Na minha experiência de leitor de poesia, e sempre que me ponho a reflectir sobre a natureza e os processos criativos que dão origem a poemas, fico sem fôlego ante o feitiço que certos poetas usam. Eles são capazes de associar determinadas palavras ou significações de uma maneira tão particular, cuja poesia daí resultante desperta em nós estados emocionais, de certo modo, inusitados.
Este livro é exemplo disso. O poeta Macvildo Bonde construiu-o com recurso a uma magia muito peculiar, uma técnica, quiçá, que advém das suas vivências, das suas leituras, das suas experiências emocionais, acabando numa poética que escorre, deslisa como um rio sem margens que o possam comprimir, que o possam aprisionar no seu leito, que o possam condicionar no seu deslizamento, até que o leitor se deixe levar com a liberdade das suas águas.
Os versos são soltos, isto é, a imagética é livre, desprendida, mas unificada e sequenciada. Digamos que os três subtítulos que compõem este livro – Terra, Luz e Noite –, constituem uma espécie de associação livre de imagens, de metáforas bem polidas, que obrigam o leitor a participar e a acompanhar a sucessão dessas imagens na tela de todo poema que constitui este livro. É um autêntico filme que se desenrola na memória do poeta e, através dele, embarcamos com o autor numa espécie de viagem onírica.
Esta poética remete-nos ainda à poesia concreta em que a imagem visual e a metáfora do poema vão evoluindo na mente de quem a consome, com a alma despojada de preconceitos de ordem lógico-metodológica. Vejamos então:
“terra, campo de batalha, resíduo sólido, areia, fim do cume, Kilimanjaro – olhos de Hemingway; pó: cabana de ébano, ossos raquíticos, na boca o abutre; uma girafa cai na fralda do gatilho.”
Esta sucessão da imagética continua se desenvolvendo, à medida que vamos lendo, até que nos arrebata com ela sem que nos tenha dado tempo suficiente para digerirmos o que acabamos de ingerir.
“Agito o braço, despacho a águia no horizonte, no livro uma veia desmaia, natureza morta;
absorvo a cor da chuva, voz silenciada ao entardecer.”
Como se pode depreender, o livro é uma viagem ao redor da Terra, à velocidade da Luz, com a cumplicidade da Noite. É uma viagem no espaço e no tempo, na simbologia das palavras e no fenómeno poético em si. É uma jornada ao centro dos elementos que compõem o próprio acto da criação:
“paladar com a fúria da sede;
regresso à Marselha, Cézanne esconde a paleta nos olhos de Hortense, uma criança chora no tecto do caixilho.”
Ou então,
“Corro dentro de mim, a terra habita a largura óssea, grito: fogo, uma alma entediada aprisiona a maçã do rosto; rio, sobras de lágrimas escorrem no vácuo, uma mesa dança ballet,”
Enquanto esta romaria prossegue, o poeta vai refletindo sobre a sua própria condição de operário da escrita:
“a literatura tem seus deuses; mudo é o poema envergonhado, trepadeiras calcando o rosto da água no espelho.
Quem sustém o bordão da vaidade, enterra o egoísmo nos cómodos do coração, regresso à pedra, uma linguagem chega sem artifícios à porta temporal;”
Como sempre toda a viagem causa cansaço. Por isso, o poeta suspende-a por alguns instantes. Ele quer repousar na exaustão do próprio movimento, ao mesmo tempo que se interroga:
“Abro as cores da noite e pinto uma vogal na língua. Ressono agora solitário, abro a porta onde repouso metade da preguiça. Esvazio a máscara, uma pastilha amordaça a esfinge, então, reparo que já não brinco com os silêncios; enterro a fadiga nos olhos?”
Mas também o repouso não é o fim da viagem, por conseguinte o poeta retoma a sua peregrinação:
“Pinto o lápis nocturno…
olhar da terra húmida;
risco a lua com um berro;
fui monge nas tardes de domingo; minha sina reencontra o sono.”
Nesta navegação o poeta roça com suas asas de vento um pouco da nossa memória, relembra o massacre de Sharpeville, reencontra-se com o Hugo Massekela, esse desbravador de sons e palavras:
“Ervas brotam no coração da cidade, a folhagem orbita na largura do tédio.
Sharpeville,
uma criança ecoa
no feltro das balas incendiárias;
Hugh Massekela
desbrava o poema;
água ou vinho, sentenceio a fúria dos jornais;”
O poeta sobrevoa outras paragens africanas em demanda de outros espaços cinematográficos, para que a sua tela não tenha fronteiras como ensina a própria vida:
“Ouagadougou;
imagino Sembène:
o cinema brilha na floresta; a bicicleta rasga o corpo húmido na alça dos pedais
cada olhar, um filme penetra o imaginário infantil, despidos, crianças abraçam Sankara.”
Anoitece. Estamos já na terceira parte do livro, que leva justamente o subtítulo de “Noite”. Acontece então a insónia. O poeta insiste, e aproveita-se desta insónia para revisitar outras vozes poéticas, vai ao encontro do Patraquim, numa espécie de cumplicidade e intertextualidade onírica.
“Deixo a insónia nos braços, escuto a voz do Patraquim – válvula extinta nas cores de Tsalala. Ser viageiro, o medo entre os látegos das casas? No capim fresco, abandono a noite e as ninfas, o rio assombra meus passos, não redijo o silêncio do pirilampo.”
Vale-nos aqui a máxima do Shakespeare segundo a qual “o mundo inteiro é um palco. E todos homens e mulheres não passam de meros atores”. A viagem do Macvildo acontece na tela da vida, com os seus respectivos capítulos, bem à maneira do Quentin Tarantino, pois ela é nos apresentada em capítulos, cuja história ora avança ora recua.
“O fim é uma seca, uma taça de vinho sem álcool, um filme encriptado na crosta do ecrã. Quer iniciar a caminhada, pendurar o sono na estrada de um mamilo fresco.”
Como não podia deixar de ser, tudo desenrola-se numa bolha chamada tempo -o tempo como um invólucro onde tudo acontece. O poeta Macvildo Bonde é também actor deste movimento temporal. Até intervém nas ocorrências e faz acontecer cenas nas quais ele próprio é protagonista:
“No cesto do tempo, as raízes voltam a florir, uma mãe embala a noite; estico o sol na lente da saudade.”
“Dentro do cinema, alvitramos novas canções com armas nos olhos; um bombeiro esconde a machadinha no bolso, um bilhete sobrevoa os cabelos do vento.”
Parabéns, poeta, Macvildo Bonde, por esta linda viagem ao interior da terra, da luz, da noite, do sonho, e da poesia!