu» (In Direito da Prote[c]ção de Dados, Sinopse, Almedina, Jan., 2020).

Logicamente, para efeito da nossa abordagem analítica, onde o citado autor refere «Direito português» tem clara correspondência com o “Direito moçambicano” e onde salienta «Direito europeu» tem analógica conexão com “Direito africano”.

E por que razão se torna imperioso realçar, de forma frisante e com destacado ênfase o “Direito moçambicano” conjugado com o “Direito africano”?

É tão-somente pelo facto de o regime jurídico que fixa a disciplina a que está sujeita a Protecção de Dados no ordenamento jurídico moçambicano ter sido introduzida por intermédio da Resolução n.º 5/2019, de 20 de Junho, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (doravante “CUACPDP”), Convenção adoptada pela 23.ª sessão ordinária da cimeira dos chefes de Estado e de Governo da União Africana, a 27 de Junho de 2014, em Malabo, Guiné Equatorial.

Dito de outro modo, é indeclinável a referência ao “Direito africano” quando nos referimos à matéria relativa a Protecção de Dados Pessoais, pois o legislador moçambicano, nada mais fez do que transplantar, ipsis verbis, em 2019, para o nosso ordenamento jurídico, as normas adoptadas em 2014 pela retro citada Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (CUACPDP).

Salienta-se que, a despeito da predita Convenção ter sido adoptada em 2014, é curial realçar-se que só a partir da respectiva ratificação pela Assembleia da República, em 2019, por intermédio da Resolução n.º 5/2019, é que ela entrou em vigor em Moçambique, na medida em que, nos termos do n.º 1 do artigo 18 da Constituição da República (doravante, CRM), «os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique».

Apesar de ser vasta e até interessante a discussão doutrinária concernente ao lugar a que correspondem os tratados e acordos internacionais na hierarquia das Leis moçambicanas, tal discussão revela-se, de todo, despicienda, porquanto, o n.º 2 do artigo 18 da CRM tratou de descamar a situação, determinando que «as normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção».

Tendo, as normas corporizadas no texto da CUACDPD, sido recepcionadas no ordenamento jurídico moçambicano tal e qual foram adoptadas naquela Convenção e, sendo certo que a partir da respectiva ratificação, tais normas passam a (con)figurar como diploma infraconstitucional, em igualdade de circunstâncias com as demais leis aprovadas no solo pátrio, podemos, com arrojo e ousadia, acrescida de certeza inequívoca, afirmar que, à semelhança, por exemplo, do que se sucede no Brasil (Lei Geral de Protecção de Dados Pessoais ou LGPDP – Lei n.º 13.709/2018), nos Estados Unidos (California Consumer Privacy Act of 2018 ou CCPA), em Portugal (Regulamento Geral de Protecção de Dados ou RGPD – Lei n.º 58/2019) – sublinhando-se que no, caso português e em todos os países-membros da União Europeia, as respectivos RGPD obedecem à Directiva da União Europeia plasmada na Directiva (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Directiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados), que é congénere da Convenção da União Africana acima referenciada, também ela de obediência obrigatória para os Estados-membros africanos que a ratificaram – a Resolução n.º 5/2019 traduz-se no RGPD de Moçambique (ainda que não seja essa a denominação legal expressa atribuída pelo referido diploma legal).

Erguemo-nos nessa ousadia em virtude de, se compulsarmos os RGPD quer da UE, quer dos seus Estados-membros quer ainda do Brasil, verificar-se que as matérias sujeitas a disciplina na qual se respalda o regime jurídico que esses diplomas visam regular, são mesmíssimas (com particular enfoque para, por ex., regras específicas relativas a crianças; regras destinadas a regular o consentimento, pelo seu titular, de uso dos seus dados; regras atinentes ao direito de apagar os dados pessoas – direito a ser esquecido –; regras destinadas ao tratamento de acesso não autorizado aos dados pessoais – violação de dados –; regras relativas a sanções, quer penais quer não penais; regras concernentes a protecção ao direito fundamental do sigilo das comunicações; regras tangentes a protecção de dados no domínio da saúde; etc., sendo, logicamente, diferenciada a forma como tais aspectos são tratados, o que se percebe facilmente, pois cada ordenamento jurídico possui as suas congénitas e peculiares características, implicando que os mesmos institutos ou figuras jurídicas sejam disciplinados/regulados de forma diferente em função da natureza idiossincrásica de cada Estado (na parte em que as “directivas/normas-mães”, da União Europeia ali, Estado Norte-Americano acolá e União Africana aqui, permitirem).

Conforme tivemos oportunidade de aclarar, na Parte I da “série” Direito Digital, disponível neste link: http://opais.sapo.mz/-direito-digital-na-ordem-juridica-mocambicana-i, o Direito Digital surge da necessidade que o próprio Direito “sentiu” de acompanhar a evolução das TIC’s, presciente que, dessa evolução, e tendo em conta o carácter sofisticado das TIC’s, ocasionam-se problemas peculiares que reclamam também por soluções peculiares, diferentes daquelas [soluções] encontráveis no mundo real [em oposição ao mundo virtual], objectivando, como finalidade, tutelar as relações que se desencadeiam entre as pessoas (singulares/colectivas) em ambientes digitais, através do uso das TIC’s.

O que se disse acima tem ligação estreita com o impulso que, também, foi dado na reformulação das normas relativas à Protecção de Dados Pessoais (em ambientes digitais), as quais, por impulso decisivo da União Europeia, devido a observância de grandes casos de vazamento de dados e utilização e comércio de informações pessoais, decidiu, a UE, revisitar suas regras de protecção de dados, culminando, após sucessivas revisões ao longo do tempo, com a adopção da Directiva 2016/679 – General Data Protection Regulation (GDPR) ou Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), que obrigou empresas de todo mundo – onde se incluem monstros elefantícios como o Facebook e o Google – a mudar a forma como colectam, armazenam, processam e tratam dados e foi ainda responsável pelo despoletamento de uma série de reformas legislativas sobre o tema em todo o mundo.

Moçambique e países africanos não se alhearam a este fenómeno (a CUACPDP é sintomática disso, sendo perscrutável no preâmbulo desta Convenção que a necessidade da criação de um Quadro Jurídico sobre a Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais incorpora os compromissos existentes entre os Estados-membros da União Africana no plano sub-regional, regional, internacional, com vista a construção da Sociedade da Informação), sendo, no caso vertente de Moçambique, interessante verificar a ordem cronológica da adopção dos mecanismos de Protecção de Dados Pessoais quando interpenetrados com o Direito Digital (conceito definido na Parte I desta série), dentro do Quadro Legal da Sociedade da Informação edificada em Moçambique.

Com efeito, tal ordem cronológica obedece, essencialmente, os seguintes passos: aprovação da Política de Informática (no ano 2000); adopção da CUACPDP em 2014; aprovação da Lei de Transacções Electrónicas sob os auspícios da Lei n.º 3/2017; aprovação da Política da Sociedade da Informação, através da – já abordada nas “Partes I & II” – Resolução n.º 17/2018, que reformou e revogou a Política de Informação ora aprovada em 2000, sendo que, no seguimento desta “Política da Sociedade da Informação”, foi aprovado o Plano Estratégico para a Sociedade da Informação 2019-2028 e o respectivo Plano Operacional, por intermédio da Resolução n.º 52/2019; criação do Sistema de Certificação Digital de Moçambique e aprovação do respectivo Regulamento por via do Decreto n.º 59/2019; e aprovação da Resolução n.º 5/2019, que ratifica a CUACDPD.

Estes diplomas legais foram sendo aprovados em reconhecimento da inelutável importância que as normas sobre protecção de dados possuem, porquanto, elas munem o titular de um mecanismo que lhe permite controlar a forma como suas informações são utilizadas por organizações, empresas e inclusive pelo Governo. Elas colocam o titular numa situação de segurança no que concerne ao controlo do uso desses dados (por quem quer que seja), sendo ele quem pauta as regras de jogo sobre quem, como, onde, seus dados (inclusive suas criações/obras) podem ser manuseados.

E porque nos aproximamos do limite fronteiriço dos caracteres permitidos, o próximo artigo – numa perspectiva de continuidade – é reservado ao mergulho profundo, detalhado e incisivo pelos princípios/normas da Protecção de Dados Pessoais vigentes no ordenamento jurídico do solo pátrio, sempre visto na perspectiva da incidência do Direito Digital naqueles princípios/normas.

 

 

 

Fim-de-semana, chegou-nos a seguinte informação: para o Campeonato de Inhambane, a debutante equipa da PRM “bateu bem” as Organizações Somboco (com Chamboco?) de Inharrime por 3-0.

Fez-me recordar uma conversa que em tempos tive com o nosso poeta-mor, José Craveirinha. Dizia ele:

– Ó amigo Caldeira. Você sabe que em Tete criaram o Clube da Justiça para participar no Campeonato Provincial? Isso quer dizer que estou sujeito a entrar em campo e… driblar um juiz!
Na realidade, a fase das equipas da Migração, Alfândega e por aí em diante na competição parecia pertencer ao passado. Agora surge a Polícia da República de Moçambique, em Inhambane, a envolver-se no futebol de competição.

BRINCADEIRA TEM HORA

Recreação, para melhorar a capacidade física é uma coisa. Competição é outra. E que não se confunda com os casos do Matchedje ou Estrela Vermelha, em que há uma demarcação clara dos clubes com os Ministérios/tutela da Defesa e o da Segurança, começando nas designações e terminando na gestão, tão autónoma quanto possível.

Neste caso, como conciliar, se:
Um jogador da equipa da PRM/Inhambane agredir o árbitro e este solicitar a intervenção policial. Estarão os colegas em condições de impôr a ordem, se por exemplo o ponta-de-lança infractor fôr um seu superior hierárquico?

Em caso de invasão do campo, poderão os polícias/jogadores, ir buscar as suas armas e até gás lacrimogéneo para, equipados, imporem a lei?
Se a função e vocação da polícia é a de manter a ordem, como fazê-lo estando directamente envolvidos e interessados, num jogo que envolve tanta paixão como é o futebol?

Em caso de uma vitória que qualifique esta turma para competições internacionais, como “descodificar” a sigla e as funções PRM, como representante do nosso país?

Numa altura em que a FIFA e a CAF, impõem regras de licenciamento, algo que os clubes históricos e com vocação experimentam dificuldades extremas para cumprir, como é que uma das entidades com tanto trabalho para velar pela segurança nos campos, e não só, passa a ser jogador e árbitro… de chamboco na mão, expondo-se a cada semana a dar tiros nos próprios pés?

É para rir, ou chorar?

O mês da folia, coincidência, chegou e, por arrasto, transportou consigo a celebração de uma das mais preciosas pétalas de Moisés Manjate. As risonhas 100 primaveras e o centenário de uma vida e, de outras dezenas de canções e milhares de emoções.

Moisés, esse lendário e originário da família Manjate, com o vigor da sua musicalidade e a graciosidade do seu talento, recriou as geometrias da dança e dos compassos da Marrabenta, esse som urbano-rural que incorporou, sem reticências, as magias e os acordes do Xingombela, Zukuta e da Magica.

Velho Moisés, bem no estilo e no ritmo de quem procura a terra prometida, beijou o sol e o mundo, pela primeira vez, no longínquo ano de 1920. Sua terra natal, Mafalala-xilunguine, cidade que tem alterado de nomenclatura, ao longo das décadas, porém, não deixa de ser o viveiro privilegiado de músicos, artistas e escritores.

Desde cedo, como a grande parte dos músicos moçambicanos, não passou por nenhuma escola de música e, jamais, teve contacto com a partitura. A música nasce, naturalmente, nas veias e nos ouvidos dos executores. Talento puro. Bênção divina.

Decorriam os anos 50/53 e Moisés, nome bíblico, se agigantava no mundo musical. Conjunto Djambu se afirmava e criava seu espaço e pedaço. Tal como o mundo que se refazia dos efeitos da Grande Guerra, os artistas rebuscavam, na música e nas artes, o conforto para os espíritos e a paz para as suas almas. Foi momento cultural sublime e o esplendor de uma epopeia inquestionável.
Moisés Manjate cresceu e bebeu as vivências e vicissitudes de um tempo que, não sendo seu, foi de um passado que só ele sabe descrever.

Um passado de pura exaltação e afirmação, um tempo de florescimento da consciência negra, da negação do que não era local e, sobretudo, de rebuscar a liberdade. Manjate não fugiu das sombras e sonhos do Craveirinha, do Samuel Dabula e da firmeza do centro associativo dos negros.

A Marrabenta estourava nos subúrbios da Mafalala, na então, Associação Beneficente Comoriana e no cabaré local, que corporizou o novo género musical e, fez dele um ritmo quente, miscigenado e arrombador. Os dançarinos e frequentadores do cabaré eram, regra geral, tidos como oriundos das Ilhas Comores. Os sons, igualmente, se recriaram na génese e na combinação do movimento migratório de Moçambique para África do Sul e vice-versa.

Este foi um dos berços de ouro da nossa e nova musicalidade que, ao longo de décadas, nos orgulha e nos faz moçambicanos.  
Moisés Manjate, conhecido por muitos, porém, já desconhecido por milhares, contribuiu, a seu tempo e espaço, para estilizar os ritmos e familiarizar uma nova proposta musical que navegava entre os submundos de tantos ritmos e sons. O grupo Djambu, e tantos outros, foi pilar desta corrente.

Velho Moisés Manjate, faz tempo, não frequenta palcos e nem se multiplica em entrevistas e aparições públicas. Não o faz fisicamente, porém, as letras e os hinos que ajudou a recriar continuam tão presentes e inconfundíveis nos nossos repertórios e imaginários musicais. Tão vivos e presentes, como a natureza e o tempo intermitente e irredutível.

Marrabenta é essa obra tão identitária como libertadora, tão suave como fulminante, e a canção “Elisa wê gomara saia”, para citar apenas a mais cantada e recriada, do nosso património musical, elucida essa glória do tempo que insiste não passar.

Na celebração do seu centenário, parece proibido não resgatar o historial da marrabenta e fazer jus ao Mestre que, de forma exímia e majestosa, executou, com perfeição, os ritmos folclóricos que alegraram milhões de moçambicanos de diferentes gerações e raças.

A Marrabenta, mais que um ritmo, significou um movimento libertador e, um símbolo de afirmação e ideniedade. A Marrabenta perpassou a censura e à opressão, a tenacidade do colonial-fascismo e a tenebrosidade da polícia política, para se cristalizar e ganhar seu espaço e dimensão nacional e internacional. Marrabenta e Moisés Manjate, e todos que souberam defender esta proposta musical, possuem, a rigor, a mesma dimensão e estatura.

Moisés Manjate, como água de um rio, flui e move-se por vontade própria; ou será que é movido pelos instintos musicais que sempre o acompanharam. Pelos seus dedos passa a evidência de quem fez da música uma forma de permanecer imortal. Marrabenta e os seus intérpretes ancestrais são, pois, os intérpretes da natureza, aqueles que com a graciosidade de sua alma, remexeram nossos ouvidos e reconfiguraram o sentido de nossas pernas, músculos e do nosso ser.

Olhando para Moisés Manjate, hoje cadeirante e sentindo já os efeitos dessa longevidade, redescobrimos as mãos que criaram a mecânica do sonho e corporizaram esse beleza e harmonia musical. Entendemos o quanto a música preserva a beleza e elegância de quem a criou e essa obra se torna mais honrada e venerada.

Neste aniversário, que por si só merece todas as honras e glórias, não celebraremos apenas o homem e a sua música, mas a longevidade de quem apenas soube fazer bem a este país. Bem-haja Moisés Manjate, imortal e verdadeiro símbolo musical.

O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar.

Clarice Lispector

 

Se os membros do júri estão a pensar em premiar Saga d’ouro com o BCI de Literatura, talvez detestem o teor deste artigo. Claro que o objectivo do texto não é confrontar, questionar qualidades ou idoneidades. Longe disso. Sem nenhum tipo de presunção, aqui o interesse é apenas expressar publicamente o que não me sai da cabeça há alguns dias. Mas vamos por partes.

Que o Prémio BCI de Literatura tem perdido credibilidade já não é novidade nenhuma. Qualquer coisa tem acontecido para que leitores como eu questionem algumas decisões. Ano passado (até…), uma das duas obras distinguidas foi a belíssima Matéria para um grito. Em vários corredores ouviu-se gente a dizer: “teria sido melhor se o prémio fosse todo entregue a Álvaro Taruma”, poeta que se aborreceu por eu ter escrito que Matéria para um grito merecia o BCI de Literatura. Na altura, percebi, Taruma foi “atacado” por alguns confrades e até decidiu descarregar as mágoas em mim, através de uma sms pouco simpática. Mandei-lhe passear, mas, ao fim de algum tempo, a amizade resistiu e continua a ser com ele que falo sempre que me ocorre ir a Inhaca (espero a mesma resistência na relação com o Cossa e com o Furdela, considerando o que defendo neste texto). Em todo o caso, não deixa de ser curioso. Taruma reagiu “mal”, quando falei bem de um livro seu e com fair play, quando falei “menos bem de um outro”. Vai-se entender os poetas.

Enfim, recuei um ano porque decidi, uma vez mais, mencionar o que considero melhor livro publicado em 2019, no país. Começo por descartar Saga d’ouro, de Aurélio Furdela, pois a mim faz confusão que um autor candidato a um prémio literário integre o grupo que o promove, divulga ou regulamenta como se tratasse de um assessor. Quer dizer, é uma questão de princípios (e eu nem tenho princípios melhores do que ninguém). Ou se trata de concorrer ao prémio ou se trata de o divulgar. As duas coisas em simultâneo parecem-me estranhas e pretensiosas. E, nesta edição, Furdela está ou esteve dos dois lados. Atenção. Não tenho nada contra o autor (que o considero amigo na mesma proporção que Taruma e Cossa) e tão-pouco contra o seu livro. Aliás, o romance de Furdela até é apreciável. Lá está uma boa narrativa. Por isso, é Prémio INCM/ Eugénio Lisboa. No entanto, não basta um livro ser bom para o seu autor merecer uma distinção. Há valores relacionados com a transparência que devem ser salvaguardados. Então, a continuidade de Saga d’ouro na lista dos eventuais Prémio BCI de Literatura desta edição é no mínimo esquisita. Se eu estiver enganado em relação ao que digo ou julgo saber, mostrar-me-ei receptivo às críticas.

Não obstante, ainda que fosse certo Aurélio Furdela participar nesta edição do Prémio BCI de Literatura com o seu mais recente romance, vamos lá, por ser incapaz de fazer a opinião do júri, ainda assim eu não distinguiria Saga d’ouro. Nem a esse e nem a tantos outros que estão na lista. Por exemplo, Nhambaro e O barrigudo e outros contos, de Hélder Muteia, O universo num grão de areia, de Mia Couto, O comboio que andava de chinelos, de Pedro Pereira Lopes, Quatro histórias, de João Paulo Borges Coelho ou Duas vidas à procura do mar e outros contos, do meu velho Albino Magaia. Seria decepcionante se um desses livros fosse anunciado o melhor de 2019.

Entre os títulos nomeados para a presente edição, excluindo Mahanyela, de Nely Nyaka, e Um rapaz tranquilo, de Carmo Vaz, que não os li, o melhor livro é, na minha opinião, O menino que odiava números. Em 102 páginas, Celso Cossa insere-nos numa história absolutamente fascinante, na qual somos incitados a ser crianças, adolescentes, jovens e até mesmo velhos. A partir dos números e de um miúdo que os odeia, no princípio, o escritor vai-nos mostrando que o universo é a soma dos objectos, do que conhecemos e do desconhecido. Duas histórias são contadas no livro. Primeiro, a dos irmãos Lae e Erty, que, com o avô Titino, recriam a imagem das tão importantes e agora escassas sessões de karingana ua karingana. A outra história, a principal, é a de Laerty, o menino que odiava números. Bem dito, Laerty é o protagonista da história que Titino conta aos seus dois netos. O resultado desse cenário é um universo fictício muito bem retratado, a realçar qualidades de um autor maduro, que sabe o que está a fazer quando tem a pena na mão.

O menino que odiava números revela um escritor sensível ao que se passa e não acontece na província onde mora, quiçá, por isso, a predisposição de fazer da ficção um evento sempre em renovação. No livro, Cossa aproveita-se e bem da aversão das crianças em relação à Matemática e dá a isso um enredo necessário, no qual o poder da história está na perspicácia de envolver o leitor e despertá-lo para uma nova maneira de repensar o mundo e a existência. E o livro de Cossa é sobre a simplicidade de pequenas coisas, aquelas cujo sentido complementa a nossa humanidade e preenche os nossos vazios.

Para mim, O menino que odiava números não só é o melhor livro publicado ano passado como é dos melhores publicados nos últimos anos em Moçambique. Há ali uma ficção construída com rigor estético e técnico (e as ilustrações de Luís Cardoso são verdadeiramente preciosas), com imensas estratégias narrativas originais. Está aí um livro que pode ser adoptado ao ensino em Moçambique, por reunir todo um conjunto de factores pertinentes para despertar a imaginação das crianças e até mesmo dos adultos que ainda não descobriram os encantos a volta dos números e da Matemática da vida.

O mais fácil seria os membros do júri atribuírem o Prémio BCI de Literatura a Saga d’ouro, de Aurélio Furdela, a Rabhia, de Lucílio Manjate, ou a’O comboio que andava de chinelos, de Pedro Pereira Lopes. Por terem sido já distinguidos em outros concursos, se calhar, poucos questionariam a decisão do júri. Os três são livros interessantes, de facto, porém, O menino que odiava números (escrevi mais ou menos assim em 2019) é a melhor e mais surpreendente proposta literária entre as 14 obras semi-finalistas ou finalistas que li.

Contudo, nesta quinta-feira, a partir das 17h, no Auditório do BCI, em Maputo, será anunciada a óbvia verdade mais difícil de se enxergar. E pronto. Viva a literatura moçambicana!

 

Título: O menino que odiava números

Autor: Celso Cossa

Editora: Escola Portuguesa de Moçambique

Classificação: 17

É um facto que o país enfrenta enorme desafio no que concerne à alfabetização da língua portuguesa. Simultaneamente, o desafio duplica-se porque também temos a necessidade de investir cada vez mais na revitalização das línguas bantu. Esta pretensão deve vincar porque as línguas, em geral, são os instrumentos através dos quais a cultura é apreendida, transmitida e transformada.

No último artigo publicado neste jornal referimos que certas línguas bantu poderão extinguir-se nos próximos 500 anos por estarem muito circunscritas ao seu lugar de ocorrência e, acrescentamos, se não houver políticas de revitalização que consistam em garantir que as futuras gerações preservem todo um legado das anteriores gerações. Este cenário meio apocalíptico tem razão de ser, afinal em vários contextos as línguas bantu são subalternizadas. Assim, os jovens investem mais em idiomas europeias porque fornecem muitas oportunidades de afirmação social. Em outros casos ainda, línguas como xirhonga, xiyao e xichangana vão sendo engolidas pelo português.

Seja como for, no presente, há uma vitalidade que se deve reconhecer às línguas bantu. Se, por um lado, a língua portuguesa é a oficial, que abre portas para o ensino, instrução e emprego, por outro, as bantu são os grandes veículos usados, por exemplo, na aproximação dos africanos aos seus ancestrais, sobretudo em contextos tradicionais e rurais. Nestes universos, inclusive, as línguas bantu representam uma demonstração de respeito, de tal forma que quando os mais novos se dirigem aos mais velhos, por mais que ambos saibam falar português, usam a bantu para resolver determinados tipos de problemas.

Assim o é porque as línguas encerram em si o imaginário de um povo e todo um conjunto de crenças ou convicções que de modo nenhum podem ser traduzidas. Como que assumindo que a tradução pode falhar, determinadas questões são mesmo tratadas tendo em consideração as línguas que melhor representam a cultura.

Entre os locais em que as línguas bantu revelam a sua vitalidade estão as igrejas, onde as pessoas ainda aprendem a escrever, a ler e a aperfeiçoar a fluência. Durante a pregação e/ou homilias, muitas vezes, os padres ou pastores usam-nas para reiterar ensinamentos da Sagrada Escritura, por reconhecerem que a palavra divina chega da melhor forma quando se usa uma língua materna mais enraizada na comunidade. Do mesmo modo, a rádio e a televisão públicas, bem como diversas rádios comunitárias, informam os seus ouvintes ou telespectadores com recurso às línguas locais, nas zonas onde o português é falado por uma minoria.

Há alguns anos, o Ministério da Educação adoptou certas línguas bantu para a educação bilingue. A ideia era facilitar a integração dos alunos que têm como língua materna uma local bantu. Com ou sem êxito, a decisão demonstrou haver um interesse ministerial de tornar o ensino o mais inclusivo possível. A decisão, ao menos, venceu o preconceito colonial que proibia de, no recinto escolar, os alunos comunicarem-se nas suas línguas locais. Desta forma, levou-se à sala de aulas todo um património etnolinguístico e cultural. Sem censura, porque, nos casos em que os alunos não conseguiam dizer alguma coisa em português, poderiam recorrer à língua bantu.

Ainda há alguns anos, a Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane abriu o curso de Línguas Bantu e os estudantes dos cursos como Linguística, Literatura ou Ensino de Francês, por exemplo, passaram a ter de escolher estudar um idioma local de Moçambique. Todo isto são evidências da vitalidade das línguas bantu. No entanto, essa mesma vitalidade deve ser prolongada e perpetuada, para que amanhã a história e a cultura de Moçambique não se percam.

Dando, nesta “Parte III”, continuidade à “série” – «Direito Digital na ordem jurídica moçambicana» –, reputamos pertinente recomendar, como forma de se evitarem inúteis e redundantes sínteses recapitulativas, a leitura da “Parte I”, disponível no link http://opais.sapo.mz/-direito-digital-na-ordem-juridica-mocambicana-i, na qual, para além de estarem corporizarados os aspectos propedêuticos e preambulares sobre a figura do Direito Digital (conceito, antecedentes, âmbito normativo), demos início a abordagem d’algumas das principais áreas de incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana – concretamente, Direito Penal e Direito Processual Penal –, bem como aconselhar a leitura da “Parte II”, encontrável por intermédio do link http://opais.sapo.mz/direito-digital-na-ordem-juridica-mocambicana-ii, onde, essencialmente, focamos a nossa atenção direccionada à interpenetração prevalecente entre o Direito Digital e o Direito Civil/Direito Processual Civil, acoplada de uma incursão sintética pela Lei de Transacções Electrónicas, aprovada sob a égide da Lei n.º 3/2017, e princípios estruturantes da Política para a Sociedade da Informação, aprovada pela Resolução n.º 17/2018, determinando-se, desde já, que a presente “Parte III” é reservada à inter-relação entre o Direito Digital e o Direito do Consumidor.

 

1.Direito do Consumidor

Dificilmente encontrar-se-á uma área do Direito que diga respeito à generalidade das pessoas, quer psicofísicas quer colectivas, como a do Consumidor, na medida em que os aspectos que este ramo do Direito visa regular – as chamadas relações jurídicas de consumo – invadem a esfera de todos, quer consciente quer inconscientemente, o que o torna dotado de plurivalência situacional.

Como sói dizer-se: “no final do dia, somos todos consumidores”. Por um lado, os fabricantes/produtores/construtores/distribuidores/fornecedores estabelecem relações com os consumidores que constituem os destinatários das respectivas actividades [em regra, comerciais], mas, por outro, aqueles também são autênticos consumidores em múltiplas situações dos respectivos quotidianos vivenciais, agudizando a qualificação que, no parágrafo precedente, imputamos a este especial ramo do Direito, que faz parte da vida de toda a panóplia de cidadãos do mundo terráqueo.

O leitor não encontrará menção expressa ao Direito Digital nem na Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 22/2009) e muito menos no respectivo Regulamento (aprovado pelo Decreto n.º 27/2016), mas, conforme explicitamos na “Parte I” respeitante a esta “série”, é no campo prático das relações que se desencadeiam e se desenvolvem entre as pessoas (singulares/colectivas), em ambientes digitais, através do uso dos meios de informação e/ou das TIC’s, acrescida da necessidade de se regularem tais relações, que emerge o Direito Digital, sendo que, se essas relações disserem respeito ao âmbito de aplicação da Lei de Defesa do Consumidor, nos termos definidos no respectivo artigo 3, capta-se a incidência, quer subjectiva quer objectiva, do Direito Digital nas relações jurídicas de consumo.

Com efeito, o n.º 1 do artigo 3 da Lei de Defesa do Consumidor estabelece que «a presente lei aplica-se a todas as pessoas singulares e colectivas, públicas e privadas, que habitualmente desenvolvem actividades de produção, fabrico, importação, construção, distribuição ou comercialização de bens ou serviços a consumidores, mediante cobrança de um preço». O n.º 2 do mesmo artigo estende o âmbito de aplicação a «organismos, fornecedoras, prestadoras e transmissoras de bens, serviços e direitos, nomeadamente, da Administração Pública, autarquias locais, empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado e empresas concessionárias de serviços públicos». Chama-se a atenção que o conceito de “consumidor” vem definido no glossário do retro citado diploma legal e o alcance de “capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado” vem expressamente disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 50 da Lei n.º 3/2018 (Lei que estabelece os princípios e regras aplicáveis ao Sector Empresarial do Estado).

Do que se disse acima, infere-se que sempre que as relações jurídicas de consumo (as mantidas por todas as pessoas singulares e colectivas, públicas e privadas, que habitualmente desenvolvem actividades de produção, fabrico, importação, construção, distribuição ou comercialização de bens ou serviços a consumidores, mediante cobrança de um preço) forem mantidas no “ambiente digital”, cujo conceito definimos na “Parte I”, através dos meios de informação e/ou TIC’s, temos, em regra, estabelecida a incidência do Direito Digital no Direito do Consumidor.

O legislador “das relações de consumo” moçambicano não ficou alheio às especificidades e heterogeneidade das relações de consumo determinadas pelos comportamentos que se originam e se desenvolvem no mundo tecnológico/digital (as mais variadíssimas “Apps” e as peculiaridades dos circuitos/labirintos que radicam do fenómeno tecnológico e do manuseamento da internet), tendo, por isso, e bem, aprovado, no seguimento da aprovação da Política de Informática (que foi aprovada no ano 2000 e revogada/reformada em 2018 pela Política da Sociedade da Informação, através da, já abordada nas “Partes I & II”, Resolução n.º 17/2018), a Lei de Transacções Electrónicas sob os auspícios da Lei n.º 3/2017, diploma que constitui uma das traves-mestras, se é que não se traduz na verdadeira trave-mestra, da penetração do Direito Digital no ordenamento jurídico moçambicano (regulamentada pelo Decreto n.º 59/2019, que cria o Sistema de Certificação Digital de Moçambique e aprova o respectivo Regulamento), sendo imperioso mencionar que, em decorrência da Política da Sociedade da Informação, outros dois importantíssimos instrumentos no que concerne ao raio de incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana – Plano Estratégico para a Sociedade de Informação 2019-2028 e o respectivo Plano Operacional – foram aprovados por intermédio da Resolução n.º 52/2019, nunca, mas nunca mesmo, nos olvidando da fulcralíssima Resolução n.º 5/2019, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (realçando-se que, pela sua superior importância, a matéria da “Protecção de Dados” – instituto umbilicalmente vinculado ao Direito Digital – merecerá análise exclusiva e detalhada em artigo próprio, nas edições vindouras aqui neste espaço).

Com efeito, a Lei de Transacções Electrónicas, que reserva um “diminuto” capítulo próprio destinado à protecção do consumidor, e como corolário do reconhecimento de que, apesar de algumas matérias destinadas à defesa dos interesses e direitos dos consumidores já estarem previstas na Lei de Defesa do Consumidor e respectivo Regulamento, as relações jurídicas de consumo que se desencadeiam e se desenvolvem no mundo digital serem caracterizados por peculiaridades típicas desse meio, consagra que os contratos relativos ao comércio electrónico celebrados entre empresas comerciais e os consumidores devem fornecer informação precisa, suficiente, clara e de acesso fácil para permitir a identificação das partes contratantes (art. 44 da Lei de Transacções Electrónicas), sendo que “comercio electrónico” é, nos termos definidos no respectivo glossário, actividade económica ao abrigo da qual uma pessoa oferece ou garante através de um meio electrónico, a prestação de bens e/ou serviços, merecendo, ainda realce que “meios electrónicos” são todos os meios tecnológicos usados para a obtenção de dados no formato analógico ou digital, seu processamento, armazenamento, transmissão, bem como a sua apresentação.

Não nos esqueçamos que nos referimos a transacções electrónicas (ocorridas no mundo digital, com particular enfoque para a internet) e, como tal, é imprescindível que o consumidor tenha, à sua mercê e ao seu dispor, todos os elementos identificativos das empresas com as quais celebrará contratos conducentes a adquirir bens e/ou solicitar serviços. Este aspecto ganha relevância subida, porquanto, se esses elementos não estiverem precisa, clara, suficientemente identificados e identificáveis ou não forem de fácil acesso, o risco de ocorrência de, por exemplo, burlas e outros tipos de fraudes, é de uma verosimilhança iminente. Exemplos do que se disse atrás não faltam; muito pelo contrário, são de verificação quotidiana, quer na avultada compra de viaturas ou mesmo na aquisição de uma mera peça de roupa.

A mesma Lei, como forma de proteger o consumidor nas relações emergentes no mundo digital, plasma o direito do consumidor a livre resolução do contrato, concedendo ao consumidor a faculdade de cancelar a transacção (compra de bens ou benefício de serviços pela internet) num período de 14 dias úteis após da recepção dos bens ou serviços, se tais contratos não estiverem em consonância com as obrigatórias normas conducentes ao dever que os fornecedores possuem de colocar o consumidor clara e suficientemente informado sobre todos os aspectos fulcrais inerentes quer à empresa quer ao negócio que lhe dá causa.

Cônscio da complexidade do manuseamento dos meios tecnológicos/digitais, a Lei sobre a qual se detém as presentes sílabas, estatui ainda que o empresário comercial deve fornecer ao consumidor um mecanismo seguro de pagamento e informação acerca do nível de segurança que o referido mecanismo confere (n.º 2 do artigo 45), sendo que aquele empresário é responsável por quaisquer danos sofridos pelo consumidor devido a falta de cumprimento do disposto no mencionado artigo.

A preocupação do “legislador das relações jurídicas de consumo” moçambicano, no que tange à inter-relação entre o Direito Digital e o Direito do Consumidor, vislumbra-se, outrossim, nas normas corporizadas na Lei das Telecomunicações (Lei n.º 4/2016) – sabido que é que o domínio das telecomunicações é campo privilegiado do manuseamento das TIC’s – determinando-se, num capítulo cuja epígrafe é “Qualidade do Serviço e Protecção do Consumidor”, que os operadores de telecomunicações devem adoptar as medidas necessárias para garantir a segurança e a integridade do funcionamento das respectivas redes e serviços e assegurar sempre que possível alternativas para a sua disponibilidade em situações de emergência e de casos fortuitos ou de força maior (art. 42 da Lei das Telecomunicações). É comum, no âmbito do uso dos serviços telemáticos, verificar-se a ocorrência de situações lesivas aos direitos do consumidor, sem que estes sejam ressarcidos dos prejuízos que lhes são causados, com o recurso ao leviano argumento de caso de força maior.

A Lei das Telecomunicações, ciente desse argumento muitas vezes usado pelas empresas de telefonia móvel, visando conferir segurança e integridade das redes e disponibilidade dos serviços, estabeleceu no artigo precedentemente citado, a obrigação daquelas empresas garantirem que todos os meios destinados a estabelecer segurança para o consumidor sejam observados, sob pena de aquelas empresas incorrerem no dever de ressarcir os consumidores pelos prejuízos que os causam (arts. 562, 564 e 566 do Código Civil), devido, muitas vezes a negligência patente nas suas acções/omissões, negligência essa que é, pelas mesmas empresas, escamoteada e camuflada com recurso ao argumento de ocorrência de caso fortuito ou força maior, quando, na verdade, impunha-se às aludidas empresas, observar todos os deveres de cuidado para que o consumidor/cliente não saísse lesado.

Conforme se pôde verificar supra, com os exemplos carreados, é vasta a incidência do Direito Digital nas relações jurídicas de consumo, como também é largamente vislumbrável a preocupação do Estado moçambicano em acompanhar a evolução das TIC’s, manifestada pela aprovação de normas, de vária índole, incidentes sobre as relações jurídicas de consumo, quando brotadas no ambiente digital.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

Fazia já algum tempo que a noite tinha caído sobre a capital do país. É verão; a escuridão que dorme sobre Maputo por estes dias não tem sido demasiado pesada. É uma ninharia se compararmos com a escuridão dos dias de Inverno. Em contrapartida, durante o dia a cidade tem aquecido demais, não há quem não reclame. Tem sido uma espécie de estágio para o inferno. À noite sobram alguns resquícios desse calor que os mais sabidos dizem que se deve aos efeitos das mudanças climáticas. A situação está grave, contudo ainda vamos a tempo de evitar o pior.

Enquanto uma parte da cidade já dormia, Sua Excelência estava acordado. Desde que o ano iniciou não tem conseguido dormir como deve ser. Nada disto tem que ver com o calor que tem assolado a capital. Mesmo se tivesse, a sua casa tem ar condicionado. Para Sua Excelência, calor só mesmo fora de casa e do seu carro no qual no confortável assento do motorista o seu corpo pesado estava sentado. Um carro preto no meio de uma noite coberta por uma leve escuridão. Enquanto não saía do carro as suas mãos grossas estavam sobre o volante. O carro estava estacionado algures num dos bairros da periferia da cidade.

Sua Excelência não sabia como tinha chegado ali, mas sabia que estava indeciso se saía ou não do carro.

A Escuridão e ansiedade nunca foram bons aliados e Sua Excelência sabia perfeitamente disso. No mandato anterior tinha desempenhado a função de ministro de uma pasta muito importante na máquina governativa do país. Na profissão que ele tinha desempenhara muito antes de ser ministro controle emocional é uma arma muito poderosa e lá tinha aprendido aquilo que naquele momento ecoava na sua mente – Escuridão e ansiedade nunca foram bons aliados.

Nos primeiros meses do ano todos vivemos ansiosos. É o início de um novo ciclo. Há projectos novos por ganharem corpo. Há alegrias que esperamos que nos cheguem aos olhos. Há frustrações do ano anterior que tememos que nos assombrem no novo ano. Há uma série de coisas que neste momento se transformam em imagens que ultrapassam a imaginação na tua cabeça.

Ninguém merece sofrer uma pesada derrota no início do ano. É como começar um casamento sem consumá-lo. Ninguém merece. Ninguém merece um casamento sem direito às fantasias da noite de núpcias, mesmo que o pote esteja já sem mel. Ninguém merece.

E Sua Excelência também sabia disso tudo. A ansiedade roía-lhe os miolos; se as coisas continuassem como estavam ficaria com a cabeça fazia no meio daquela noite. As nomeações já começaram a sair e nada do meu nome, pensava ele. Se calhar estava a ser precipitado já que naquele ano saía tudo às gotas. Porém se considerarmos que já tinha saído três fornadas de nomeações e que o nome dele não constava de nenhuma, ainda por cima a pasta para qual tinha ocupado no mandato anterior neste já tinha outro titular, somos obrigados a dar mão à palmatória e dizer que ansiedade do homem é fundamentada.

– Que se foda, vou lá! – disse Sua Excelência enquanto arrastava o seu corpo rechonchudo para fora do carro.

No exterior do carro a rua estava deserta. Se fosse noutra altura talvez veria um par de jovens esquinados nalgum muro a fazerem coisas que podiam fazer no quarto. Mas nem esses aventureiros por ali andavam.

Não levou muito tempo na rua. Passados alguns minutos depois de ter saído do carro Sua excelência estava a bater a porta de uma casa muito conhecida naquela rua.

– Sua Excelência! – disse o homem que o atendeu com um ar surpreso. – o que faz aqui a esta hora?

– Sabes que já há muitos nomes? – rematou o homem sem responder ao que lhe tinha sido perguntado.

– Sim sei, Sua Excelência.

– E o meu nome?

– Já amanhã, Sua Excelência.

Sua Excelência olhou para o curandeiro e desatou a chorar.

 

 

Quelimane observa lançamento de fogo de artifícios pelos promotores do espectáculo da Yola Semedo.

Ficou feio na fotografia. Quando se esperava que a exortação do governador da província da Zambézia, Pio Matos, fosse no mínimo respeitada para que se observasse respeito por aquele cujo seu percurso político impactou sobre maneira na luta pela independência de muitos países africanos incluindo da pátria amada.

Eis que ao longo da madrugada, mais precisamente entre duas a três horas deste Domingo, ouviam-se ao nível da cidade de Quelimane fortes estrondos que se confundiam com som das armas. Quem vive nas redondezas do local do espectáculo, campo do Sporting o de Quelimane e que estivesse a dormir naquele instante sem dúvidas, a de ter acordado por grande susto.

Mas afinal eram estrondos de fogos de artifícios. Isso mesmo, fogo de artifícios a simbolizar o ponto mais alto do espectáculo protagonizados pelos promotores moçambicanos, que vou me escusar em mencionar seus nomes ou designação das respectivas empresas.

O campo estava abarrotado de espectadores do "Pequeno Brasil" que acorreram ao local para vibrarem ao som dos músicos angolanos e moçambicanos, convidados para abrilhantar o espectáculo. Os espectadores eram tantos, que até me questionei, afinal há tanto dinheiro assim para gastar nesta altura do ano, depois das matrículas e gastos do natal e de transição do ano 2019 para 2020? Bem, cada um planifica a vida da sua maneira.

Não é esta a minha preocupação. A minha preocupação reside na perda dos valores morais. No dia 14 deste mês de Fevereiro o governador da Zambézia, Pio Matos, veio ao público exortar a população da Zambézia para não observância de eventos culturais e desportivos pelo menos enquanto decorre o luto nacional.

Embora não fosse uma imposição, até porque exortação mais do que aviso com intuito de advertir, visa chamar a consciência. Pio Matos chamou a tal consciência daí que viu-se uma reacção positiva do lado do conselho autárquico de Quelimane a adiar a festa carnavalesca de 14 a 23 para os dias 20 a 23 deste mês de fevereiro, em observância do luto nacional.

Ora, até concordo que pelos gastos financeiros feitos para dar lugar o show, não se tinha como parar o espectáculo. Até porque a morte do nosso herói nacional Marcelino dos Santos ocorreu numa altura em que todas as condições já estavam criadas para dar lugar o concerto musical desde colocação do palco, pagamento das passagens de voo dos artistas, publicidade, entre outras despesas.

Mas o luto é nosso e cabe a nós sermos patriotas suficientes para observarmos o respeito pelo herói. Não acho no mínimo simpático quando o luto bate a porta da nossa casa, comecemos a festejar ao ponto de dançar até lançar fogo de artifícios. O que é que estaríamos a comemorar, se estamos de luto?

Na conversa que tive com um dos promotores do show, deixou claro que pelos gastos feitos desde compra das passagens aéreas, pagamento de palco, vendas de bilhetes, etc seria difícil parar o espectáculo sendo por isso que antes do início do concerto ir-se-ia observar um minuto de silêncio.

Mas como lá não estive, não posso confirmar se houve ou não. Todavia quero desta forma apelar os irmãos desta pátria, a termos em conta o respeito pelos mortos tal como manda a nossa tradição Moçambicana, Africana e sobre tudo de alguém como a figura de Marcelino dos Santos, herói nacional. Não podemos perder os nossos hábitos e costumes, o nosso respeito por aqueles que partem deste mundo sobre tudo o respeito pelos nossos heróis. Não podemos também perder o respeito pelos nossos símbolos nacionais.

 

Conheci e convivi com o poeta Marcelino dos Santos (1929 – 2020) em várias esferas sociais, tais como literárias, familiares e políticas. Sempre pensei nele como um poeta que fora emprestado à política, e que acabara assumindo essa condição por toda a sua vida. Por isso, cá por mim, conheço melhor a faceta do poeta do que qualquer outra, em razão da nossa actividade comum no campo da literatura.

Marcelino dos Santos (Kalungano ou Lilinho Micaia), foi um poeta assumidamente marxista mas que soube associar, ao mesmo tempo, a poesia à sua acção política. Tenho dito que toda a estrutura mental do Kalungano era verdadeiramente a de um poeta. Ele era um homem lúcido e coerente, com relação a tudo quanto pensasse e fizesse. Lembro-me que, nos anos oitenta, no quadro do movimento literário “Charrua”, quando começámos a introduzir na nossa literatura outras formas e outros conteúdos, em contraposição à literatura laudatória e panfletária que então estava na moda, alguns círculos políticos radicais tentaram questionar as novas propostas, mas foi justamente Marcelino dos Santos quem saiu em defesa da “Charrua” e das novas tendências, defendendo e preconizando uma literatura aberta e livre de quaisquer interferências sejam de que natureza fossem. Foi esta lucidez e visão de Marcelino dos Santos que, em grande medida, permitiu construir as bases fundamentais para a literatura que hoje se produz em Moçambique.

Kalungano foi um revolucionário da primeira linha, na medida em que, com a sua “praxis” poética e política, promoveu com relativo sucesso algumas e profundas transformações económicas e sociais no Moçambique que então acabava de nascer. Ele soube ouvir e interpretar o rumor longínquo das aspirações do seu povo, e tudo aquilo que continha testemunho da marcha ascendente do povo pelo qual sempre lutou, abrindo assim os caminhos possíveis para uma sociedade de, pelo menos, iguais oportunidades para todos.

Numa luta colectiva e com objectivos colectivos, não pode haver vontades individuais, uma vez que o indivíduo acaba diluindo-se no próprio colectivo, embora mantendo a sua individualidade. São princípios que regem a essencialidade colectiva num processo igualmente colectivo. Marcelino dos Santos, consciente deste princípio revolucionário, escreve o seguinte:

“O importante não é o que EU quero

o que TU queres

 

mas o que nós queremos

 

A Revolução é assim

tem as suas leis”

(…)

 

A força e o ímpeto das lutas inspiradas e travadas desde a resistência secular à luta armada contra a dominação estrangeira, levaram Marcelino dos Santos a saudar vivamente o novo porvir, corporizado num mundo e num homem novos. Os poemas de Marcelino dos Santos são autênticos cânticos que inspiram e acompanham a marcha do povo em direcção ao sol nascente. Mas também há nesta sinfonia poética um compasso profundamente humanista, aliás, como não podia deixar de ser em um poeta marxista e nacionalista da estirpe de Marcelino dos Santos.

 

“Nossa terra é de esperança

aberta ao franco amplexo

 

na esteira dos passos dados

vão brilhando círculos livres

 

e como irmãos mais novos

de um século mais velho

vamos levando em largas mãos

a herança dos nossos avôs

 

e com folhas do coração

continuar a obra humana

o grande desenho da vida.”

 

Um dos elementos simbólicos na poesia de Kalungano é a mulher, pois ela é um dos seus laços com o essencial, isto é, com a vida e com a sua pátria amada. Por isso, ela tem que ser cantada assim:

 

“ Eu canto uma mulher e canto um país

e canto as águas dos regatos

na paisagem dos teus olhos”

(…)

Canto uma mulher

talhada à imagem do amanhã necessário

onde a palavra Pátria e a palavra Povo

são páginas abrindo-se à mesma ressonância”

(…)

 

A poesia de Kalungano é marcada  fortemente  de esperança e certeza, renascidas continuamente com o labutar diário do seu povo, conferindo-lhe assim uma significação de luta e engajamento:

 

“Mãe negra

Embala o seu filho

E esquece

Que o milho já a terra secou

Que o amendoim ontem acabou.

 

Ela sonha mundos maravilhosos

Onde o seu filho irá à escola

À escola onde estudam os homens

 

Mãe negra

Embala o seu filho

E esquece

Os seus irmãos construindo vilas e cidades

Cimentando-as com o seu sangue

Ela sonha mundos maravilhosos

Onde o seu filho correria na estrada

Na estrada onde passam os homens

 

Mãe negra

Embala o seu filho

E escutando

A voz que vem do longe

Trazida pelos ventos

 

Ela sonha mundos maravilhosos

Mundos maravilhosos

Onde o seu filho poderá viver.”

 

Deter-me-ei por aqui, nesta rápida e singela homenagem a este poeta da esperança e militante do futuro, cujos poemas são animados de uma fé inabalável no seu povo e no seu país. Se, por um lado, a sua poética exalta a confiança no futuro que ele próprio sempre conservou no meio de todas as vicissitudes consequentes da conjuntura interna e externa, por outro lado, nela encontramos realmente um optimismo soberano, uma certeza da vitória final do povo moçambicano sobre todos os entraves ao seu renascimento e desenvolvimento.

 

Descansa em Paz, Poeta!

 

 

Era suposto darmos continuidade à análise da incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana – Parte III –, conforme prometido no epílogo do artigo transacto, entretanto, em virtude de a data da presente publicação coincidir com a data alusiva à celebração do “Dia de São Valentim”, reputamos oportuno debruçarmo-nos acerca de um tema que, no nosso liliputiano entender, não tem sido objecto de exploração massiva a nível da Doutrina moçambicana e, pelo mesmo suscitar uma disparidade de interpretações discordantes, não havia momento mais adequado do que este para o escalpelizar.

Adverte-se, antes de mais, que a vertente análise incidirá unicamente em torno de relações heterossexuais – excluindo-se, de todo, as de natureza homossexual – não por uma questão de discriminação em razão da orientação sexual, mas tão-somente pelo facto de a Lei moçambicana somente permitir a celebração de casamento – civil, religioso e tradicional – e reconhecer uniões de facto exclusivamente entre um homem e uma mulher, significando que não existe, juridicamente, sexualidade conjugal entre pessoas do mesmo sexo, na medida em que o termo “conjugal” deriva de “cônjuge(s)”, denominação atribuída a pessoas ligadas entre si pelo vínculo matrimonial.

O tema está longe de ser pacífico e distante de colher entendimentos uníssonos, sendo que, para piorar, a nossa Lei não se refere a ele de forma esclarecedora, implicando que tenha de ser por intermédio do recurso ao labor hermenêutico do jurista – sempre atento à unidade do sistema jurídico (n.º 1 do art. 9 do Código Civil) e em obediência ao elemento [de interpretação jurídica] teleológico – que se chegam às conclusões inerentes ao “direito à sexualidade conjugal”.

O ponto de partida para deslindar este tema é a noção de casamento que nos é aprovisionada pelo art. 8 da Lei da Família, aprovada sob os auspícios da Lei n.º 22/2019, doravante tratada somente pela sigla “LF”, ao aconchego do qual, traduz-se na «união voluntária e singular entre um homem e uma mulher, com o propósito de constituir família, mediante comunhão plena de vida», sendo que o meio natural de expansão da família é a procriação (que, em regra, deriva do relacionamento sexual entre os cônjuges), advindo daquele contrato matrimonial que, nos termos do n.º 1 do art. 97 LF, «os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, confiança, solidariedade, assistência, coabitação e fidelidade».

O «dever de coabitação entre os cônjuges (n.º 1 do art. 100 LF) importa a obrigação recíproca de comunhão de cama, mesa e habitação» – sendo que é a obrigação de “comunhão de cama” que, aqui, mais nos interessa –; «o dever de respeito (n.º 1 do art. 98 LF) importa para os cônjuges a obrigação recíproca de valorizarem e dignificarem a personalidade de cada um, através do diálogo e da tolerância»; «o dever de confiança (n.º 2 do art. 98 LF) assenta no respeito mútuo e traduz-se no facto de acreditarem um no outro».

Curiosamente, a LF não define em que se consubstancia o dever de fidelidade, no entanto, chega-se facilmente à conclusão, sem qualquer esforço interpretativo, que a fidelidade consiste no dever a que cada um dos cônjuges está adstrito a não se inter-relacionar carnalmente com outra pessoa, senão o seu parceiro conjugal.

Ultrapassadas as generalidades destinadas a delimitar e contextualizar a temática em torno da qual se detém o presente artigo opinativo, avulta para a discussão do que nos propusemos a abordar, a relação sinalagmática entre os deveres de “fidelidade” e de “coabitação” (na vertente da obrigação recíproca de comunhão de cama), pois é dessa relação que se extrai o instituto do “débito conjugal”, entendido doutrinariamente como o direito-dever dos cônjuges cederem reciprocamente os seus corpos à mútua satisfação sexual, implicando, que cada um dos cônjuges, por um lado, está proibido de manter relações sexuais com outra pessoa que não seja o seu parceiro – fidelidade – e, por outro, cada um deles está, em regra, obrigado a manter relações com o seu parceiro, assim que este o desejar – obrigação reciproca de comunhão de cama.

Assim, o “débito conjugal caracteriza-se por possuir uma natureza bifurcada (é direito e é simultaneamente dever), acarretando que de entre os objectivos do casamento, está incontornavelmente o relacionamento sexual, “embora ninguém case só para isso, mas case também para isso”. É um direito-dever que decorre da Lei, sendo que esta factologia não deve causar no leitor qualquer “perplexidade interpretativa”.

No dizer de Antunes Varela, «o dever de coabitação começa por compreender a obrigação que os cônjuges têm de viver em comum, sob o mesmo tecto, na mesma casa (lar), mas abrange sobretudo as relações sexuais que constituem o dever conjugal por excelência» (In “Direito de Família”, 1987, pág. 331).

O maior foco de tensão no que concerne ao direito à sexualidade emerge em virtude de nem sempre um dos cônjuges está “animicamente disponível” ou ainda “voluntariamente receptivo” a colaborar com as pretensões libidinosas do seu parceiro e, se considerarmos que, nos termos do artigo 6 da LF «os direitos familiares são, regra geral, indisponíveis e irrenunciáveis», não perdendo de vista que o débito conjugal traduz-se num direito-dever (dando a aparência da existência da obrigação dos cônjuges em estar, regra geral, disponíveis para satisfazer o direito à sexualidade que assiste ao outro parceiro), a recusa em realizar o acto sexual traduz-se numa autêntica violação dos deveres conjugais.

Relativamente a este particular aspecto, dispõe o n.º 2 do art. 97 LF, «a violação dos deveres conjugais por um dos cônjuges, para além de outras consequências previstas por lei, pode dar lugar à responsabilidade civil pelos danos causados ao cônjuge ofendido, nos termos gerais»

A menção «para além de outras consequências previstas por lei» parece-nos referir-se à faculdade que um dos cônjuges possui de intentar uma acção litigiosa de separação judicial de pessoas e bens [al. f) do n.º 1 do art. 186 LF] ou, inclusivamente, de propor uma acção de divórcio litigioso (n.º 5 do art. 200 LF) visando dissolver o casamento com o argumento na violação de um dever conjugal por parte do outro, caso a violação do dever aqui em sindicância se manifeste sem plausibilidade razoável, cabendo, obviamente, ao cônjuge ofendido, o dever de provar, nos termos do n.º 1 do art. 342 do Cód. Civil, aquela implausibilidade ou irrazoabilidade.

Sendo decretado o divórcio por culpa de um dos cônjuges, produzir-se-ão consequências na partilha dos bens, pois «o cônjuge declarado único culpado perde todos os benefícios recebidos, ou que haja de receber do outro cônjuge, em vista do casamento, quer a estipulação seja anterior, quer posterior à celebração do casamento» (n.º 1 do art. 193 LF).

E porque a LF salienta expressamente que a violação dos deveres conjugais por um dos cônjuges pode dar lugar à responsabilidade civil pelos danos causados ao cônjuge ofendido, estamos em face de danos não patrimoniais (danos morais), em virtude do prejuízo daí adveniente não ser susceptível de avaliação pecuniária, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o regime da responsabilidade civil contratual (art. 798 Cód. Civil), cabendo ao cônjuge lesado o ónus de provar os danos morais sofridos com a recusa do débito conjugal (n.º 1 do art. 496 Cód. Civil), como forma de fundamentar o direito à indemnização que se lhe assiste (arts. 562, 564 e 566 Cód. Civil).

Ainda no tocante aos pressupostos do dever de indemnizar o cônjuge ofendido, vale a pena recuperar as perspicazes palavras de Regina Beatriz Tavares da Silva, que acentua que «a satisfação do instinto sexual é uma necessidade fisiológica e como no casamento as relações são monogâmicas, impõe-se entre os consortes a fidelidade e lealdade, razão porque a recusa reiterada e injuriosa à manutenção do relacionamento sexual acarreta descumprimento do dever de respeito à integridade psicofísica e à auto-estima».

Mas o que se disse acima não é tão linear quanto parece, pois, paralelamente ao dever do débito conjugal, confluem direitos susceptíveis de justificar a recusa da prestação daquele dever, erguendo-se, desde logo, o dever de respeito (n.º 1 do art. 98 LF), atrás definido, como corolário do direito à liberdade sexual – direito de, livremente, optar por realizar ou não realizar o débito conjugal – a recusa em cometer a cópula é legítima se não se tratar de um mero capricho, o que nos faz concluir que o dever do débito conjugal não possui natureza absoluta.

 

Daqui – do direito à liberdade sexual – decorre, por ex., que, se um dos cônjuges constranger fisicamente o outro a praticar relações sexuais, pode, o constrangedor, incorrer em crime de violação (art. 218 do Código Penal – CP) em concurso de infracções (art. 127 conjugado com o art. 41, ambos do CP) com o crime de violência doméstica física (arts. 245 e/ou 246 CP, consoante for simples ou grave), isto apesar de muitos autores (inspirados na suposta natureza obrigatória do débito conjugal) entenderem que não existe a possibilidade de ocorrência do crime de violação entre esposados, o que, no nosso entender é um pensamento erróneo, visto que, ainda que duas pessoas estejam casadas entre si, há, sim, crime de violação se o sexo for cometido contra a vontade do outro.

É que, para ocorrência do crime de violação, basta que estejam preenchidos os requisitos delineados no art. 218 do CP, que assevera que «aquele que tiver coito com qualquer pessoa, contra sua vontade, por meio de violência física, de veemente intimidação, ou de qualquer fraude, que não constitua sedução, ou achando-se a vítima privada do uso da razão, ou dos sentidos, comete o crime de violação, e será punido com a pena de prisão maior de dois a oito anos».

É, a nosso ver, irrelevante para o preenchimento dos actos típicos descritos no artigo encimado se as pessoas são, ou não, casadas entre si.

Por tudo quanto foi derramado, fica, pois, translúcido, que o direito à sexualidade conjugal não se traduz num direito de natureza absoluta, o débito conjugal, ainda que consista num direito, depende, sempre, da colaboração intersubjectiva do outro cônjuge (princípio da liberdade sexual), sendo que essa colaboração é, em regra, devida – mas não absolutamente devida – implicando que o débito conjugal deva, sempre, respaldar-se no dever de respeito, que incumbe mutuamente aos cônjuges, pela dignidade humana do outro parceiro.

 

PS: Feliz dia de São Valentim.

 

Télio Chamuço

Advogado

E-mail: telio@teliochamuco.com

 

 

 

 

 

Nasci no regaço do pequeno monte Nauela, na correnteza mitológica provinda da cordilheira dos montes Namúli, no noroeste da alta Zambézia. Nesta geografia de altos e baixos relevos também nascem os rios Molócuè e Licungo que, tendo banhado a minha adolescência, serpenteiam em direção ao oceano Índico – esse portal das minhas chegadas e partidas. Estas são as latitudes e longitudes da minha nascença, onde o azul do céu encima o cume das serras; onde o cinzento das nuvens envolve o silêncio das montanhas; onde o verde extenso da vida cobre por completo o corpus das colinas.

Em pequeno fui sempre uma criança virada para dentro de si própria; lembro-me que passava horas a fio enclausurado no meu pequeno mundo interior, procurando estabelecer a relação entre mim e tudo quanto me circundava. Por causa das minhas fugas para o interior de mim, minha mãe dizia sempre que eu era um menino distraído, e que passava a vida aterrissando na lua. Os meus sentidos tinham simplesmente a missão de captar o mundo exterior e reencaminhá-lo para dentro de mim. A fusão destes dois mundos configurava a totalidade do meu universo.

Lembro-me de todas as fases da lua. Das noites de lua cheia que eram uma festa. Daquela luz prateada e derramada sobre o milharal – do jogo às escondidas nas noites das traquinices -, que era um dos meus maiores deslumbramentos. E dos pirilampos em noites de breu! E da via-láctea que do zénite impunha e alargava a sua amplitude! E das estrelas do meu signo e da minha anunciação! E das cigarras, dos pássaros, das libelinhas do riacho, mas tudo isto embalado pelas estações trazidas pelos astros.

A minha relação com os primeiros pingos de chuva, com o odor a terra molhada, com os campos cobertos de neblina, ou com as velhas acrobacias das andorinhas, data desde as calendas da minha meninice, e era mais do que uma simples comunhão do meu ser com a natureza que então compunha a plenitude das coisas ao meu redor. De tudo, o vento foi algo que também sempre me fascinou sobremaneira; eu queria ser como a liberdade das suas asas, voando sobre as árvores, ou baloiçando nos seus ramos, ou simplesmente acariciando as suas folhas, querença essa que perdura até aos dias de hoje. Sim, quero ser como o vento, como o mar de todas odisseias, e das alegrias emergidas e dos afogos naufragados. Quero ser a eternidade de todos instantes vividos junto à mãe natureza que generosamente me é consentida.

Depois veio a mudança de lugares. Aliás, a minha infância e a minha mocidade foram vividas alternadamente entre Alto Molócuè e a então Vila Cabral, hoje Lichinga. São espaços da minha vida, dos meus sonhos, da minha poesia, dos meus amores, em síntese, de todos os pretéritos do meu ser. As mais sólidas lembranças da minha meninez datam desde os meus seis anos. Em termos geográficos as duas regiões têm semelhanças e dessemelhanças. São versões da mesma paisagem, isto é, são relevos que se completam mutuamente. Aqui a paisagem era plana e elevada, portanto, uma miscelânea entre montes e planícies. O meu olhar continuava atento às mensagens que a natureza me transmitia. Recordo-me ainda do sibilar místico dos pinheiros nas noites de frio. Realmente, a tríade noite, frio e vento, tinha a sua própria linguagem que só os pinheiros podiam traduzir. E eu esforçava-me por entender aquelas mensagens trazidas do espaço e do fundo da terra. Entretanto, o meu imaginário sobre a vida e o mundo alargava-se com o passar dos meus anos.

Nestas paragens de nascença e crescimento, com a mesma atenção apurada aprendi igualmente a conhecer e a amar as pessoas, desde os membros da minha família biológica aos da minha família de convivência e comunhão – daquilo que a vida estende nos carreiros colectivos. Ambas famílias configuram a minha génese. E estas constituíam o outro cosmos – o meu espaço social -, em contraposição à natureza que me contemplava com os meus próprios olhos. Porque, de facto, era preciso um equilíbrio cósmico para que a poesia que em mim borbulhava não desarvorasse de incompleição.

Vêm estas memórias de infância a propósito da poesia haikai ou haiku. É um género de poesia “inventado” no Japão no século XVI, e que hoje é praticado quase em todo o mundo, embora não obedecendo rigorosamente às regras tradicionais. O haikai é caracterizado pelo poema simples, breve, conciso, depurado, belo e muito objectivo. Inicialmente usava exclusivamente a natureza como motivo de inspiração. Ou seja, o haikai é a arte poética que estabelece a relação entre o homem e a natureza. Ademais, o objectivo principal do haikai é justamente o de despertar ou aguçar no leitor o espírito contemplativo e descritivo (e também de reflexão, digo eu) expressos no poema. Exige, acima de tudo, uma atenção apurada para a captação instantânea e aos mínimos fenómenos da natureza. Mas nos tempos modernos os motivos estendem-se aos temas vários, desde amorosos aos sociais e/ou existenciais, embora a objectividade seja sempre a sua principal característica. Por conseguinte, as memórias de infância atrás descritas constituem, para mim, o espírito nuclear e, ao mesmo tempo, fonte e repositório da poesia de índole haikaista. Eu pessoalmente sou igualmente cultor e prosélito do poema haikai desde os primórdios das minhas composições poéticas.

MATSUO BASHÔ (1644–1694), nascido em Tokyo, não só é considerado o precursor como também o maior poeta japonês do estilo haikai. Foi ele inclusivamente quem codificou e estabeleceu os cânones do tradicional haikai japonês. Bashô tem obras traduzidas também para a língua portuguesa, como é o caso da antologia “O Eremita Viajante”, Assírio & Alvim, lançado em 2016. Vejamos alguns dos seus haikais:

 

SEM ESTAÇÃO

 

Que lua, que flor

nada, bebo umas doses

aqui sozinho.

 

***

E tu, aranha

como cantarias

neste vento de outono?

 

***

Nesta noite

ninguém pode deitar-se:

lua cheia.

 

***

Silêncio:

cigarras escutam

o canto das rochas.

 

Alguns dos precursores do haikai em língua portuguesa são os brasileiros Guilherme de Almeida (1890-1969), Fanny Luíza Dupré (1911-1996), Paulo Leminski (1944-1989). Deixo aqui alguns dos seus haikais:

 

GUILHERME DE ALMEIDA

 

(Infância)

Um gosto de amora

comida com sol. A vida

chamava-se “Agora”.

 

(Cigarra)

Diamante. Vidraça.

Arisca, áspera asa risca

o ar. E brilha. E passa.

 

 

FANNY DUPRÉ

 

Saudosa de ti

caminho só pela rua.

É noite de estio.

 

***

Bolha de sabão.

Borboleta distraída…

Colisão no ar!

 

(Inverno)

Rua esburacada

Brincando nas poças d’água.

O menino tosse.

 

PAULO LEMINSKI

 

(Não discuto)

não discuto

com o destino

o que pintar

eu assino.

 

(Um dia vai ser)

Pelos caminhos que ando

um dia vai ser

só não sei quando.

 

(Esta vida é uma viagem)

Esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem.

 

Eis aqui, um dos meus primeiros poemas haikais:

 

(À memória de Anabela Mafalda)

 

Em todos os ramos

por onde pousaste

reclinei-me de frio.

 

(In “Espelho do Dias, 1986)

 

 

 

 

É através dos nomes que se chega ao conhecimento que os homens têm.

João Paulo Borges Coelho

 

Soladas, o mais recente título de Amin Nordine, possui 36 textos, os quais perfazem 47 páginas. Quase que de forma irmanada, em geral, a escrita do autor encontra nos nomes o leitmotiv para a linguagem poética florescer e, com isso, gerar-se um conjunto semântico assente na combinação da realidade e do virtual.

Se concordarmos que “é através dos nomes que se chega ao conhecimento que os homens têm”, como é sugerido na novela Água, de João Paulo Borges Coelho, paralelamente, por via dos nomes, em Soladas, convoca-se a caracterização do que os substantivos encerram ou expõem. Assim, a poesia de Amin Nordine inclina-se para a objectividade, extraindo dali, aparentemente, experiências impressionistas.

Ora recorrendo à hipérbole, na representação do lugar, ora à alegoria, na alusão do tão “esquecido” poeta Heliodoro Baptista, os textos de Nordine estabelecem um roteiro literário, à laia de viagem telúrica, mas também circunstancial pelas emoções e sensações. Tal predilecção mantém activo as particularidades líricas do texto poético, centrado no sujeito ou na linguagem por ele manifesta.

Os nomes neste quarto livro de Amin Nordine resumem o conhecimento que se tem sobre determinadas latitudes, fazendo do texto um mecanismo de aglutinação de certas referências reais, bem à semelhança de, por exemplo, o deus restante, de Luís Carlos Patraquim. Claro que Soladas é menos audaz e elegante nesse sentido da apropriação dos contextos. Aliás, nem se trata de um grande exercício sequer. Logo se vê, os versos e as estrofes são sincopados demais, longe da grande comoção estética essencial à poesia.

A métrica dos textos de Soladas é repetidamente ínfima. Em muitos casos, a versificação parece directamente implicada a uma experiência de vida do autor. Por exemplo, os poemas “Chapa”, “Tenga”, “Mambas” e “Anagrama do vírus”, enfim, um texto óbvio e pouco sedutor. Pode se dizer o mesmo de “Tareia de diarreia” e “Cagufa”.

Sem olvidarmos o carácter manifestamente redutor desta escrita de Amin Nordine, amiúde crua, enxergamos na mira do sujeito de enunciação o emergir dos elementos subjectivos na menção aos palpáveis. Aí a cidade de Maputo é pintada de uma beleza incomparável: “Carmesim das acácias/ Eco azul do nome” (p. 35); e a Ilha de Moçambique aparece como um conjunto de “Ruínas de silêncio ruim;” (p. 27).

O Sul, o Centro e o Norte de Moçambique, com efeito, são espaços destacados em Soladas, de Amin Nordine, o que não deve ser entendido como uma estratégia de configuração de um eventual espaço poético nacional, mas, quiçá, como introdução de um certo jogo semiológico, que recupera a dependência do significado em relação ao significante e vice-versa.

Em última análise, os substantivos próprios que intitulam os textos de Soladas e sobre os quais gira a pena de Amin Nordine impõem-se como uma espécie de revisitação da atmosfera do que gerou a poesia ou para a qual a escrita regressa depois de se sobrepor ao plano real. O exercício é simples e sem grandes revelações.

 

Título: Soladas

Autor: Amin Nordine

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 11,5

Dando, nesta “Parte II”, continuidade ao artigo principiado na semana transacta – «Direito Digital na ordem jurídica moçambicana (I)» –, disponível e encontrável no link http://opais.sapo.mz/-direito-digital-na-ordem-juridica-mocambicana-i, cuja leitura humildemente se recomenda, como forma de o leitor melhor se contextualizar em torno do objecto da presente dissertação, em virtude de a “Parte I” conter os aspectos genéricos e preambulares sobre a figura do Direito Digital, e também como forma de se evitarem inúteis e redundantes sínteses recapitulativas, rememorando que, no epílogo da “Parte I”, já tínhamos dado início a abordagem d’algumas das principais áreas de incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana – concretamente, Direito Penal e Direito Processual Penal –, sem quaisquer mais delongas, damos prosseguimento à incursão por aquelas mencionadas principais áreas, nas quais se vislumbram protuberantes traços fisionómicos do Direito Digital.

 

  1. Direito Civil e Direito Processual Civil

A revisão do Código de Processo Civil (CPC) ocorrida em 2009 e que culminou com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 1/2009, cujas normas foram objecto de incorporação no CPC, trouxe a possibilidade de as reproduções cinematográficos e fonográficos poderem servir como meios de prova [documental] e, como tal, funcionando como ferramenta fulcral à merce do juiz na sua nobre função julgadora, porquanto, se nos lembrarmos que, nos termos do art. 341 do Código Civil (CC), as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, chega-se à meridiana conclusão que o alargamento dos meios de prova dilatam, também, a capacidade cognitiva do juiz, aprovisionando-lhe um maior leque de elementos destinados a alcandorar-se a tão ambicionada bondade e justeza das decisões judicias.

Com efeito, preceitua o n.º 1 do art. 527 CPC que «à parte que apresente como prova qualquer reprodução cinematográfica ou registo fonográfico incumbe, sob pena de o documento não ser atendido, facultar ao tribunal os meios técnicos de exibir, sempre que necessário». A despeito de a Lei não definir o que são registos cinematográficos e fonográficos, tal definição é facilmente alcançável a partir dos respectivos sentidos etimológico-gramatical-semântico-linguísticos, advindo que reprodução cinematográfica traduz-se no conjunto de princípios, processos e técnicas utilizados para captar e projectar numa tela imagens estáticas sequenciais obtidas com uma camara especial, dando a impressão ao espectador de estarem em movimento (ex.: uma filmagem) e, por sua vez, a reprodução fonográfica consiste na representação dos sons das palavras (ex.: gravação de uma conversação telefónica). 

Tanto a filmagem bem como a gravação telefónica radicam, na maioria dos casos, da utilização de meios informáticos e/ou TIC’s, com elevada verosimilhança de brotarem do “meio digital” – conceito definido na “Parte I” do presente artigo – chamando-se, aqui, a atenção sobre a discutibilidade das chamadas telefónicas efectuadas com recurso ao Whatsapp ou ao Messenger poderem servir como meio de prova, na medida em que, no figurino da nossa lei processual, tais gravações, captadas sem o consentimento de um dos interlocutores, ainda que admissíveis em processo civil (art. 527 CPC), são, em algumas circunstâncias, inadmissíveis em processo penal [alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 252 e n.º 1 do art. 257, ambos do Código Penal], configurando, por isso, prova nula (arts. 4 e 222 do Código do Processo Penal), disparidade que se justifica pelo facto de, contrariamente ao que se sucede com a possibilidade de o juiz requisitar registos/reproduções fonográficas às empresas de telefonia móvel (art. 536 CPC) para que funcionem como material probatório, as trocas de correspondência efectuadas com recurso ao Whatsapp caracterizam-se pela presença da criptografia (definida no glossário da Lei de Transacções Electrónicas – aprovada sob chancela da Lei n.º 3/2017 – como sendo a disciplina que engloba princípios, meios e métodos para a transformação de dados por forma a esconder o conteúdo da sua informação, estabelecer a sua autenticidade, evitar a sua modificação não detectada, evitar o seu repudio, e/ou evitar a sua utilização não autorizada), sendo, de todo, impossível que uma empresa de telefonia móvel possa ter acesso à tais correspondências.

Merece, outrossim, realce para a interpenetração do Direito Digital no Direito [Processual] Civil, o facto de a prova testemunhal poder ser apresentada através de depoimento efectuado por testemunha que entrou em contacto com a matéria sujeita à prova em virtude de o mesmo pertencer a um “grupo de Whatsapp” ou “grupo criado no Messenger”, plataformas digitais onde o facto sujeito à verificação judicial tenha ocorrido.

Qualquer referência ao Direito Digital na ordem jurídica moçambicana deve, impreterivelmente, passar pela já mencionada da Lei de Transacções Electrónicas. Este diploma, conforme a sua terminologia nominativa já denuncia, estabelece os princípios, normas e regime jurídico das transacções electrónicas em geral, do comércio e governo eletrónico em particular, visando garantir a protecção e utilização das TIC’s.

Transacção Electrónica, em conformidade com a definição que nos é dada no glossário da daquela Lei, é qualquer comunicação e actividade entre duas partes conduzida entre meios electrónicos.

As transacções electrónicas, no meio digital, apresentam-se como uma das principais matrizes da responsabilidade civil – quer extracontratual (art. 483 CC) quer contratual (art. 798 CC) – nos termos da qual cabe, à quem viola direitos de outrem, obrigação de colocá-lo indemne pelos prejuízos resultantes dessa conduta, podendo assumir, por ex.:, comportamentos que violem o bom nome, imagem e reputação (responsabilidade extracontratual); ou violação de prestações – sejam de facere ou de non facere – resultantes de factos originados no meio digital ou, não tendo sido um facto nele originado, sendo nele onde se concretiza a violação (responsabilidade contratual).

Acima nos referíamos somente à responsabilidade civil subjectiva (aquela que deriva de uma conduta ilícita praticada com culpa), todavia, a responsabilidade civil objectiva (“sem culpa” ou “pelo risco”) assume, no Direito Digital, uma dimensão estratosfericamente saliente, comparativamente ao que se sucede com a mesma figura no “mundo real” (em contraposição ao mundo virtual), pois, conforme se sabe, a internet consubstancia-se num meio de comunicação poderosíssimo, advindo daí que o seu potencial de danos indirectos é muito maior que de danos directos, e a possibilidade de causar prejuízos a outrem, mesmo que sem culpa, é muito verosímil.

Como forma de se precisar o que se diz acima, é só se imaginar a ofensa ao bom nome, honra, reputação e imagem de alguém através das redes sociais. A probabilidade de propagação veloz da desonra, do vexame, dos danos à imagem e bom nome de um individuo, se o meio usado for o do mundo digital, é, em regra, incomparavelmente maior do que aquela que ocorreria no “mundo real”. Dito de outro modo: em fracções de segundos, essa propagação através das TIC’s atinge um número indeterminado e indeterminável de pessoas, o que torna a desonra, o vexame ou ofensas ao bom nome, imagem e reputação, mais gravosa para o lesado, pois “todo o mundo” pode ficar a saber de factos que agridem os seus direitos reputacionais, repete-se, em fracções de segundos.

Pelo transvazado no parágrafo precedente, a teoria do risco (responsabilidade civil objectiva ou sem culpa) é vista como aquela que atende às questões virtuais e a soluciona de modo mais adequado as lesões decorrentes de actos/factos que se sucedem no mundo digital. É pelo que se aduziu atrás que diversos autores advogam que esta matéria deveria ser determinada uma norma-padrão (ou princípio regra do Direito Digital), pela qual, em regra, os responsáveis pelo conteúdo publicado, por ex., numa página da internet são os respectivos titulares/proprietários.

Este princípio possui similitude ex-aequo ao tratamento que se dá à figura da “responsabilidade comitente” (que se traduz numa responsabilidade objectiva, sem culpa ou pelo risco), definida no n.º 1 do artigo 500 CC, que preceitua que aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar, norma que é secundada pelo respectivo n.º 2 que dispõe que a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

Este espaço, devido ao sacrossanto número de caracteres permitidos, revela-se hipossuficiente para abarcar a interpenetração do Direito Digital nas prometidas inter-relações com o Direito do Consumidor, Direito das Telecomunicações, Transacções Electrónicas (sobretudo na vertente da Protecção de Dados), Compliance, Contratos (e-commerces) e Direito da Concorrência. Esta temática, continuará a merecer atenção focada do autor nos próximos artigos.

Entretanto, não nos retiramos sem deixar ficar depositado um reparo crítico ao legislador moçambicano, nos termos que se seguem: A Resolução n.º 17/2018, que aprova a Política para a Sociedade da Informação, no ponto n.º 4.4., determina o seus “Eixos de intervenção”, e nele elencam-se 7 eixos [(i) educação e desenvolvimento humano, (ii) saúde, (iii) governação electrónica, (iv) agricultura, pesca, ambiente e desenvolvimento rural, (v) indústria, comércio e serviços (vi) acesso e conectividade, (vii) políticas e regulação], não constando deles o sector da Justiça. Aliás, o sector da Justiça é liminarmente esquecido neste diploma, o que é grave se atendermos ao facto de que este diploma constitui um respaldo basilar no qual ir-se-ão apoiar e sustentar os mecanismos de actuação e regulação específico-concreta das matérias nele previstas, chegando [a ausência de menção do sector da Justiça] a traduzir-se num autêntico contrassenso que a referida Resolução, no respectivo glossário, defina “Sociedade da Informação” como sendo «aquela em que o modo de desenvolvimento social e económico, baseia-se na informação como meio de criação de conhecimento, para a produção de riqueza e bem-estar de vida dos cidadãos. Para tal o acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação é condição essencial».

A formulação do nosso juízo crítico agudiza-se, cremos que com toda a legitimidade, se repararmos que o ponto n.º 4. da retromencionada Resolução propugna que constitui “visão” da Política para a Sociedade da Informação «tornar Moçambique um país em que todos, sem discriminação, têm acesso e fazem uso das TIC’s em benefício próprio e da sociedade em geral». Se interpretarmos o vocábulo “todos” como abrangendo tanto as pessoas singulares bem como as colectivas e, nestas, incluídos os organismos públicos, não se percebe o esquecimento a que foi votado o sector da Justiça, o qual, tendo em conta a supersónica aceleração e, sobretudo, vertiginosa predominância do uso das TIC’s, merecia uma atenção pormenorizada.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

PABLO NERUDA, de seu nome de nascença Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, é um dos maiores poetas da língua castelhana do século XX, nascido no Parral, Chile, em 1904.

Sobre a sua infância ele próprio comenta: “Começarei por dizer, sobre os dias e anos de minha infância, que meu único personagem inesquecível foi a chuva. A grande chuva austral que cai como uma catarata do Pólo, desde o céu do Cabo de Hornos até a fronteira. Nesta fronteira, o Far West de minha pátria, nasci para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva.”

Poeta e diplomata de carreira, possui uma vasta obra poética, entre a qual “Cem Sonetos de Amor” e “Confesso que Vivi”, livros da minha cabeceira.

Foi também um exímio declamador que até chegou a dizer poesia para mais de 100 mil pessoas, no Estádio de Pacaembú, em homenagem ao líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. Há igualmente filmes em sua memória, os quais contam a sua história, como é o caso do “O Carteiro de Pablo Neruda”, realizado por Michael Radford.  Foi agraciado, em 1971, com o Prémio Nobel de Literatura. Também por ocasião do recebimento deste galardão, e a pedido do seu amigo, o então presidente do Chile, Salvador Allende, Pablo Neruda declama poesia para mais de 70 mil pessoas, no estádio nacional do Chile.

Poeta marxista e prosélito dos movimentos de libertação, Pablo Neruda preocupou-se sempre por uma abordagem poética que fosse uma interpretação dos sentimentos mais profundos da pessoa humana, quer sejam relacionados com o amor, os anseios, quer sejam com a luta dos povos pela autodeterminação e, por essa via, pela sua realização material e espiritual. É por isso que Neruda foi um poeta da humanidade, ou seja, um poeta dos povos oprimidos, do Chile aos quatro cantos do mundo; mas nem por isso a sua poesia deixou de ser altaneira e daquela qualidade raramente alcançada. Veja-se por exemplo este soneto:

Plena mulher, maçã carnal, lua quente,

espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,

que obscura claridade se abre entre tuas colunas?

que antiga noite o homem toca com seus sentidos?

 

Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,

com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:

amar é um combate de relâmpagos e dois corpos

por um só mel derrotados.

Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,

tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,

e o fogo genital transformado em delícia

corre pelos tênues caminhos do sangue

até precipitar-se como um cravo noturno,

até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Este é um dos poemas do livro “Cem Sonetos de Amor”, constituído essencialmente por poemas de amor, com todos aqueles sentimentos à ele adstrito. Nele o poeta disseca o amor em todos os seus ângulos, manifestado nos três períodos do dia, ou seja, nas manhãs, nas tardes e nas noites; porque, realmente, o amor tem sempre as suas particularidades em função da rotação do mundo. Ele, o amor, adquire e confere formas ao espírito humano à medida que as manhãs e os crepúsculos se vão sucedendo.

“Confesso que Vivi” é um livro autobiográfico que retrata algumas memórias ou “façanhas” do autor pelo mundo fora, vividas com muita intensidade, características, aliás, dos grandes poetas. É ele próprio quem o diz: “As memo?rias do memorialista na?o sa?o as memo?rias do poeta. Aquele viveu talvez menos, pore?m fotografou muito mais e nos diverte com a perfeic?a?o dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua e?poca.”

Pablo Neruda nos lembra que a vida não é tão linear quanto parece. Ela é intermitente enquanto dura, aliás, como a própria memória. Com ele aprendi que a vida deve ser vivida sem adiamentos, com todos aqueles pruridos que lhe são característicos, mas também sem mundanismos daqueles que até a própria poesia se rebela e levanta o seu voo em busca de outras coordenadas. E um poeta deve ser um inventor de estrelas, um inventor de mundos passíveis de ser habitados com humanismo e solidariedade e, por isso mesmo, que induzam à vontade e alegria de viver. Um poeta, mesmo nos momentos mais ruins do processo da vida, deve procurar viver feliz na sua condição de vanguardista da felicidade individual e colectiva. É por isso que Pablo definiu a sua vida nestes termos: “Minha vida e? uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.” Este poeta militante, de todos os tempos e lugares, que “nasceu para brandir os golpes” e que a sua pátria também lhe deu palavras para denunciar “os pálidos vermes” saqueadores da vida, oiçamo-lo novamente:

 

X

Serão nomeados

Enquanto escrevo minha mão esquerda me reprova.

Me diz: por que os nomeias, que são, que valem?

Por que não os deixaste em seu anónimo lodo

de inverno, nesse lodo em que urinam os cavalos?

E minha mão direita lhe responde: “Nasci

para bater nas portas, para brandir os golpes,

para acender as últimas retiradas sombras

nas quais se alimenta a aranha venenosa”.

Serão nomeados. Não me entregaste, pátria,

o doce privilégio de nomear-te

apenas em teus alhelies e tua espuma,

não me deste palavras, pátria, para chamar-te

apenas com nomes de ouro, de pólen, de fragrância,

para esparzir semeando as gotas de orvalho

que caem de tua negra cabeleireira imperiosa:

me deste com o leite e a carne as sílabas

que nomearão também os pálidos vermes

que viajam no teu ventre,

os que acossam o teu sangue, saqueando-te a vida.

(In o Canto Geral, 1950)

Que culpa tenho eu de gostar de poetas revolucionários como Pablo Neruda? Que me importa a mim se, nos tempos em que vivemos, os termos “revolucionário”, “comunista” ou “marxista” foram esvaziados do seu real sentido humanista e futurista? Que importa tudo isso se, aliás, a poesia (do “Eu” colectivo) é o centro da essência colectiva, e está sempre acima de quaisquer ideologias sejam elas a esquerda ou a direita? A verdade, porém, é que estamos perante um dos clássicos não só da poesia ibero-americana como também da literatura universal.

Pablo Neruda, também político e membro do Partido Comunista Chileno, morreu em 1973, aos 69 anos de idade, em Santiago do Chile, aparentemente vítima de cancro de próstata. Mas as causas da sua morte continuam polémicas, dado que ele morreu  num momento conturbado em que o Chile vivia, na sequência do golpe militar que levou ao poder o ditador Augusto Pinochet.

A nova lei de descentralização 04/2019 de 31 de Maio está a provocar "agitação" que não era de se imaginar no seio dos moçambicanos. As competências atribuídas à figura do governador "eleito" pelo povo, nas eleições de 15 de Outubro de 2019 e as competências atribuídas ao Secretário de Estado nomeado no decurso do mês de Janeiro de 2020 por confiança política do chefe do estado levam o processo de descentralização ao centro de debate envolvendo políticos, académicos e membros da sociedade civil. Mas afinal porque tantos questionamentos na lei que já está em vigor?

Várias respostas podem ser formuladas, mas no meu entender e de muitos que estão interessados no sucesso deste processo, é sem dúvidas porque na presente lei de descentralização, o poder não reside no povo. Ou seja, o povo foi encontrado em contra pé. O povo foi "enganado" na medida em que foi chamado às urnas no dia 15 de Outubro de 2019 para votar, convicto de que o partido vencedor iria avançar com o seu cabeça de lista a cargo de governador para dirigir a província com plenos poderes de sempre, tal como aconteceu no último quinquénio.

O povo foi "enganado" sim, pós não passava pelas suas cabeças que o governador de província não teria plenos poderes de sempre e muito menos que os poderes mais relevantes estariam com a figura de secretário de estado, aliás a lei em vigor não foi divulgada o suficiente antes do processo eleitoral para as pessoas consumirem, e de forma consciente irem votar sabendo das competências de cada uma daquelas figuras.

A circular número 09 datada de 29 de Janeiro de 2020 do Ministério da Administração Estatal e Função pública assinada pela respectiva Ministra Ana Comoane, no seu primeiro ponto refere que, e passo a citar: "As cerimónias de Estado a nível de província são dirigidas pelo secretário de Estado na província". No segundo ponto refere igualmente que " a placa de identificação da viatura protocolar Governo de Moçambique deve ser usada na viatura protocolar do secretário de estado na província e cidade de Maputo", fim de citação.

Mas afinal quem representa o estado no seu verdadeiro sentido? Será a figura nomeada por confiança política do presidente da República ou aquele que embora tenha sido indicado por uma lista partidária tal como é o nosso regime jurídico, tenha sido democraticamente eleito pelo povo?

Do latino gubernatore, "governador é cargo político geralmente eleito, que detém  a autoridade máxima do poder executivo em uma Província, Distrito ou então estado de uma federação". Partindo desta dimensão, no nosso caso parece contrário, ou seja a figura do secretário de estado nomeado pelo Presidente da República é que detém a autoridade máxima de poder. Desde logo, no meu entender é uma verdadeira contradição com princípios democráticos, ou melhor, um verdadeiro desrespeito pelo povo, povo este que foi as urnas com expectativas de ver seu governador de província a representar o estado.

Roberto Dahl cientista político americano refere que "a democracia é representativa quando o povo governa através dos seus representantes eleitos em escrutínios". Toda via Dahl diz que  os regimes actuais não constituem na realidade uma poliarquia ou melhor governo de povo onde as formas de governo permitem a participação activa do povo na tomada de decisões, respeitando os direitos de todos os cidadãos e garantindo a liberdade individual.

Ora, no último quinquênio tínhamos no país uma assembleia eleita mas com um governador nomeado. As decisões da Assembleia provincial não eram vinculativas ao governador.  Hoje o cenário é paradoxal. Temos um governador legitimado pelo povo que o elegeu mas o mesmo não tem poderes, porque quem manda é a figura nomeada pelo chefe do estado. Mas afinal que democracia temos? O poder do povo para o povo, e com povo está aonde? Será que estamos perante uma não soberania da democracia ao nível de província? Eis as questões que deixo para reflexão.

Mas afinal, porque tanto interesse em atribuir a figura do secretário do estado de província nomeado poderes relevantes em detrimento do governador eleito?

Na abordagem do secretário-geral da Renamo que esteve em Quelimane no dia 30 de Janeiro de 2020 cuja reportagem foi exibida pela estação televisiva Stv no jornal da noite, este referiu que a nova lei de descentralização é contrária ao que seu partido tinha proposto através do seu falecido líder Afonso Dhlakama, quando reivindicava a governação das seis províncias alegadamente porque aquele partido teria vencido as eleições de 2014.

André Magibire explicou que tudo o que está a acontecer na presente lei visava ofuscar o exercício das funções dos governadores provinciais onde a Renamo sairia vitoriosa nas eleições gerais de 2019. Para ele, a lei apresenta conflito de competência. Na sequência avança que o seu partido vai analisar minuciosamente a lei e caso se note alguma anomalia, o partido vai avançar com o pedido de inconstitucionalidade de algumas normas no processo de descentralização em curso.
Já o Presidente da República no dia 31 de Janeiro a quando da abertura oficial do ano lectivo no distrito de Muembe província do Niassa também entrou no debate da coabitação entre os governadores eleitos e secretário do estado. O presidente Filipe Nyusi reconheceu que "por ser um modelo novo pode haver problemas, mas que devem ser resolvidos ao longo do processo para que o país avance". A abordagem do presidente da República no meu entender, deixa claro que a nova lei de descentralização pode não observar aspectos democráticos daí que temos estado a acompanhar os arranjos que estão a ser dia a pós dia anunciados pelo governo.

Lutero Simango membro do MDM falando no programa pontos de vista exibido no dia 02 de Fevereiro na Stv, referiu que a sua bancada na Assembleia da República, chamou atenção para a não criação de nova figura dentro de governação de província. A sua bancada segundo explicou, defendia que a criação de uma nova figura tal é o caso de secretário de estado, é anti-democratico e não aceitável e que ninguém deve limitar o exercício dos governadores provinciais eleitos.

Referindo-se aos poderes das duas figuras, defendeu que a única entidade que deve limitar poderes do governador são as assembleias provinciais e não despachos vindo do ministro da função pública e administração estatal. "A única saída é revisitar a constituição da república e delinear as coisas de forma correcta".

O protocolo do estado emitido sobre os procedimentos protocolares no âmbito de feriados nacionais ao nível de província indica no seu primeiro ponto que: "O secretário do estado  provincial é a entidade que dirige a cerimônia".

E qual o papel do governador de província? A única resposta que encontro na circular número 09 acima referido é de acompanhante. Ou seja, o governador que foi eleito pelo povo, durante as celebrações de feriados nacionais ao nível provincial  só irá a praça para também acompanhar as cerimónias tal como o povo pacato irá fazer.

 

 

A 31 de Janeiro de 2020, o Reino Unido retirou-se da União Europeia (UE). Perdemos um membro da nossa família. Foi um momento triste para nós, para os cidadãos europeus e, na verdade, para muitos cidadãos britânicos.

No entanto, sempre respeitámos a decisão soberana de 52% do eleitorado britânico, e agora esperamos iniciar um novo capítulo nas nossas relações.

Emoções à parte, o dia 1 de Fevereiro revelou-se uma data histórica, mas não uma data dramática. Isso deve-se, em grande parte, ao Acordo de Retirada que negociámos com o Reino Unido, que nos permitiu garantir "um Brexit ordeiro". Um Brexit que, pelo menos por agora, minimize as perturbações para os nossos cidadãos, empresas, administrações públicas – assim como para os nossos parceiros internacionais.

Nos termos deste acordo, a União Europeia e o Reino Unido concordaram um período de transição, pelo menos até o final de 2020, durante o qual o Reino Unido continuará a participar na União Aduaneira e no Mercado Único da UE e a aplicar a legislação da UE, mesmo não sendo mais um Estado-Membro. Durante esse período, o Reino Unido também continuará a cumprir os acordos internacionais da UE, como deixámos claro numa Nota Verbal enviada aos nossos parceiros internacionais.

Assim, com o período de transição em curso, garante-se um grau de continuidade. Isto não foi fácil, dada a magnitude da tarefa. Ao deixar a União, o Reino Unido automaticamente, mecanicamente, legalmente, deixa centenas de acordos internacionais concluídos pela União ou em seu nome, em benefício de seus Estados-Membros, em tópicos tão diversos como o comércio, a aviação, a pesca ou a cooperação civil nuclear.

Temos agora de construir uma nova parceria entre a UE e o Reino Unido. Esse trabalho vai começar dentro de poucas semanas, assim que os 27 Estados-membros da UE aprovarem o mandato de negociação proposto pela Comissão Europeia, estabelecendo as nossas condições e ambições para alcançarmos a parceria mais próxima possível com um país que permanecerá nosso aliado, nosso parceiro e nosso amigo.

A UE e o Reino Unido estão vinculados pela história, geografia, cultura, valores e princípios compartilhados e por uma forte crença no multilateralismo assente em regras. A nossa futura parceria reflectirá essas ligações e crenças compartilhadas. Queremos ir muito além do comércio e continuar a trabalhar juntos em segurança e defesa, áreas nas quais o Reino Unido tem experiência e recursos que são mais bem utilizados se integradas num esforço comum. Num mundo de grandes desafios e mudanças, de turbulência e transição, precisamos de manter consultas e de cooperar bilateralmente e nos principais fóruns regionais e globais, como as Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio, a NATO ou o G20.

Pode ser que seja um cliché, mas a simples verdade é que os desafios globais de hoje – desde as mudanças climáticas ao cibercrime, terrorismo ou desigualdades – exigem respostas colectivas. Quanto mais o Reino Unido for capaz de trabalhar em sintonia com a União Europeia e em conjunto com os parceiros em todo o mundo, maiores serão as nossas probabilidades de enfrentarmos esses desafios com eficácia.

Na essência do projecto da UE está a ideia que somos mais fortes juntos; que reunir os nossos recursos e iniciativas é a melhor maneira de alcançar objectivos comuns. O Brexit não vem mudar isso, e nós continuaremos a levar esse projecto adiante como UE27.

Juntos, os 27 Estados-Membros continuarão a formar um mercado único de 450 milhões de cidadãos e mais de 20 milhões de empresas.

Juntos, continuamos a ser o maior bloco comercial do mundo.

Juntos, a 27, ainda somos o maior doador mundial de ajuda ao desenvolvimento.

Os nossos parceiros podem ter a certeza que permaneceremos fiéis a uma agenda ambiciosa e voltada para o exterior – seja em termos de comércio e investimento, na acção climática e no digital, na conectividade, na segurança e contraterrorismo, nos direitos humanos e democracia ou na defesa e política externa.

Continuaremos a cumprir os nossos compromissos. Continuaremos a defender os acordos que nos vinculam aos nossos parceiros internacionais como o Acordo de Parceria Económica (APE) com países membros da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), de que Moçambique é parte, e continuaremos a desenvolver plataformas de cooperação multilateral em todo o mundo.

A União Europeia continuará a ser um parceiro de confiança, um firme defensor do multilateralismo assente em regras, trabalhando com os nossos parceiros para tornar o mundo mais seguro e mais justo.

*Por Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e Vice-Presidente da Comissão Europeia, e Michel Barnier, Chefe do Grupo de Trabalho da União Europeia para as Relações com o Reino Unido.

Por Josep Borrell & Michel Barnier*

 

 

Xi-Cau Cau  – Sec de Estado

De Ministério dos Desportos, passa-se para Secretaria de Estado. O desporto sairá a ganhar ou a perder? O importante, nesta altura, é “acertar o passo” com o Mundo. É cedo para endereçar felicitações ao novo titular, Gilberto Mendes.

Importa porém referir que a visão do PR, que o nomeou, aponta para o caminho de um maior realismo, numa área que, se fôr bem conduzida, poderá trazer múltiplos benefícios aos cidadãos e ao país.

Para mim que vivi e vivo com fervor, ao longo de décadas, as incidências do desporto no país, é preferível esperar – activamente como sempre – para depois elogiar ou criticar… conforme as circunstâncias. CAIR NA REAL e acertar o passo com o mundo, deverá ser o passo a seguir.

Isto porque, “municiado” pelo então MJD – perdoem-me a ousadia – não gostaria de voltar a ouvir do mais alto magistrado da nação, a asserção feita em 2019, de que este ano foi o de melhores resultados no desporto pós-Independência.

Aferição com base em que dados? As dezenas de medalhas conquistadas em modalidades que, juntas, não passarão de “uma mão cheia de nada” quando comparadas com o ouro olímpico de Lurdes Mutola, em Sidney, algo em que nenhum país dos PALOP chegou ao bronze?

Os números, lidos com pés bem assentes no chão, levam-nos à constatação de que os outros países não estão a dormir. Há que lê-los através dos “rankings”, que só nos interessam quando nos são favoráveis…

 

DESAFIOS COM BARBAS

Encontrar formas de passar das intenções à prática o “slogan” investir no futuro, pois matéria-prima não nos falta;

Chegar a um “casamento real” entre o desporto escolar, que só tem acção e visibilidade de dois em dois anos, nos Jogos Escolares, com o competitivo;

A partir de um estudo profundo dos prós-e-contras, definir as modalidades prioritárias, tendo em conta, o bio-tipo do nosso cidadão, o histórico do desporto nacional e também se… queremos ser dominadores onde os outros não investem ou tudo fazer para sermos competitivos entre os fortes;

Não nos basearmos nos “rankings” só quando nos são favoráveis. Ex: no futebol, já estivemos no lugar 68 da FIFA e agora quedamo-nos abaixo do 110. Se é que evoluímos, então os outros avançaram a níveis bem superiores;

Passar a “estrelar” os craques que no terreno marcam as diferenças, aos vários níveis e modalidades, diminuindo a mediatização dos dirigentes, aquando das eleições nos clubes, associações e federações;

Priorizar – e se possível iluminar – os poucos recintos desportivos para a prática desportiva, evitando que os mesmos sejam regularmente “bloqueadas” para cultos religiosos ou espectáculos musicais;

Inculcar na criançada, a partir de acções concretas – revistas, cromos, concursos, etc., – o gosto também pelas estrelas nacionais, contrabalançando com o que “importamos” de Messi, Ronaldo & companhia;

Transformar a final da Taça de Moçambique em futebol, no símbolo da maior festa desportiva nacional, com a presença do Chefe de Estado, à semelhança do que acontece em muitos países.

 

CADA MACACO NO SEU GALHO

Tem sido recorrente a teoria de que um Ministro não precisa de ser conhecedor de uma determinada área para a dirigir bem. Basta ser um bom gestor. Será?Uma das “vítimas” disso tem sido o desporto. Tivemos Mateus Kathupa, Pedrito Caetano, Nkutumula ou Nheleti Mondlane, que passaram pelo Ministério para cumprir uma missão (ou acomodação?) como autênticos meteoros.

A partir do dia em que foram desafectados, raríssimas vezes os vemos nos campos ou noutras acções da área que antes dirigiam. Onde mora(va) a paixão por algo tão apaixonante?

Perante esta constatação, algo sempre me intrigou:
Ministério das Finanças, Saúde, Justiça, Transportes… porque é que não me vêm à memória, nomes de titulares de um destes ministérios (re)conhecidos como importantes, ter sido dirigido por alguém, com carreira de fora dessas áreas?
 

O novo modelo de descentralização pode, sem dúvidas, constituir uma péssima experiência para Moçambique, se tivermos em conta que a sua implementação inicia com o "partido único" por via dos resultados eleitorais do dia 15 de outubro  de 2019.

De forma retumbante e asfixiante as eleições daquele ano, deram vitória ao partido Frelimo e o seu candidato presidencial, Filipe Nyusi.

A minha opinião não se vai guiar na legitimidade ou não das eleições, se foram ou não livre, justas e transparente, mas sim, no modelo que pode constituir um desafio para Moçambique.

Seria uma experiência contrária, no meu entender, se o processo de descentralização iniciasse com verdadeira partilha de poder, onde a Frelimo e os partidos da oposição, por exemplo, fizessem parte da governação das províncias.

Ora, se a Frelimo não estiver atenta, este facto pode provocar uma vaga de opositores dentro do próprio partido tendo em conta que, ser governador sempre foi visto, não só dentro da Frelimo, como também no seio do povo, um verdadeiro símbolo de poder provincial.

Ora, ser um governador, embora tenha passado por vias de lista partidária dentro da Assembleia Provincial, é preciso lembrar que foi o mesmo que durante os 45 dias de campanha eleitoral esteve ferverosamente com os seus correligionários a pedir voto para o partido e seu candidato presidencial.

Acredito que poderá ser no mínimo doloroso, não só para o timoneiro, como também para o povo, ver um governador por si "eleito" a ser tutelado pela figura de Secretário de Estado nomeado por confiança do Chefe de Estado. Ou seja, a questão que não quer calar manda o seguinte: O modelo de descentralização que já está a vigorar privilegia mais a decisão do povo que elegeu o seu governador ou privilegia a figura do Secretário de Estado, o nomeado?

O artigo 9 da lei 5/2019 de 31 de Maio sobre mecanismo de tutela, no seu número um refere que "O órgão com poderes tutelares pode realizar inspeções, auditorias, inquéritos ou sindicâncias, aos órgãos de governação descentralizada provincial e das Autarquias Locais, sobre os actos administrativos, actos de natureza financeira e patrimonial por estas praticadas".  

Se o Secretário de Estado, na presente lei, pode tutelar governadores eleitos e por meio disso questionar a legalidade e o mérito das suas decisões, fica claro que o novo modelo de descentralização é oposto à visão de Montesquieu, ou seja fere com a vontade popular.

Estamos perante uma situação em que aquele que o povo depositou confiança nas urnas para exercer a governação de província tem menos poder que aquele que foi nomeado.

O legislador ao elaborar a lei de descentralização teve em conta a vontade popular? Será que o povo é, na presente lei, o epicentro do poder? Em fim, são várias as questões que ficam no ar em volta da nova lei de descentralização e, oxalá que nós os moçambicanos, reflictamos sobre para onde queremos ir.

 

 

«Algo mais, para além de tudo»

O ininterrupto avanço tecnológico reflectido na cada vez mais crescente – e inevitável – utilização de meios informáticos e/ou Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) para a realização das mais variadas acções dentro dos inumerosos quadrantes da esfera jurídica das pessoas (psicofísicas e colectivas) arrasta consigo a necessidade de se regula(menta)rem os actos que se sucedem e as relações que se estabelecem naquele meio informático/tecnológico – o meio digital.

Não constitui algum absurdo assumir convictamente que, hodiernamente, o meio digital é o palco privilegiado para onde estão a emigrar as tradicionais actuações e comportamentos dos Homens, sendo escancaradamente nítido que situações que, preteritamente, requeriam a presença física dos sujeitos para que essas mesmas situações se concretizassem, foram substituídas por Aplicativos (Apps) ou ferramentas digitais: celebração de contratos – Email –, realização de reunião – Skype –, entabulamento de conversa – Messenger –, compra de álbum – iTunes –, exercício do direito a liberdade de pensamento e de expressão – Blogs –, perpetração de crimes – Whatsapp (cibercrime) –, protecção/armazenamento de dados pessoais e profissionais – Google Drive, iCloud, Dropbox – transferência de dados – AirDrop – manifestação da personalidade dos indivíduos – Facebook – ou do respectivo perfil profissional – LinkedIn – e aquisição de bens – compras on-line, e-Books.

As relações intersubjectivas no mundo digital, por serem susceptíveis de gerar obrigações para os respectivos intervenientes, faz consequentemente emergir a responsabilidade dos mesmos nos casos em que lesem direitos e interesses de terceiros, advindo, daí, a pertinência de se regular aquelas relações.

Evoluiu o mundo; evoluiu o Direito. É neste contexto que surge uma nova ramificação jurídica denominada Direito Digital, que pode ser definida como sendo o complexo de normas, aplicações, conhecimentos e regulação das relações jurídicas realizadas no meio digital, destinado a estabelecer as “regras de jogo” em torno das quais ir-se-ão subordinar todas as relações que se sucedem no ambiente on-line, visando que as mesmas ocorram em harmonia e obediência ao Direito, evitando-se, assim, a deflagração de conflitos de interesses.

Vistas bem as coisas, o Direito Digital surge da necessidade que o próprio Direito “sentiu” de acompanhar a evolução das TIC’s, presciente que, dessa evolução, e tendo em conta o carácter sofisticado das TIC’s, ocasionam-se problemas peculiares que reclamam também por soluções peculiares, diferentes daquelas [soluções] encontráveis no mundo real [em oposição ao mundo virtual].

O Direito Digital possui como finalidade tutelar as relações que se desencadeiam entre as pessoas (singulares/colectivas) em ambientes digitais, através do uso das TIC’s. O ambiente digital, tal como o ambiente “real”, é também caracterizado por comportamentos, acções, omissões, cuja susceptibilidade de se estraçalharem direitos de terceiros é verosímil, o que, por si só, justifica a adopção, por parte dos Estados, de mecanismos sofisticados destinados a estabelecer regras e princípios que orientem as regras de conduta nesse ambiente.

Entretanto, o Direito Digital não corresponde a um critério de classificação/divisão tradicional dos ramos do Direito. Enquanto, à luz das tradicionais qualificações dos ramos do Direito, os aludidos ramos eram autonomizados em função da matéria específica que visassem regular (Direito Civil regula as relações jurídicas entre entes privados; Direito do Trabalho regula as relações nas quais uma pessoa – o trabalhador – presta uma actividade sob direcção e autoridade doutrem – o empregador –, em regime de subordinação e mediante remuneração; Direito Comercial regula os actos de comércio e o decorrentes das sociedades comerciais), o Direito Digital possui uma natureza heteróclita e, indo mais longe, multidisciplinar, excursionando-se em [quase] todas as áreas tradicionalmente consagradas como ramos autónomos do Direito.

Tendo em conta a heterogeneidade das relações e comportamentos que se originam e se desenvolvem no mundo digital (redes sociais, as mais variadíssimas “Apps” e as especificidades dos circuitos e labirintos que radicam do fenómeno tecnológico e do manuseamento da internet), o conjunto de normas que corpora o Direito Digital atravessa todas as outras áreas do saber jurídico, desde que avulte um elemento de conexão com o mundo tecnológico/digital.

O perímetro de abrangência do Direito Digital é, pode-se assim dizer, “ilimitado”, pois as TIC’s estão em irreversível evolução, as redes sociais transformaram-se num centro difusor de “lifestyle” e as Apps exercem uma influência extremamente viciante em todos os segmentos das vidas das pessoas, quer psicofísicas quer colectivas, sendo que estas últimas investem estrondosas somas pecuniárias no marketing digital.

Moçambique, como não deveria deixar de ser, não ficou alheio a este fenómeno. É indesmentivelmente notória, no nosso solo pátrio, a preocupação, por parte do legislador, de aprovação de diplomas legais contendo normas que incidem sobre as relações, comportamentos e acções cujo palco é o ambiente digital.

O governo moçambicano aprovou, através da Resolução n.º 17/2018, a “Política para a Sociedade da Informação”, cujo glossário define “Sociedade de Informação” como sendo «aquela em que o modo de desenvolvimento social e económico, baseia-se na informação como meio de criação de conhecimento, para a produção de riqueza e bem-estar de vida dos cidadãos. Para tal o acesso às TIC’s é condição essencial».

No compêndio legal acima referido, plasma-se a concepção de “Governação Electrónica” (e-gov); definem-se os conceitos de “Governação Digital”, bem como de “Governo Electrónico” e se indicam quais as suas finalidades. O que se diz atrás consubstancia-se num elucidativo e paradigmático exemplo do interesse que o Estado moçambicano detém no sentido de acompanhar, a par e passo, o desenvolvimento das imparáveis TIC’s, cujos primeiros sinais já eram identificáveis com a entrada em vigor da Lei de Transacções Electrónicas sob os auspícios da Lei n.º 3/2017.

A título meramente exemplificativo, abaixo elencam-se algumas das principais áreas de incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana:

 

1.Direito Penal e Direito Processual Penal

É mundialmente assente que foi a sofisticação tecnológica dos meios de cometimento de crimes, que mais impulsionaram o surgimento do Direito Digital. Os delinquentes mais arrojados viram nas TIC’s, e expedientes equiparáveis, um mecanismo de ludibriar os sistemas de prevenção e repressão criminal, principiando com a proliferação de práticas delituosas, as quais encontraram muitos Ordenamentos em contrapé, como se de emboscada se tratasse, não se lhes dando a mínima hipótese de se defenderem dos surpreendentes meios sofisticados manuseados por aqueles criminosos.

Como forma de dar resposta adequada a essa nova realidade, o novíssimo Código Penal (CP) – aprovado pela Lei n.º 24/2019 – traz figuras como os crimes de “devassa da vida privada” (art. 252), “base de dados automatizada” (art. 254), “gravações ilícitas” (art. 257), “burla informática e nas comunicações” (art. 289), “fraudes relativas aos instrumentos e canais de pagamento electrónico” (art. 294); chama-se também à colação determinadas formas de cometimento dos crimes de “difamação” (art. 233) e “injúria” (art. 234), na parte em que a Lei refere-se a «qualquer outro meio de publicação»; a secção do CP respeitante à “falsidade informática e crimes conexos”, nos quais se incluem os crimes de “falsidade informática” (art. 336), “interferência em dados” (art. 337), “interferência em sistemas” (art. 338), “uso abusivo de dispositivos” (art. 339), sendo que a mencionada “secção” dever-se-á compaginar com as normas corporizadas na Resolução n.º 5/2019, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais.

São também perscrutáveis as impressões digitais do Direito Digital no novíssimo Código do Processo Penal (CPP), aprovado pela Lei n.º 25/2019, no regime consagrado para as “Escutas Telefónicas”, um meio especial de obtenção da prova, através do qual se permite a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas de suspeitos (art. 222 do CPP), extensível às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente telemóvel, correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (art. 225 CPP), em plena harmonia com o que já vinha preceituado nos arts. 17, 18 e al. a) do art. 21 da Lei n.º 2/2017 (que cria o Serviço Nacional de Investigação Criminal – SERNIC).  

A silhueta do Direito Digital tanto se pode fazer notar de uma forma fulgurantemente incisiva, como nalguns dos diplomas acima citados, como também de forma residual, conforme se extrai, por ex., do disposto no n.º 1 do art. 84 do novíssimo Código de Execução das Penas, aprovado pela Lei n.º 26/2019, que dilucida que «o director do estabelecimento penitenciário pode, a título excepcional, autorizar o recluso a utilizar qualquer outro meio técnico de comunicação existente no estabelecimento penitenciário, nomeadamente correio electrónico e telecópia, em situações pessoais ou profissionais particularmente relevantes ou urgentes, sendo controlado o respectivo conteúdo».

O Direito Digital deambula ainda pelo controle das “transferências electrónicas” ao aconchego do art. 15 da Lei n.º 14/2013 (Lei de Branqueamento de Capitais), marca presença no art. 29 da Lei n.º 5/2018 (Regime Jurídico de Prevenção, Repressão e Combate ao Terrorismo), bem como se faz sentir notoriamente no art. 12 da Lei n.º 2/2018 (altera a Lei que cria o Gabinete de Informação Financeira de Moçambique) e constitui um dos mecanismos mais efusivos de articulação entre Moçambique e demais Estados soberanos no âmbito da troca de informação sobre detidos/suspeitos/arguidos relativamente aos quais se impõe a respectiva extradição, de Moçambique para outros Estados e vice-versa, como se ilustra no art. 23 da Lei n.º 21/2019 (aprova os Princípios e Procedimentos de Cooperação Jurídica e Judiciaria Internacional em matéria Penal) nos termos do qual, os Estados podem «utilizar na transmissão dos pedidos [de informação] os meios telemáticos adequados, desde que estejam garantidas a autenticidade e a confidencialidade do pedido e a fiabilidade dos dados transmitidos».

E porque caminhamos a passos galopantes rumo ao atingimento do limite de caracteres permitidos, o presente artigo tem continuidade agendada para daqui a uma semana, onde se dará continuidade a análise de outras áreas de incidência do Direito Digital na ordem jurídica moçambicana, com enfoque para o Direito [Processual] Civil, Direito do Consumidor, Direito das Telecomunicações, Transacções Electrónicas, Compliance, Contratos (e-commerces) e Direito da Concorrência.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

– … Não bebo mais traçadinho…

Sempre tomei uma casa como mais que o lugar onde tenho as minhas tralhas guardadas e me escondo dos males da noite para me deitar e te encontrar no calor dos sonhos nos quais continuas a sussurrar-me as delícias de uma paixão ainda não vivida. Levo muito tempo para adaptar-me a um tecto novo.

Enquanto eu não for a casa, meu sangue é um cubo de gelo sem um copo de whisky onde se possa dissolver. O chão daquele prédio sempre será o amante dos meus pés nesta Lisboa que agora desperta, mais uma vez, para este Janeiro frígido. É muita coisa a acontecer em simultâneo, meu Deus!

– …Não volto mais àquela tasca.  Não bebo mais traçadinho…

Ninguém esperava que o adeus se sucedesse daquela forma. Naquele dia tinha me levantado um pouco mais cedo que o habitual, no dia anterior fiquei de ir à biblioteca fazer pesquisas. Mas naquela semana não houve tempo para nenhuma pesquisa depois do que aconteceu. Era muita incerteza e desânimo!

– O prédio está a ser evacuado, todos para fora… – gritava uma voz que desesperada violentava os corredores. Sentado na escada exterior do prédio escuto a voz da dona Arminda que em pânico me diz que estou no lugar mais perigoso e que é melhor que eu desça rapidamente pois o prédio está a ser evacuado. Sem perceber com exactidão o que se estava a passar, embora com minhas desconfianças, fui ao quarto e todo atabalhoado meti o meu portátil na pasta, alguns livros e os meus dois cadernos azuis, onde ao longo do dia vou anotando minhas tontices. De seguida pus-me a andar. No corredor encontro mais pessoas a abandonarem o prédio, todas com semblantes incrédulos.

– … Vou me pirar de mansinho. Não volto mais àquela tasca.

Não bebo mais traçadinho- Estes gajos não têm o que fazer! São 5 da manhã, faz um briol do caraças e o que eles me fazem é estar em frente ao meu quarto nesta cantoria!
Todas com semblantes incrédulos. Já no exterior do edifício vejo 3 carros de bombeiros perfilados e muitos curiosos que procuram perceber o que se passa no número 89 da Rua Tomás Ribeiro! Ao longo do período de vigília houve quem me perguntou se havia uma bomba por ali e pensei esta deve andar a ver muita notícia sobre o Médio Oriente!

– Desta vez estou mesmo à rasca. Vou me pirar de mansinho. Não volto àquela tasca. Não bebo mais traçadinho.

Só no exterior consegui perceber que estávamos a ser evacuados porque o prédio estava em risco de derrocada por causa da obra ao lado. Em menos de 5 horas estávamos em todos canais de informação de Portugal e o pesadelo iniciava.

É assombroso ter consciência de que há milhares de pessoas a perderem suas casas no Centro e Norte de Moçambique, seja por causa da violência ou das catástrofes naturais, e nada poder fazer.

Lisboa está a cada dia a ficar mais moderna. Os edifícios do século passado vão sendo substituídos pelos novos.  Naquela manhã o empreiteiro que está a construir no terreno ao lado do prédio no qual eu morava, ao fazer escavações muito profundas, bateu as fundações fazendo que se abrissem nele fissuras e deixar cair detritos. Os bombeiros e a Autoridade de Protecção Civil não viram outra solução senão nos manter longe do prédio enquanto avaliam as condições de habitabilidade dele. Pelos danos todos acreditam que não voltaremos àquele prédio.

Assim abandonei o primeiro bairro no qual vivi na Europa, Picoas! As duas últimas semanas que antecedem este texto foram muito difíceis, desde a incerteza sobre o local onde moraria e a exígua probabilidade que havia de rever as coisas que tinha deixado no edifício.  

– Não bebo mais traçadinho… – Para além do ruído do eléctrico a raspar a estrada, tenho de ouvir a cantoria dos bêbados que frequentam os bares e discotecas que são meus novos vizinhos aqui no Príncipe Real. E por falar nisso, dá-me licença, estes gajos não se vão calar antes que alguém lhes deite um balde de água abaixo:

– Desta vez estou mesmo à rasca. Vou me pirar de mansinho. Não volto mais àquela tasca.  Não bebo mais…

 

 

Já é conhecido o novo Governo de Moçambique que nos próximos cinco anos deverá viabilizar as promessas eleitorais do Presidente da República, Filipe Nyusi. Tive a felicidade de cobrir a sua campanha eleitoral, durante a qual prometeu diversificar a economia nacional para que ela não dependa exclusivamente dos hidrocarbonetos e outros recursos minerais. Até porque basta olhar os países da Península Arábica para ver que estão a usar o dinheiro que ganham nos hidrocarbonetos para desenvolver uma indústria do turismo pujante que em alguns casos, em termos de receitas, já ultrapassa a indústria petrolífera.

No seu manifesto não elaborou muito sobre como a cultura e o turismo podem contribuir para essa diversificação e como temos uma nova ministra nesta área, nas próximas linhas tento contribuir com algumas ideias que se calhar podem ser úteis, cumprindo assim o meu dever de cidadania.

Em África e no Mundo há vários países que servem de inspiração e tiram muito proveito do casamento entre a cultura e o turismo e buscam recursos para financiar as suas economias, é o caso de Cuba que considero o melhor exemplo, mas há o Quênia, a Tanzania, o Ruanda, a África do Sul, o Brasil, a Suíça, entre outros.

A começar pelo turismo, penso que a nova ministra pode, antes de mais, reflectir em como garantir o fluxo de turistas no país nas duas estações do ano, nomeadamente o Verão e o Inverno. Para mim, no Verão a aposta da promoção do nosso turismo deve incidir mais sobre todas as actividades ligadas ao turismo de sol e prais, e durante o inverno temos a natureza onde a base podem ser os vários parques e reservas que são acessíveis neste periodo do ano, ou seja, ecoturismo e turismo cinegético.

A segunda medida seria identificar junto dos operadores turísticos nacionais e olhando a tendência global que tipo de turistas gostam das opções que o nosso país oferece, quem são, onde se localizam, quanto normalmente gastam no turismo e o que querem encontrar nos locais que visitam? E a partir dai formatar a nossa oferta tendo em conta estas informações que caracterizam o nosso potencial turista.

Por exemplo, os chineses tendem a fazer o turismo mundo fora. Do que já vi em vários países da Europa, EUA, Rússia é que eles gostam de andar em grupos só deles, se hospedam no mesmo hotel, certamente que o hotel deve oferecer refeições da culinária chinesa e tem de haver pessoas que falam mandarim para os acompanhar onde eles vão para lhes auxiliar. Para atrair turistas chineses esses aspectos devem ser acautelados quer através de reformas legislativas assim como de adaptação de operadores turísticos a estas necessidades ou exigências dos turistas chineses.

Uma vez a casa arrumada e clareza de que tipo de turista queremos que venha a Moçambique e quando, há que abordar o mercado. É preciso informar aos turistas que em Moçambique podem encontrar o que desejam para passar as suas férias ou momentos de laser. Nesse aspecto temos a ajuda dos grandes midias internacionais que anualmente, nas rúbricas sobre viagens aconselham seus leitores a vir a Moçambique. Este ano foi a Bloomberg a faze-lo, mas no passado a CNN, a BBC entre outros o fizeram. Mas podemos faze-lo de forma sistemática tal como o faz o Ruanda.

Por exemplo fazer publicidade nas televisões portuguesas sobre o turismo no Parque de Gorongosa, Ilha de Moçambique e do Ibo, bem como convidar jornalistas portugueses a visitar esses locais para fazerem reportagens positivas pode aumentar fluxo de turistas portugueses a visitar esses locais turísticos. O mesmo pode ser feito noutros potenciais mercados.

Estas questões bem calibradas e uma sintonia com as autoridades de migração, a polícia, o sector de saúde podemos começar a ter grande sucesso neste sector. Mas é fundamental que à sua chegada no território nacional o turista não fique horas a fio para ter autorização de entrada, que o polícia sirva para o ajudar e proteger, e não para extorqui-lo e em caso de necessidade possa ter acesso a serviços de saúde e ou evacuação com qualidade. Como é igualmente de extrema importância resolver o problema de confrontações militares no centro e no norte.

Considero importante ao nível diplomático avançar para negociação da isenção de vistos com aqueles países que se comprovar que têm de facto grande potencial de angariarmos turistas para que estes possam ser encorrajados a vir a Moçambique.

É preciso negociar com outros sectores do Governo para se reduzir o imposto sobre combustíveis e a taxa aeroportuária cobrada pelas companhias aéreas. Estas taxas encarecem o transporte aéreo. Se o preço do transporte aéreo for reduzido não tenho dúvidas de que vamos ter muitos mais moçambicanos a fazer o turismo doméstico. Há muita gente que gostaria de conhecer o Parque de Gorongosa, a Ilha de Moçambique, Ibo, a praia de Wimbe, as Quirimbas, o Lago Niassa, o Bazaruto, Vilanculos, Chocas Mar, etc. Mas é muito mais caro ir a estes locais do que ir a Lisboa, Dubai, Cape Town, Miami, etc. Não temos como ter o turismo como indústria se não reduzirmos para o custo do acesso. Temos que definitivamente ganhar no volume.

É preciso capacitar os agentes de viagens nacionais a saber criar pacotes turísticos agregadores. Por exemplo, quem sai de Maputo a Ponta do Ouro não pode só ser para ir à praia e ficar numa instância turística. Os agentes de viagem podem aprender a organizar pacotes em que o turista pode pagar um valor a partir do qual tem transporte de Maputo a Ponta do Ouro, ida à praia e passeio a barco, mergulho, ida à Reserva de Maputo, visita a outras praias para além de Ponta do Ouro, entre outras actividades.

Uma clarificação dos aspectos acima será igualmente fácil atrair investimento para diversificar a oferta de instâncias e actividades turísticas em Moçambique.

Em relação à cultura da nova ministra espero que possa dar dignidade aos fazedores das artes. Isso se consegue tornando a cultura de facto uma indústria. Uma das coisas que pode ser feito e que vi que funciona muito bem em Cuba é legislar, obrigando que as instâncias turísticas tenham artistas a animar as suas actividades uma, duas ou três vezes por semana. E na hora de pagar cachet aos mesmos a casa faz retenção na fonte do valor que deve ser entregue ao Instituto Nacional de Segurança Social (INSS) para a protecção social do próprio músico, bem como do Imposto sobre Rendimento de Pessoa Singular (IRPS) de modo a contribuir para os cofres do Estado.

Pode se usar a FUNDAC e as embaixadas moçambicanas no exterior para garantir que os nossos músicos, por exemplo, tenham acesso aos diversos festivais de música feitos mundo fora, principal destaque para a Europa que está a consumir e com muita sede a música Africana.

Cuba faz muito bem isso não só para a música, como para o cinema, artes plásticas e artesanato. Por isso em quase todos os festivais de música na Europa há sempre músicos cubanos a actuar. Nas principais galerias de arte do mundo há lá quadros e esculturas de artistas cubanos, o que significa que nós podemos fazer isso.

Por conta da sua estratégia arrojada, Cuba arrecada cerca de 2 mil milhões de dólares por ano só com a cultura. Um músico ou artista que é colocado a actuar fora do país atrai turismo e divisas. Com esse dinheiro ele pode pagar o IRPS e o INSS. E pagando o INSS quando fica doente ou inválido e não pode cantar, pintar ou actuar terá renda para sobreviver. Em caso de morte os seus dependentes menores e cônjuge vão poder ter uma pensão de sobrevivência. E isso dará dignidade aos fazedores da arte.

A obrigação de pagar o IRPS e o INSS dos músicos deve se estender aos organizadores de espectáculos ao nível nacional.

Ainda ao nível de exportação das nossas artes e cultura gostaria de ver os nossos artistas a participar nas feiras, por exemplo, de música que acontecem pelo mundo que é uma forma de expô-los aos produtores e organizadores dos espectáculos. Em Moçambique até agora só tenho conhecimento de Jimmy Dludlu que há três anos tem sua participação na maior feira de Jazz do mundo, o JazzAhead, que se organiza em Bremen na Alemanha em Abril, mas enquadrado no pavilhão do Brasil Music Export por conta de assistência que ele tem com um manager brasileiro. Mas tal pode se extender a muitos outros através de entidades que visam exportar as nossas artes.

É fundamental e essencial convencer os players internacionais da indústria musical ou um investidor a criar uma editora de música em Moçambique. Faz muita falta. Temos muito talento mas perde-se por ai. Durante a campanha eleitoral reconheci talento em músicos como o Confiado de Mecanhelas, o Anaconda de Nacala Porto, entre tantos outros. Mas é preciso haver uma editora para que as criações daqueles jovens cheguem ao público nacional e internacional e eles tenham rendimento com o seu talento.

Essas são coisas aparentemente simples que podem ser feitas, havendo vontade, e que podem dar um outro rumo e visibilidade ao sector de Cultura e Turismo a par do que acontece actualmente como os Festivais Nacionais de Cultura e os Festivais de Música realizados anualmente um pouco por todas as praias nacionais que bem organizados podem ser um excelente atractivo turístico, a par dos locais históricos e algumas práticas tradicionais como os ritos de iniciação entre outros. Mas tem que haver ousadia senhora Ministra Eldevina Materula. É preciso pôr as embaixadas, os operadores turísticos e os diferentes organismos do sector a fazer a sua parte.

Que Deus abençoe Moçambique!

 

 

«Algo mais, para além de tudo»

Nem a discussão e muito menos o problema que a subjaz, são novos. Porém, a entrada em vigor da Lei dos Tribunais de Trabalho (LTT), aprovada pela Lei n.º 10/2018, como corolário consagrativo da previsão interserida no n.º 2 do art. 223 da Constituição da República (CRM), transmutou o centro gravitacional do problema para outros ângulos de abordagem analítica.

Embora o nosso foco se vá centrar, essencialmente, na apreciação da disciplina jurídica aplicável aos pedidos de indemnização por danos não patrimoniais adentro das acções laborais, nem assim se pode prescindir, com vista à sua adequada delimitação conceptual, de uma excursão – ainda que perfunctória – pela matéria dos direitos de personalidade, na medida em que são estes direitos (ou a violação deles) que, em grande medida, fundamentam os pedidos de indemnização por danos não patrimoniais.

Danos não patrimoniais (também designados de danos morais ou extrapatrimoniais) são aqueles que não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, apenas implicam uma compensação. Nestes danos, não há rigorosamente uma indemnização, sendo correcto, em bom rigor, falar-se em compensação ou reparação.

No dizer de SOUSA DINIS, danos não patrimoniais correspondem, finalmente, àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por “pretium doloris” ou ressarcimento tendencial do abalo psíquico emocional, da angústia, da dor física, da doença” (In “Responsabilidade civil e avaliação do dano corporal”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Edição APADAC, Nov. 1999 – Ano VIII – N.º 9, pág. 84).

São distintos dos danos patrimoniais, porquanto estes traduzem-se no reflexo do dano real no património do lesado, ou seja, são os prejuízos susceptíveis de avaliação pecuniária e que podem ser reparados ou indemnizados, directamente (mediante restauração natural ou reconstituição específica da situação anterior à lesão), ou indirectamente (por meio de equivalente ou indemnização pecuniária).

É fulcral reconhecer que a LTT reveste-se de natureza heteróclita, porquanto as suas normas interpenetram-se com as da Lei n.º 23/2007 – Lei do Trabalho (LT) –, o Código de Processo de Trabalho, o Decreto n.º 62/2013 – Regulamento que estabelece o regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais – e a Lei n.º 18/92 – Lei que cria o Tribunal de Trabalho –, modificando e revogando algumas disposições desses mencionados compêndios legais, sendo que, no que concerne a Lei n.º 18/92, a revogação é expressa e total (artigo 49 da LTT).

Com efeito, o art. 28 da LTT elenca as espécies de acções [laborais] consoante o seu fim, determinando que podem ser (i) de impugnação de despedimento, (ii) de impugnação de justa causa de rescisão do contrato de trabalho, (iii) emergente de contrato de trabalho e (iv) de efectivação de direitos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.  

Por sua vez, o art. 12 da LTT fixa as competências do Tribunal de Trabalho, atribuindo-lhe o poder funcional de conhecer e julgar um rol de questões, de entre elas, as questões emergentes daquelas quatro espécies de acções referidas no art. 28, todavia, somente nas questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais é que foi atribuída, ao juiz laboral, competência para conhecer, outrossim, dos danos não patrimoniais deles resultantes, mediante prova (alínea c) do art. 12 da LTT).

É precisamente pelo facto de o legislador ter, agora, adoptado esta postura permissiva relativamente às acções emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais – e só nestas e não nas outras espécies de acções – que salientamos, no primeiro parágrafo do presente artigo, que a entrada em vigor da LTT transmutou o centro gravitacional do problema para outros ângulos de abordagem analítica, na medida em que, antes da sua entrada em vigor, e porque o legislador primava-se por um mutismo silencioso relativamente a este aspecto, não atribuindo nenhuma competência ao juiz laboral para conhecer dos danos não patrimoniais em quaisquer das espécies de acções laborais, a discussão sobre a possibilidade de pedidos de indemnização por danos morais abarcava uma perspectiva holística e abrangente à todas espécies de acções laborais.

Aplaudimos a medida – que só peca por tardia –, mas criticamos a falta de profundidade do legislador, pois tal medida deveria ser expressamente extensiva às acções de impugnação de despedimento, de impugnação de justa causa de rescisão do contrato de trabalho e emergentes de contrato de trabalho.

Tendo, o legislador, somente permitido que se deduzam pedidos de indemnização por danos morais nas acções de efectivação de direitos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, hodiernamente, a questão prende-se em se percepcionar se:

1-Os pedidos de indemnização por danos morais são, ou não, alargáveis às restantes espécies de acções laborais (por via da interpretação extensiva – art. 9 do Cód. Civil – ou por se considerar que esses pedidos são exequíveis por si mesmos, sem necessidade de menção expressa da Lei);

2-Caso não sejam alargáveis às outras espécies de acções laborais, se é legalmente possível formular pedidos indemnizatórios por danos morais resultantes de uma relação jurídico-laboral, numa acção cível autónoma, em paralelo e separado, junto das secções cíveis.

Os cultores do Direito moçambicano digladiam-se de forma titânica na edificação de argumentos visando solucionar as paradoxais questões constantes do parágrafo precedente. Nisto, (1) avultam os que defendem a impossibilidade legal de dedução de pedidos indemnizatórios por danos morais adentro das restantes acções laborais; (2) emergem os que asseveram que se pode formular tais pedidos nas restantes acções laborais, em virtude dos direitos de personalidade, por serem absolutos, são exequíveis por si mesmos, sem necessidade de menção expressa da Lei nesse sentido; e (3) existem os que, além de sufragarem a impossibilidade legal de se formularem tais pedidos nas restantes acções laborais, vão mais longe defendendo que nem se poder-se-á fazê-lo autónoma, paralela e separadamente num fórum estritamente cível.

Desde logo, consideramos que é legalmente impossível deduzir pedidos de indemnização por danos morais adentro das restantes acções laborais, não fazendo qualquer sentido lançar mãos aos mecanismos da interpretação extensiva, visto que não se pode concluir que o legislador, ao confinar exclusivamente tal possibilidade para as acções emergentes de doenças profissionais e de acidentes de trabalho, fê-lo conscientemente e com o propósito explícito de denegar tal possibilidade às restantes acções. A interpretação extensiva obedece regras, sendo que a regra mister do seu manuseamento obriga o intérprete a reconstituir a partir dos textos [letra da lei] o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1 do art. 9 do Cód. Civil).

Este exercício hermenêutico e exegético é dispensável in casu, visto que, bem ou mal avisado, o legislador não disse menos do que pretendia. Muito pelo contrário! O legislador tencionou que a disciplina a que estão sujeitos os critérios de indemnização nas restantes acções laborais seguisse unicamente o esquema de cálculo de indemnizações previsto na LT (designadamente, n.ºs 2 e 3 do art. 128, n.º 3 do art. 130 e parte final do n.º 3 do art. 135, todos da LT).  

Consequentemente, também não se pode falar de uma putativa lacuna da lei, susceptível de originar o recurso às regras de integração de lacunas da lei (art. 10 do Cód. Civil), onde o intérprete teria a faculdade de recorrer a casos análogos (n.º 1 do art. 10 do Cód. Civil) ou resolver a situação lacunosa segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema (n.º 3 do art. 10 do Cód. Civil), tão-somente porque não há lacuna. O legislador não deixou de legislar sobre uma matéria que reclama por previsão legal, mas sim, propositadamente, elidiu a possibilidade de se deduzirem pedidos indemnizatórios por danos morais nas acções laborais que não sejam as destinadas a efectivar direitos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

Entretanto, é nosso entender convicto que o legislador devia ter estendido a possibilidade de dedução de indemnização por danos morais para todas as espécies de acções. Muito se discute as razões inviabilizadoras dessa possibilidade, o que, no nosso entender, não faz sentido, pois não se deve confundir a violação de direitos laborais (os que dão azo à indemnização cujo esquema de cálculo consta da LT e funda-se essencialmente na antiguidade e no salário do trabalhador) com violações aos direitos de personalidade do trabalhador, causadores de danos não patrimoniais (cujos critérios da indemnização devem estar subordinados aos princípios norteadores da responsabilidade civil, mediante demonstração da prova dos danos morais verificados, em consonância com o n.º 1 do art. 496 do Cód. Civil).

O n.º 1 do art. 70 do Cód. Civil, estabelece e consagra o direito geral de personalidade, pelo qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou qualquer ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.  

O Cód. Civil moçambicano consagra expressamente o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (n.º 1 do art. 496), bem como o critério de fixação equitativa da indemnização correspondente (n.º 3 do art. 496 Cód. Civil).  

Uma coisa é violação da lei laboral que dá azo à indemnização prevista na LT; outra coisa, completamente diferente da primeira, e apesar de resultar da relação jurídico-laboral, é a violação de direitos de natureza não patrimonial, os quais possuem tutela legal própria, completamente distinta e autónoma da matriz e critérios que subjazem a violação de normas laborais.

Há que se destrinçar o que é uma violação das normas laborais (provenientes de comportamento culposo da entidade empregadora e que originam uma indemnização baseada no esquema de cálculos da LT) e o que é uma afronta aos direitos de personalidade (oriunda de violação de direitos subjectivos à margem dos direitos laborais, mas decorrentes da relação laboral, cujo ressarcimento deve subordinar-se as regras da responsabilidade civil, propugnadas no Cód. Civil, não se descurando a verosímil possibilidade de emersão do “concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual” – modelo híbrido de responsabilidade civil).

A distopia que esta 'mise-en-scene' cria, chega a ser muito mais grave, pois não só se impedem as deduções de pedidos indemnizatórios nas acções de impugnação de despedimento, acções de impugnação de justa causa de rescisão do contrato de trabalho e acções emergentes de contrato de trabalho, como também se denega – através de um costume jurisprudencial errático – a possibilidade de se intentarem acções cíveis autónomas e em separado (nas secções cíveis) por violação de direitos de personalidade, por acto ou facto decorrente de uma relação laboral.

Ora, isto é brigar frontalmente com os mais elementares princípios do Direito, pois, com a denegação da possibilidade de propositura de acções cíveis autónomas em secções cíveis, desprezam-se de forma acintosa a natureza absoluta dos direitos de personalidade, os quais estão umbilicalmente vinculados à dignidade humana, são direitos inatos, assumem a categoria de direitos fundamentais, sendo, por isso, merecedores de protecção constitucional (art. 41 da CRM).

Sendo certo que a LTT proíbe a formulação de pedidos indemnizatórios por danos morais à margem das acções emergentes de acidente de trabalho e doenças profissionais, entretanto, nada pode fazer soçobrar um trabalhador de enveredar pela propositura de uma acção junto dos tribunais civis, com fulcro no disposto na al. b) do n.º 2 do art. 4 do Cód. de Proc. Civil, que, uma vez recebida e distribuída, caberá ao respectivo autor fazer prova dos danos morais de que alega ter sofrido (n.º 1 do art. 342 e art. 496, ambos do Cód. Civil), e nem se poderá suscitar que estejamos em presença da excepção peremptória de caso julgado (n.º 3 do art. 493, al. a) do art. 496, art. 498 e art. 500, todos do Cód. de Proc. Civil) em virtude de, eventualmente, ter sido sentenciado e transitado em julgado o processo laboral que, com aquela acção cível corria em paralelo, porque fundam-se, ambos os casos, em pressupostos diferentes, causas de pedir diferentes e reportam-se a finalidades também diferentes (violação de direitos do trabalhador ali; violação de direitos de personalidade umbilicalmente vinculados à dignidade humana, acolá).

 

Télio Chamuço

Advogado

Tudo aconteceu no mandato de Mário Guerreiro na FMF. O nome Mambas partiu de dois conceituados músicos e homens do desporto: Mundinho e João Domingos.

Porquê, essa designação para a Selecção de todos nós? Foi a necessidade de conferir mais agressividade e “veneno”, que ajudassem a nossa Selecção. Isso poderá ter sido alcançado, uma vez que ficámos mais de cinco anos sem ser derrotados no Estádio da Machava. Toda a gente referia que tínhamos talento, jogávamos futebol bonito, mas faltava o veneno da Mamba.

 

BOA OPORTUNIDADE PARA O DISCUTIR NOME

Novo ciclo, desafios enormes pela frente, com nova equipa técnica e futebolistas de valor em clubes além-fronteiras. É verdade que a designação para uma Selecção que representa um país com história no futebol, terá que ser bem ponderada.

Ao que sei, a nova FMF pretende lançar um concurso em que o público amante do futebol, e não só, trará sugestões que cada um considere mais apropriadas, para a eventual escolha de uma nova designação.

Haverão, seguramente, os do pró e do contra. Para uns, a Mamba é um animal rastejante, nojento, que até é usado para amedrontar as criancinhas.

Quando perdem, são chamados, de forma pejorativa, por “Minhocas”.

Para outros, a Mamba na natureza, apesar de ser um animal cercado de medos e superstições, é útil, tem uma função que não pode ser vista só pelo lado considerado predador. As serpentes fazem parte de uma cadeia ecológica, tornando-se importantíssimas para o equilíbrio do meio ambiente. E são valentes, não recuando perante as adversidades. Como designação de uma Selecção Nacional africana, originalidade não falta…

É um assunto sensível e galvanizante, pois quando se trata de selecções nacionais, quebram-se barreiras e as pessoas unem-se para celebrar uma auto-estima, esquecendo crises e diferenças.

Daí que o assunto exija razoabilidade e ponderação para que no final, a equipa de todos nós saia fortificada. Moçambique não tem um historial de nomes das suas selecções, nas várias modalidades. Em África, grande parte das selecções africanas tem nomes de animais.

Pessoalmente, talvez por já ser da velha guarda – para muitos um ultrapassado – à partida não me passava pela cabeça a ideia da mudança, pois não me ocorrem designações com mais originalidade e identidade, contendo referências ao país e ao continente.

Mas prefiro esperar, participando, para ver. Emitir uma “decisão”, pessoal, por mais fundamentada que fosse, seria o mesmo que meter-me num vespeiro. Aí, em vez de sentir as picadas da cobra, poderia ser picado por vespas.

 

LUÍS BERNARDO HONWANA, contista e ensaísta, nasceu na então Lourenço Marques (hoje Maputo) em 1942. Jovem de um talento surpreendente, Honwana publicou o seu primeiro livro “Nós Matámos o Cão Tinhoso” em 1964. É considerado um dos precursores da literatura moçambicana, portanto, em outras palavras, ele é o “pai” da moderna narrativa moçambicana. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” é um dos livros moçambicanos mais célebres a nível nacional e internacional, e consta da lista dos melhores livros de autores africanos do século XX. É, por assim dizer, indiscutível que seja um dos livros de maior referência em toda a história da literatura moçambicana.

Após a proclamação da independência nacional, o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foi uma das obras literárias mais importantes no processo de implementação do novo sistema nacional de educação, a todos os níveis, em Moçambique. Eu próprio, e toda a geração literária a qual pertenço, alargamos o nosso imaginário criativo em contacto com o “Nós Matámos o Cão Tinhoso”. Contos como “As Mãos dos Pretos”, “Nhinguitimo”, o próprio conto que dá título ao livro, entre outros, se por um lado, são metáforas duma realidade caracterizada pela dominação e opressão coloniais, por outro lado, são a descrição fiel de várias situações existenciais complexas, características dum mundo, de per si, repleto de contradições. Ademais, são textos que estimulam a qualquer um, seja ele criança ou adulto, aquele imaginário, sem fronteiras, que muitas das vezes nos acompanha a noite adentro, fazendo parte do fluxo de perguntas e respostas ante a problemática da nossa condição humana. E é por isso mesmo que o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” é um livro de dimensão universal.

Luís Bernardo Honwana é também autor de outras obras, entre elas, ensaios sobre a cultura moçambicana, alguns dos quais reunidos no livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco”. Lendo estes ensaios de cariz eminentemente cultural e político, munimo-nos de elementos fundamentais não só para uma melhor compreensão da nossa história recente como, igualmente, dos caminhos possíveis para a edificação duma sociedade com uma identidade própria que seja resultado dos esforços de integração no projecto nacional, sempre actual, da diversidade que caracteriza o nosso Moçambique. São dele estas palavras: “Mas nesta busca valha-nos a certeza de que a coesão que queremos construir será mais forte à medida que, sem forçarmos a obliteração das particularidades de origem, cultura ou etnicidade, for crescendo em cada indivíduo, em cada comunidade, a importância e a extensão daquilo que temos por referência nacionais – valores, crenças, percepções, narrativas, mitos, aspirações, criações do espírito, realizações colectivas – tudo aquilo que, sendo produto da história e da socialização, a todos se imponha como património comum, independentemente da zona do país em que se tenham produzido e da língua em que são propostos e do grupo que primeiro os perfilhou”.
 
Reflectindo sobre o uso da língua portuguesa como instrumento de expressão e realização literárias por parte dos escritores moçambicanos, Luís Bernardo assegura que “kPodemos com orgulho dizer que temos sabido realizar na nossa prática a dimensão nacional que faz com que os nossos concidadãos se reconheçam nas nossas criações. Isso significa que a nossa literatura embora se veicule em língua portuguesa tem tido a preocupação de incorporar e assumir – e se assumir – como o repositório de conteúdos, visões e mundivivências que normalmente se exprimem no universo de outras línguas moçambicanas.” Com efeito, para Luís Bernardo Honwana, o facto de os escritores moçambicanos se exprimirem em língua portuguesa, nem por isso deixam de veicular, com fidelidade, a cultura, o imaginário e a realidade do seu povo, ao qual pertencem de corpo e alma.
 
Numa outra meditação, desta feita, de cariz político, e tomando em conta que em qualquer processo histórico há sempre alguma(s) “urgência(s)” de momento, Luís Bernardo Honwana, debruçando-se sobre a necessidade do debate público dos problemas do país, diz que “São muitos e variados os diagnósticos que estas discussões acabam por oferecer mas as soluções que também se propõem tendem a convergir, em primeiro lugar para a urgência da paz, dada a total sem-razão da guerra e a sua inaceitabilidade como forma de dirimir pendências políticas no processo de funcionamento de um país. Outro ponto comum nas soluções preconizadas é a necessidade de revisão do próprio modelo de desenvolvimento do país, pois as desigualdades e a exclusão, pela dimensão que atingem, só podem ser consideradas como sendo de natureza sistémica – e a sua incidência na tensão político-militar não pode ser ignorada.”

É muito interessante a crítica que o Luís faz à sociedade com relação ao significado e o lugar reservado à cultura em muitas das nossas mentes, algumas até associadas ao poder político. Em nota de autor ao seu livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco”, Luís Bernardo ironiza mas com uma indisfarçada dor no seu imo: “Tipicamente, os nossos comícios começam pela ‘cultura’, isto é, pela actuação de grupos de canto e dança. Quando as pessoas estão suficientemente animadas o comissário pega no microfone, despede os músicos e bailarinos, dá os ‘vivas’ e ‘abaixo’ apropriados e anuncia ao dirigente que o povo está pronto para ‘receber orientações’. Por piada (a gente faz piada de tudo…) o que se entende do gesto do comissário é que há que mandar sair a cultura – tal como se diz às crianças para irem brincar lá para fora – logo que se vá passar às coisas sérias.”

Este escritor, profundamente comprometido com o seu país desde a sua juventude, em 1964 foi preso pela PIDE – a polícia política do colonialismo português – tendo permanecido na masmorra durante 3 anos, pelo facto de se ter associado à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), com o propósito de libertar o seu país do jugo colonial. Homem reservado e de uma sólida e invejável cultura geral, Luís Bernardo Honwana desempenhou igualmente vários cargos públicos, entre os quais, o de Ministro da Cultura de Moçambique. Actualmente, para além da escrita, dedica-se à questões ligadas à preservação ambiental e à conservação da biodiversidade, através da Fundação BIOFUND.

 

 

 

Foi recentemente publicada no Boletim da República (BR) e, presumivelmente, já se encontra em vigor, a nova Lei da Família, aprovada pela Lei n.º 22/2019, de 11 de Dezembro, que revogou, expressa e totalmente, a anterior Lei da Família, concretamente, a Lei n.º 10/2004.

Por imperativos de economia espacial, doravante, tratá-las-emos somente pelas [correspondentes] siglas nominativas: “NLF” no que concerne à nova Lei da Família e “ALF” no que tange à antiga Lei da Família.

Esclarece-se que, acima, fizemos referência explícita a uma “presumível” vigência da NLF, em virtude de constar da NLF que a data da respectiva publicação corresponde ao dia 11 de Dezembro de 2019, mas, no entanto, aquela não foi a precisa data em que o respectivo BR foi, pela Imprensa Nacional, disponibilizado ao público e, se tomarmos em consideração que a NLF estabelece um período de vacatio legis de 30 dias (artigo 442 da NLF), significa que no momento em que se grafa o presente artigo, já nos encontraríamos sob o domínio de vigência da NLF, caso o diploma tivesse sido facultado exactamente na data constante do diploma legal (11 de Dezembro de 2019), visto que já se teriam ultrapassados os mencionados 30 dias de vacatio legis. Entrementes, tendo aquele BR sido somente disponibilizado em Janeiro de 2020, e atentos ao horizonte temporal que delimita a referida disponibilização e a publicação deste artigo de opinião, logicamente que o período nele consagrado de vacatio legis não foi ainda atingido, não se podendo, neste diapasão, afirmar-se, com propriedade, que ela já se encontra efectivamente em vigor. 

A união de facto, por se traduzir num palco onde confluem interesses imateriais (ligados ao sentimento de afectuosidade existente entre os companheiros e, sobretudo, por estar no epicentro das relações jurídico-familiares – da união pode advir a filiação, que se consubstancia numa das fontes do Direito da Família a par do casamento, adopção e afinidade – e ainda aqueles efeitos pessoais da união de facto, como os da presunção da paternidade/maternidade) e interesses patrimoniais (enquadrando todos os bens e direitos avaliáveis pecuniariamente, adquiridos no governo da relação), assume importância capital no que se prende com a necessidade da correcta interpretação das disposições legais e do pensamento legislativo (elemento teleológico) que inspirou o legislador a legiferar num determinado sentido e não noutro.

Com efeito, nunca é demasiado lembrar (de forma a nunca esquecer), que o petit gateau da União de Facto são os seus efeitos patrimoniais e, relativamente a estes, o problema de tratamento legal emerge, em grande medida, após a dissolução da relação (onde, de forma incisiva, cada um os ex-companheiros se digladia com o outro com o fito de fazer ingressar na sua esferas individual os bens adquiridos na constância da relação ou ainda persistindo casos em que um dos ex-companheiros tenciona fraudulentamente se assenhorar de bens de que tem perfeito conhecimento de que foram adquiridos pelo outro companheiro antes da constância da relação de união de facto). É, insofismavelmente, esta a circunstância que mais engrossa o volume processual dos tribunais, quando se está em face de um litígio judicial decorrente de uma união de facto.

Os efeitos patrimoniais acima aludidos podem resultar de um cenário onde os companheiros estão ambos vivos ou ainda depois da morte de um deles, caso em que se se produzem efeitos sucessórios e, por via disso, o regime da união de facto terá de ser conjugado com as disposições da [recentemente] aprovada Lei das Sucessões (Lei n.º 23/2019), na parte atinente a administração da herança e critérios de elegibilidade do cabeça-de-casal, classe dos sucessíveis e qualidade de herdeiro, direito à meação, etc., e sem perder de vista o disposto sobre a matéria noutros diplomas legais, v.g., o Código de Processo Civil (CPC) relativamente ao processo de Inventário (artigo 1326 e ss CPC,) o Regulamento da Segurança Social Obrigatória aprovado pelo Decreto n.º 51/2017, na parte respeitante aos familiares com direitos às prestações por morte, a repartição do subsídio por morte, pensão de sobrevivência diferidos ao unido de facto sobrevivo (seja ela pensão de sobrevivência vitalícia ou temporária), ou ainda na parte disciplinadora da Habilitação de Herdeiros (artigo 87 e ss do Código do Notariado).

A primeira grande alteração carreada pela NLF consta dos pressupostos da união de facto. Se a definição constante da NLF (artigo 207) coincide com a que já vinha plasmada na ALF (artigo 202), no sentido de qualificar a união de facto como sendo a ligação singular existente entre um homem e uma mulher, com carácter estável e duradouro, que sendo legalmente aptos para contrair casamento não o tenham celebrado, entretanto, na NLF, o legislador alterou os limites quantitativos de tempo que se devem verificar para que se possa estar diante da figura da união de facto.

Com efeito, ao abrigo da ALF, união de facto pressupunha a comunhão plena de vida pelo período de tempo superior a um ano sem interrupção. Agora, nos termos da NLF, aquela comunhão deve verificar-se por um período superior a três anos sem interrupção (artigo 207 da NLF). 

O legislador fez coincidir o requisito temporal de produção de efeitos patrimoniais da união de facto – três anos – com o período em que, os cônjuges devem, obrigatoriamente, estar casados caso pretendam lançar mãos a separação judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento (artigo 194 NLF) ou ao divórcio não litigioso (n.º 2 do artigo 200 NLF).

Além da alteração dos pressupostos conducentes à produção de efeitos patrimoniais, o legislador enuncia, na NLF, pela primeira vez e de forma expressa, que a união de facto releva também para efeitos sucessórios e outros previstos em demais legislação (uma enunciação, diga-se de passagem, pleonática e redundante, pois, ainda que o legislador não o frisasse, os efeitos sucessórios produzir-se-iam na mesma, porquanto eles obtêm-se ope legis, i.e., por força da Lei, desde que verificados os elementos constitutivos que, à luz da Lei (ex: Lei das Sucessões, Regulamento da Segurança Social Obrigatória), provocam aqueles efeitos.

Na NLF, o legislador regulamentou o regime da uniao de facto, introduzindo as figuras do reconhecimento administrativo da existencia e cessação da união (artigos 209 e 210 da NLF) e reconhecimento judicial da existência e cessação da união (artigo 211da NLF). No domínio da ALF, a prova da união de facto era essencialmente testemunhal, no sentido de ser necessário o depoimento confirmativo de terceiros que atestassem que um determinado casal teria residido em plena comunhão de vida por um período superior a um ano.

Ainda que seja do conhecimento público que, a pedido de somente um dos companheiros, as Autoridades Administrativas e/ou Municipais, emitiam documentos confirmativos daquela união, e pretendiam que tais documentos valessem como documentos autênticos nos termos do artigo 371 do Código Civil, que, como se sabe, possuem uma punjante força probatória, na medida em que fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, no dizer de TOMÁS TIMBANE (sic): considerando que a união de facto é uma situação que as autoridades locais não terão acompanhado, pode, pois, dizer-se que não se trata de facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora”; então o documento não faz prova plena, podendo arguir-se e provar que a união de facto não existiu ou que não existiu durante determinado período (In Reconhecimento Judicial da União de Facto, Monografia, 2010, p. 15).

Por isso, a possibilidade legal de reconhecimento administrativo da existência da união de facto, atestada por certificado passado pela autoridade administrativa da área de residência dos companheiros, mediante declaração destes, feita conjuntamente, desde que estejam reunidos os pressupostos previstos no artigo 207 da NLF, traduz-se numa medida que evita o enviesamento e falsidade das declarações que antes, do domínio da ALF, eram passadas por Autoridade que não tinham acompanhado a união de facto e, como se não bastasse, somente a pedido de um dos companheiros.

Se se aplaude a instituição do reconhecimento administrativo, o mesmo já não se poderá dizer do reconhecimento judicial (artigo 211 NLF), nos termos do respectivo n.º 3, o pedido de reconhecimento da existência ou cessação da união de facto pode ser cumulado com os pedidos relativos à efectivação dos efeitos da união de facto, com as necessárias adaptações.

Ora, esta previsao ínsita no n.º 3 do artigo 211 da NLF traz problemas insanáveis sob o ponto de vista processual, pois, sabe-se, de forma sobeja, que a efectivação dos efeitos da união de facto é realizada, mormente, através da acção especial de divisão de coisa comum (artigos 1412 e 1413 do Código Civil) que, nos termos do artigo artigo 1052  do CPC, segue a forma de processo especial. Por sua vez, o reconhecimento judicial da existência ou cessação da união de facto segue a forma de processo comum (n.º 2 do artigo 460 do CPC).

É proibido cumular esses dois tipos de processos (especial e comum) da mesma forma que se proíbe a cumulação da acção de divórcio litigioso com a acção destinada a partilha de bens do casamento que se pretende pôr fim através do antedito divórcio.

A propósito, refere ABÍLIO NETO (sic): «é doutrina dominante ser a coligação admissível quando a diversidade de forma de processo, derivada unicamente do valor, se verifique entre acções de processo comum ordinário e sumário. Já a cumulação não será possível entre acções especiais, nem entre estas e acções com processo comum» (In Código de Processo Civil, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1994, p. 65)

Ora, o processo pode ser comum ou especial (n.º 1 do artigo 460 do CPC) e, por sua vez, o processo comum é ordinário e sumário (n.º 1 do artigo 461 do CPC). O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial (n.º 2 do artigo 461 CPC).

O que é cumulável são acções de processo comum (ordinários com sumários), mas nunca se pode cumular processo especial com processo comum, pois cada processo especial tem a índole de forma excepcional de processar, contraproposta à forma comum. Noutros termos: cada processo especial é único e, em confronto com o processo comum, uma excepção à regra.

Uma nota final relativamente as uniões de facto já constituídas e as uniões de facto iniciadas na vigência da ALF:

Nos termos preceituados da NLF, ficam salvaguardados os efeitos das uniões de facto que, à data da entrada em vigor da NLF, já preenchiam os pressupostos de relevância previstos na ALF, ou seja, aquelas relações que já se tinham constituído com carácter estável e duradouro, em comunhão plena de vida pelo período de tempo superior a um ano sem interrupção.

Por sua vez, e sentido oposto, a NLF é imediatamente aplicável às relações que à data da sua entrada em vigor não preencham os requisitos de relevância como uniões de facto previstos na ALF, o que equivale dizer que todos os casais que já residem juntos à altura da entrada da NLF, mas que não tenham perfeito um ano ininterrupto de convivência mútua, só se considerarão unidos de facto após perfazerem três anos de comunhão plena.

 

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

À Hortência Madalena e Jennifer Banze pelas luzes

 

“Escrever a Terra” é uma obra literária da autoria do escritor moçambicano, Marcelo Panguana, publicada em Novembro de 2018. Está dividida em três capítulos, nomeadamente: As palavras amadurecem; Cartas do fim do mundo; No colo da escrita.

Na presente reflexão, interessa-nos captar os ecos, que são vários, sobre a definição de leitura, a formação de leitores na obra em alusão, com enfoque nos primeiros textos do segundo capítulo, especificamente: “Saber ler” e “Carta à Sónia Sultuane”.

A leitura em “Escrever a Terra”

Indubitavelmente, uma das grandes preocupações do sistema educativo nacional está ligada à leitura, necessariamente à falta desta, uma questão que começa a agigantar-se e cujos reflexos são visíveis em níveis alarmantes de uma certa pobreza epistemológica, baixo saber enciclopédico, cultural, social, dificuldades tremendas na resolução de conflitos, fragilidades no ingresso à atitudes hediondas, entre outros. Na estrada duma reflexão acerca, começaríamos por questionar sobre o conceito de ler ou leitura no qual Panguana (2018:82) afirma que “Há quem pense que a leitura é apenas esse acto de ler aquilo que se encontra gravado num livro, em algum jornal, em qualquer revista ou mesmo na própria areia”. Categoricamente, Panguana propõe-nos uma visão de leitura, acima da descodificação de elementos tipográficos, considerando que, para muitos, um analfabeto seria aquele “que se encontra incapacitado de decifrar os sinais alfabéticos, isto é, de ler e de comunicar, em suma, de se desenvolver”. Será?

O que é, então, leitura? A quem consideraremos analfabeto? Já vimos que para Panguana, o acto de ler não está apenas associado à tipografia, mas à vida no seu todo, de tal forma que “um camponês do lugar mais recôndito deste país sabe prever a proximidade da chuva, “lendo” a configuração das nuvens e a velocidade do vento”. A par de Marcelo Panguana, Mia Couto também apresenta-nos uma visão similar, veja-se “Sou biólogo e viajo muito pela savana do meu país. Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros, mas que sabe ler o seu mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto”. Na esteira do debate que Panguana faz, surge-nos uma constatação, segundo a qual, este propõe uma visão mais abrangente e perlocutória da leitura, ou seja, a leitura não deve ser uma finalidade em si e nem limitada aos livros, a importância da leitura não deve ser verificada e terminada no acto de ler. Panguana propõe que as leituras feitas devem apresentar resultados positivos, isto é, devem-se reflectir na sociedade (no mundo do leitor), nas atitudes e, quiçá, no que este for a escrever depois desta leitura seja uma de caractéres seja da vida. Neste caso, Ler é viver, interpretar, compreender e agir. Em suma, o leitor deve exercer a sua actividade sob todas as vertentes possíveis e permitir que a sua leitura refulja no seu quotidiano, veja-se “podemos ser ilustres académicos dotados de uma invejável formação, mas nada seremos capazes de acrescentar à sociedade a que pertencemos se não formos capazes de fazer a “leitura” das coisas que nos rodeiam e sobre as quais assenta o conhecimento, isto é, a cultura”. Nesta senda, a leitura é ainda mais útil quando se faz a intersecção entre o escrito e o vivenciado.

A formação de leitores em “Escrever a terra”, de Marcelo Panguana

Depois de, com brevidade, termos reflectido sobre a importância da leitura ou a visão do conceito leitura nesta obra, compete-nos agora perceber o processo de formação de leitores à luz desta obra.

Em 2019, estava previsto que tivessem lugar as 10as Jornadas da Língua Portuguesa, na Cidade da Beira, entre os dias 2 e 3 de Maio, o que acabou não acontecendo devido ao Ciclone IDAI que abalou aquela parcela do país na época. Mais tarde, em Setembro, o evento realizou-se na Cidade de Maputo, na Universidade Pedagógica de Maputo, concretamente na Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes. O que nos faz trazer estas jornadas é o lema das mesmas, que foi: Língua Portuguesa, Literatura e Formação de Leitores.

Se se verifica deficiências no convite à leitura aos potenciais leitores, então tem que se pensar na formação de leitores. Foi por esta causa que o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, a Universidade Pedagógica e a Universidade Eduardo Mondlane levaram a cabo estas jornadas.

Falar da formação de leitores é outrossim buscar estratégias viáveis para desenvolvimento do gosto pela leitura voluntária, mas como o fazer? Não é uma tarefa fácil, mas é necessário que ajamos todos juntos, ou seja, a escola e suas entidades administrativas, os encarregados de educação, a comunicação social, os escritores, entre outros afins. É preciso fazer com que o livro seja um elemento aliciante para o potencial leitor. Não bastará a leitura na sala de aulas ou recomendação (às vezes desorientada e simples) de obras a serem lidas, embora tudo isso seja importante, o potencial leitor precisa sentir a necessidade de o ler. É preciso que se promova encontros mensais com escritores nas escolas, nos parques ou nas praças, precisamos ter mais concursos escolares em que os prémios sejam livros, os professores, não só os de Língua Portuguesa, devem ser leitores natos que por si só incitem à leitura e configurem-se como modelos para os potenciais leitores, é preciso sensibilizar os pais e encarregados de educação a facultarem uma hora de leitura aos seus educandos, diariamente, que a comunicação social publicite e “venda” a ideia do gosto pela leitura voluntária e outras estratégias que podem complementar ou reorientar as que trazemos. Na acepção de Panguana (2018), em “Carta à Sónia Sultuane”, “o livro é um novo fenómeno que percorre a nossa sociedade. Por conseguinte, a leitura tornou-se uma inadiável exigência”, CONTUDO, “o livro não tem sido capaz de chegar onde o leitor se encontra, não por suposta incapacidade financeira, mas em meu entender, pela ausência de estratégias eficazes e adequadas a nossa realidade”.

Cientes de que teremos trazido alguns pontos que causarão controvérsia, mas também algumas bases para outros mais questionamentos que nos propiciarão alicerces úteis para a redução ou colmatação da falta de leitura e reflexão, encerramos este texto com o seguinte pensamento de Marcelo Panguana: se quisermos ter uma sociedade culta e desenvolvida, se tivermos a ambição de atingir os níveis que tornaram alguns países um exemplo a seguir, devemos criar entre nós, com a urgência que se exige, uma nova paixão: a paixão do livro, da leitura e escrita.

 

Bibliografia

PANGUANA, Marcelo. Escrever a Terra. Maputo, Alcance Editores, 2018.

 

Quanto tempo leva o tempo para nos despachar? quanto tempo o tempo precisa para se desfazer de nós e seguir adiante aparentemente voando para os seus próximos afazeres ditando o seu próprio destino? É a questão que surge quando caminho pela cidade de Maputo, a “dejá connu Delagoa Bay ou Lourenço Marques”, como provavelmente terá dito Mac Mahon em 1875 quando se encontrava a arbitrar o conflito que definiria a fronteira sul de Moçambique.

Da escrita “Av. Pinheiro Chagas” constante em um dos edifícios da actual avenida Eduardo Mondlane até a escrita “A Linha Portuguesa” no edifício multi-color instantaneamente do lado oposto a Casa de Ferro de Maputo, na avenida Samora Machel (Ex. Dom Luís) passam-nos diversas marcas deixadas pelo tempo que, para muitos cidadãos, são incubadoras de diversas questões, como é o caso das inúmeras salas de cinema já encerradas cujos traços fazem-nos pensar que foram, em tempos, locais onde se cultivava a cultura.

Foi exactamente sobre as salas de cinema da cidade de Maputo e Matola que recentemente vi-me entretido em uma conversa nostálgica com dois amigos meus, afim de dar alento a curiosidade e encontrar resposta para algumas questões. Armando Lote Mate, nascido em 1942, que, se não fosse a sua obstinação, quase via o seu nome alterado para Armando Lopes Matos por sugestão do seu padrinho de Baptismo, João Mateus (de quem herdou-se o nome da paragem de chapas cita na cidade da Matola), recorda os tempos de glória nas salas de cinema da então Lourenço Marques. Geralmente, após uma tarde de futebol no campo João da Silva Pereira (Maxaquene) ou no campo Freitas e Costa (Ferroviário, na baixa) seguia ao abrigo de um autocarro de marca Leyland ou Guy até ao Cinema Império, que tinha como proprietário o Senhor Salamago, isso quando não fosse ao cinema Olímpia, Tivoli (do senhor Julio Rito) ou São Gabriel. Não podia, obviamente, devido as restrições de raça, frequentar os cinemas Dikha (cine-teatro Gilberto Mendes) Xenon, Charlote, Gil Vicente, Scala, Manuel Rodrigues (cine África) ou cinema Nacional (Centro Cultural da UEM).

Feliciano José Fernandes Jofane, nascido em 1949, que também, graças a sua obstinação, conseguiu, contrariando a sugestão do seu padrinho, manter o apelido “Jofane” no seu nome, recorda ainda do cinema São Miguel (Assembleia da República), cinema Infante, cinema Machava e Cinema 700.

Os ingressos custavam, por exemplo, no cinema Império, entre 6 escudos (sentados no chão) 7 escudos (cadeiras frontais) e 10 escudos (cadeiras traseiras cimeiras). O porte da caderneta indígena ou cartão de identificação (para os assimilados) era imprescindível pois os filmes dispunham de restrições de idade. Os filmes que ainda pairam na memória destes dois amigos são: Sodoma e Gomorra, Sansão e Dalila, The good, The bad and the ugly, Trinital e Bud Spencer, Ali Baba e os 40 Ladrões, Madala Bêbado, dentre vários outros que eram frequentemente exibidos.

No cinema Império, na avenida Angola, era comum que os geradores do senhor Salamago, parassem de funcionar no meio do filme devido, geralmente, a falta de gasolina. Para que os clientes não ficassem prejudicados recebiam um carimbo na palma da mão que os permitisse ter livre trânsito imediatamente no dia seguinte para concluir o filme. Porém, manter o carimbo exigia um esforço adicional que era de não passar água por cima para não o perder. Os jovens, fanáticos dos filmes da “cowboyada” ou de “Karate” descobriram, com o tempo, que humedecendo as mãos, era possível duplicar o carimbo passando-o a outro jovem que não estava presente na sala do cinema, ganhando assim o ingresso para também “voltar” no dia seguinte. De certeza que o senhor Salamago ficava atónito ao ver o número de expectadores quase a dobrar.

As salas em causa eram bem cuidadas, cadeiras funcionais, limpeza impecável, lâmpadas fundidas eram substituídas sem demora, os lavabos também eram funcionais e não se viam as teias de aranha em alguns cantos. Mas, melhor que tudo isso, era a consistência na exibição de filmes e a dispersão geográfica ao longo da cidade desses pontos de exibição, o que permitia acessibilidade e abrangência.

Em suma, não se sabe ao certo como tal sucedeu, mas, o facto é que até a década 90 maior parte das salas de cinema, se não quase todas, já estavam encerradas. Talvez tenha sido o advento da televisão e do VHS que permitiu com que maior parte dos cidadãos pudesse, em sua própria casa, ou nos cinemas improvisados no interior dos bairros, passar a ver filmes e outros programas televisivos.

É impossível, ao passar por uma dessas relíquias, em tempos, expressão do reinado da 7ª arte, e hoje armazéns, igrejas, ou simplesmente encerradas, e não se ter a sensação de que o tempo despachou-se de nós e deixou saudades.

 

No seu livro Elementos de semiologia, Roland Barthes designa a língua como uma instituição social e um sistema de valores. Para aquele estudioso francês, a língua afirma-se como a parte social da linguagem, visto que um indivíduo, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la. O que Barthes pretende dizer, essencialmente, é que a língua, enquanto conjunto de regras, é um contrato colectivo ao qual os falantes devem submeter-se em bloco, se quiserem comunicar.

As características sobre a língua apontadas por Roland Barthes são extensivas a todas às línguas do mundo, inclusive as bantu, com o mesmo valor de preservar e transmitir a cultura dos seus falantes ao longo do tempo. No entanto, para sobreviver, não basta que a língua seja um sistema de valores e esteja socialmente estabelecida, é fundamental que aumente o seu número de falantes e adapte-se às várias transformações tecnológicas e científicas que acontecem, pois, num mundo tão “globalizado” o diálogo multicultural tem-se estabelecido com maior velocidade, obrigando, muitas vezes, que certas línguas dominem as outras, o que a longo prazo pode determinar o desaparecimento das “fracas”.

Este artigo intitula-se As limitações das línguas bantu (moçambicanas) porque, se, por um lado, cada idioma falado no país apresenta suas especificidades e pertence ao seu grupo étnico próprio, por outro, todos partilham os mesmos dramas no que concerne ao futuro. A verdade é uma. Há um enorme risco de pelo menos algumas línguas bantu faladas em Moçambique desaparecem, por exemplo, daqui a 200, 300 ou 500 anos. A razão desse risco está no facto de, em muitos casos, as línguas bantu de Moçambique estarem circunscritas a um lugar ou região. Ou seja, mesmo no caso do emakhuwa, a mais falada de Moçambique, cobrindo toda a região Norte e parte da Zambézia, no Centro, não tem uma dimensão nacional como o swahil na Tanzania. Logo, um makhuwa que não fale português ou outra língua de origem europeia não tem como se comunicar com os seus compatriotas do sul do Zambeze. Esta situação, muitas vezes, obriga os falantes a investirem mais na língua oficial ou no inglês, francês e espanhol porque disso advém um factor de oportunidade: emprego, negócios ou educação escolar. Por isso, não poucas vezes, há cada vez mais pais e encarregados de educação a matricularem os seus filhos em escolas que lecionam em línguas estrangeiras, afastando, propositadamente ou não os adultos de amanhã da sua cultura, que se manifesta através de uma determinada língua.

Este cenário limita o desenvolvimento das línguas bantu, pois, ao invés de aumentar o número de falantes, vai perdendo gradualmente de geração em geração. Além disso, os poucos que ainda falam as línguas bantu vão se afastando do rigor linguístico de tal modo que ao fim de cada frase recorrem ao português para buscarem certos vocábulos por já não saberem o nome de um objecto na sua língua de origem. E o problema não termina por aqui.

Como referimos acima, o desenvolvimento tecnológico traz para o léxico contemporâneo muitas palavras novas, criadas essencialmente a partir do inglês, a língua que domina o mundo. Ao inserirem-se no contexto bantu, esses termos não passam por uma tradução. Pelo contrário, entram como neologismos, pelo facto de não terem formas próprias de designar, por exemplo, telemóvel, televisão ou internet. Logo, o facto de as línguas bantu serem demasiadas limitadas do ponto de vista tecnológico, faz com que estas a esse nível sejam dependentes das outras.

Em suma, enquanto as línguas bantu continuarem com as limitações presentes, no que concerne ao aumento de falantes e adaptação aos novos tempos, o que implica acompanhar o desenvolvimento da ciência; enquanto não ultrapassarem o domínio comunitário e estenderem o raio da leitura e escrita a mais indivíduos, dificilmente se tornarão competitivas, pois o tempo e o contexto mundial conspiram para que as mesmas desapareçam.

 

 

Em alturas assim, só as Pequenas Coisas acabam por ser ditas. As Grandes Coisas permanecem latentes.

Arundhati Roy

 

Para começar, o campo literário de Léo Cote é de palavras, e não de areia. Entretanto, a areia também é uma palavra, que simbolicamente representa princípio e fim, vida e morte. Os mais devotos acreditam que a Humanidade é produto de terra e, muitos deles, é para o (sub)solo que regressam. Então, a alusão à areia no título do terceiro livro do poeta pode suscitar interpretações de género ou de outra amplitude. Mas não é por aí que se pretende caminhar. Esta é apenas uma espécie de exórdio, evidentemente, sem nenhum rigor.

Indo ao que realmente interessa, bem se sabe, Campo de areia, de Léo Cote, publicado pela Fundação Fernando Leite Couto, é um livro constituído por dois cadernos complementares: gravuras e inclinações geométricas. No livro, uma linha de leitura passível de ser desenvolvida atrela-se a três factores: objectos, seres e espaços. Neste terceiro caso, facilmente denota-se que as superfícies permanentemente apresentadas nos textos situam os sujeitos de enunciação em relação a uma imagem onírica construída com padrões de realidade e, por conseguinte, projectam o olhares daqueles em vários meios, como se a pretensão fosse levar à poesia alguma peculiaridade naturalista ou impressionista.

São os espaços que nesta escrita de Léo Cote permitem um tácito movimento aos versos, à medida que, vezes sem conta, as falas dos sujeitos deslocam-nos de um sítio ao outro, vagarosamente. Com isso, o universo encantado criado evidencia a atmosfera de um Moçambique possível e raro, fonte da subtil porção da transfiguração literária. Por exemplo, se a rua e a estrada em Cote são passagens para a captação de certa emergência, a casa (que às vezes adquire feições antropomórficas) e o cais são lugares de onde se projecta a emoção do sujeito poético sobre as coisas simplórias e graves.

Na verdade, o cais, o mar e os rios, principalmente, aparecem nos poemas a definirem-se como locais enigmáticos e sedutores, por isso ali sobrevoarem gaivotas. Em geral, com raras referências a abelhas, andorinhas e crianças, os seres mais convocados ao terceiro livro de Léo Cote são os pássaros, responsáveis por pintarem a paisagem e nela construírem um lugar além do real, mas sem ser surreal. Com os pássaros, esses protótipos da liberdade, a poesia floresce, ganha um carácter concreto, mais visual e expande-se numa direcção vertical. As aves dão pulsação à escrita de Cote. Todavia, ainda assim, essa mesma escrita toca uma dimensão escatológica, quando a morte – “um princípio sempre ao nosso encontro” (p. 26) – é convocada com insistência.       

Quanto aos objectos, estes, em Campo de areia, são capazes de contrariar o impossível, fazendo do tempo e do dia coisas tangíveis: “O tempo é uma casa grande/ que apodrece devagar” (p. 17). Do mesmo modo, objectos como barco, amuletos, muletas, de forma fragmentada, satisfazem a necessidade de Léo Cote tornar a sua poesia, nos dois cadernos, algo exterior, como se assim “arranca-se a beleza máxima das coisas” (p. 40). Mais do que essa, a seguinte passagem é muito clara em relação à preferência aos objectos (coisas): “Começo a conhecer-me nas coisas/ porque tudo em mim está baço e embaciado/ como uma vetusta ferida/ as coisas concretas dão razão a minha inteligência/ e um desejo forte de me deixar possuir por tudo/ de me abrir inteiro para o que há” (p. 81).

A inserção dos objectos, seres e espaços nos textos tornam Campo de areia um livro mais ou menos sensitivo e muito ambiental. Tal vertente é importante pois o poeta consegue, através das delicadezas da arte literária, pintar o planeta de cores bonitas, distanciando-se dos cataclismos criados pelo Homem. Com Campo de areia Léo Cote assume-se poeta da vida, ora solidário com as crianças, ora entregando-se ao que a Natureza tem de melhor, sem grandes aspirações. Portanto, este também é um livro sobre a indispensabilidade das pequenas coisas, num contexto em que os humanos dão tanto azo à megalomania.   

 

Título: Campo de areia

Autor: Léo Cote

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 14

Sophia de Mello Breyner Andresen é uma das mais importantes poetisas ou, se se quiser, poetas de língua portuguesa do século XX. Criada numa tradicional família aristocrata portuguesa, viu a claridade do dia a 6 de Novembro de 1919 no Porto. Dinamarquesa de origem, pelo lado paterno (Andresen), frequentou o curso de filologia clássica na universidade de Lisboa.

Senhora duma extraordinária sensibilidade poética, Sophia tem uma vasta obra literária, entre poesia, ficção (incluindo contos infantis), teatro, traduções, ensaio, e é duma dimensão tal que quase toda a sua obra considero-a de leitura obrigatória. Traduziu para a língua portuguesa autores como Shakespeare, Dante, Claudel, entre outros.

Conheci pessoalmente Sophia de Mello no longínquo ano de 1989, em Lisboa, aquando do primeiro congresso de escritores de expressão portuguesa. Lembro-me que foi numa tarde, depois de uma das sessões do congresso, que ela decidiu convidar alguns escritores, entre os quais eu próprio e o angolano Luís Kandjimbo, à sua residência, no Largo da Graça, para uma cavaqueira regalada com um bom vinho e alguns versos à mistura. Depois acabamos nos tornando amigos e passei a visitá-la regularmente, tendo então se transformado numa espécie de orientadora minha em matéria de leituras. Sophia teve, por isso mesmo, uma grande influência não só na minha formação literária como também na minha própria abordagem poética.

Aprendi com Sophia que um poema é aquele que encerra uma moral em si mesmo, porque, na verdade, a busca da poesia é a busca do equilíbrio do ser com as coisas. E é aqui onde reside a unificação entre “as leis” da ética e da estética na literatura. No seu texto “Arte Poética III” Sophia aborda esta questão da seguinte maneira: “E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras.”

Realmente, as leis que regem a poesia são as mesmas leis do equilíbrio intrínseco das coisas, do ordenamento harmonioso que emerge de dentro para fora do poema; por isso, ainda em “Arte Poética III” diz Sophia: “A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência.”

Sophia ensinou-me outrossim a aguardar pacientemente pelo poema. Um poema não se busca, não se força a qualquer custo só para passar a constar do papel. Um poema não é um meio, mas um fim em si mesmo. Um poema é quando é para ser, um poema acontece quando é para acontecer. Em “Arte Poética IV” Sophia explica: “Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinha pedido a mim própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema falou quando eu me calei e se escreveu quando parei de escrever. Ao tentar escrever um texto em prosa sobre a minha maneira de escrever «invoquei» essa maneira de escrever para a «ver» e assim a poder descrever. Mas, quando «vi», aquilo que me apareceu foi um poema.”

 

Há quem tenha definido a poesia como “uma especialização de espírito, uma forma peculiar de educação”, mas Sophia, como que a corroborar com esta definição, inverte simplesmente os termos da mesma equação afirmando, em “Arte Poética II”, que “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu a posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna.” Com efeito, e muito acertadamente,  uma “arte do ser” é justamente uma especialização do espírito, e não uma especialização técnica e/ou artesanal. Portanto, as duas definições que aparentemente parecem ser contrárias uma da outra são, na verdade, uma e mesma coisa, quando direccionadas na perspectiva do ser como sujeito poético.

É interessante notar que esta aristocrata desde cedo interiorizou e assumiu o amor ao seu país, chamou para si a dor e solidariedade para com a maioria esfaimada e desfavorecida da sua pátria, aprendeu a decantar a verdade da mentira, como, aliás, se pode depreender no poema a seguir:

Pátria

Por um país de pedra e vento duro

Por um país de luz perfeita e clara

Pelo negro da terra e pelo branco do muro

 

Pelos rostos de silêncio e de paciência

Que a miséria longamente desenhou

Rente aos ossos com toda a exactidão

Dum longo relatório irrecusável

 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

 

E pela limpidez das tão amadas

Palavras sempre ditas com paixão

Pela cor e pelo peso das palavras

Pelo concreto silêncio limpo das palavras

Donde se erguem as coisas nomeadas

Pela nudez das palavras deslumbradas

 

– Pedra rio vento casa

Pranto dia canto alento

Espaço raiz e água

Ó minha pátria e meu centro

 

Me dói a lua me soluça o mar

E o exílio se inscreve em pleno tempo.

 

(In 'Livro Sexto’)

 

Dona de uma inteligência e cultura singulares, e de “um obstinado rigor” na arquitetura do poema, Sophia de Mello Breyner Anderson, agraciada, entre outros, com o prémio Camões (1999) e prémio Rainha Sofia (2003), morreu em Lisboa a 2 de Julho de 2004. Seu corpo repousa, desde 2014, no Panteão Nacional.

 

 

 

 

«Algo mais, para além de tudo»

Considerações sobre a eventual violação do princípio constitucional da laicidade do Estado e mérito ou demérito da incriminação

É, irrefragavelmente, das novidades mais salientes e chamativas de entre o rol dos novos tipos legais de crimes introduzidos pelo novo Código Penal (CP), recentemente promulgado, faltando somente a respectiva publicação no BR.

O conteúdo normativo da previsão do crime sobre o qual, aqui, nos focamos – “aliciamento material de fé” – enquadrado na [também nova] secção denominada “abuso e exploração de fé”, preceitua que «quem, por meio de artifícios enganosos ou publicidade, aliciar crentes de uma religião ou culto a alienar ou entregar dinheiro ou bens como contrapartida de sua participação ou promessa para o enriquecimento é punido com a pena de prisão de 1 mês a 2 anos e multa até 1 ano».

Esta norma – e sobretudo a amplitude da intromissão do Estado na esfera das confissões religiosas – não encontra – isto é seguro – paralelo em nenhuma outra do ordenamento jurídico moçambicano, aprovada e colocada em vigor no período pós-independência, advindo desta circunstância, não só o seu caracter inédito, mas, sobretudo, a natureza originária da necessidade da sua perfeita interpretação, pois, tendo em conta a temática dentro da qual se enquadra o vertente crime – liberdade de religião e culto – aliada à verosimilhança do sentido, alcance e extensão da norma poderem restringir direitos dos respectivos crentes e/ou das confissões religiosas, ela [a temática] faz automaticamente emergir questões atinentes ao princípio da Laicidade do Estado, expressamente consagrado na Constituição da República (CRM), que, por sua vez, consoante as conclusões que forem sendo extraídas, podem suscitar juízos de inconstitucionalidade.

O ponto de partida para deslindar o paradoxo, é a perfeita compreensão do significado do princípio da Laicidade do Estado estabelecido no artigo 12 da CRM, cujos números que o encorpam estatuem que: «a República de Moçambique é um Estado laico» (n.º 1); «a laicidade assenta na separação entre o Estado e as confissões religiosas» (n.º 2); «as confissões religiosas são livres na sua organização e no exercício das suas funções e de culto e devem conformar-se com as leis do Estado» (n.º 3); «o Estado reconhece e valoriza as actividades das confissões religiosas visando promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o bem-estar espiritual e material dos cidadãos e o desenvolvimento económico e social» (n.º 4).

Posto isto, mostra-se pertinente convocar-se um Acórdão lapidar no que concerne à discussão sobre o princípio da Laicidade do Estado, concretamente, o Acórdão do Tribunal Supremo (TS) datado de 27 de Dezembro de 1996 e proferido à luz do Proc. n.º 1/96-CC, que, na altura, agia ao abrigo dos “poderes transitórios” que o artigo 202 da CRM de 1990 lhe conferia, no sentido de o TS acumular as suas atribuições com as do Conselho Constitucional (CC), enquanto esta última entidade não entrava em funcionamento.

Realça-se que, embora o Acórdão em apreço não fixe jurisprudência e nem tampouco se pode pretender elevar os critérios da decisão por ele emanado à categoria de “regra de precedente”, ainda assim, ele funciona como um farol luminoso na compreensão de aspectos capitais incidentes sobre o vertente paradoxo, na medida em que, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 8 do Código Civil, «nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito».

O acórdão em apreço – embora respeitante a um pedido de apreciação preventiva da constitucionalidade de uma Lei que então instituía feriados nacionais para as datas de Ide-Ul-Fitre e Ide-Ul-Adha – traz, de forma elucidativa, as lamparinas necessárias conducentes à correcta interpretação que se deve realizar em torno do significado da Laicidade do Estado, sendo que, nos termos do daquele aresto, o TS, fazendo as vezes do CC, prolatou que a laicidade do Estado tradicionalmente encontra expressão na separação entre o Estado e as igrejas, assente em três princípios fundamentais, designadamente: [1] a secularização do poder político, [2] a neutralidade do Estado perante as igrejas e [3] a liberdade de consciência, religião e culto.

Na essencia, Laicidade do Estado significa dizer que o Estado, em respeito pela liberdade de religião e culto, deve guardar neutralidade em matéria religiosa, de modo a abster-se de tomar partido por uma religião e de conceder-lhe favores em detrimento das outras. Dito de outro modo: o Estado não pode identificar-se com nenhuma confissão religiosa. Num Estado como o nosso, este princípio ganha importância subida, porquanto Moçambique é, reconhecidamente, um país multicultural (nas suas vertentes étnica e religiosa), o que propicia a proliferação de inúmeras confissões religiosas, autónomas entre si e autónomas relativamente ao Estado, cada uma com a sua doutrina, ritos, costumes e modus faciendi.

Todavia, desengane-se quem pensa que tal factologia deva significar que o Estado tenha de permitir que as confissões religiosas actuem ao seu bel-prazer, como que a outorgar “fartar vilanagem”. Muito pelo contrário! Parafraseando um excerto do retro mencionado acórdão, Laicidade não significa desinteresse nem indiferença do Estado perante o fenómeno religioso.

O que se disse no parágrafo precedente equivale a afirmar que, tal como o Estado intervém – e deve intervir – nas relações privadas erguidas entre pessoas (psicofísicas e colectivas), fixando-lhes normas de conduta – de modo que as suas acções se coadunem com as normas instituídas e, assim, se evitar a erupção de confiltos de interesse entre os mesmos – e estabelecendo sanções em caso do respectivo incumprimento, a mesma mundividência se deve verificar com o “perímetro” em torno do qual gravitam as acções das confissões religiosas, relativamente às quais, apesar de o Estado reconhecer e valorizar que as suas actividades visam promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o bem-estar espiritual e material dos cidadãos e o desenvolvimento económico e social (n.º 4, artigo 12 CRM), incumbe ao Estado o dever de estancar os abusos que, eventualmente, as confissões religiosas possam cometer no exercício das suas atribuições, tendo em conta a sua relação com os crentes, por um lado, e com a sociedade em geral, por outro, visto que se uma acção é, pela consciência colectiva interpretada como colectivamente chocante, nacionalmente censurável ou publicamente reprovável, aí ela passa a dizer respeito a uma sociedade inteira e não somente, e de forma exclusivista, aos crentes de uma determinada confissão religiosa cujos actos possam merecer os aludidos juízos de censura e reprovação.

Assim, compaginando o raciocínio vertido no parágrafo antecedente e ao abrigo do que a Doutrina chama de “dever de bem legislar”, o Estado, ao reparar que, na sociedade, avultam realidades que se afiguram como desviantes relativamente às regras impostas pela Moral e bons costumes, é obrigado a exercer, com responsabilidade, a tarefa de criar um direito novo, sendo que a tarefa de legislar, segundo o perecido jurista alemão Hermann Jahrreiss, não se faz de qualquer jeito, de qualquer forma ou sem se preocupar com as suas consequências; se o efeito da lei interfere no destino humano, quem a elabora tem o dever de bem fazê-la, exactamente porque não faz para si, mas por uma sociedade. Logicamente, no cumprimento dessa tarefa, o legislador deve consagrar as soluções mais acertadas e exprimir o seu pensamento em termos adequados, em apologia ao pensamento inculcado no n.º 3 do artigo 9 do Código Civil.

Assim, devem ser classificados como despiciendos quaisquer postulados que apontem para uma eventual inconstitucionalidade da norma que criminaliza o aliciamento material de fé, por putativa violação do princípio da Laicidade do Estado.

E o que dizer do mérito da criminalização do ‘aliciamento material de fé’ como uma forma de, no dizer do novo CP, “abuso e exploração de fé”?

Desde logo, deixamos ficar registado e hipotecado o nosso imensurável respeito pelas confissões religiosas, em grande medida, em virtude de nós também reconhecemos o fundamental papel das igrejas na Formação da personalidade dos indivíduos, bem como no estabelecimento de uma atmosfera de harmonia na sociedade.

Entretanto, e há muito que vimos dizendo isso, a actuação de determinadas igrejas não se distingue do comportamento que, à luz do Código Penal [ainda] vigente, configura o crime de burla por defraudação. Só para se ter uma ideia, no crime de burla por defraudação, que é um crime contra a propriedade, confluem três requisitos cumulativos, designadamente (1) intenção do burlador de obter para si enriquecimento ilegítimo; (2) por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; (3) determinar que uma pessoa pratique actos que lhe causem prejuízo patrimonial. É esta a divisão clássica dos elementos que integram a burla, celebrizada pelo reputadíssimo juiz Simas Santos, que vai mais longe, asseverando que o crime de burla é uma forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar.

Com as necessárias adaptações, aqueles três elementos também são nitidamente visíveis na relação entre as igrejas (sobretudo as evangélicas) e crentes, nas quais, estes são seduzidos – à custa da sua ignorância, estado de necessidade, fraqueza, desespero, desesperança – por meio de promessa de enriquecimento ou de benesses/bênçãos divinas de prosperidade, a desembolsarem quantiosos valores em seu prejuízo patrimonial e, consequentemente, em benefício financeiro da igreja e/ou seus representantes.

Fazem parte dos meio de sedução manuseados por estas igrejas, a opulência e a exibição de sinais exteriores de riqueza por parte dos respectivos pastores ou profetas, tudo como meio enganoso e astuto para ludibriar a capacidade cognitiva do crente desesperado, que, desamparadamente, é arrastado a delapidar o seu património, acreditando que, ao agir assim, existe a verosimilitude de (ob)ter, também, uma vida abastada tal e qual aquele pastor/profeta.

 

Em Direito, diz-se que é usada astúcia quando os factos invocados ou manuseados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa-fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património.

A fé, que devia ser professada com gratuitidade e assente na crença pela existência e poder divinos, passou a ser objecto de comercialização, estabelecendo-se uma relação mercantil entre a igreja e o crente, com produção de benefícios patrimoniais para as igrejas e/ou seus representantes, em vertiginoso prejuízo do crente que acredita que, com o desembolso de estratosféricos valores pecuniários, está a assegurar terrenos no céu.

Logicamente que o Estado tem de intervir na protecção da dignidade dos crentes (a dignidade é um bem jurídico protegido pelo Direito Penal), sem necessidade de aquiescência por parte destes – trata-se de um direito indisponível – cegos pela fé e pela ambição em prosperar e alcandorar um estilo de vida luxuoso idêntico àquele espelhado na publicidade manifestada no estilo de vida abastado do profeta, uma publicidade apta a embair o mais arguto dos mortais quando desesperançado e desesperado.

Aplaude-se a criminalização destas práticas. Esteve bem o Estado ao criar mecanismos destinados a fazer sobrestar aquilo que, para nós, configura uma autêntica fraude, sendo que as fraudes são capciosas e insidiosas, difíceis de serem detectadas, pois elas revelam o poder de inventiva e perspicácia que a “imaginação fertilmente ilícita” de um Ser Humano pode proporcionar.

Esta, protagonizada pelas igrejas, é subtil. Na aparência, orienta-se num sentido (o de professar a fé), mas na verdade, é imoral e criminosa a finalidade que está por detrás da sua consecução (o de se locupletarem/enriquecerem ilegitimamente).

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

Fazia meia hora que o pai, cotovelos sulcando a mesa, apoiava o queixo com as palmas das mãos, devia estar a dormitar por detrás daquelas lentes graúdo límpidos de espessura ínfima, espreguiçou-se, bocejando e disse parafraseando Camões: “o amor é ter com quem nos mata lealdade”. Ficara assim à mesa das refeições depois de almoçar.

Vezes sem fim, minha mamã, andava desconfiada daqueles poemas que meu pai andava escrevivendo.
 – Quero ser poeta, mulher – se desculpava o pai, como se ser poeta fosse um querer.

Mamã ouvia com cara trombuda. Nunca acreditara nos ditos de poetas. Dizia ela, para além de eles (poetas) serem fingidos, sempre tem uma musa misteriosa.

Naquele dia, quando achou o papiro de versos na orla do prato que papá tomara o almoço, concluiu que escrevera para a secretária da casa, dona Rodália.

Quando mamã chegou a casa, fazia dez minutos que papá retornara ao serviço, e dona Rodália não tirara o prato, ainda.
Mamã pensou, dona Rodália andava em cima do seu homem.
Mamã pensou, papá escrevera aqueles versos para dona Rodália.

Mamã não queria se conformar como sendo simples versos de papá. Tal igual ao ferro quente, começou-lhe arder coração.
Releu os versos com voz sonora, e assim diziam:

“ se eu te pudesse dizer
   aquilo que nem eu sei
   sentarias aqui, ao lado de mim
   no coração (à mesa)
   onde dista a minha devoção

   quem sabe uma brisa fresca,
   nos surpreenderia,
   tão confinados como as pedras amontoadas.
   seria, tu e eu
   de tudo quanto quis quer, dizer”.

A cada verso, mamã perdia o ritmo da respiração, a bem dizer, saía do ritmo.  

– Esse homem está perdendo a cabeça – suspirou repetindo o penúltimo verso “seria, tu e eu” enquanto guardava o papel na sua bolsa.

Quem sabe era para ela? Mas não, por que o teria guardado debaixo do prato sujo? Não se sabe a verdade.

Meu papá tinha sempre este hábito de escrever versos e deixa-los espalhados para que no dia que as encontrasse se surpreendesse com o pulso da sua escrita. Contudo, dava trabalhos aos que andavam a sua atrás recolhendo os papéis e arquiva-los. Muito mais eu e a dona Rodália, mamã não gostava nem tão pouco disso, apanhava e deitava no lixo. E aquele que achou debaixo do prato? Foi o único que arquivou na sua bolsa.
Dona Rodália, não era mulher de ninguém não lhe querer. Era mulher bonita, curvas salientes, coxas fornidas, e pele lisa. Papá talvez andava já há muitos com ideias de interpelara, mas pensava problemas graves quando se lhe descobrissem.

Quando dona Rodália terminou de engomar a roupa, mamã já havia chegado a um minuto, com olhos vivos no papiro que papá escrevera. Dona Rodália acorreu-se à mesa com as desculpas na ponta da língua, por que não havia posto o prato limpo para a mamã, nem retirar o prato que papá comera nele.

– Desculpa, senhora, estava a terminar de engomar roupa do patrão.

Patrão é palavra que mulheres usam-na quando se referem dos seus. Doeu-lhe palavra “patrão” como se uma navalha lhe sendo espetado no peito.

Olhou-a pela esquina do olho torcendo a boca, tal igual como eu fazia na infância repetidas vezes, insultando a quem não ia comigo, porém enxergando com dissabor aquela trepidação das ancas. Mamã sabia que papá via aquilo sempre que dona Rodália vinha lhe dar água de lavar as mãos, quem sabe, por vezes lhe espreitava no decote?

– Patrão, água de lavar mãos.
Papá olhava e não resistia. Palavras se saiam pela boca involuntariamente, penso.
 – ‘Stás linda Rodália.
– Obrigado, patrão.

Dona Rodália, depois dos ditos de papá, exagerava aquele abanar das ancas, por que sabia que papá desfrutava da sua dengue. Não raras vezes que papá toma almoço sem mamã, chama dona Rodália, só, para lhe servir água que já está na mesa. Dona Rodália, também, abanava de lhe deixar sem fôlego. Talvez, dona Rodália, não fazia aquilo por lhe querer papá, mas para preservar seu emprego, porém, se papá também lhe abordasse não iria negar para não perder emprego.
– Rodália… – gritava papá.

Num repente, dona Rodália emergia da porta das traseiras com peito levantado.
– Sim, patrão.
– Ponha-me água no copo
– Sim, patrão.

Nervosa de incompreensão, dona Rodália servia a água e se mandava embora.

Enquanto papá lhe servia água, a contemplava ao mínimo detalhe, de lhe cair saliva na boca.

Papá tomava a água em dois ou três tragos, antes que dona Rodália desaparecesse no correr, e a chamava de volta.
– Rodália…
– Patrão.
– Ponha-me mais água.

Papá a contemplava… a contemplava… a contemplava como se assim lhe surgissem versos.
Outra vez, papá chamou dona Rodália por mais três vezes e disse, por fim:
– Rodália, senta aqui e me veja comendo
– Sim, patrão.

A mão de papa hesitante entre ir e não ir, apalpar a cocha da dona Rodália, coçava-se o seu próprio joelho se esfregando à toa. Sorte daquele dia, mama havia esquecido chaves da porta na gaveta da secretaria e se obrigou a apertar o botão da sineta.

– Trim…trim… trim…

Foi um susto de arrancar o coração. Dona Rodália ergueu-se num vulto. Quando abriu a porta e viu que era a senhora, minha mamã, uns calafrios atravessaram-na a espinha dorsal, ficou zonza, corpo todo húmido. Contudo, a senhora, minha mamã, não vira aquela feição, talvez por que vira carro de papá lá fora e se acorrera a mesa para pelo menos tomar um almoço com papá.

Como de sempre que a mamã ou papá viajava, havia alteração da rotina da dona Rodália, dormia aqui em casa, no quarto de hóspedes. E porque nos três dias seguintes, depois de amanhã, mamã tinha que viajar em missão de serviço, Dona Rodália foi apurar a anuência para poder transladar seus alguns haveres para aguentar os três dias da ausência da senhora.  

– Desculpa, senhora, a viagem ainda está em pé?

Havia-lhe conversado sobre viagem há dias para lhe preparar as malas, porém nas suas desconfianças, mas mudaria de costumes da outrora, pior com aquele último papiro de versos, desalento.

– Sim, mas não precisas dormir cá, Rodália.
Dona Rodália encheu-se de pasmo, porém talvez não tivesse alguma intenção, embora, mamã tenha decido sem conluio de papá.

– Está bem, Senhora – disse dona Rodália e se extinguiu serpenteando pra lá no fundo do corredor.

Por aquelas alturas, o sol vergava naquela púrpura nuança do sol-pôr, ao canto de rouxinóis. Um vento uivava, umas toalhas no estendal ameaçavam voar, ganhar os céus. Lá dentro, a mamãe, afundada no sofá, pernas trançadas sobre o comprido do sofá, olhos no plasma, se via aos canais das novelas com os pensamentos, não sei; no movimento lento, acariciando os mindinhos dos pés um do outro. Reclusa na sua monotonia, roía, ensonada, uma atrás da outra, pipocas corns que a Dona Rodália preparara, de tal modo, ruminava, em silêncio, suas desconfianças, de haver um romance clandestino entre papai e Rodália.

 

 

«Algo mais, para além de tudo»

Análise preliminar, perfunctória e generalizada dos principais aspectos inovatórios

No epílogo da “Parte I” do presente artigo, já tínhamos dado início à dissecação do conteúdo da norma que criminaliza a “devassa da vida privada”, concretamente, a sua natureza bifurcada, revestida de uma previsão objectiva (quando criminaliza o simples acto de divulgar imagens relativas a intimidade familiar ou sexual da vítima) e outra subjectiva (quando refere que tem de ocorrer “intenção de devassar a vida privada”), isto depois de nos termos debruçado sobre a susceptibilidade de o cometimento deste crime (que visa proteger bens jurídicos do Direito Penal revestidos de cunho constitucional – direito à imagem, à honra, à reserva da vida privada), ter a particularidade de poder ser perpetrado através de actos que configuram direitos subjectivos atribuídos pela CRM ao respectivo autor do crime (direito a liberdade de expressão, de imprensa e de informação), circunstância que obrigará com que, ao abrigo do princípio da proporcionalidade (também ele plasmado na CRM), determinados direitos (podendo ser os atribuído à vítima) tenham de ser postergados em benefício de outros (podendo ser os apodados ao suspeito), implicando, tudo isso, caso coexista o antagonismo entre os citados princípios constitucionais, a irresponsabilização criminal do suspeito ou, no mínimo, a substancial atenuação da daquela responsabilidade.

Relativamente a dicotomia analítica entre a previsão subjectiva e a objectiva presentes na norma em sindicância, não temos dúvidas em afirmar que, se o legislador somente tivesse optado pela previsão objectiva (onde se pune o acto de divulgar imagens atentórias à reserva da vida privada, desde que respeitantes à intimidade familiar ou sexual), não avultariam problemas à nível interpretativo, pois se torna claro e translúcido que o legislador pretendeu afastar, de todo, a possibilidade de o crime em apreço poder ser cometido pela via negligente, tendo determinado que basta o simples acto de realizar as divulgações das referidas imagens sem o consentimento da vítima, para que o crime esteja consumado. Sublinha-se que os crimes meramente culposos ou negligentes são apenas os que estão especialmente previstos na lei (n.º 2 do artigo 4 conjugado com o artigo 136, ambos do CP); no dizer de Germano Marques da Silva, não existe um crimen culpae, mas sim um numerus clausus de crimina culpae. Dispõe o artigo 136 do CP [ainda] vigente, que: «Os crimes meramente culposos só são puníveis nos casos especiais declarados na lei e a estes crimes nunca serão aplicáveis penas superiores à de prisão e multa correspondente».

Não nos parece que a vertente objectiva patente na norma do crime que pune a devassa da vida privada mereça discussões assinaláveis. O mesmo não se pode dizer no que tange à previsão subjectiva ínsita na mesma norma, pois nesta, o respectivo conteúdo linguístico-semântico-literal, ao dispor que «quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas (…)», sugere que a acção só seja punida se houver “intenção”.

Num juízo a contrario sensu, poder-se-ia concluir que a norma sugere que “não havendo intenção de devassar a vida privada, a difusão de aspectos íntimos da vida sexual e familiar da vítima não constitui crime”. A ser verdade esta acepção, estaríamos a admitir que alguém fosse capaz de realizar tal divulgação de imagens “sem pretender”, “sem querer”, “sem tencionar” devassar a vida íntima da vítima. Ou seja, estariamos a conceber que um indivíduo de diligência e inteligencia medianas pudesse praticar tais actos sem que tivesse ciência e cognoscência de que os mesmos são atentórios ao direito à intimidade da vida privada ou ao direito à imagem da pessoa visada.

Será isto possível? O legislador “diz” que não é possível. O legislador “diz” que não é possível porque o vocábulo “intenção” presente na norma aqui esmiuçada, não deve ser interpretado a partir dos postulados do “senso comum”. Para que o leitor melhor perceba o que a Lei pretende significar com a expressao “intenção”, torna-se imprescindivelmente forçoso realizar uma sintética excursão adentro da figura jurídica da “culpa” no Direito Penal (que assume feições distintas da culpa no Direito Civil, pois o crime não é só a negação de quaisquer valores, mas a negação dos epecíficos valores jurídico-criminais).

Em Direito Penal, culpa é classicamente definida como sendo o juízo de censura ético-jurídica emitido contra alguém em virtude de ter agido de uma forma (proibida) quando podia e/ou devia ter agido de outra (não proibida, evitando, assim, a acção criminosa – nos casos em que o crime se preenche com a acção – ou o resultado criminoso – nos casos em que, para além da acção, é imperiosa a verificação do resultado querido pelo suspeito para que estejamos em face de um crime).

A culpa subdivide-se em dolo e negligência. Por sua vez, a negligência desdobra-se em consciente (al. a) do n.º 1 do artigo 4 do CP) e inconsciente (al. b) do n.º 1 do artigo 4 do CP). Na negligência, o suspeito não possui desígnio criminoso e nem pretende, com a sua acção/omissão, o resultado proibido por Lei, mas representa como possível esse resultado, todavia, ainda assim, não recua no seu desígnio (negligência consciente) ou nem chega a representar a verificação de um certo resultado, quando, pelas circunstâncias, era obrigado a representar (negligência inconsciente). Ex: imagine-se o caso da babá que se dirige à casa de banho e deixa um bebé ao seu cuidado, sozinho, ao lado de um fogão a carvão bem aceso, confiando que o bebé não irá ter a curiosidade de “pegar o fogo” (negligência consciente) ou nem sequer pensa nessa possibilidade (negligência inconsciente).

Já o dolo e as suas espécies possuem definição legal expressa incorporadas no artigo 3 do CP. A primeira ilação a extrair da apreciação do artigo 3 do CP, é a de que o dolo é composto pela “consciência” (elemento cognitivo/intelectual) e “vontade” (elemento volitivo, onde se inclui a “intenção”), desmanchando-se em “dolo directo” (n.º 1 do artigo 3 do CP), “dolo necessário” (n.º 2 do artigo 3 do CP) e “dolo eventual” (n.º 3 do artigo 3 do CP); O dolo directo, também denominado dolo de primeiro grau, acontece quando o suspeito realiza alguma acção com a intenção de chegar a um resultado ilícito. Ele prevê um resultado doloso, e age para realizá-lo. É a modalidade de dolo mais frequente na prática de crimes. O dolo necessário, também conhecido como dolo de segundo grau, ou “dolo de consequências necessárias” é aquele em que o suspeito, para alcançar o resultado pretendido, realiza outro não directamente visado, mas necessário para alcançar o fim último. Este outro resultado não directamente visado é efeito colateral do resultado efectivamente desejado. O suspeito, com a sua acção delituosa, não deseja imediatamente os efeitos colaterais, mas tem por certa a sua verificação. Ex.: indivíduo “A” ambiciona matar um indivíduo “B” e sabe que este sai todos os dias as 07:00h de casa para levar os filhos à creche na sua viatura; o individuo “A” coloca uma bomba na viatura, eliminando a vida de todos os ocupantes, mas o seu desiderato estava bem definido e era somente a morte do indivíduo “B”, no entanto, as mortes dos filhos deste resultam como consequência necessária do acto protagonizado pelo individuo “A”, implicando que se verifiquem, simultaneamente, dolo de primeiro grau/directo quanto a morte do individuo “B”, e dolo de segundo grau/necessário quando as mortes dos filhos deste. No dolo eventual, o individuo não pretende alcançar o resultado criminoso, mas, no entanto, embora sabendo que, com a sua atitude esse resultado pode advir, conforma-se com isso e não toma os cuidados necessários para evitar o resultado danoso. O suspeito prevê o resultado como possível ou provável e, mesmo assim, resolve agir de qualquer forma. A previsão da probabilidade do resultado não o demove de actuar, de forma que, assim procedendo, passa a aceitar a sua eventual ocorrência: ele está indiferente quanto a realização do resultado, como quem diz: «paciência, se tiver de ser, será».

Realizada, acima, a sintética excursão adentro da figura jurídica da “culpa” no Direito Penal, suas modalidades (dolo e negligência) e explicadas as espécies de dolo e negligência, com o objectivo de apurar o significado da expressão “intenção” na norma aqui escrutinada, concluímos, sem pestanejar, que a menção a “intenção de devassar”, enquanto “elemento subjectivo” (vimos acima os elementos subjectivos do dolo: conhecimento e vontade), não assume uma autonomia específica, sendo que o propósito do legislador foi, tão-somente, o de excluir as formas de dolo necessário e eventual na perpetração deste tipo de crime. Dito de outro modo, aquela expressão destina-se a deixar sedimentado que, no crime de devassa da vida privada, o tipo subjectivo aí incorporado apenas admite o dolo directo.  Relembra-se que o dolo directo manifesta-se na intenção de realizar o facto criminoso, com a necessária vontade de produzir resultados antijurídicos e conhecimento de que tais resultados são censuráveis/reprováveis. Significa que, aos olhos do legislador, qualquer indivíduo de diligência e inteligência medianas sabe (ou devia saber) que, quem actua de forma livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o suspeito pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o suspeito quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o suspeito é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento da ilicitude), querendo e sabendo (devendo saber) que ao agir desse modo está a divulgar facto circunscrito na intimidade da vítima, também está a agir com a intenção de devassar a vida privada dessa mesma pessoa. Dito de outro modo: é através do acto que se diagnostica a “intenção” que, por sua vez, é elemento incontornável do dolo directo, bastando, por isso, a mera difusão das imagens para que o crime, em regra, esteja preenchido.

Recapitulando,

O crime de “devassa da vida privada” pode ser cometido através de actos que, em si mesmos, também se traduzem em direitos atribuídos por Lei aos cidadãos, sendo que esses direitos também possuem dignidade constitucional: direito a liberdade de expressão, direito de liberdade de imprensa e o direito à informação, implicando que qualquer cidadão é susceptível de enfrentar um processo-crime por prática de actos integrados nos seus direitos constitucionalmente consagrados, em virtude do confronto frontal e antagónico entre princípios constitucionais, visto que, do lado da vítima, assistem-lhe o direito a reserva da vida privada e o direito à imagem.

Assim, alguns dos princípios constitucionais deverão ver restringidos os seus campos de aplicação.

Nos n.ºs 1 e 2 do artigo 79 do CC é a própria Lei que determina a legitimidade da violação do direito à imagem e do direito a reserva da vida privada, em virtude de militância de circunstâncias especiais nas potenciais vítimas, como é o exemplo do exercício de um cargo público, o qual é incluído pela lei entre os casos de limitação legal do direito à imagem, já que o interesse público em conhecer a imagem dos respectivos titulares sobreleva, nessas hipóteses, o interesse individual

E porque o crime de devassa da vida privada só é cometido com dolo, bastando a divulgação de imagens pertinentes à intimidade familiar e sexual da vítima, a responsabilidade criminal do suspeito pode ser mitigada/afastada, caso ocorra o antagonismo entre princípios constitucionais protectores dos seus direitos e os protectores dos da vítima, e ainda nas hipóteses de verificação de causas de exclusão da culpa (n.º 2 do artigo 48 CP) – aquelas circunstâncias que, ocorrendo, impedem a formulação de um juízo de censura ao suspeito, ainda que a tenha cometido com dolo – também denominadas obstáculos à culpa.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

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