O País – A verdade como notícia

Releituras (8)

Mais conhecido por HERGÉ, Georges Prosper Remi (1907 — 1983), foi um desenhista de banda desenhada, escritor e artista, nascido na Bélgica francófona.

Hergé é autor das revistas de aventura do célebre personagem Tintim. Para além de Tintim Hergé criou também outros personagens entre os quais os irmãos Quim e Filipe que, pela qualidade dos desenhos e histórias, constituem igualmente um clássico da literatura em banda desenhada.

Mas nem todas histórias que ele escreveu e desenhou foram bem aceites pelo público, pois algumas delas sofreram críticas como é o caso da aventura de Tintim no Congo. Hergé foi acusado de racismo e de encorajar o colonialismo, isto em relação ao então Congo Belga, hoje República Democrática do Congo. Aliás, toda a sua obra ou parte dela tem alguns “laivos” de eurocentrismo, talvez típico da época e daqueles exploradores clássicos chamados de “descobridores” de novos mundos e outras gentes. A propósito dos descobrimentos, eu tenho dito que não se descobre o que sempre existiu, principalmente quando se trata de terras e povos! Porém, ignorando isso, podemos tomá-lo simplesmente como um viajante, um demandante de outras terras e outros horizontes.

Entretanto, esta série em quadradinhos evoluiu bastante ao longo do tempo, como não podia deixar de ser, face à evolução também da cosmovisão do próprio autor. Estamos a falar de um período relativamente longo que vai dos anos 30 a 80 do século XX. O exemplo disso é o facto de Hergé, já nas suas histórias ulteriores, apresentar situações de luta dos povos latino-americanos pela sua autodeterminação.

Mas seja como for, Tintim foi o meu herói. Hoje, quando releio as suas aventuras remete-me àquele imaginário de embalar dias e noites da segunda metade da década 70 do século XX. Note-se que a banda desenhada de Hergé adequa-se e estende-se a um universo de leitores que pode variar dos sete aos setenta e sete anos de idade. Existem igualmente filmes sobre as aventuras de Tintim, como é o caso de “O Segredo de Licorne”, 2011, produzido por Peter Jackson e realizado por Steven Spielberg.

“A perseverança de Tintin como ícone cultural é a prova de que Hergé tocou em algo universal, algo tão básico e comum a todos nós que a essência dramática das suas histórias permanece tão actual como o seu jovem protagonista”, escreveu Steven Spielberg.

É realmente emocionante rememorar aqueles personagens das minhas intermináveis gargalhadas, associados ao Tintim como, por exemplo, o Capitão Haddock (ébrio e refilão inveterado), o Professor Girassol (o sempre abstraído cientista e inventor), os gémeos Dupond e Dupont (desastrados mas profissionais polícias da Interpol), o Milú (seu cachorro inseparável), entre outros. Tintim levou-me a vivenciar as suas aventuras, como herói, e levou-me igualmente a viajar para locais longínquos, para mundos exóticos, em busca de tesouros perdidos e/ou de desmascaramento de criminosos. É este Tintim que, a par daquele adolescente que até hoje permanece em mim, mesmo tendo vivido 82 anos perdura no tempo, permanece aquele eterno rapaz, aquele protagonista que aparenta ter apenas 18 anos.

Portugal foi um dos países a internacionalizar a obra de Hergé ao traduzir e publicar Tintim em língua portuguesa, através da revista “Renascença – Ilustração Católica”, já que até aí – 1930 a 1934 – apenas circulava em língua francesa.

A obra de Hergé tem sido aclamada não só pelas cores e clareza dos desenhos como também pela consistência e riqueza temática das suas histórias, o que revela um trabalho preliminar de pesquisa e investigação. Aliás, o rigor e o pormenor com que Hergé pesquisava para cada uma das aventuras de Tintim, são pura e simplesmente extraordinários, a ponto de,  para criar muitas das suas histórias, como é o caso de Tintim na Lua, Hergé ter-se munido de quase toda a documentação disponível na época,  como livros, almanaques, revistas culturais e científicas, filmes, entre outros. E um dos grandes autores lidos por Hergé foi Júlio Verne, de quem falarei a seguir.

***

JÚLIO VERNE (1828 — 1905), foi um escritor francês e é considerado o pai da ficção científica. Senhor duma vasta cultura geral, através da sua obra, fez predições sobre descobertas e avanços científicos, como submarinos, artefactos aéreos e espaciais e, inclusivamente, viagem à Lua. Escritor prolífico com mais de 100 livros foi, igualmente, um dos autores mais traduzidos em toda a história da literatura. De acordo com a UNESCO foi traduzido em mais 148 idiomas.

Como, aliás, acontece com muitos dos escritores que se iniciam no mundo da exposição pública, isto é, da publicação dos seus primeiros textos literários, Júlio Verne não teve a vida facilitada para publicar o seu primeiro livro “Cinco semanas de Balão”. Tais foram as dificuldades que encontrou tendo sido rejeitado por cerca de 15 editoras. Mas a principal razão de tanta recusa era a da alegada ousadia revestida de ingenuidade de o seu autor querer prever o futuro. Se calhar tenha sido por razões religiosas ou de outros preconceitos da época. Mas quando a revista “Magazine d’Éducation  et Récréation ” se predispôs a publicar, tanto a história quanto a própria revista tiveram um enorme sucesso de público e crítica.
 
É simplesmente fascinante, de um modo geral, a forma como Júlio Verne faz a descrição nas suas histórias. Ele fá-la com mestria e profundidade, tornando assim as situações tão reais que até confundem o próprio leitor. Por isso é que mais de 30 livros seus foram transpostos para o cinema, resultando em mais de 90 filmes, para além de seriados televisivos. Os livros “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, “Viagem ao Centro da Terra”, entre outros, são os que mais filmes inspiraram.

Em “Vinte Mil Léguas Submarinas”, por exemplo, é interessante a maneira como ele faz incursões às mundividências dos povos, neste caso, às do povo timorense:

“A 13 de janeiro, o Capitão Nemo avisou-me que já estávamos no Mar de Timor e à vista da ilha do próprio nome. Esta ilha, cuja superfície é de mil e seiscentos e vinte e cinco léguas quadradas, é governada por rajás, príncipes que se dizem filhos de crocodilos, o que para eles significa que são descendentes da mais nobre origem a que um ser humano pode aspirar. Os seus escamosos antepassados enchem os rios da ilha e são objectos de uma veneração especial. São protegidos, mimados, adorados, e alimentados com jovens virgens em ocasiões especiais. Desgraçado do estrangeiro que puser as mãos num desses animais, como é o caso desses enormes lagartos sagrados.”

Dos livros que Verne escreveu o mais curioso ainda é o ”Da Terra à Lua”, um livro cuja descrição coincide quase em tudo, desde o tipo de artefacto, número de tripulantes, local de lançamento, duração da viagem, as voltas à Lua e mesmo o local de aterrissagem, com a viagem à Lua feita pelos norte-americanos em julho de 1969. Simples coincidência ou a NASA ter-se-ia inspirado nele para mandar homens à Lua? É caso para dizer que Júlio Verne foi um “feiticeiro” que previu o futuro um século antes de muitos dos seus sonhos fossem tornados uma realidade.

Foi igualmente deslumbrante, para mim, descobrir, através da história “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, o fenómeno do tempo ganho no calendário para quem viaja em direção à Leste dos Pontos Cardeais, e do tempo que também se perde no calendário para quem viaja ao contrário, isto é, em direção à Oeste. Que maravilha! Mas em 1522 este fenómeno já era conhecido quando os marinheiros da expedição de Fernão de MagaIhães perderam um dia no seu calendário, viajando justamente para o Oeste.

Ler HERGÉ e JÚLIO VERNE foi um dos maiores prazeres que alguma vez a literatura me proporcionou na minha adolescência e não só. Fosse de dia ou de noite só interrompia a leitura de qualquer uma das suas obras que me chegasse às mãos por razões (só) de força maior! Ambos escritores, de emocionantes histórias de aventuras e desventuras, acabaram criando em mim uma espécie de fome insaciável de leituras e mais leituras, de conhecimento e mais conhecimento, de imaginação e mais imaginação. Ler cada um deles era como se viajasse  de um comboio com paragens nas disciplinas de geografia, história, cultura e religião, matemática, física, química, astronomia, biologia, entre outras. E eram viagens intermináveis fossem elas de um continente para outro ou então à volta da Terra ou da Lua. Os dois autores de estilos e temáticas algumas diferentes outras semelhantes, numa coisa me marcaram: o espírito de aventura e de imaginação científica.

 

 

 

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos