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“Jail House”

A invasão à minúscula cela prisional iniciou-se pelas primeiras horas de madrugada. Primeiro foram os ventos fortes. Entraram e saíram pelas várias fissuras deste edifício já a vergar ao sabor da idade. Novas fendas o próprio vento criou. As grades rangeram, o tecto abanou, mas a estrutura permaneceu firme. O colono fez aqui um bom trabalho!

Ao vento juntaram-se as águas turvas. A escuridão da madrugada não permitiu descortinar a proveniência do líquido pastoso que lentamente galgava os pés dos dois prisioneiros. Não cheirava mal. Mas subia-lhes os pés tal como formigas chatas das quais não há como fugir.

A microscópica cela localiza-se por de trás do edifício principal do posto policial da povoação. É de uma estrutura de betão erguida primariamente para aprisionar os fugitivos do chibalo ou os que se furtassem ao pagamento do imposto de palhota. 

As suas paredes interiores, enegrecidas pelo tempo e pela falta de pintura, albergam dois inquilinos frequentes. Um é um pilha-galinhas. Especialista em invadir, na calada da noite, galináceos da população para surripiar as aves ou os seus ovos e vendê-los numa aldeia vizinha. O que ele mais deseja na vida é sempre juntar algum dinheiro para gastar nas sessões de nipa. Entrar e sair desta cela é uma questão rotineira.

O assunto do outro prisioneiro são as mulheres. Dormiu com quase toda a aldeia. Durante vários anos usou um amuleto mágico, arranjado em Mambone, que lhe permitia atrair qualquer mulher. Bastava-lhe colocar a pequena semente na boca e molhá-la com um bocado de saliva para que a mulherada à sua volta sentisse fortes calores e sorrisse para ele de orelha a orelha. Os maridos, fartos de serem traídos, juntaram-se, amarraram e sovaram-no a valer até ser salvo pela Polícia.

Votou para Mambone e trouxe um novo amuleto. WiFi. Agora faz as coisas à distância. Várias mulheres juram a pés juntos terem sido penetradas e molhadas à distância. Basta um olhar penetrante e um abanar ligeiro do joelho para invadir, sem pedir licença, as entranhas de qualquer mulher.

Os homens voltaram a juntar-se. Estão de novo no seu encalço. Ele antecipou-se e foi à Polícia pedir para ser preso. Está mais seguro na cela que em casa. É essa segurança que esta água chata está a pôr em causa. O nível subiu agora até aos joelhos.

«E se isto sobe até nos afogar?», indaga aterrorizado o pilha-galinhas.

«Cala essa boca!», o berro não disfarça o pânico.

Chegou a hora da introspecção. O pilha-galinhas lembra-se das vezes sem conta que invadiu quintais alheios. O sonho de um natal farto que negou aos vizinhos; e os ovos alimentadores da justa ambição dos aldeões em multiplicar a galinhada e que ele roubou; Recrimina-se. Sente a hora da morte aproximar-se. Não teme pela justiça divina. Esse é assunto dos mortos. Ele lamenta sim pelo mal que fez aos vivos. Penitencia-se por ter enveredado pelo álcool.  Agora sim, ele compreende que se não fossem os malefícios do vício teria seguido um outro caminho. Suplica. Reza. Pede misericórdia a Deus. Clama por uma nova oportunidade e promete virar um homem melhor. A água não deixa de lhe galgar o corpo.

Mais do que a surra que levou, é hoje que o homem do wireless também se arrepende dos amuletos que andou a consumir. Dormiu, ou melhor, penetrou a mulher que quis, causou inveja e ódio a todos os homens e com altivez destratou a quem quis destratar. Tudo acaba hoje. Está a mercê da água. Simples água. Teme que ela continue a subir lentamente até lhe invadir a narinas e lhe encher a boca de lama. Teme morrer neste minúsculo espaço. Se pudesse, hoje era capaz de trocar os testículos pela oportunidade de voltar a viver.

Os dois agarram-se às barras das grades. Fitam o exterior da cela onde a água destrói tudo à volta. Desatam aos gritos. Em coro. É a hora do pedido de socorro. O desespero é total. O grito é a arma que lhes sobra para espantar a morte. Suas vozes rasgam os ares, mas são engolidas pelo trovão ensurdecedor que domina os céus. Ainda assim há a crença de que é possível sair desta. Não querem morrer. As vozes, essas resvalam já para a rouquidão.

A salvação não cai do céu. É o próprio carcereiro, já com a água acima da boca do estômago, que se lembra dos dois prisioneiros. Não foi difícil pensar nos reclusos. É ele que lhes guarnece, dá-lhes de comer todos os dias, escolta-os durante os banhos de sol. Até entabulam conversas e já trocaram confidências diversas. Parece estranho neste teatro da vida, mas um precisa sempre do outro. Os bandidos precisam do polícia para lhes proteger – sim proteger – da fúria popular. É claro que polícia também precisa de bandido (vivo). O bandido é a razão da existência do polícia. Imagine o que seria da vida deste agente da polícia se o homem do WiFi não andasse aí a palmilhar territórios alheios?

A porta da cela escancara-se. O vento forte que invade o cubículo não é suficiente para abanar a ânsia pela salvação. Os dois homens fazem-se à enorme corrente de água que arrasta tudo o que lhe atravessa o caminho. É necessário encontrar um ponto seguro, se é que existe.

«Cuidado! Vocês não estão livres», recorda o carcereiro, «sigam-me e ai de quem tentar fugir!», a ameaça é simbólica. É uma tentativa vazia do polícia fazer recordar que ele é a autoridade. E se os dois tentassem se escapulir o que ele faria totalmente cercado de água e com um modesto chamboco na mão? A verdade é que não há para onde fugir. A devastação é total. 

Há então que seguir o carcereiro. É uma caminhada lenta. O curso da água não deixa andar mais depressa. Têm que arrastar as pernas com cuidado, por entre objectos sólidos diversos levados a grande velocidade em direcção a uma foz qualquer distante e desconhecida.

Poucos passos de caminhada. O polícia detém-se abrupta e instintivamente. Abre os braços em forma de Cristo, tentando esbarrar os que lhe seguem. Estes também se detêm. O corpo de uma criança de cara voltada para baixo navega indiferente aos ditames da força da água. Sua alma ingénua habita a paz celestial longe do entulho em que o seu corpo foi transformado. O polícia até ensaiou um gesto como quem quer acudir a criança. Mas não se acode a quem já não pode ser salvo. O polícia tem que lutar pela sua própria vida e gerir os seus prisioneiros.

A caminhada lenta é retomada e o destino é um tanque elevado, a cerca de vinte e cinco metros, que outrora abasteceu a vila. Foi construído pelos portugueses já lá vão várias décadas. Hoje não passa de uma simples estrutura com os pilares oxidados. Um escadote liga o chão a uma portinhola no topo. É por esse escadote que os reclusos têm que subir. O carcereiro segue-lhes pelas costas.

O vento continua forte. A chuva segue-lhe o exemplo. O mar de água flui com cada vez mais intensidade e os seus níveis aumentam a olhos vistos. O escadote coloca-os em poucos passos fora do alcance do líquido que hoje não dá vida, simboliza a morte. 

Chegam ao cimo. A portinhola impede a progressão. Está trancada. O polícia tira do bolso um molho de chaves totalmente ensopado. Passa-o ao pilha-galinhas, que é quem está na dianteira do escadote, para abrir o cadeado. Invertem-se os papéis. É o recluso com a chave da sua nova cela na mão. Abre-a.

O tanque é de um betão maciço. A ausência de qualquer feixe de luz exterior confere-o a escuridão das trevas. Cada passo que se dá é como se o pé fosse pousar no vazio. O eco da chuva provoca ondas de som incessantes. O polícia fica-se pela portinhola. Tem a chave de volta na mão. Quer trancar a portinhola e descer o escadote.

«Não faça isso», protesta o pilha-galinhas, «se tranca a portinhola a gente morre asfixiada aqui. É o mesmo que nos tivesse deixado morrer afogados na cela lá em baixo.»

«Mas vocês estão na cadeia. Têm que estar trancados», replica o polícia.

«Deixa a portinhola aberta. Está tudo cheio de água lá em baixo. Não temos para onde fugir.»

«Eu deixo a portinhola aberta», consente o carcereiro, «mas fico lá em baixo de olho em vocês.»

«O nível de água subiu bastante. Se descer morre afogado. Fica aqui connosco com a portinhola aberta.»  

O polícia está entre a espada e a espada. Como deixar-se aprisionar no tanque com os seus próprios reclusos? A sua face esculpe marcas de estupefação. A testa enruga-se e as suas feições enrijecem-se. Quer manter a pose. Não quer resvalar para a banalidade que o ciclone lhe impõe: 

«Nem pensar! Bandidos são vocês», a sua voz sobe um pouco de tom, «eu fico no escadote e vocês aí dentro.»

«Vai ficar quantos dias e quantas noites pendurado nesse escadote?», indaga o pilha-galinhas, «esta água não vai vazar tão já. Fica connosco aqui.»

Rendição total. O polícia não tem opções. Tem que partilhar o interior do tanque com os seus próprios prisioneiros, de portinhola aberta. É um pacto de sobrevivência.

Os dias que se seguem são de cumplicidade. A portinhola não só se transforma na fonte do ar que insufla as suas vidas, mas também na montra do que a aldeia deixou de ser. É por ela que assistem ao entulho que corre mar abaixo. Os corpos de familiares e amigos, os destroços das palhotas e carcaças de gado, seguem com a corrente sem deixar história para amanhã se contar às crianças. As lágrimas que derramam não são lágrimas de um polícia e dois bandidos. São lágrimas de três humanos entregues a uma estrada nublada que conduz a um deserto de sonhos. 

 

 

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