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ARTIGOS DE OPINIÃO

O Estado de Emergência de 30 dias decreto, em finais de Março, pelo Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, está a chegar ao fim. Ainda que seja preliminar, o balanço não me parece positivo, olhando para os números, aliados àquilo que era o objectivo principal da medida: evitar a propagação do coronavirus no território nacional.

Quando entrou em vigor, a 1 de Abril, o país só tinha 10 casos, sendo oito importados e dois de contaminação interna. Hoje, estamos a falar de 39 pessoas infectadas. Os casos importados não evoluiram, mas a outra linha, a de infecções locais, a mais perigosa porque significa a ramificação ou a expansão da doença dentro do país, cresceu de dois para 31 casos.

Para quem olha para estes números e compara-os com dos outros países da região, como é o caso da África do Sul e de outros, pode dizer que estamos bem, que não há motivos de alarme. Mas se prestarmos atenção, vamos verificar que antes era só a cidade de Maputo, mas agora o virus chegou à província de Maputo, cidade nortenha de Pemba e Afungi, na província de Cabo Delgado.

O outro detalhe muito importante deste balanço é que, de repente, o epicentro de coronavirus passou de Maputo, no sul, para Cabo Delgado, no norte do país. Estes pormenores são, em si, preocupantes. Significa que em três semanas o vírus atingiu mais três novas regiões do país. Só o caso Afungi já levou ao registo de 29 positivos.

A julgar pelo mapa das diferentes linhas de contacto estabelecidas pelas equipas da saúde na sequência da investigação em curso em Cabo Delgado depois da descoberta do primeiro caso, nada me surpreenderia que nas próximas actualizações de dados o Ministério da Saúde anunciasse o alastramento do vírus para novas zonas do país.    

Antes de chegarmos às cadeias de contaminações comunitárias (até agora são esporádicas) e passarmos a números assustadores, porque é que não se isola Cabo Delgado? De quê o governo está à espera para agir? Os novos casos notificados nos últimos dias pelo MISA, têm como origem aquela província. Há o risco de alguns positivos, ainda não identificados e sem sintomatologia, poderem movimentar-se para outros distritos ou províncias, transportando consigo o virus.

Aliás, o MISAU confirma que alguns trabalhadores do acampamento de Afungi sairam antes da descoberta do primeiro caso naquele local. Se um deles estiver infectado pode estar a espalhar o vírus pela província de Cabo Delgado e não só.

A outra questão é que dos 29 positivos relacionados com a investigação em Cabo Delgado, três são casos não profissionais ou seja de pessoas que nunca estiveram em Afungi e que se infectaram através de um contacto com um trabalhador positivo daquele acampamento da TOTAL.

Estes pormenores reforçam a opinião de que se deve bloquear Cabo Delgado. Todo o cuidado é pouco. É preciso cortar, por alguns dias, as ligações rodoviárias, ferroviárias e aéreas entre Pemba e o resto da provincia e com outras capitais provinciais. É preciso também suspender a comunicação inter-distrital e fazer uma vigilância clínica ou testagem em grande escala nos bairros de Pemba e em Afungi só para termos a certeza da situação.

Em caso de viagem forçada, obrigar que todos que vêm de Cabo Delgado fiquem em quarentena no destina, sem excepção. Sei que são medidas duras, impopulares e susceptíveis de críticas. Sei que vão afectar as trocas comerciais entre as populações, mas esta é a única via que existe para controlar os movimentos das pessoas e suster a propagação de coronavirus a nível da província e no país em geral.  

Sei que muitos vão olhar para a decisão como sendo um exagero ou excesso de zelo da parte do governo, mas este é o caminho certo para evitar, tão sedo, que pessoas infectadas, não descobertas e sem sintomatologias, continuem a viajar pelo país e a espalhar o vírus.

Angola está nesta direcção. Estabeleceu uma cerca sanitária em que durante a vigência qualquer angolano que se movimentar de uma província para a outra é obrigado a ficar em quarentena domiciliária no destino.

Em caso de resistência, teria de cumprir a institucional. Talvez por isso que a situação de coronavirus naquela país está estacionário. Há mais de uma semana que não se registam novos casos.

Os chineses também fizeram o mesmo que estou a propor aqui e algo mais. Tomaram medidas de choque. Para começar, bloquearam cidades que estavam no centro da covid-19, limitando as entradas e as saidas das pessoas.

O uso da máscara no dia a dia passou a ser obrigatório para todos e a observância dessa medida era fiscalizada através de drones doptadas de alto-falante que aconselhavam a quem não tivesse a voltar para casa.

Suspenderam todas as ligações aéreas, rodoviárias e ferroviárias entre as cidades com casos de infecções e outras. Os chineses tinham que se inscrever antes de sairem ou entrarem numa localidade.

Como uma medida de prevenção, o banco central instruiu aos bancos comerciais para desinfectarem as notas yuan com luz ultra-violeta e em altas temperaturas. Depois disso ficaram armazenados durante uma ou duas semanas antes de serem colocadas de volta em circulação.

O dinheiro proveniente de áreas de alto risco de contaminação, como é o caso dos hospitais, era canalizado directamente ao banco central para a sua destruição. Em compensação, a instituição libertou grandes quantidades de dinheiro novo.

À partida, esta medida foi mal vista por alguns círculos de opinião como um exagero da parte do governo de Xi Xinping, mas, parecendo que não, a mega operação teve um peso significativo no combate ao virus.

Sendo que o coronavirus pode sobreviver por algum tempo no papel, o dinheiro, que passa de mão em mão, pode ser um vector para a fácil e rápida propagação da doença.

Se nós não estamos em condições de fazer este tipo de intervenção, pelo menos que lavemos as mãos várias vezes ao dia, principalmente aqueles cuja actividade obrigue ao manuseamento sistemático do dinheiro: funcionários bancários, vendedores de mercados e ambulantes, os caixas dos supermercados, restaurantes e de outros sectores.

Uma outra decisão chinesa que mereceu críticas internas e externas foi a proibição da venda no país de medicamento para combater a tosse e a febre. O objectivo era evitar a automedicação e incentivar as pessoas a procurarem o tratamento numa unidade sanitária.

Foi, sem dúvida, uma medida de risco e ousada, mas o governo chinês foi em frente porque queria garantir que todo o mundo com febre e tosse fosse aos hospitais para a testagem. É um facto que um ser humano, quando tem algum problema de saúde, prefere, primeiro, fazer uma automedicação. O hospital é relegado ao terceiro plano e fica como uma alternativa em caso de persistência da doença.

A outra medida do governo do Partido Comunista chinês, talvez a que deu mais trabalho, foi a de destacar equipas que andaram de casa em casa para ver se as pessoas tinham febre. As que apresentavam sintomas eram recolhidas em autocarros para alguns estádios e outros sítios para a quarentena.

No mínimo, esta operação exige investimento em recursos humanos, mas acho exequível entre nós. A Cruz Vermelha de Moçambique, os Escuteiros, voluntários, as equpas do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC) e outros podem reforçar esses grupos de trabalho.

Foram estas as armas principais que a China usou para enfrentar e derrotar o coronavirus. Foi uma guerra que durou cerca de três meses de restrições severas. Quase tudo fechou e a economia chinesa parou para reduzir o movimento das pessoas na via pública e permitir melhor controlo.

Por termos sido dos últimos a lidar com a situação de coronavirus, estamos numa posição privilegiada de podermos contar com as experiências dos outros países que foram os primeiros a serem infectados pelo virus e podermos tomar medidas certas, na hora certa e implementá-las no devido momento para a prevenção da doença.

 

Modelos matemáticos desenvolvidos um pouco pelo mundo mostram que cerca de 1% da população de um país estaria infectada em 10 dias após o anúncio do primeiro caso, caso não sejam tomadas medidas de prevenção. Assim, alertam os estudos, a curva exponencial de infecção dependerá do comportamento de cada indivíduo como sociedade, das suas relações de convivência, mas também do poder público, na medida em que os indivíduos estão sujeitos a normas e instituições regulatórias dessa convivência.

De facto, no bojo do anúncio oficial dos primeiros casos, algumas sociedades tiveram autorizadas a realização de jogos de futebol com mais de 40 mil espectadores, outras tiveram autorizados festivais com mais de 200 mil pessoas, afinal, regidos pela percepção de (apenas) poucos casos oficiais, estes mereceram o desprezo das autoridades e, consequentemente, uma política de distanciamento e isolamento tardia.

Estas sociedades (desenvolvidas) passaram a investir em testes massivos diante da curva exponencial acentuada verificada 10 dias depois dos primeiros casos, acção em grande medida impulsionada por outras entidades, especialmente pelas instituições de investigação científica.

Atentas, as sociedades em desenvolvimento aproveitam-se dos descontos que a história recente de contágio lhes permite, e com isso antecipam as medidas de distanciamento social, isolamentos e outras medidas de prevenção e controlo do COVID-19. Mas, dificilmente conseguiriam fazer os testes massivos.

No entanto, os testes devem ser feitos, ainda que por amostragem. Neste momento, sejam os modelos matemáticos, sejam as fórmulas do cálculo das amostras são básicos: o quadrado do grau de confiança e do desvio padrão sobre a margem de erro. Ou seja, numa sociedade de 28 milhões de habitantes, tendo em consideração a um levantamento heterogêneo, a 3% (ou 5%) de margem de erro e 95% de confiança, não seriam necessários mais do que aproximadamente 1.070 indivíduos a serem testados de forma aleatória e por acaso, durante um período reduzido de tempo. Isso serviria não somente para aferir o nível de prevalência, mas permitiria um rastreio mais amplo, para além dos pressupostos sobre os quais são determinados os números oficiais em grande parte destes países, sobretudo tendo em conta que se trata de uma doença silenciosa e bastante rasteira. A limitação de recursos não pode ser um argumento. Neste caso, vale a máxima de que se achamos cara a educação, que experimentemos a ignorância. Ou seja, se achamos caros os testes, que NÃO experimentemos a ignorância do estado real da infecção e o consequente colapso do sistema de saúde. Ainda neste caso, medidas tardias são inócuas, como podemos assistir a partir da experiência de alguns países, mesmo os de economias avançadas.

É escusado referir que não é papel da ciência encontrar mais casos, mas sim constatar factos e informar decisões. Escusado também é mencionar que de todo o indivíduo testado, mesmo que o processo seja a esmo, deve-se, em simultâneo, ser produzido um cadastro.

Devido às suas características sociais, aos países em desenvolvimento certamente será mais difícil exigir um nível de 70% da população em distanciamento ou isolamento social. Nestes casos, para além de outras medidas como a de rotatividade no trabalho, pode-se acrescer a rotatividade nos horários de entrada e saída do trabalho em função dos sectores de actividades ou outro vector, reduzindo assim a pressão sobre o reduzido sector de transporte.

Um outro debate que assola as sociedades em desenvolvimento tem que ver com o uso das máscaras, luvas ou outros materiais de protecção individual que, sendo uma questão económica, deve ser tratada devidamente. Num outro prisma sobre este mesmo assunto e apesar dos diferentes resultados de estudos com mais de 10 anos – em função das diferentes metodologias de análise sobre o uso ou não das máscaras, em particular – um facto é comum a todos eles: o que está em questão não é a eficácia da máscara em si (se ela estiver dentro dos padrões recomendados), mas a ineficiência no seu uso. Isso remete-nos para a necessidade de os países em desenvolvimento investirem também na educação sobre as formas de uso e de manuseio destes materiais, sob pena de haver um comportamento social que negligencia as demais medidas de prevenção por se estar supostamente protegido por um ou mais objectos de protecção individual.

Por Manuel Valente Mangue, PhD.
Doutor em Ciência da Informação
Universidade Eduardo Mondlane

O nosso país pode estar a passar uma das piores fases da sua história enquanto Nação. Desde que nasci, depois formei família, mais tarde geramos rebentos que hoje estão na fase de discernimento do bem e do mal, sempre ouvi falar de guerra. E, infelizmente, tudo leva a crer que as futuras gerações estarão sujeitas, tal como eu, a ouvir e viver a dura realidade do soar das armas.  

Mas afinal, que mal cometemos? Será que muita coisa falhou na construção do país depois da independência? Tal vez sim, talvez não.

Depois de uma análise profunda, eis que me ocorre a seguinte pergunta para reflexão: Será que Moçambique vive hoje a quarta guerra?

A resposta sobre esta temática deixo ao critério. Mas quanto a mim procuro trazer a minha resposta olhando para quatro cenários a saber:

CENÁRIO 1:

Pobreza.
Esta foi desde cedo a principal guerra que os moçambicanos até aos dias de hoje travam a meio de muitas adversidades. O nosso país vive um dilema em que os pobres estão cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Infelizmente, o facto ocorre num país com tudo “para dar certo”, se os recursos naturais fossem devidamente partilhados.

 

CENÁRIO 2:

Insurgentes no norte do país.
Considero como a segunda guerra que os moçambicanos travam na actualidade, concretamente na província de Cabo Delgado.

Os insurgentes efectuam suas incursões, decapitando compatriotas inocentes. Dói o coração ouvir diariamente por vias de vários meios de comunicação, por um lado, e por outro, ver por vias das redes sócias, relatos e cenários macabros de tremenda guerra protagonizada pelos referidos insurgentes, colocando à prova a capacidade do nosso Estado.

O povo moçambicano merece outra sorte. Merece a paz, o bem-estar e, por isso mesmo, busca todos os dias explicações sobre aquele fenómeno mas, sem resposta, por parte de quem devia dar. Refiro-me àquele que deve garantir a nossa segurança enquanto povo.
Sim, aqueles a quem depositamos confiança para nos governarem.

A população  de alguns distritos  da província  Cabo Delgado como Palma, Mocímboa da Praia, Muidumbe, entre outros, vivem momentos de terror. Situação de clara guerra.

As nossas tropas governamentais, infelizmente, não conseguem buscar respostas para satisfazer o povo.

 

CENÁRIO 3:
Junta militar da Renamo.

Estamos diante da terceira guerra que se vive na região centro de Moçambique, onde nos últimos tempos, e com  alguma frequência, acompanhamos relatos na imprensa, de ataques armados. Ataques esses que a polícia conhece os rostos, tanto é que já veio várias vezes a público atribuir “aos homens armados da Renamo”, liderados por Mariano Nhongo.

Uma acção que prejudica o povo que com muito suor, sacrifício e paciência luta para assegurar o seu sustento.

Recentemente, de entre vários ataques, acompanhamos cenários de assalto a um estaleiro de madeira na região de Dombe, província de Manica, onde para além de incendiarem camiões e destruir bens, tiraram a vida de um cidadão estrangeiro de nacionalidade vietnamita.

Na verdade, tirar a vida de um ser humano, pode ser o comportamento mais baixo que um ser racional pode fazer contra o seu semelhante.

Pelo menos no centro, já se conhece o rosto dos ataques. Mas afinal porque é que não se soluciona o problema para dar algum alento à população moçambicana que precisa “correr” para trazer o desenvolvimento das suas vidas.

 

CENÁRIO 4:

Covid-19.
Uma pandemia que se confunde com uma verdadeira guerra. Um inimigo global que, em tão pouco tempo, ficou bastante conhecida. O novo coronavírus é uma pandemia que está a dizimar vidas humanas no mundo.

No nosso país há mais de três dezenas de casos já confirmados. Um vírus que aterroriza as nossas mentes. Aliás, está claro que o novo coronavírus poderá constituir problema de saúde pública de uma geração.

A avaliar pela letalidade do vírus, a questão é: Como lidar com a vigilância epidemiológica num país onde falta quase tudo para fazer face a doença?

O historiador Walter Scheidel defende que “as crises muito sérias podem afectar preferências e escolhas politicas, sobretudo, quando os eventos são severos, podem alterar preferências do eleitorado de forma que se mova para uma defesa de um estado de bem-estar social mais forte”.

Nesta perspectiva o nosso Estado tem, na actualidade o desafio das “quatro guerras” por vencer, no sentido de salvaguardar a sua legitimidade e confiança perante o povo que o escolheu.  

Advertência I: apesar do novo Código Penal (CP), aprovado sob os auspícios da Lei n.º 24/2019, e o novo Código do Processo Penal (CPP), aprovado sob a alçada da Lei n.º 25/2019, não se encontrarem ainda em vigor, visto que ainda decorre o período delimitado para a “vacatios legis” de ambos os diplomas (só entram em vigor após se completarem 180 dias contados da data das respectivas publicações, nos termos determinados, curiosamente, pelos “artigos 8” das leis preambulares, tanto do CP bem como do CPP), todas as menções legais que se forem efectuando no presente artigo reportar-se-ão aos citados novíssimos Códigos.

Advertência II: o crime – qualquer que seja – que seria imputado ao agente infiltrado não vem, logicamente, previsto no CPP, mas, sim, no CP, diploma que detém o pecúlio de albergar as condutas definidas como criminosas e de estabelecer as respectivas penas. Entretanto, a figura (seu conceito, sua actuação, sua abrangência, suas competências) sobre a qual merecerá o presente estudo, vem, essa sim, enquadrada no CPP. O crime a ser-lhe imputado encontra-se no CP, mas os critérios de aferição que nos conduzem à consumação de um crime por parte de um agente infiltrado, estão previstos no CPP. É por essa – e só por essa – razão que se referencia, no título, à ligação entre o CPP e a punibilidade de um crime, não significando que o CPP qualifica crimes e determina penas.

O novo CPP traz, de entre várias inovações, a actuação do “agente encoberto”.

O artigo 226 do CPP traça o “regime jurídico” em torno do qual gravita aquela actuação, aprovisionando-nos o “conceito de acções encobertas” e, indexando, nela, o conceito do respectivo agente, preceituando que «consideram-se acções encobertas aquelas que são desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo do Serviço Nacional de Investigação Criminal para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade».

Portanto, o agente encoberto é, nos termos realçados no artigo antecedentemente reproduzido, aquele que, agindo no domínio das competências naturais de um polícia de investigação criminal, tem, ainda, a particularidade de também agir com identidade e qualidade oculta(da).

Entretanto, conforme o título já denuncia, a presente abordagem é circunscrita ao “agente infiltrado” – que não é merecedor de denominação legal no nosso CPP – e não propriamente ao genérico “agente encoberto”, sendo, por isso, antes de mais, imperioso “separar os limites fronteiriços” entre as duas figuras.

O conceito que nos é arremessado pelo artigo 226 CPP – agente encoberto – faz referência a funcionários de investigação criminal (FIC) ou terceiros actuando sob o controle do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), que no âmbito da execução das suas obrigações, em regra, visando prevenir e/ou reprimir a prática de crimes, actuam com identidade oculta(da).

Se nos atentarmos ao rol delineado nas várias alíneas [a) à r)] do artigo 227, que estabelece o âmbito de aplicação das acções encobertas, chegamos facilmente à conclusão que correspondem aos tradicionais campos – de prevenção e repressão – de actuação da polícia (veja-se, a título de exemplo, o rodízio de competências entrincheiradas nas alíneas do n.º 1 do artigo 7 da Lei n.º 2/2017, que cria o SERNIC, e nas alíneas do n.º 1 do artigo 6 do Decreto n.º 46/2017, que aprova o respectivo Estatuto Orgânico).

A diferença substancial reside no facto de os FIC actuarem desprovidos de qualquer elemento que permita identificá-los como tais (ex.: sem a farda policial, sem o distintivo ou crachá), transmutando-se naquilo que comummente apelidamos de “polícia à paisana” (um termo muito vulgar entre os moçambicanos).

E percebe-se facilmente a razão de andarem encobertos (à paisana): a presença notória da polícia chama a atenção dos potenciais autores de crimes e o objectivo orienta-se, nessas acções, em a polícia não se fazer notar para que, desse modo, surpreenda com maior margem de sucesso os correspondentes criminosos ainda na fase da execução dos actos preparatórios, se possível, ou, em flagrante delito ou, em último caso, imediatamente após a consumação da prática do crime.

Por sua vez, o agente infiltrado – figura de criação doutrinária e acolhida em alguns ordenamentos jurídicos – que também actua com identidade oculta(da), vai mais longe do que a simples ocultação ou actuação à paisana que caracteriza o modus actuandi do agente encoberto (nomenclatura legal abraçada pelo legislador penal moçambicano).

Para que o leitor tenha uma ideia aproximada do que é um agente infiltrado, é só recuar no tempo e se recordar do filme “Donnie Brasco” e ir repristinar a personagem Joseph Pistone interpretada pelo célebre actor Johnny Depp. No filme em alusão – exemplo paradigmático de agente infiltrado e muitas vezes usado na Doutrina como cobaia explicativa –, que, por sinal, retrata uma história verídica sucedida em 1972, Joseph Pistone é um policial pertencente a uma unidade especializada na investigação do crime organizado, sobretudo, a Máfia. Para o sucesso do labor investigativo dessa Unidade, foi determinado que Joseph Pistone dever-se-ia infiltrar no seio da organização criminosa, fazer e cimentar amizade com os respectivos chefões, ganhar a confiança destes, tudo com o objectivo de poder estar em condições privilegiadas de reunir informação sobre a quadrilha para, posteriormente, endereçar à sua Unidade Investigativa.

Outro exemplo sonante de agente infiltrado é encontrável no também célebre filme “Face Off” (em português, mereceu a tradução “A Outra Face”), que conta com a participação dos galácticos Nicolas Cage (que interpreta o papel do “bandido” Castor Troy) e John Travolta (que interpreta a personagem do agente do FBI, Sean Archer). Resumidamente, após um acidente em que Castor Troy fica em coma, e porque se sabia que ele fazia parte de uma tramoia que se preparava para detonar uma bomba cujos efeitos seriam de proporções gigantescas, decidiu-se que o agente do FBI, Sean Archer, devia se apoderar da face de Castor Troy, através de uma operação plástica, como forma de se fazer passar por este e, assim, se infiltrar no seio da organização deste, para extrair informações sobre o plano de detonação daquele engenho explosivo. Tal como Joseph Pistone no filme “Donnie Brasco”, Sean Archer, no filme “Face Off”, munido da face de Castor Troy, teve que assumir hábitos típicos da organização criminosa (chegando, inclusive a assumir hábitos de Castor Troy, como o uso de drogas, tudo com o objectivo de obter informação).

O leitor certamente que fará ideia que o agente infiltrado, porque mergulha até as profundezas da actuação da organização criminosa, tem de viver como eles, isto é, se, por exemplo, a quadrilha tiver de violar uma mulher, o agente infiltrado também deverá participar desse acto hediondo; se a quadrilha se dedica a assaltos a mão armada, onde existe a sempre susceptibilidade de ocorrência de assassinatos, o agente infiltrado não poderá hesitar em cometer assassinatos, pois, repete-se, a infiltração implica a assunção, por parte do agente infiltrado, do modus operandi e modus faciendi da organização criminosa.  

Percebe-se o que se disse acima, pois, se, porventura, o agente infiltrado não exibe um comportamento similar ao dos [novos] amigalhaços, corre o risco de estar sob suspeita da organização criminosa e, aí, os resultados podem ser fatais para o agente infiltrado.

Essencialmente, a destrinça entre o agente encoberto e o agente infiltrado prende-se com o facto de o FIC estar imiscuído num seio que não é o seu (“infiltrado”), uma realidade muito mais profunda comparativamente àquele FIC somente que age travestido (à paisana, encoberto, como quem usa uma máscara, termo inspirado na expressão inglesa “undercover”), essencialmente, para que não se dê conta da sua presença – encarando-se, aqui, o termo “presença” como sendo “presença da autoridade”.

O termo “agente infiltrado”, ainda que também seja uma subespécie ou subdivisão de “agente encoberto”, traz a ideia de alguém que se penetra num meio, assume hábitos e comportamentos típicos desse meio, entretanto, de forma dissimulada. Ou seja, o termo infiltrado qualifica o FIC destacado para se imiscuir no leito da organização criminosa relativamente à qual se pretende a obtenção de informações, pois, a despeito de ter de estar “encoberto” (disfarçado) ele praticamente transforma-se “num deles” (“infiltra-se” até as suas profundezas), metamorfoseia-se noutra pessoa com hábitos e comportamentos aplaudíveis no mundo do crime, em geral, e no seio da quadrilha sujeita à investigação, em especial.

As razões determinativas da decisão que aponta para o manuseamento das acções encobertas não constituem objecto da presente dissertação, todavia, fugazmente, revela-se que o crescimento exponencial do crime [organizado], aliado à sua sofisticação, que traz consigo a dificuldade de compreensão do fenómeno em si, da identificação dos seus autores visando a respectiva neutralização para posterior responsabilização criminal – que, nos termos do artigo 28 do CP, consiste na obrigação de reparar o dano causado na ordem jurídica da sociedade, cumprindo a pena ou a medida estabelecida na lei –, influenciou os Estados a adoptar mecanismos arrojadamente excêntricos com vista a combater (prevenir e reprimir) o crime organizado.

Sendo as acções encobertas um meio especial de obtenção da prova (Capítulo IV do Título III do CPP), constitui, ainda uma questão controvertida a legalidade do seu manuseamento, tendo em conta às regras a que se subordinam os “meios de obtenção da prova” (artigo 206 e seguintes do CPP: exames, revistas e buscas e “outros meios especiais”, onde se enquadram – nos preditos meios especiais – as escutas telefónicas e as acções encobertas, sendo que é esta última que, aqui, nos interessa) e, porque possuem implicação directa na posterior qualidade/legalidade dos “meios de prova” (artigo 159 e seguintes do CPP: testemunhal, declaração das partes, pericial, por reconhecimento, acareação, reconstituição dos factos, documental) “obtidos” pelo agente infiltrado, matéria que também não merecerá, aqui, o nosso debruço, sendo que essa temática – “meios de prova e meios de obtenção de prova, quer sejam ou não as recolhidas pelo agente infiltrado” – será, dada a sua relevância, tendo em conta as proibições estabelecidas na Lei, relativamente a esse aspecto (exemplos: artigos 4 e 222 do CPP) aflorada em ocasiões vindouras.

A despeito da nossa lei não fazer menção ao “agente infiltrado”, quedando-se no genérico “agente encoberto”, se analisarmos com olhar microscópico os preceitos que fazem referência à [sua] identidade fictícia (n.º 3 do artigo 230 CPP), tomando-se em consideração que, para o sucesso de determinadas investigações, é imperiosa a atribuição da identidade fictícia (sujeita às formalidades descritas nos n.ºs 2 e 4 do artigo 230 CPP), tendo ainda em conta o que esse trabalho investigativo requereria relativamente a certos crimes delineados no artigo 227 CPP, chega-se a conclusão que a lei processual penal moçambicana prevê, ainda que timidamente, a infiltração do agente encoberto na organização criminosa sujeita à investigação, pois, no rol das competências do agente encoberto, algumas podem implicar que se infiltre e permaneça na organização tempo suficiente para a produção da prova (daí a possibilidade de prorrogação da identidade fictícia de que aduz o n.º do artigo 3 do artigo 230 CPP). Neste caso, o agente encoberto transforma-se em agente infiltrado, um “subsistema (agente infiltrado) dentro de um sistema (agente encoberto)”, com um raio de actuação mais sensível e mais circunscrito do que aquele em que gravita o “genérico” agente encoberto.

A lei trata-os de forma indiscriminada e indistinta – somente por agentes encobertos –, todavia, pelas justificações emitidas supra, denominaremos de infiltrado (porque de facto o é) aquele agente encoberto cuja sua actuação requeira a penetração no seio da organização criminosa sujeita à investigação.

E porque, aqui, unicamente nos ocuparemos da relevância dos crimes (e sua punibilidade) cometidos pelo agente infiltrado, desde logo, é míster salientar que nos termos do n.º 1 do artigo 1 do CP – princípio da legalidade – «nenhum facto, consista em acção ou omissão, pode julgar-se crime sem que uma lei, no momento da sua prática, o qualifique como tal» e, consequentemente, à luz do n.º 2 do mesmo artigo «não podem ser aplicadas medidas ou penas criminais que não estejam previstas na lei».

A partir desta enunciação fica translúcido que só é crime – e sujeito à aplicação de penas – o que a lei dispuser como tal.

A lei penal estabelece uma série de circunstâncias que, caso se verifiquem, ainda que uma acção seja tipificada como crime, dá-se a irresponsabilização do respectivo sujeito infractor. A título meramente exemplificativo, chamamos à colação as causas excluidoras da ilicitude (n.º 1 do artigo 51 do CP) e excluidoras da culpa (n.º 2 do mesmo artigo), que justificam o facto criminoso, às quais, uma vez concorrendo na prática de um crime, manda a lei com que o crime seja afastado, precisamente pela justificação da ilicitude ou culpa – dois tradicionais elementos integradores do conceito de crime, a par da acção e da tipicidade, consubstanciando-se que só há crime quando, cumulativamente, estão reunidos esses quatro elementos.

No elenco das causas excluidoras da ilicitude, estabelece-se na alínea e) do n.º 1 do artigo 51 do CP que constituem causas de exclusão da ilicitude, justificando o facto: a autorização legal no exercício de um direito ou no cumprimento de uma obrigação, se tiver procedido com diligência devida, ou o facto for um resultado meramente casual.

Daqui, obvia-se a discussão se estamos perante uma causa excluidora da culpa ou da ilicitude (pois a própria lei tratou de salvaguardar a dicotomia entre uma e outra) e perscruta-se, outrossim, a base legal permissiva em torno da qual se branqueiam os crimes que o agente infiltrado for a cometer, concretamente, no trecho que refere «no cumprimento de uma obrigação».

Entretanto, o trecho precedentemente citado – «no cumprimento de uma obrigação» – vem atrelado da menção «se tiver procedido com diligência devida», não restando dúvidas de que, se, por um lado, a lei considera justificado o facto e exclui a ilicitude caso o agente infiltrado tenha cometido crimes no cumprimento de uma obrigação, por outro, a mesma lei adverte que esse facto só é justificado e, assim, afastada a ilicitude, se o agente “tiver procedido com diligência devida”.

É aqui onde principia o paradoxismo, pois,

Ao abrigo do n.º 1 do artigo 231 CPP, «não é punível a conduta do agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta, consubstancie a prática de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata, sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma».

A expressão usada na parte geral – “se tiver procedido com diligência devida” – como critério de exclusão da ilicitude, é, conforme se atesta do regime específico estabelecido para a actuação do agente encoberto, concretamente, no disposto no n.º 1 do artigo 231 CPP, substituída pela expressão “sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma”.  

Isto conduz-nos a concluir que a “diligência [que é] devida”, traduz-se no cumprimento da proporcionalidade que é exigível ao FIC quando tiver, com a sua conduta, de ofender bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.

Uma das figuras mais controversas na Doutrina do Direito Penal, não acolhendo, até, os dias hodiernos, entendimento unânime, apesar de algum esforço visível no que se prende com a sua definição, é precisamente a proporcionalidade. Ainda que se propugne que ela é apreciada casuisticamente, tendo em atenção as reais circunstâncias em que um acto [proibitivo] é praticado, deve ser convocado o princípio da “não exigibilidade” – princípio basilar do Direito Penal na aferição da culpa ou das modalidades do dolo – sendo de realçar que a proporcionalidade é uma circunstância intimamente ligada à culpa, e não à ilicitude como se sucede com a causa justificativa que afasta o crime cometido pelo agente infiltrado, nos termos estatuídos na alínea e) do n.º 1 do artigo 51 do CP.

O princípio da não exigibilidade, princípio crucial em Direito Penal e fundamento de exclusão da culpa e que se caracteriza por se considerar como aceitável que uma pessoa se possa comportar de uma forma [censurável] desde que, atendendo as circunstâncias em que estava mergulhado aquando do referido comportamento, não se pode exigir que agisse de forma diferente daquela que agiu.

Este princípio traz-nos a ideia de não ser exigível um comportamento (correcto/legal) a um indivíduo que, colocado numa circunstância em que as reais peculiaridades da mesma não tornem, dele, exigível outro comportamento, senão outro (incorrecto/ilegal).

Nos termos da Doutrina da não exigibilidade, o crime é desculpável se, atentas as reais condições em que ele foi cometido, chegarmos a conclusão objectiva que qualquer pessoa de diligência mediana, nas mesmas circunstâncias, não teria agido de forma diferente daquela que o sujeito, sobre quem recai a aludida imputação criminal, agiu.

É por isso que, em conformidade com o que se referiu nas primeiras sílabas do presente texto, se a quadrilha na qual o agente infiltrado está inserido, decide violar uma mulher, não é exigível ao agente infiltrado outro comportamento senão, também, tomar parte desse acto hediondo-associativo, pois, em face das suas funções tendentes a colectar informação sobre a quadrilha, tem de agir nos exactos termos em que todos os delinquentes da quadrilha agem.

Diferente, é o caso do agente infiltrado que toma a iniciativa de orquestrar o desígnio que leva à prática do crime. Este FIC, à luz do que dispõe o n.º 1 do artigo 231 acima citado, em regra, já responderá criminalmente, na medida em que não se pode defender que não era exigível, da parte do agente, outro comportamento.

A não exigibilidade funcionará, assim, como termómetro preferencialmente aferidor da responsabilidade do agente infiltrado.

A lei processual penal dá particular relevância, como critério aferidor da punibilidade do agente infiltrado, a sua forma de comparticipação, referindo expressamente que somente estará isento de responsabilização criminal se a sua actuação assumir comparticipação diversa da instigação e autoria mediata.

Dito de outro modo: se o agente infiltrado somente aderir ao plano criminoso da quadrilha, a sua responsabilidade criminal será, em regra, excluída, desde que, nessa actuação, haja com proporcionalidade (proporcionalidade essa que, conforme vimos atrás, depende das reais circunstancias da situação e poucas vezes está à mercê do livre arbítrio do agente em causa);

Por sua vez, o agente infiltrado será, em regra, sempre responsabilizado criminalmente se, contrariamente à adesão de um plano criminoso, for ele próprio o desenhador, o instigador, o criador do evento que culmina com a ofensa de bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal, pois aqui, dir-se-á que é-lhe exigível que adopte outra conduta.

Logicamente, cremos que esta regra deve sofrer o seu devido desvio se, por exemplo, no seio de uma organização criminosa estiver estipulado que a responsabilidade pela criação do plano criminoso é rotativa (no sentido de caber, a cada um dos membros integrantes da quadrilha, de forma intercalada ou interpolada, a responsabilidade de criação do plano) ou se eventualmente, por determinação dos seus chefes na quadrilha, ainda que não esteja plasmada aquela regra da rotatividade, (por nós hipoteticamente criada), lhe for confiada a missão de arquitectar o plano.

Nestes dois cenários hipotéticos, cuja verificação não é inverosímil, não se pode concluir que o agente infiltrado brotou o plano de sua livre e espontânea vontade, estando, nesse caso, acolhido pela norma disposta no n.º 1 do artigo 231 CPP, na parte que faz referencia à comparticipação diversa da instigação e autoria mediata e, consequentemente, deverá ser irresponsabilizado de qualquer imputação criminal.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

 

Sentado na sala de embarque, com a mão envolta da minha pequena pasta de cabedal, me vem à memória sucessivas imagens da difícil jornada percorrida até aqui chegar. Durante anos, foram inúmeras as tentativas de alimentar aquele sonho da mais tenra infância: voar. 

Vivo há menos de dois quilómetros do aeroporto e, diariamente, contemplo os aviões a chegar e partir. Sempre me perguntei, como será estar dentro daquele engenho? Cabem todos lá dentro? Enjoos? Medo de altura? O som do avião a abalroar nas nuvens? Os relâmpagos? Hoje eu teria respostas para todas questões.

Continuo a viajar na minha memória e recordo-me da linda moça que fez o meu check in. Era o meu nome lá nas máquinas deles, não contive a emoção, eu estava dez vezes mais sorridente que ela, afinal de contas eu ia finalmente voar. Entraria num avião e de lá do alto contemplaria os céus, a minha casa, o meu bairro e, o mais lindo de todos, o mar. Foi ela, logo depois do check in, que me apresentou esta lendária sala de embarque. Daqui, apenas alguns metros me separavam da glória.

Uma sensação desconfortável me veio à mente quando olhei para o meu extracto do cartão da companhia aérea. Eu recebera um prémio por fazer o meu quinquagésimo voo como cliente. Fiquei petrificado, sem jeito, envergonhado por ter espalhado tanta emoção. Eu já tinha feito esse trajecto dezenas de vezes, provavelmente centenas, porém, o meu coração agia como se fosse a primeira vez.

Tendo consciência da situação senti-me cansado. Era demais voar cinquenta vezes pela mesma companhia? Quantos outros voos terei feito pelas outras companhias? Sempre a mesma coisa, sair de casa, ir até ao aeroporto, fazer o check in, caminhar até a sala de embarque, de onde habitualmente oiço o meu nome nos alto-falantes, porque sou, de natureza, atrapalhado com o número de voos e com as entradas. De seguida, caminhar até ao interior do avião, ouvir as instruções do comandante e dos comissários de bordo para depois ouvir os motores do avião rugirem com toda potência que levará a mim e aos outros passageiros a um outro porto, digo, aeroporto.

Verdade também seja dita, não há o porquê de me sentir assim tão cansado. As viagens não foram todas similares. Em cada viagem, houve sempre uma história por contar nas varandas das barracas que ornamentam o meu bairro. Houve vezes que não terminei de fazer a mala, atrasei-me ao aeroporto e perdi o voo. Nalgumas vezes, saí até a porta de casa e a boleia plantou-me até perder a viagem. Das raras vezes em que a boleia chegou, algo aconteceu pelo caminho. Uma vez perdemo-nos e fomos parar no lado da cidade oposto ao aeroporto. Da outra vez o carro avariou e numa outra vez o engarrafamento impediu-nos de chegar a tempo ao aeroporto. Parece que o aeroporto mudava de endereço em cada viagem.

Teve, sim, vezes em que cheguei ao aeroporto. Fiz o check in e depois perdi-me nas enormes instalações do aeroporto, de tanto apreciar os enormes aviões que ali atracavam. Me enchia os olhos aquela vista dos motores a rugirem, os comandantes e os mecânicos de voo a avaliarem o trem de pouso, os flaps, os níveis de combustível, os pesos previstos na decolagem e no pouso, as cartas meteorológicas, os passageiros, orientados pelos comissários de bordo, todos sorridentes a tomarem os seus lugares, os camiões cisternas devidamente estacionados perto dos aviões, os manobristas a taxiarem os aviões para a pista de manobra de onde rolavam até a pista principal e os comandantes na expectativa de receberem, de lá do topo da torre de controle, uma autorização para invadirem a pista de decolagem e rezando para que nenhuma aeronave estivesse em final aproach  o que atrasaria, em minutos, a sua partida. Nessas vezes, acabei, também por perder o voo.

Os eventos incomuns sucedem-se sempre quando, finalmente, cumpro com sucesso todos os procedimentos e chego ao interior do avião. Nesses casos olho para a janela sorrindo e digo para mim mesmo, desta vez vai dar tudo certo. Aqui, agora, sentado na sala de embarque pela quinquagésima vez, não consigo explicar o que de facto ocorreu, mas, por mais difícil que seja acreditar, eu perdi o voo nesses casos também.

Não tenho tempo de pensar mais ou continuar a reviver amargas memórias, o meu nome já se ouve nos alto-falantes. Sou eu, trapalhão, mais uma vez. Olho novamente para o bilhete e o passaporte, é realmente o meu nome. Pego na minha bagagem de mão, sorrio levemente e caminho em direcção ao avião que se encontra ancorado na pista. Vejo os passageiros, algumas faces são conhecidas. Se algum dia eu pudesse convidar alguém para voar, seriam, de certeza, as primeiras a receber o convite.

Alguns dos passageiros estão emocionados. Vão voar pela primeira vez, rio-me deles pois eu vou voar pela quinquagésima vez. É verdade que antes de me dar conta do número de vezes que vim voar estava, também, emocionado, por isso eu lhes entendo, voar deve ser emocionante. Principalmente quando é a primeira vez.

 Estou novamente no avião, encaixo-me na cadeira certa, sigo com rigor todas as instruções de segurança, sorrio novamente, é tudo igual ao que vi na televisão e na internet, podia jurar que era uma cópia genuína ou uma recriação minha do original.

Depois de apertar o cinto de segurança o comandante anuncia que o voo vai partir, olho pela janela, a visão é turva mas tenho certeza que estou dentro do avião o que me faz ver, à distância, a extensão de todo edifício do aeroporto. Sorrio novamente e digo em tom baixo: finalmente parece que vou voar.

Os motores rugem, o coração bate forte, é a emoção do primeiro voo. Os motores rugem com mais intensidade, viro a cabeça para abafar o som na tentativa de viver o meu voo. O meu quinquagésimo voo. O meu primeiro voo. Mas os motores mantêm-se vigorosos, são fortes, o seu ruído é intenso, dá-me cabo das memórias.

Por uns instantes sinto-me inerte, acedo à última réstia de memória que quase me escapava pela janela do avião, apego-me a ela e aí recordo-me, este som é familiar. Mas faz todo sentido, afinal de contas é o meu quinquagésimo voo. Não, é familiar de outras galáxias, este som, é o som do despertador. Que me faz despertar. Que faz despertar, em mim, a angustia e a amargura de nunca ter voado.

 

 

Se Eusébio Johane N’Tamele (Zeburane), estivesse vivo, completaria hoje 90 anos.

Hoje, o Governo, em Gaza, através da Ministra da Cultura e Turismo Eldevina Materula, irá inaugurar o novo edifício do ARPAC, uma infraestrutura moderna que vem conferir cada vez mais dignidade à cultura na província.

O leitor poderá estar a se questionar sobre o nexo de causalidade entre uma notícia e a outra. Assiste-lhe a razão! Porém, se analisar com um pouco mais de cuidado, tendo em conta uma das atribuições próprias desta instituição, que é de “pesquisa, arquivo e divulgação sistemática, dentro dos parâmetros cientificamente reconhecidos, da cultura e do património cultural dos moçambicanos, com a finalidade de estudo, educação e deleite”, aí poderá perceber a ligação entre as duas.

 É que, se levarmos em conta que Gaza viu nascer um dos grandes vultos da música moçambicana, que é Eusébio Johane N’Tamele, e no entanto, pouco se sabe ou se conhece dele e da sua obra, então, concluímos que é altura de estudá-lo com mais profundidade e dentro dos parâmetros científicos reconhecidos, como forma de conferi-lo a grandeza, a legitimidade e o direito que tem como grande músico.

Eusébio Johane Ntamele, ou simplesmente Zeburane, tinha admiração por Feliciano Ngome e Mahecuane Macuvele, também nascidos em Gaza, o primeiro, proto-marrabentista, que dá cara ao disco The Forgotten Guitars From Mozambique (do etonomusicólogo Hugh Tracey), e contém o maior número de canções nesta colectânea, e o segundo, um dos que apurou a linha de execução de Marrabenta. Estes dois Gazenses, como Zeburane, também merecem e devem ser estudados.

Mas voltando para Zeburani, sabemos que ele inspira grandes músicos. Os acordes da sua guitarra e os timbres vincados dos seus sons, a sua temática de estima e valorização da figura da mulher, a sua canção de uma beleza singular, fazem dele um nome de eleição, contudo, pouco conhecido entre muitos moçambicanos.

Hoje, a música Pandza e afins, herdou a linha de execução de guitarra de Eusébio Johane N’Tamele(um som cuja vibração das cordas lembra o bandolim), mas muitos não sabem, porque nunca ninguém lhes disse, nunca foram informados e nem formados, assim como nunca foi estudada esta linha para o seu aprofundamento e aperfeiçoamento adequado.

 Um dos maiores legados de Zeburane é a sua canção de exaltação do feminino sofredor, que chora de forma permanente as dores próprias do lar conjugal, firme nos seus deveres, procurando a correcção do seu companheiro. Sabemos que Zeburani é inspiração de grandes nomes da música moçambicana como Wazimbo, José Mucavele, Salimo Mohamed, Hortêncio Langa, Aniano N’Tamele (suspeito por ser filho do mestre), Roberto Chitsondzo dentre muitos outros, alguns com conhecimento e reconhecimento disso, e outros nem por isso.

 O ARPAC em Gaza, terá também este papel de correr atrás deste e de outros nomes como Feliciano Ngome, Aurélio Nkovano (Ntonganhane), José Matirandze, José Mucavele, Alexandre Langa, Francisco Mahecuane, Alberto Mhula, António Marcos, Daniel Langa, Hortêncio Langa, Pedro Langa, Mário Ntimane, e muitos outros que Gaza viu nascer e deixaram suas marcas, no entanto, não estudadas convenientemente e não divulgadas para o deleite dos demais.

Hoje, Gaza irá celebrar duplamente, mas sempre a concorrer para um único objectivo: a valorização da nossa cultura e a recuperação dos saberes da nossa rica terra.
Avante Gaza!

 

Por Amosse Macamo
Secretário de Estado de Gaza

Coronavírus em Moçambique: De quem é a responsabilidade de segurar postos de trabalho?
Como era de esperar por estas alturas de Coronavírus, as empresas moçambicanas estão a fazer um jogo de cintura para manter as portas abertas e continuarem a pagar o precioso salário aos seus trabalhadores.

Algumas estão numa situação melhor que as outras, mas todas têm algo em comum: os prejuízos. O regime laboral já não é o mesmo. As equipas de trabalho reduziram. Os índices de produção, também. As contas estão quase a vermelho.

O sector privado está a viver o presente, cinzento e de dificuldades extremas, porque o amanhã, esse, é incerto. Ninguém sabe que direcção a tomar e com quem contar para devolver a esperança às empresas.   

As primeiras 217 firmas já notificaram ao governo sobre as dificuldades que estão a encontrar para continuarem a laborar nos mesmos moldes. Os turnos, a força de trabalho e a carga horária reduziram devido ao Coronavírus.

Há empresas que já avançaram com a rescisão dos contratos de trabalho com os seus operários, num universo de 6.400 postos de emprego em risco.

Algumas avisaram que este mê só pagarão 75 por cento do salário e que caso o Estado de emergência seja prorrogado por mais tempo, no segundo mês, será só metade e no terceiro, apenas 25 por cento. Isso está na lei.

No sector de turismo, a situação está pior. A taxa de ocupação é de apenas 6 por cento. As reservas estão todas canceladas. De janeiro a Março, o prejuízo evoluiu de 35 para 65 porcento. Algumas unidades hoteleiras estão a dar férias colectivas de 30 dias, mas isso não significa solução para a crise.

Revisitei o pacote de medidas administrativas de cumprimento obrigatório, com quase quinze dias de implementação, a nossa bíblia sobre o que se deve e o que não se deve fazer durante a vigência do Estado de Emergência de 30 dias no país. Não estão lá decisões direccionadas a ajudar ao empresariado a mitigar os efeitos nefastos de covid-19, com a excepção das facilidades fiscais e aduaneiras anunciadas esta semana pelo Governo para os importadores de materiais de prevenção de Coronavírus.

Nada dizem sobre o que fazer em defesa dos postos de trabalho em risco e aqui coloca-se uma pergunta: A quem cabe a responsabilidade pela sua manutenção? Ao Governo, ao sector privado ou aos dois?

Os encargos com os salários constituem o principal custo para as empresas e, por isso, o trabalhador é o elo mais fraco. Quando as contas apertam, o empregador desfaz-se de parte da sua força de trabalho para equilibra-las.

Não sendo interesse do governo o aumento do desemprego no país dado às implicações políticas que isso representa, fica aqui o recado no sentido de olhar pelas empresas. É urgente conceber medidas específicas de apoio, integradas numa estratégia, que sirvam de almofadas para minimizar os efeitos do Coronavírus.

As empresas, num total desespero, estão à espera de um sinal do governo para continuarem a produzir e manter os postos de trabalho. Podem ser iniciativas de natureza fiscal ou através de disponibilização de pacotes de financiamento às micro, pequenas e médias empresas que empregam mais gente.

O governo tem que agir quanto cedo para garantir que as pessoas se mantenham nos seus postos de trabalho, sob risco de não fazer muito sentido o seu plano de criar, durante o presente quinquénio, três milhões de empregos.

A Constituição da República confere ao cidadão moçambicano o direito ao trabalho e a responsabilidade de promover o emprego é inteiramente do governo através da mobilização de investimentos, nacionais e estrangeiros, facilitação de abertura de empresas e a garantia de um bom ambiente de negócios.

Politicamente, nos seus contactos com as autoridades governamentais, as empresas prometem continuar a pagar os salários, mas não aguentarão por muito tempo. A avaliar pela evolução de Coronavírus no país, o estado de emergência poderá ser prorrogado por mais tempo. Se isso acontecer, as dificuldades no sector empresarial irão avolumar-se.  

Do mesmo sinal estão à esperam milhares de moçambicanos que abdicaram das suas fontes de sobrevivência: barracas, bares, botequins, salões de cabeleireiro, venda de comida na via pública, entre outros, cumprindo as medidas restritivas.
É um facto que essas pessoas estão a passar por muitas dificuldades. Estamos a falar de cerca de 80 por cento da população a trabalhar no sector informal. Esses indivíduos não sabem o que fazer para se manterem vivos sem violarem as regras de prevenção de covid-19, algo muito sério.

Há algumas experiências a nível da SADC em termos de mitigação dos efeitos negativos do Coronavírus, em particular no que se refere às micro, pequenas e médias empresas, com a disponibilização de alguns financiamentos.
O governo sul-africano, por exemplo, acaba de aprovar um fundo no valor de 200 milhões de randes para tentar salvar o sector de turismo gravemente afectado pelo covid-19.

A estratégia angolana está mais virada para o cidadão. A Comissão Económica, órgão colegial do Presidente da República, João Lourenço, autorizou ao sector privado a transferir para o salário do trabalhador, o valor descontado para a Segurança Social, correspondente a três por cento do seu salário durante os meses de Abril, Maio e Junho. A decisão é em benefício aos agregados familiares sob ameaça de aumento dos preços de bens alimentares básicos.

Os provedores de serviço de energia e água em Angola têm instruções para não efectuarem cortes no fornecimento durante este mês de Abril.
O governo angolano disponibilizou igualmente 315 milhões de Kwanzas para apoiar as famílias mais carenciadas em forma de bens da cesta básica.

Por seu turno, os presidentes de Ruanda, Paul Kagame, e de Uganda, Yoweri Kaguta Museveni, têm estado a distribuir, porta a porta, alimentos da cesta básica às populações mais necessitadas para reduzir a movimentação das pessoas na via pública.

São sinais deste género e outros possíveis que o moçambicano está à espera do governo para continuar a sonhar com o amanhã. O Conselho de Ministros ainda tem espaço para melhorar ou reforçar as medidas administrativas e permitir que todos se possam espelhar nelas: as empresas e o cidadão.

 

 

Não sinto as gotas de chuva que incessantemente tamborilam o meu corpo e a minha alma. Não sinto a força dos ventos que me chicoteiam as costas. Não sinto o estômago que há três dias reclama pão.

Sinto as mãos que, trémulas, continuam agarradas a um ramo que me faz baloiçar, que nem um pêndulo, ao sabor do vento. Sinto as minhas pernas entrelaçadas em torno deste ramo tornado no último palco da minha vida.

Os meus olhos, impotentes, insistem em manter as pálpebras abertas para sulcar Nyatwa, a filhota que me sobra e que, no outro ramo, também trava a mesma luta: a luta contra a morte.

Mas o que é a morte? Será uma viagem ao infinito das águas para onde a minha esposa e dois filhos seguiram ontem? Ou será este desespero que me mantém nesta fronteira ténue. A fronteira entre cá e lá. É uma fronteira tão leve que cabe nas minhas frágeis mãos calcinadas pelo cansaço, fome e medo. Bastaria que eu largasse o ramo para que a torrente de água turva me levasse para o outro lado. O lado da paz celestial.

O vento sopra forte. O meu corpo fraqueja. Há uma força enorme e oculta que luta contra a heroica missão das minhas mãos. Sinto que a minha hora de atravessar a ténue linha de fronteira se aproxima. Não sei se alguém chorará por mim. A minha esposa já se foi. Dois, dos meus três filhos, seguiram-lhe as pegadas. Um a um. Ou será que lá do outro lado também se chora? Não sei.

A minha certeza é que Nyatwa é a única pessoa, em terra, que provavelmente vá ter algum tempo para chorar por mim. Será fugaz. Também fraquejará em seguida e irá tombar. O melhor, se calhar, seja chorarmos agora. Um pelo outro. Antes de ambos também atravessarmos a linha de fronteira.

O meu coração desata a chorar. A minha força interior não deixa que as lágrimas me cheguem aos olhos. Sou homem.  Apenas devo exteriorizar o amor. Por isso oro. Por mim e pela minha filha.

Acredito que a minha mulher e os meus filhos, lá onde se encontram, por nós aguardam para nos receber de braços abertos. Mas será que lá para cima foram com os braços? Ou estes foram estrangulados pelas águas e atiradas a uma foz qualquer? Ninguém sabe.

A minha Nyatwa continua agarrada ao seu ramo. Contemplo-a. Os meus olhos faíscam nesta voz das trevas. Ela apega-se ao ramo com toda a energia que lhe sobra. O vento faz esvoaçar as suas roupas. O seu rosto está meio franzido e com os dentes à mostra. Penso que é cerrando-os que ela busca a força que necessita para se manter viva. Ainda assim, consigo descobrir a beleza única das suas feições. Como ela é linda! Típico sangue do meu sangue.

Queria eu estar no mesmo ramo que ela, para lhe dar a devida protecção de pai. Não me sobram forças para lá chegar. Consola-me acreditar que os meus olhos são os maiores guardiões do mundo.

O limiar da morte une as nossas mentes. Ela intui o que eu penso. Vejo que tenta gesticular. Quer dizer-me algo que o vento não me deixa ouvir. Prefiro pensar que ela diz que me ama.

«Eu também te amo, filha!», uso o pouco fôlego que me sobra nos pulmões para ensaiar aquilo que devia ser um grito. Duvido que ela me tenha ouvido.

As suas mãos são mais fortes que as minhas. Mas o ramo em que ela se refugia abana ao ritmo do vento. O céu resmunga forte. O raio que solta risca e ilumina os ares. A noite vira dia. Fecho os olhos e estremeço. O coração bate forte e um calafrio atravessa-me a espinha. Quando volto a abrir as pupilas, apenas vejo o vazio da chuva. Nem o ramo, nem a minha Nyatwa.  

Os meus tímpanos captam ecos de um grito abafado da minha filha. É um grito que vira um mantra contínuo na minha mente. O grito do adeus. O grito do aceno aos deuses que habitam o outro lado da tal linha ténue.  

Não choro. Sei que a minha vez também não tardará.  

“O banco standard Totta está a arder. Vai agora para lá trazer-me a notícia”, ordenava o meu chefe de redacção. Foi uma vergonha para mim. Não havia nenhum incêndio. O gerente do balcão riu-se e perguntou-me: onde está esse incêndio? Por acaso estas a ver algum fumo ou algo queimado por aqui?” – Nada, respondi.

… A Organização Nacional dos Professores (ONP) ia reunir-se numa manhã. Eu era o repórter acompanhante. Na parte de tarde, ja na redacção, o reporter senior com quem fui ao terreno não voltou mais do almoço e as minhas notas não davam para construir uma notícia.

… Era hora do almoço no centro social do SNJ (arroz com carapau aguado) que não chegava para todas as pessoas, quando um colega do “Notícias” perguntou-se o que eu iria escrever. Revelei-lhe o tema e ele foi sacar a notícia da minha fonte e publicou primeiro que eu. O Diário de Moçambique onde trabalhava não saiu à rua e perdi a concorrência.

… O pai do Presidente Samora Machel, Malengane Machel, morre em Chilembene e sou destacado a cobrir o enterro. Abel Faife, um jornalista muito bom em reportagem, estava entre a equipa. O que temia aconteceu. No dia seguinte estavam todos os pormenores no jornal. Nao sobrou nada para mim que não consegui enviar a história por falta de energia na Beira.

Foi com estes choques que comecei a minha carreira profissional no “Diário de Moçambique”. Quando as linhas de transporte de energia eléctrica fossem sabotadas pela Renamo, ficavamos sem jornal por uma ou duas semanas seguidas.

Percebi que quando o meu chefe me mandou trazer uma notícia do incêndio que não existia estava a transmitir a mensagem de que o lugar para um jornalista è na rua, pois é lá onde rolam as notícias: nas paragens de autocarros, nos machimbombos, nos mercados, em suma, à nossa volta, nos bairros onde vivem, etc, etc.

Quando naquela tarde o reporter a quem acompanhei e que tinha a responsabilidade de cobrir a reunião da ONP não regressou à redacção era um aviso de que tenho que contar com os meus próprios pés, gatinhar à minha maneira. Cometer erros até chegar à superação.

Aprendi através da história com o meu colega do jornal notícias que me roubou a minha história do dia que o jornalista tem que tem sigilo e deontologia profissional.

Com o episódio de Chilembene, fiquei triste por perder a oportunidade de desafiar Aber Faifa com os meus poquíssimos anos de carreira profissional, mas foi uma oportunidade para aprender, uma vez mais, com o meu mestre como se faz uma reportagem descritiva como mandam as regras de jornalismo.

Foi com desafios como o da minha indicação para a cobertura da Assempleia Popular, hoje Assembleia da Repúbica fruto de multipartidarismo, quando eu achava que não estava ainda preparado para isso, que mais cedo superei as dificuldades básicas de quem está a iniciar a profissão: descobrir notícia, identificar fontes de informação, registar dados com segurança e dominar as técnicas de notícia.

Se hoje é difícil “furar” para conseguir informação de utilidade pública com o papel que a comunicação social tem de contribuir para o desenvolvimento da democracia no país, imaginem em 1982, no sistema monopartidário, em que a informação era controlada pelo poder político.

Comecei a carreira numa altura em que era obrigatório as direcções dos órgãos de informação apresentarem planos temáticos para três ou seis meses ao Departamento do Trabalho Ideológico do partido que se sobrepunha ao Ministério da Informação e o nosso trabalho tinha que ser feito dentro dessas balizas.

Para o meu caso,  as notícias eram ditadas ao telefone, a partir da delegação de Maputo onde estava afecto, com um copo de água ao lado, pois era aos gritos. Pouco ouvia-se. O país estava atrasado em termos de telecomunicações.

A outra alternativa para enviar os textos era o avião, mas nem sempre havia voos para a cidade da beira. Às vezes tomavamos conhecimento do cancelamento do único voo do dia já no aeroporto, com o envelope das notícias na mão.

Eram frustrações atrás de frustrações quando escreviamos e as notícias não saiam no dia seguinte no jornal. As circunstância obrigavam-nos a apostar, como saida, em histórias exclusivas ou que não perdiam a actualidade para ganharmos a concorrência.

Mais tarde, recebemos das Telecomunicações de Moçambique uma máquina para a redacção chamada telex através da qual passamos a enviar as notícias para a sede do Diario de Moçambique na Beira. Compunha-se o texto e este ficava gravado numa fita amarela picotada e fina que depois era montada na cabeça do equipamento.

O operador tinha que marcar o número do destino que eram quatro algarismos. Assim que conseguisse a linha, primia o botão para começar a passar a fita e a notícia ser recebida do outro lado numa máquica idêntica num rolo de papel com a largura de um A4. E era difícil estabelecer a ligação devido ao atraso nas telecomunicações.

As gráficas dos dois jornais que existiam até então, o “Notícias” e o “Diário de Moçambique”, incluindo a “Revista Tempo”, usavam um equipamento muito atrasado e que correspondia a essa época. Depois de batidos na máquina de escrever, os textos passavam para um compositor que os batia novamente.

As frases, que ficavam gravadas em barrinhas de chumbo, iam caindo num recipiente agregado à máquina de onde eram, depois, recolhidas e arrumadas em caixas de chapa próprias formando uma página do jornal.

Resolvi escrever este artigo como uma homenagem a todos os jornalistas desse tempo, incluindo a mim próprio, por ocasião da passagem de 11 de Abril, Dia do Jornalista, que com dificuldades de comunicação e acesso às fontes, faziam o seu melhor para manter a população informada sobre o movimento revolucionário iniciado com a proclamação da independência nacional em 1975.

Os jornalistas faziam omolete sem ovos no seu papel de educar e informar numa altura em que 97 por cento da população moçambicana era constituida por analfabetos e decorria um programa nacional de educação de adultos nas empresas e nos bairros para reverter a situação. Mesmo sem condições, muitos se tornaram grandes jornalistas, como é o caso de Narciso Castanheira, António Sefane, Abel Faife, Mário Ferro e outros.

O artigo é também uma homenagem aos mais novos que resolveram abraçar esta carreira, mesmo cientes de que é uma profissão ingrata e de grande risco. Dizia meu professor de jornalismo que se quer ficar rico, escolheu uma profissão errrada.

Ao longo dos meus 38 anos de profissão não fiquei rico, mas conquistei algum prestígio na sociedade. Viajei pelo mundo. Conheco muito bem o meu pais, desde a localidade, passando pelo posto administrativo e distrito até à capital provincial.

Privei com altos dignatários: presidentes da República, ministros, embaixadores e outras figuras estrangeiras. Isso para mim é um grande capital. É mais do que dinheiro.  

Aqui fica uma mensagem de encorajamento a todos que estão a seguir o jornalismo porque gostam e não por uma questão do emprego. Ter vocação nesta profissão é um bom começo e a garantia de sucesso nesta difícil missão de informar e com responsabilidade.

Hoje, o jornalista tem todas as ferramentas necessárias em termos de tecnologias para fazer o seu trabalho. Além das redes sociais, do facebook, twitter, google e de outras plataformas, há leis que propiciam o seu trabalho, nomeadamente a liberdade de imprensa e de expressão. Se têm tudo nas mãos, de quem estão à espera para brilhar?

 
Por Alexandre Chiure
Jornalista
alexchiure@gmail.com

 

Sim, um mal traz sempre outro pior na cauda. A esposa do vizinho Ruben não se sentiu tranquila enquanto não cobrasse contas aos adúlteros. Até tinha insónias. Ela a mirrar lá em Marracuene, na machamba, feita uma parva, uma crónica abstémia de sexo, a matar-se a produzir comida para ele e para os filhos, e ele na boa-vida com amantes. “…não, isto não fica assim!…”. Numa manhã que se prometia feliz fez o cêrco. Fazia-se acompanhar de três valentonas nervosas, sempre na disposição de agredir alguém, umas zaragateiras conhecidas no bairro, donas de muitos filhos de pais incógnitos. Também já haviam recebido a sua quota-parte de sovas das esposas dos amantes.

A dona Virgínea mal transpusera o portão da casa, logo as quatro mulheres caíram-lhe em cima. Como introdução ao ataque mimosearam-na com epítetos pouco dignificantes à moral, à sua e à da mãe que a pariu. Beliscões na testa e puxões ao nariz seguiram-se; bofetões começaram a voar para a cara da mãe Virgínea, que mal podia defender-se, impotente pela surpresa do ataque e pela superioridade numérica das atacantes. Ululações, apupos e assobiadelas chamavam a atenção dos transeuntes naquela rua para espalhar a notícia do escândalo que vizinhos de lado protagonizavam.

A dona Virgínea sofreu o vexame de ser despida em público para deixar exposta aquela nudez que cometera o delito de entregar ao vizinho, o senhor Ruben. Quando ao entardecer este tomou conhecimento da altercação tentou pedir contas à consorte. Que enorme imprudência foi ele cometer! Aquilo foi o mesmo que deitar petróleo numa fogueira. Para mal dos seus pecados, o atrevimento saiu-lhe como nunca esperara. Ficou sem a falangeta do dedo indicador da mão direita, amputada à dentada pela consorte traída. Durante a confrontação a esposa do senhor Ruben entrou num estado de histeria incontrolável. Barafustava em voz alta, toda agitada e desempenada, levantava as capulanas até muito acima das coxas para inquirir do esposo: ”…hen! a da Vergina é mais gostosa do que a minha?… hen? …fala!…fala lá aqui!…o quê que essa prostituta tem mais do que eu?…hen?…diz-me lá aqui!…”, e apontava o baixo-ventre com um dedo indicador. Um escândalo memorável!

Pela primeira vez vi um homem chorar. Desconheço se o senhor Ruben fazia-o por causa da dor no dedo amputado ou de vergonha pela humilhação.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

Certa vez, a mão perguntou aos dedos:
— Qual de vós faz de mim um órgão especial?
    O mínimo apressou-se a responder:
— Com certeza ter um dedo pequeno para esgravatar o nariz faz de ti um órgão muito especial.
    O anelar imediatamente sacudiu a cabeça, em repúdio indisfarçável.
— A mão — disse ele — só é especial porque tem um dedo no qual se introduz um anel matrimonial.  
    O médio não se demorou a dizer todo anafado de orgulho:
— Ter um dedo que se destaca entre os demais, sem sombra de dúvidas, faz da mão um órgão especial.   
O indicador respondeu muito sério, logo a seguir:
— Sem mim, a mão não teria como apontar as pessoas e as coisas.
    O polegar, nos outros dedos, reparou, antes de dizer:
— Não concordo com o que dizem, pois o que seria da mão se não existisse um dedo para dizer que “Está tudo bem!”?
    E depois de ouvir com muita atenção as respostas de todos dos dedos, a mão disse, sorrindo como nunca tinha o feito até aquele dia:
— Infelizmente, todos vocês não souberam responder. Foi o braço quem o disse: ter dedos que saibam que sozinhos podem pouco e juntos podem muito é o que faz de mim um órgão muito especial.

 

Com a eclosão do coronavírus no continente asiático, em Dezembro de 2019, as bolsas de valores e de mercadorias dos países mais industrializados do mundo, começaram a registar quedas nunca mais vistas anteriormente devido ao susto causado aos investidores pela Covid-19 provocando “havoc” nos mercados financeiros na própria Ásia, Estados Unidos da América, Inglaterra, Alemanha, França, etc. É uma situação que tem vindo a desvalorizar as acções colocadas nas bolsas pelos investidores e criando perdas consideráveis.

Não obstante, o coronavírus está a ser responsável pela queda do preço do petróleo por barril dos cerca de USD 60 até dezembro de 2019 para USD 30 até Março passado nos principais países produtores deste recurso, nomeadamente a Rússia e a Arábia Saudita devido à fraca procura por parte dos principais compradores na Índia, China, na Europa Ocidental, incluindo África. Estes factores todos associados poderão contribuir para a queda do crescimento da economia mundial dos 2% projetados anteriormente para 1,5% este ano.

O Coronavírus está indubitavelmente a impactar negativamente na economia moçambicana, atendendo e considerando que o nosso país não é uma ilha, ele é parte integrante do comércio internacional o que torna difícil a mobilidade de mercadorias e pessoas dum país para o outro fazendo com que o comércio internacional não flua a níveis desejados.

Por um lado, com as restrições que se registam na arena internacional, o nosso país já começou a ter limitações para exportar a sua produção, especialmente para países como a China e a Índia que são os maiores compradores dos recursos minerais produzidos no nosso país com maior destaque para o carvão mineral produzido na bacia carbonífera de Moatize, província de Tete, o que tem contribuído de sobremaneira para a queda do preço deste minério no mercado mundial. Além do carvão, o nosso país enfrenta grandes barreiras para exportar produtos agrícolas como o açúcar, tabaco, nozes, castanha de caju, legumes bem como bens pesqueiros para países da Europa nomeadamente o Reino Unido, França, Itália, entre outros.

Por outro lado, devido as restrições que se verificam no mercado internacional, Moçambique naturalmente que está a enfrentar dificuldades para importar diversos tipos de bens e serviços uma vez que a maior parte dos maiores parceiros económicos do nosso estão em “lockdown” mas também porque já existem casos confirmados de coronavírus no país o que inibe a saída de moçambicanos para o exterior por exemplo para a compra de alho na China.

Estes factores estão a concorrer para o agravamento do défice na conta corrente da balança de pagamentos de Moçambique impactando negativamente na entrada de divisas em moeda externa com particular destaque para o dólar norte-americano (a principal moeda usada para o comércio internacional), tendo em consideração que o comércio internacional é a força motriz para o desenvolvimento de qualquer economia. Nenhum país é auto-suficiente na produção de topos tipos de bens e serviços e, por mais que existisse, sem exportar essa mesma produção não pode haver crescimento económico.

 

Possíveis implicações

O agravamento do desequilíbrio na balança de pagamentos do país devido ao coronavírus se a situação prevalecer por mais 3 meses trará consigo consequências muito devastadoras como a subida galopante dos preços de produtos básicos para o consumo devido à fraca produção no país e alta dependência em relação as importações principalmente da vizinha África do Sul que também debate-se com os problemas de coronavírus o que por um lado encarece o custo de aquisição desses bens de consumo uma vez que regista-se uma ligeira queda do nível de produção e produtividade naquele país vizinho o que faz com que o preço ao consumidor a nível doméstico seja muito elevado corroendo deste modo o poder de compra da maior parte da população moçambicana cujo salário mínimo está abaixo dos 100 dólares norte-americanos provocando uma queda no nível de consumo das famílias. Esta alta dependência em relação às importações é prejudicial para o nosso país uma vez que a mesma concorre para a desvalorização da moeda nacional em relação ao dólar dos Estados Unidos dos cerca de 62 Meticais em Janeiro para 67.69 Meticais em Abril.

Por outro lado o coronavírus já está a afectar negativamente o sector privado nacional com particular destaque para as pequenas e médias empresas que serão obrigadas a terem que optar pelos despedimentos involuntários de alguns colaboradores seus provando um aumento da taxa de desemprego no nosso país e aumentando desta forma a pobreza e quiçá contribuindo para a queda da produção e produtividade das empresas o que poderá provocar a falência das mesmas provocando um caos na economia atendendo e considerando que o sector privado é o vector do desenvolvimento económico de qualquer país, o Estado aparece como regulador da economia.
As actividades como turismo, restauração e hotelaria é que serão os maiores perdedores por causa do coronavírus pois muitas delas vão ter que encerrar as portas devido ao cancelamento de vistos por parte dos turistas estrangeiros e fraca afluência por parte dos consumidores e utentes dos restaurantes e hotéis, respectivamente.

Isto vai resultar no agravamento do défice fiscal por parte do Estado moçambicano uma vez que o imposto é a principal fonte de receita do governo, evidentemente que há sectores da nossa economia que irão registar uma queda acentuada no que ao investimento governamental diz respeito, falo precisamente da saúde, educação, agricultura e infra-estruturas.

Estes todos factores que foram arrolados nos parágrafos anteriores vão agudizar a queda do crescimento da economia moçambicana dos 5,5% previstos para este ano pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em finais de 2019 para 2%. O país estava prestes a mostrar sinais de recuperação após os ciclones IDAI e Kenneth que fustigaram as zonas centro e norte de Moçambique destruindo infra-estruturas e campos de produção agrícola.

Os efeitos do Coronavírus serão mais devastadores que os das dívidas ocultas e dos ciclones IDAI e Kenneth.

Medidas do Banco Central

Recentemente, na última reunião do Comitê de Política Monetária, o Banco Central decidiu libertar 500 milhões de dólares americanos para o sistema financeiro nacional como forma de permitir que os bancos comerciais tenham maior liquidez em moeda estrangeira para fazer face às importações de bens, e serviços e portanto para fazer face à depreciação do metical em relação ao dólar devido à queda do volume e do valor de exportações do nosso país exacerbada pela eclosão do coronavírus no mercado internacional no geral e em Moçambique em particular.

Só podemos esperar para vermos qual vai ser o impacto desta injecção no mercado financeiro a médio e curto prazos, mas naturalmente que se a situação prevalecer a moeda nacional vai continuar a depreciar uma vez que os factores que concorrem para a tal depreciação são vários devido à complexidade da própria estrutura da economia moçambicana. Se o défice de produção no país avolumar-se e as fronteiras continuarem fechadas do lado sul-africano veremos cenários piores ainda, e o dólar poderá disparar para 80 meticais nos próximos dois meses encarecendo cada vez mais as importações.

A medida é bem-vinda mas coloca de lado as pequenas e médias empresas que são as maiores vítimas desta situação uma vez que terão por fim ao cabo que declarar “lockouts” ou seja despedimentos uma vez que sofrerão quedas na produção uma quebra no que diz respeito a oferta dos serviços e bens no mercado e, terão que honrar com os compromissos salariais.

Não tendo alternativa a melhor opção será o fecho das portas e despedir os trabalhadores. Penso que o Governo pese embora esteja a passar por tempos difíceis devido ao défice orçamental agudizado pelas famosas dívidas ocultas e pelos efeitos devastadores dos ciclones que sacudiram o nosso país no ano transacto, deveria encontrar mecanismos para apoiar as pequenas e médias empresas para continuarem a operar e para honrarem com os seus compromissos salarias. As instituições financeiras internacionais e nacionais deveriam também apoiar o sector privado uma vez que este é que garante o bom funcionamento da economia.

 

Por Elcidio Bachita
Economista e docente universitário

O Governo tornou público, na última semana de Março, um pacote de medidas administrativas de cumprimento obrigatório por todos os moçambicanos para evitar a propagação do Coronavírus, próprias de um país em Estado de Emergência que entrou em vigor a 1 deste mês e por 30 dias.

Passado uma semana, o resultado de avaliação da implementação destas medidas que se nos oferece fazer é, em alguns casos, preocupante e noutros, encorajador. No geral todos estão cientes em relação à doença e o perigo que representa na vida das pessoas, mas há os que, mesmo assim, se refugiam na sobrevivência para não cumprirem com o decreto.

O que pegou facilmente nestas coisas de prevenção de Coronavírus é a recomendação de que se deve lavar as mãos com sabão, muitas vezes ao dia, ou desinfectá-las com gel. Baldes com torneiras estão em tudo que é canto. Algumas instituições públicas e privadas têm o gel na entrada e alguém para obrigar aos utentes a desinfectar as mãos. Excelente!

Quanto aos cultos religiosos, as igrejas estão a fazer a sua parte com zelo. As missas deixaram de ser presenciais. A cerimónia de domingo de ramos foi transmitida através de canais de televisão. Os crentes acompanharam tudo a partir de casa, afinal a igreja não é o edifício, mas as pessoas. Maravilha.

As barracas, os bares, os botequins, as discotecas, os tais locais de diversão, fecharam, incluindo salões de cabeleireiro. Alguns, com resistência e outros, não porque têm a consciência de que a sua actividade está no grupo de alto risco de propagação do COVID-19. Apesar de existirem alguns prevaricadores, é fácil de controlar a situação.

Onde havia problemas sérios é no sector dos transportes públicos e privados e nos táxis em forma de motos e bicicletas, caso específico da Zambézia e um pouco da província de Nampula.
Com as suas medidas restritivas, o governo havia transferido o risco de contaminação com o Coronavírus do interior dos autocarros e dos minibuses do serviço semi-colectivo de passageiros, os vulgos chapeiros, para fora destes. Para os terminais e paragens dado às grandes enchentes de pessoas à procura de transporte. Bastava uma “gotinha” de Coronavírus sobre a multidão para termos uma autêntica tragédia no país.

 

2014 – 10 por cento cobertura e 2018 – 92 porcento

Além disso, significavam o reinstalar de uma crise aguda de transporte, particularmente nas principais cidades moçambicanas, em particular Maputo, Matola e as vilas distritais de Marracuene e Boane.

O país havia regredido cerca de dez anos em apenas uma semana de implementação do Estado de Emergência no que diz respeito à satisfação da procura.

Cerca de um milhão de pessoas procuram o transporte diariamente apenas na cidade de Maputo. Estatísticas oficiais indicam que em 2014, o nível de cobertura pelos transportes públicos e privados era de apenas 10 por cento. Com as restrições quanto ao número de passageiros nos comboios, autocarros e chapas, a taxa havia baixado muito mais.

Em 2018, a taxa de satisfação da procura de transporte evoluiu para 92 por cento, segundo dados do governo como resultado de investimentos feitos nos últimos cinco anos na aquisição de meios circulantes.  

Era, por isso, o sector com mais dificuldades de cumprir na letra e no espírito as medidas administrativas adstritas ao decreto presidencial que estabelece o Estado de emergência, situação que produziu, ao longo dos primeiros sete dias de vigência das restrições, muitos prevaricadores com números sobre os prejuízos na manga para provar a sua inocência.

Os retoques que o governo fez às medidas restritivas, no seu sexto Conselho de Ministros extraordinário desta semana, vieram salvar a milhares de cidadãos moçambicanos que a versão inicial expunha, no quotidiano, ao risco de contrair o Coronavírus nas paragens e nos terminais de autocarros em longas esperas de quatro ou mais horas de desespero.

O recuo devolveu o sistema de transporte urbano aos carris. Com as novas regras, já não está em causa o distanciamento entre um passageiro e o outro. O que se torna obrigatório, e isso é imperdoável, é o uso de máscaras que cobrem o nariz e a boca, quer por parte dos operadores, quer dos seus utentes, prática que se estende aos lugares de maior concentração pública.   

As vezes é bom dar mão à palmatória. Isso significa maturidade e, acima de tudo, responsabilidade, sobretudo quando é para salvar vidas humanas. Sempre acreditei que ainda havia espaço para o governo corrigir ou reforçar as medidas administrativas, particularmente para as áreas cuja implementação levantava problemas, como a dos transportes.

O regresso ao respeito das lotações dos autocarros e dos semi-colectivos de passageiros foi bom para a criação de uma plataforma que garanta que todos observem à risca as medidas de prevenção do COVID-19. Vale apena assim para que pelo caminho, nesta luta contra o COVID-19, não haja infractores em nome da sobrevivência e todos nós fiquemos a ganhar.

 

Por Alexandre Chiure
alexchiure@gmail.com

Depois de cada acontecimento cataclísmico, tende-se a pensar que o mundo nunca mais será o mesmo. Desta vez é verdade que, de certa forma, o mundo tem de mudar. A história global está carregada de tais pontos de viragem, sendo quase todos dolorosos. Há anos que fomos alertados de que uma pandemia pode ser tão cataclísmica. A parte da humanidade que vive no meio de guerras violentas, crises, fragilidade endémica, colapso do Estado e miséria humana, poderia ser perdoada por pensar que não poderia ser pior. Aqueles que vivem em regiões pacíficas e prósperas poderiam pensar que nada os poderia prejudicar e que estavam destinados a continuar a ter sorte.

Mas uma pandemia é o que é; nenhuma sociedade, nenhum indivíduo pode esperar estar fora do alcance de um vírus mortal. Por conseguinte, distanciamo-nos dos outros, das bênçãos das interacções sociais. As infecções atingiram todos os continentes, excepto a Antárctida, os números correm para um milhão e irão certamente ultrapassá-lo, mais de um terço da humanidade tem ordens para ficar em casa, e a todas as vidas que já perdemos em números chocantes juntar-se-ão dezenas de outras. O custo económico desta pandemia também será assustador e poderá ser de longo prazo. O impacto nas fragilidades estatais existentes, na política e na segurança irá certamente sobrecarregar os governos de todo o mundo. Ainda não vimos a luz ao fundo deste túnel e não podemos esperar por ela. É um momento de reflexão, mas também de liderança e de acção.

O sistema global estava em farrapos mesmo antes de a humanidade ter sido atingida pelo coronavírus. A Turquia, por exemplo, tem vindo a defender que precisávamos de reformar o sistema. Chamámos-lhe "o mundo é maior que cinco", referindo a composição desactualizada do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas não parando por aí. Como um país que tinha de enfrentar conflitos intermináveis e a miséria humana na nossa vizinhança próxima e onde reside a maior população de refugiados do mundo, sabemos que o sistema não estava a funcionar.

Em 2008, quando o mundo foi golpeado, naquela altura, pela pandemia económica, o G20 foi capaz de trazer um sentido de orientação e, consequentemente, estabilidade à economia mundial vacilante. O sistema tinha funcionado então, mas graças, em grande medida, a um actor global relativamente novo. Também desta vez temos de nos preparar para um impacto económico semelhante e maciço e assegurar que o sistema funcione, mesmo que façamos as correcções e substituições necessárias.

A principal prioridade é proteger a saúde e a segurança das pessoas contra a COVID-19. Apoiamos a declaração oportuna do G20 através da qual os líderes se comprometeram a agir solidariamente na luta contra a pandemia e a salvaguardar a economia global e o comércio sem restrições. A extensão dos acordos SWAP tem sido uma das medidas significativas acordadas pelo G20. Congratulamo-nos com o facto de a nossa proposta de formar um Grupo de Coordenação de Altos Funcionários ter sido aceite pelo G20, visto que temos de coordenar estreitamente questões como a gestão das fronteiras e o repatriamento de cidadãos. Agradeço ao Canadá por ter apresentado ideias iniciais sobre as suas modalidades. O G20 está novamente a provar ser o formato certo na gestão global de crises.
Vários países estão também a tomar medidas individuais enérgicas, incluindo a Turquia. No entanto, os esforços individuais não seriam suficientes. Um desafio global exige uma resposta global, primeiro na frente da saúde pública e depois na economia, e, a longo prazo, na reforma das instituições internacionais e na forma como os países as apoiam. As instituições internacionais relevantes devem assumir um papel eficaz na assistência financeira e na assistência em matéria de equipamento médico.

A protecção das comunidades frágeis, dos migrantes irregulares e dos refugiados e o apoio aos países de acolhimento são agora ainda mais importantes. As redes globais de abastecimento e as transferências de carga devem funcionar sem entraves. As sanções, enquanto instrumento de política bruta, devem ser avaliadas do ponto de vista humanitário. Muitas sanções, incluindo as que são aplicadas contra o Irão, prejudicam apenas o povo iraniano, mas também os seus vizinhos. Numa altura de pandemia, este risco é ainda maior.

Os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, nomeadamente em África, não devem ser deixados para trás.
Um tema transversal na tão necessária resposta global é acabar com os conflitos que causam enormes prejuízos aos seres humanos, ao ecossistema, à economia e à nossa consciência. Apelamos, pois, à comunidade internacional para que abandone todos os conflitos, cesse as hostilidades e procure seriamente o diálogo e a reconciliação, inclusive no Médio Oriente.

As competições geopolíticas e as queixas políticas fazem pouco sentido quando o mundo luta pela sua própria saúde e sabe que todos sofrem. Este apelo não pode passar despercebido, se todos nós aproveitarmos um momento para o apoiar a nível mundial. Esta geração de líderes está, de facto, a definir o futuro da ordem mundial através das decisões que tomam hoje no que respeita à pandemia. As sementes que hoje semeamos confrontar-nos-ão em breve como uma realidade plena.

A realidade de um sistema global baseado em regras, uma rede de Estados-nação que funcionam e que são resistentes e responsáveis, economias que não deixam ninguém para trás e beneficiam todos, apoiadas por organizações internacionais adequadas, todas elas centradas no bem-estar das pessoas, independentemente da sua nacionalidade, fé ou raça, pode estar ao nosso alcance. Porque as missões alternativas não são significativas, mesmo prejudiciais para o bem comum. E assim pode haver um legado positivo desta pandemia, apesar de toda a dor que ela tem causado, se todos nós optarmos por concretizá-la. Fique em casa e seja prudente.

S.E. Mevlüt Çavu?o?lu
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cooperação/Turquia 

A velocidade do novo coronavírus, cujo relato dos primeiros casos da doença, começaram a chegar da China no início deste ano 2020, com vítimas mortais, confunde-se com uma Guerra Mundial.

Daquele país Asiático, em tão pouco tempo, a COVID-19 espalhou-se para todo o mundo, incluindo o nosso país, Moçambique.

Nunca imaginei que a doença que inicia num país Asiático, aterrorizasse imediatamente o mundo no geral, e nosso país em particular. Com os números de óbitos na China, depois na Europa com destaque para países como Itália, Espanha entre outros e a seguir na América, concretamente nos Estados Unidos, provasse com clareza a sua força maligna colocando a prova o sistema de saúde das principais potências mundiais na mitigação das novas infecções do novo coronavírus. Este facto coloca-nos cada vez mais apreensivos, sem saber que será de nós a cada amanhecer.

É uma verdadeira “guerra” contra um inimigo invisível, cenário típico dos filmes de terror, é o que a mídia internacional relata diariamente, sobre a realidade do novo coronavírus no mundo. As grandes cidades tornaram-se desertas, devido ao medo de contaminação por um lado, e por outro a velocidade em que este vírus se transmite. O lema é ficar em casa para evitar infecções.

Aliado a pobreza a que estamos sujeitos, o maior medo no nosso seio é sem sobras de dúvidas, que será feito de nós? Se aqueles que estão no chamado primeiro mundo, com todos os equipamentos de ponta, avanços galopantes na medicina, enfrentam cada vez mais dificuldades para debelar este maldito vírus.

Com o número de óbitos que a mesma continua causando, faz-me lembrar os estragos causados nas anteriores guerras. Na primeira guerra mundial (1914-1918) houve registo de mais de 10 milhões de combatentes mortos. Na segunda guerra mundial (1939-1945) estima-se ter ocorrido perto de 70 milhões de mortes, esta última foi na verdade a mais letal guerra de todos os tempos.

Já que neste momento todos somos soldados chamados para intervir nesta guerra deste inimigo invisível, vivemos sem dúvidas, momentos de muita incerteza quer de ponto de vista político, econômico e social, tendo em conta que muitas medidas necessárias poderão ser tomadas pelo governo mas com impactos negativos sobre tudo na economia familiar das mais desfavorecidas classes sociais. O governo não tem como inverter, terá mesmo que procurar medidas acertivas para aliviar não só o impacto social, como também econômico já que muitos trabalhadores já começaram a ser dispensados dos seus postos de emprego.

Quais serão as medidas que o governo deverá tomar, para evitar que os empresários fiquem menos capitalizados, que a população perca seus postos de trabalhos, que o sistema de saúde funcione para que o povo seja tratado desta pandemia, em fim são várias questões em volta desta triste realidade.

O historiador  Walter Scheidel, professor da Universidade de Stanford nos Estados Unidos citado recentemente em entrevista pela BBC News Brasil, refere que "depende de quão longa e severa será o coronavírus. Podemos ver algumas tendências, uma delas é que os ricos neste momento estão menos ricos do que eram a menos de um mês atrás, por causa dos efeitos da bolsa de valores. É um efeito de curto prazo, vimos algo parecido após a crise financeira global depois de 2008.

O historiador diz ainda que "ao mesmo tempo, vemos que parte da força de trabalho está sendo afectada negativamente, especialmente pessoas em trabalho menos protegido, estão perdendo emprego, trabalhando menos horas, assumindo dívidas. E vai levar mais tempo para eles se recuperarem disso, especialmente por conta das dívidas".

Ou seja, o mundo está a entrar numa fase crítica e que seguramente ficará indelevelmente marcada no nosso seio. Neste momento, a que apenas estar atento pois a nos cabe seguir a risca a forma de higienização recomendada pelas autoridades. Temos que estar serenos para que o nosso principal inimigo do momento, o novo Coronavírus não devaste a nossa pobre sociedade.

 

É facto inegável que o Direito da Protecção de Dados vem assumindo um protagonismo protuberante nos últimos tempos, muito por culpa da erupção do fenómeno tecnológico, associado ao impulso dado naquela área do Direito pela União Europeia (UE) com a adopcão da Directiva (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, que influenciou, não só os países da UE – que estão adstritos ao cumprimento da retro mencionada Directiva – mas também aos ordenamentos jurídicos espalhados por esse mundo fora, cujos regimes jurídicos relativos a protecção de dados pessoais projectam-se nos postulados basilares enunciados pela UE sobre a matéria.

Caso paradigmático do que afirmamos na parte final do parágrafo antecedente, é a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (CUACPDP), cuja concatenação das normas que lhe corporizam casa-se em regime de comunhão de bens com o regime instituído pela UE.

Percebe-se, com meridiana facilidade, que os regimes jurídicos referentes a esta temática possuam, na maioria dos países, um sustentáculo similar, por várias razões, constituindo uma das principais [razões], o facto de as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) estarem a colonizar os meios e recursos através dos quais estes dados são recolhidos, processados e armazenados, e sendo esse movimento tecnológico de amplitude global/universal, os problemas que daí são originados são basicamente idênticos para a generalidade dos ordenamentos jurídicos.

Dito de outro modo: o fenómeno epidémico [no bom sentido] do Direito Digital, para o bem e para o mal, atinge a todos os países. A necessidade de se regularem as actuações que se verificam nesse mundo – mundo digital – está na ordem do dia da agenda de todos os países. E sendo que as TICs gravitaram o centro nevrálgico de actuação do Direito da Protecção de Dados para o mundo Digital, num movimento imparável cujo fim não se descortina, emerge uma implícita necessidade de se globalizarem os meios de protecção da segurança da informação – aspecto vital do Direito da Protecção de Dados – de tal sorte que os meios de sabotagem a que estão sujeitos possam ser facilmente detectados e neutralizados.

No parágrafo precedente referimo-nos concretamente à acção dos hackers, espécie que temoriza todo e qualquer sistema de cibersegurança, em especial, e protecção de dados pessoais electrónicos, no geral. Cremos que eles constituem, sem dúvidas, arriscamos nessa acepção, o inimigo que une os países na necessidade de se instituírem mecanismos que, a nível global, cerceie o campo da suas delituosas actuações.

Por isso, e aqui recuperamos a origem do raciocínio que ocupou as linhas do pensamento vertido nas sílabas anteriores, o impulso dado pela UE através da Directiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados), que, após sucessivas revisões, culminou na adopção da Directiva (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, tende a ser uma política de protecção universal(izada), reflectida na similitude das normas vigentes sobre a matéria, quer na Europa quer na América Latina quer ainda em África.

Para se ter uma ideia exacta do que se pretende dizer nas palavras transactas, é só se imaginar a extremosa dificuldade que ainda se enfrenta em se aferir o locus delicti do perpetramento de um cibercrime (facto que não constitui preocupação exclusivista da área da protecção de dados pessoais, mas sim, transversal à toda panóplia de bens jurídicos universalmente protegidos pelo Direito Penal).

Moçambique não foge à regra na preocupação em robustecer-se de meios adequados com vista a regular a matéria relativa à protecção de dados. A Constituição da República moçambicana (CRM) alberga, no capítulo reservado à consagração dos “direitos, liberdades e garantias individuais”, a disciplina constitucional incidente sobre a protecção de dados pessoais.

Com efeito, o artigo 71 da CRM, sob epígrafe “utilização da informática”, estabelece que «é proibida a utilização de meios informáticos para registo e tratamento de dados individualmente identificáveis relativos às convicções políticas, filosóficas ou ideológicas, à fé religiosa, à filiação partidária ou sindical e à vida privada» (n.º 1); «a lei regula a protecção de dados pessoais constantes de registos informáticos, as condições de acesso aos bancos de dados, de constituição e utilização por autoridades públicas e entidades privadas destes bancos de dados ou de suportes informáticos» (n.º 2); «não é permitido o acesso a arquivos, ficheiros e registos informáticos ou de banco de dados para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, nem a transferência de dados pessoais de um para o outro ficheiro informático pertencente a distintos serviços ou instituições, salvo nos casos estabelecidos na lei ou por decisão judicial» (n.º 3); «todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respectiva rectificação» (n.º 4).

Realça-se que o princípio geral deste capítulo da CRM, reflectido no artigo 56, cuja epígrafe cimenta: “princípios gerais dos direitos, liberdades e garantias individuais”, é peremptório em determinar que «Os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis» (n.º 1); «O exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição» (n.º 2); «A lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição» (n.º 3); «As restrições legais dos direitos e das liberdades devem revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo» (n.º 4).

E se trouxermos à colação que, ao aconchego do artigo 291 da CRM, a declaração do Estado de Emergência, deve, com base nos pergaminhos argamassados na própria CRM, (…) respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, quanto à extensão dos meios utilizados (…) ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional, conjugando-se esta norma com outra do mesmo texto constitucional – a do n.º 1 do respectivo artigo 72 – que sob a epígrafe “suspensão de exercício de direitos”, estabelece que “as liberdades e garantias individuais só podem ser suspensas ou limitadas temporariamente em virtude de declaração (…) do estado de emergência nos termos estabelecidos na Constituição, emerge a legítima preocupação em se aquilatar em que medida é que os direitos e garantias individuais concernentes à protecção de dados são atingidos pela excepcionalíssima declaração do Estado de Emergência.

A resposta, ainda que ilíquida, começa a desenhar-se nas normas que corporizam algumas das alíneas do artigo 295 da CRM, que, subordinada à epígrafe “restrições das liberdades individuais” elenca, no que releva para a presente análise, as seguintes restrições: restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações (…) [respectiva alínea d)]; busca e apreensão em domicílio [correspondente alínea e)].

Tendo como respaldo o excepcionalmente permitido pela CRM, a Declaração do Estado de Emergência, constante do n.º 3 do artigo 3 do Decreto-Presidencial n.º 11/2020, ao estipular que as medidas decretadas e a sua execução devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se à sua extensão, duração, meios utilizados e ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade, dá eco vibrante às mencionadas alíneas d) e e) do artigo 295 do texto constitucional, abrindo as vias de acesso para que os direitos relativos à protecção de dados pessoais possam ser legitimamente violados com base no argumentário que, ainda que não esteja escrito em lado algum do rectângulo do referido Decreto-Presidencial, está “implicitamente explícito” no imaginário deste diploma legal que, o que sustenta a restrição é o facto de “haver direitos superiores que devem ser priorizados à custa da violação – legítima, repete-se – daqueles direitos referentes à protecção de dados pessoais”.

Logicamente, não nos opomos ao princípio. Aliás, a CAUCPDP, ratificada pelo Estado moçambicano através da Resolução n.º 5/2019, já prevê restrições às regras de processamento de dados pessoais de forma coadunável com o estipulado na Declaração do Estado de Emergência, concretamente, estando-se em face de uma situação de surto epidémico como a é o COVID-19, desde que se respeitem os sacrossantos princípios estipulados na CUACPDP sobre a matéria.

Assim, o processamento de dados pessoais deve obedecer aos princípios gerais contidos no artigo 13 da CUACPDP: (i) princípio do consentimento e de legitimidade de processamento de dados pessoais; (ii) princípio da lealdade e legalidade do processamento de dados pessoais; (iii) princípio da finalidade, pertinência, conservação e do processamento de dados pessoais; (iv) princípio de exactidão dos dados pessoais (v) princípio de transparência de processamento de dados pessoais (vi) princípio de confidencialidade e de segurança no processamento de dados pessoais.

Paralelamente àqueles princípios gerais acima elencados, o processamento de dados pessoais deve, ainda obedecer a princípios específicos relativos ao processamento de dados sensíveis, plasmados no artigo 14 da CUACPDP.

O princípio do consentimento e de legitimidade do processamento de dados pessoais, apesar de instituir um regime regra que estabelece que o processamento de dados pessoais é considerado legítimo quando o titular dos dados der o seu consentimento, todavia este requisito pode ser revogado quando o processamento de dados for necessário para a execução de uma missão de interesse público no exercício de autoridade pública conferida ao controlador de dados (…) e ainda para a salvaguarda dos interesses vitais ou direitos fundamentais do portador de dados (…) – alíneas b) e d), respectivamente, do artigo 13 da CUACPDP.

O vertido na alínea d) do artigo 13 da CUACPDP – que se reportava a recolha e processamento de dados gerais – acima reproduzido, combina perfeitamente com a excepção relativa a proibição de processamento de dados sensíveis relativos ao estado de saúde do portador de dados quando o processamento de dados for necessário para proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de uma outra pessoa, se o sujeito titular dos dados estiver física ou juridicamente incapacitado para dar o seu consentimento – al. c) do n.º 2 do artigo 14 da CUACPDP. Não precisamos mergulhar até as profundezas da regras da exegese jurídica para concluir que a pandemia do COVID-19 se insere como caso paradigmático que origina a excepção aqui permitida.

 

Sobre este particular aspecto, emerge o polémico debate sobre a pertinência e proporcionalidade da geolocalização.

A alínea e) do 2 do artigo 3 do Decreto n.º 12/2020, que regulamenta a Declaração do Estado de Emergência constante do Decreto-Presidencial n.º 11/2020, impõe como uma das medidas restritivas no âmbito da declaração do Estado de Emergência exigência do conhecimento em tempo real de pessoas através do recurso a geolocalização. Ela – a geolocalização – consiste em detectar doentes de covid-19 ou controlar o cumprimento das regras de quarentena obrigatória, através do recurso a meios tecnológicos ou equipamentos electrónicos ou aplicativos digitais, de entre os quais se destacam o mecanismo de rastreio por “GPS” (que pode ser efectuado através de um telemóvel/smartphone), pulseiras electrónicas, etc.

Os países que já a adoptaram, executam-na através de Apps disponíveis em telemóveis (smartphones), que são descarregadas no Google Play e na App Store e lhes permite seguir os movimentos dos cidadãos que são obrigados a permanecer isolados, seja porque vêm de um país estrangeiro seja porque estiveram em contacto com uma pessoa infectada. Se o aplicativo detectar que determinada pessoa está infectada, o algoritmo localizará todas as pessoas com quem esteve em contacto, e estas receberão uma mensagem de que são potencialmente portadoras da doença. Por um lado, ajuda a salvar vidas; Por outro lado, é uma aplicação que permite a quebra do sigilo sobre os dados pessoais da pessoa visada, que podem, em alguns casos, se a recolha e processamento forem mal usados, vir a ser do conhecimento público. Questiona-se se será que os meios justificam os fins? De que forma é que uma emergência, como a do covid-19, justifica uma privação de direitos como a que estas aplicações parecem pressupor? 

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

Godine nasceu já órfão de pai. A chamada doença do século – que já nem se sabe a que século se refere – é a culpada de todos os males. Primeiro esquartejou a autoestima do cota: ele deixou de ir às festas da comunidade; deixou de beber com os amigos; deixou de ir à machamba; deixou de pôr os pés fora de casa; deixou de querer ser visto. Enclausurou-se. Depois do espírito, dilacerou-lhe a carne: doenças oportunistas transformaram-no num campo de diversões; o corpo minguou; a pele abraçou-se ao esqueleto; as articulações fraquejaram; os membros viraram inúteis e resguardou-se numa esteira no canto da sua palhota. Morreu uma semana antes do nascimento de Godine.

 O parto não foi fácil. Ora o menino não queria sair. Ora tinha que se aguardar por uma ambulância para levar a parturiente para a cesariana na cidade grande. Ora o menino já de novo queria sair. Ora a mãe estava a perder muito sangue. Ora o sistema imunológico dela tinha sido dizimado pelo vírus. Muita complicação. Até que Godine se anunciou para a vida. A mãe até ouviu o primeiro choro. Nada mais. Seguiu-se o vazio da escuridão. Ela também seguiu o destino dos anjos. 

A árvore genológica de Godine ficou amputada de uma geração. Foram os avós maternos que assumiram os cordelinhos da vida do recém-nascido. A avó Zwayitika deu um passo atrás no tempo e rebuscou os seus dotes de mãe. Trocou-lhe as fraldas, percorreu quilómetros e quilómetros para a quinta do branco Zé de Madeira que, de favor, dava-lhe diariamente dois litros de leite quente de vaca com que alimentava a criança. Foi ela quem voltou às panelinhas de papa, ensinou o netinho a gatinhar, a se aguentar de pé e depois a dar os primeiros passos na vida. Mesmo sem saber ler e escrever, foi a velha quem levou o rapaz à escola da aldeia e que lhe vigiava, ainda que não o pudesse ajudar, na hora de fazer os deveres de casa.

Já o avô Gumisanyi era um homem de caça. Não facilitou com o neto. Levou-o às entranhas da mata. Ensinou-lhe a escutar o silêncio ruminante das árvores e a voz das estrelas da madrugada. Deu-lhe as dicas de como se leem as sombras do vento, e como se distingue, à distância, o cheiro de uma boa caçada do cintilar das pupilas de um felino. Hoje o rapaz conhece bem os caminhos da vida e os atalhos que levam à morte. Sabe que um verdadeiro macho enfrenta a vida com coragem e de peito aberto.

O arco do tempo ditou que Godine se tornasse num adolescente cada vez mais forte e os avós cada vez mais frágeis. Inverteram-se os papéis. Passou a ser ele a percorrer quilómetros e quilómetros em busca de leite quente para alimentar os avós; a preparar papas de farinha para um par de bocas já desdentadas; e, acima de tudo, a atear fogo na lenha para aquecer-lhes os sonhos, já por si, diminutos. As doenças da idade atiraram os dois velhotes para o leito da esteira.

Cuidar dos avôs passou a ser a razão da vida de Godine. Desde que o sol nasce até que se ponha. Não quer que lhes falte pão e água. Sente-se no dever não de lhes retribuir pelo que fizeram por si, mas sim de, como rapaz digno, cumprir com os desígnios que Deus lhe colocou pela frente. Não é apenas uma questão de honra. Há uma força interior que lhe insufla energias que alimentam esse infinito dever de estar ao lado dos dois velhos. Sempre na mesma palhota. Os cuidados que eles precisam já não lhes permitem dormir em espaço próprio.

A água do Idai chega de madrugada. Invade a tal palhota por tudo quanto é canto. O vento forte faz o resto: levanta a cobertura e põe toda a palha a voar pelos ares. Os velhos abraçam-se. Não se podem levantar e tentar fugir. As pernas já não o permitem. Pedem socorro. Godine é o único socorro possível.

A trovoada e o uivar dos ventos digladiam-se pelo domínio dos sons dos ares. Os relâmpagos insistentes riscam os céus e cortam o escuro da madrugada. A chuva cai a cântaros. Os dois velhos não gritam. Gemem. A água galga-lhes os corpos flácidos que não se libertam da esteira. Se aqui continuarem por mais algum tempo, morrem afogados.

Godine vira-se para a mesa de quatro cadeiras que, indiferente, recebe o banho de chuva no centro do que sobra da palhota. É pequena, mas é nela que descobre a solução. Pega na avó Zwayitika, num misto de delicadeza e apreensão, e coloca-a por cima do pequeno móvel. Deitada. Encosta-a à borda. Tem que sobrar espaço para o avô Gumisanyi, a quem o carrega de seguida e o coloca ao lado da esposa.

Alívio momentâneo. Observa em redor e apenas vê o escuro. Sente que a água já o atinge a cintura. Gera-se uma nova frustração. A este ritmo a água voltará a alcançar os velhos. Toma uma decisão de coragem. É o único caminho que lhe sobra. Contem a respiração, agacha-se, penetra por baixo da mesa e levanta-se com o tampo na cabeça. Tem os dois velhos, mais uma vez, a salvo.

Abandona a palhota. Com a mesa feita num capuz por cima da sua cabeça, enfrenta a madrugada, o vento, a chuva, o frio e a trovoada. Luta por se aguentar em equilíbrio desafiando a força da corrente que rapidamente lhe atinge o peito. No topo, os velhos agarram-se à mesa com as poucas forças que lhes sobram. Sabem que o mínimo descuido pode significar o fim das suas vidas.

Godine caminha. Lentamente. Busca por um ponto seguro. No sentido contrário ao do rio, a natureza bafejou a aldeia com uma pequena colina. É um ponto em que a extensa planície espreguiça-se e o relevo dobra-se numa pequena elevação a partir do qual, em dias de sol, as crianças dançam o sorriso dos corvos de gola branca. Será que consegue chegar lá? Ele próprio duvida. Os seus olhos não mais cintilam. O escuro penetra-lhe a alma. As articulações dos joelhos fraquejam. A incerteza domina os seus passos e o espelho do seu amanhã deixa de reflectir. É o som desesperado dos gemidos dos velhotes que, perdido no eco da tempestade, lhe massageia insistentemente os tímpanos e lhe convoca para a busca de novas alternativas.

O cimo de uma árvore é o caminho que resta. A colina está distante. Godine aproxima-se da primeira que lhe parece suficientemente robusta. Tem ramos baixos. Ramos fortes. Aproxima-se o mais que pode. A lutar contra a corrente da água, pousa a mesa no chão, e esta assenta com alguma firmeza devido ao peso dos velhos. Coloca-os sentados. É a única forma de manter as suas cabeças fora da água.

Pega primeiro na avó Zwayitika. Ela agarra-se a ele com todas as energias. Eleva-a para o primeiro ramo num exercício de equilíbrio enorme em que uma escorregadela pode ser fatal. Sobem mais dois ramos e atingem uma altura relativamente segura. Godine tira a camisa que traja colada ao corpo. Com os dentes, rasga-a ao meio e a metade em mais quatro partes. Amarra a velhota contra a árvore pelos pulsos e pelos pés. Assim dá-lhe maior sensação de segurança.

Uma vaga, vinda sabe-se lá de onde, abana por completo a pequena mesa. O velho Gumisanyi, sozinho, tenta equilibrar-se, mas é um destroço qualquer que, arrastado pela forte corrente, derruba o pequeno móvel e deita o velhote a pique. Ele tenta gesticular. Abre a boca para reclamar socorro. A força da água imobiliza-lhe os gestos, já por si frágeis, penetra-lhe boca adentro transformando o grito num esgar de pânico. Entra em reboliço. 

Num voo pela vida, Godine salta da árvore directamente para o epicentro do alvoroço. Embrulha-se com o velhote. Luta contra o seu peso e contra a fúria das águas. Logra levantar-se com ele nos braços. Não precisa escutar a sua respiração ou as palpitações do coração para saber que ainda está vivo. A ligação sanguínea é a mensageira do destino. Volta ao céu da árvore. Repete o mesmo ritual que fez com a velhota. Com o que sobra da camisa rasgada, amara-lhe a um ramo tanto pelos pulsos como pelos pés.

Godine respira fundo. Passa, em simultâneo, de alto abaixo, as palmas das mãos pela sua própria cara como que enxugando retalhos de uma vida. Ao som do vento e da chuva, observa aquelas duas almas. Resta-lhes apenas esperar. Esperar que os astros se realinhem e que o sol volte a iluminar o futuro. Esperar que, um dia, a vida retorne à terra firme.

 

Junho de 1980. A Selecção Nacional de Moçambique viajou para a Bulgária para um estágio em pleno período de carências no país. O vôo era Maputo-Roma-Sófia. A partir daí, um estágio na pequena cidade de Sliven, com jogos em Plovdiv e Burgas. Ficaram espantados os anfitriões com o nosso nível e uma grande parte dos nossos jogadores foram “namorados” para ficar. Porém, as normas rígidas e as relações com aquele país socialista, não permitiam nem pensar em “saltar o arame”…

Em tempo de Olimpíada em Moscovo, a palavra solidariedade era dominante no nosso vocabulário. Um estágio na Bulgária, permitiria dar rodagem à nossa então fortíssima representação, num país em que eles pensavam que nós jogávamos com um bola quadrada. Enganaram-se.

Alguns episódios, que relembram aquela histórica deslocação, em tempo de três dólares/dia, dão uma ideia do potencial que tínhamos e que nem nós, possivelmente, sabíamos.

 

POR TERRAS ONDE POUCOS PRETOS TINHAM SIDO VISTOS…

Sófia é a capital da Bulgária. Na altura, com uns desbotados fatos de treinos, a Seleccão Nacional do nosso país, teve uma paragem de dois dias em Roma, contemplando um mundo de sonho, com tudo à disposição, porém inacessível devido aos exíguos três dólares/dia que nos eram concedidos. Vivíamos o tempo das carências, do carapau, como se dizia. Ninguém fazia ideia do que nos esperava. Eu era o único representante da Comunicação Social moçambicana e, simultâneamente, vice-presidente da CNAF.

Em Roma, muitos de nós optou pela “quarentena”, pelo simples facto de não interessar ver nas montras, coisas que tanto gostariam de ter, mas que os bolsos não permitiam adquirir. Tudo era lindo, mas inacessível.
Chegámos a Sófia, mas destino para o estágio, era Sliven, uma cidadezinha situada a mais de 600 quilómetros. Tudo novidade, para nós, mas também para eles…

O primeiro choque foi na primeira paragem, para nos refrescarmos. Aconteceu que os velhotes, espalhados um pouco por todo o lado, ficaram surpresos! E as reacções eram as mais díspares: uns queriam ouvir-nos, apreciar-nos e tocar-nos. Outros, fugiam a sete pés. Razão? Nunca tinham visto um preto nas suas vidas e, de repente, saíam do autocarro, duas dezenas deles. Houve ajuntamentos, com pessoas a quererem ter o privilégio de tocar nos estranhos visitantes.

Mais tarde, quando estagiávamos em Sliven, se algum de nós quisesse aparar a carapinha, isso transformava-se em algo inédito, só comparável com a visualização dos quadros de Malangatana.

SURPRESA NO PRIMEIRO JOGO

Mário Coluna, o Monstro Sagrado, era o cabeça de cartaz. Pela Selecção portuguesa, ele tinha, anos atrás, marcado e desfeiteado a maior glória do futebol búlgaro de todos os tempos, chamado Asparakov. Agora quem nós éramos, de onde vínhamos, que nível tínhamos, tudo era uma incógnita.

Fomos ao primeiro teste. Uma surpresa, para nós e para eles. Chegámos a uma vitória por 3-1, sem colocar “o pé no acelerador”.  A partir daí…

Tínhamos um tradutor, um jovem que aprendera português no Brasil, adepto/admirador confesso do Monstro Sagrado. Foi-nos dando as dicas. Afinal antes eles pensavam que éramos “moleza”!

O teste a seguir seria para valer. Aconteceu no Estádio principal de Sliven, cheio como um ovo. Antes do início da partida, os microfones anunciaram a presença de Mário Coluna, a estrela que “desgraçou” a Bulgária no Campeonato do Mundo de 66.

O Monstro Sagrado levantou-se perante forte ovação e muito ao seu jeito, fez o seguinte comentário para o seu adjunto, Cremildo Loforte:
Ó Minhoca, levanta-te, aproveita a minha boleia, para seres também aplaudido!
É claro que o “mister” em alusão, não fez mais do que sorrir e limitar-se à sua – na circunstância – insignificância.

A partir daí, o nosso prestígio cresceu. Ninguém, na Bulgária, imaginava que uma ex colónia de Portugal, tivesse um plantel com tantas estrelas. Provavelmente, nem nós.

Quem eram os craques? Isaías e José Luís, na baliza; Defesas: Joaquim João, Artur Meque, Aurélio, Chinguia, Mandito e Frederico; médios: Artur Semedo, Dover, Rui Marcos e Carlitos; avançados: Lucas Barrarrijo, Chababe, Calton, Gil, Miguel e Cossa.
É preciso dizer mais?
Fizemos mais três jogos, perante super-reforçadas equipas. Mais a verdade é que deixámos, em terras búlgaras, o perfume do futebol moçambicano. Por eles, metade da nossa equipa ficaria por lá, bastando assinar os papelinhos do contratos que chegaram a ser propostos.

 

GIL MILANDO CHEIO DE “LETBAS”

Apesar da minha condição (sempre) de jornalista, pertenci à primeira Comissão Nacional de Árbitros. Foi também por isso que viajei. Comigo, o antigo juiz, Gil Milando. Grande árbitro, grande homem. Falecido há uns anos… que Deus o tenha!

Pois o nosso árbitro não deixou os créditos em mãos alheias. Apitou vários jogos, deu palestras, brilhou! O tempo era o de “troca de experiências” e ninguém pensava em remunerações.

Daí, a surpresa:
Uma tarde, o nosso intérprete do búlgaro-português, veio chamá-lo, para receber o pagamento das arbitragens que fizera. O Gil, tendo em conta o contexto, não quis aceitar os valores, em “letbas” (moeda local), dizendo que apenas tinha vindo para “ganhar experiência”. Fui chamado a intervir. Coloquei depois a questão ao chefe da delegação, Mário Coluna. A sua resposta:
Diz lá ao Gil Milando que se não quer o dinheiro, eu vou receber por ele!

O Gil acabou recebendo a “montanha” de dinheiro que estava à sua frente. O que fazer dele? Decidiu que iríamos desfrutar em conjunto. A partir daí, um agradável problema. Não tínhamos a noção exacta dos valores. Daí que gastássemos o dinheiro a comprar coisas básicas, que eram baratas e por isso, recebíamos trocos e mais trocos. Um problemão gastar de imediato tanto dinheiro que não valia noutro sítio.

No fim, lá conseguimos “livrar-nos” da mola, trazendo para o país, qualquer coisa como quarenta e tal caixas de….fósforos!

KHALIL GIBRAN foi um dos maiores poetas árabes do século XX. Ele é autor de uma vasta obra literária tanto escrita em árabe quanto em inglês. Viveu grande parte da sua vida nos Estados Unidos, para onde imigrara juntamente com a sua família. Mas nem com isso deixou adulterar a sua alma de árabe e de libanês.

Deste clássico da literatura universal destaco aqui três dos seus livros, designadamente, a célebre obra “O Profeta”, “O Louco” e “Asas Partidas”, através dos quais Gibran conseguiu deixar nas profundezas de mim ecos da sua vibrante e portentosa poesia. Seus escritos em linguagem simples, apesar de serem parábolas, são de fácil leitura, e transportam consigo uma forte componente filosófica, moral e espiritual.

No seu livro, “O Louco”, Khalil Gibran conta o seguinte:

“Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em minhas sete vidas – e corri sem máscaras pelas ruas cheias de gente, gritando: ‘Ladrões, ladrões, malditos ladrões!’ Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: ‘É um louco!’. Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei minhas máscaras. E, como num transe, gritei: ‘Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!’ Assim me tornei louco. E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.”

Será o homem um animal de múltiplas máscaras que o impedem de ver e desfrutar livremente da vida e do mundo? Mas afinal, o que será então a loucura de que se refere Gibran? Será simplesmente uma disfunção mental ou uma negação radical de convenções sociais impostas pela sociedade ou, ainda, uma espécie de apologia exacerbada do “eu” fora dos limites da liberdade? E qual é o lugar dos deuses nesta loucura (des)consentida? Deixo aqui o leitor, dentro da sua liberdade, fazer as suas próprias conjecturas.

Os escritos de Khalil Gibran chegam a ser autênticas teses existenciais, na medida em que o autor coloca-nos questões mas dentro das respostas que ele próprio dá àquilo que a vida nos apresenta. Toda a sua obra, quanto a mim, é uma incursão que parte do ateísmo ao religioso, e do cristianismo ao islamismo, e vice-versa. Em “O Profeta”, debruçando-se sobre “a liberdade”, encontramo-lo nesta mesma senda com toda aquela poesia de primeira grandeza executada numa prosa rítmica e compassada. Ouçamo-lo:

“Na verdade, o que chamais de liberdade é a mais forte dessas cadeias, embora seus anéis cintilem ao sol e vos deslumbrem.

E que quereis rejeitar para serdes livres, senão fragmentos de vós próprios?

Se é uma lei injusta que pretendeis abolir, lembrai-vos de que esta lei foi escrita por vossa própria mão em vossa testa”.

(…)

É dessa maneira que vossa liberdade, quando perde seus entraves, transforma-se num entrave para uma liberdade maior”.

Khalil Gibran lembra-nos que aquilo que construímos com liberdade pode igualmente subjugar a nossa liberdade. Com efeito, quando tentamos exercer a nossa liberdade, acabamos sendo vítimas desse exercício, isto é, dos sistemas que nós próprios criamos com a bandeira da liberdade, não havendo, por isso, lugar para a culpabilização de terceiros, sejam eles deuses ou não.

O tempo é uma categoria não só da nossa mente como também do nosso espírito. O tempo é simplesmente um invólucro onde nele tudo acontece com ou sem o nosso controlo. Nascemos dentro do tempo, amamos dentro do tempo, sonhamos e morremos dentro do tempo. O tempo é um dos deuses que rege o nosso deambular por este mundo que nos é tão familiar quanto misterioso. Neste diapasão, ainda em “O Profeta” Khalil afirma:

“Gostaríeis de medir o tempo, o ilimitado e o incomensurável.

Gostaríeis de ajustar vosso comportamento e mesmo de reger o curso de vossas almas de acordo com as horas e as estações.

Do tempo gostaríeis de fazer um rio, na margem do qual vos sentareis para observar correr as águas.

(…)

E sabe que ontem é apenas a recordação de hoje e amanhã, o sonho de hoje,

E que aquilo que canta e medita em vós continua a morar dentro daquele primeiro momento em que as estrelas foram semeadas no espaço.”

O prazer é a vibração do bem e do belo; é o entusiasmo da vida manifestado no corpo e no espírito humanos. O prazer é o clímax da liberdade no processo de recriação do mundo. O prazer é a comunhão do espírito com o universo. E Kahlil Gibran como que a concordar comigo vai mais longe ainda:

 “O prazer é uma canção de liberdade,

Mas não é a liberdade.

É o desabrochar de vossos desejos,

Mas não o seu fruto.

É um abismo olhando para o cume,

Mas não é nem o abismo nem o cume.

É o engaiolado ganhando o espaço.

Mas não é o espaço que o envolve.

Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade.”

Dentre os ensinamentos do personagem Al Mustafá, contidos em “O Profeta” que é, na realidade, o profeta descrito no livro, há um que acho interessante que é aquele que fala das crianças (nossos filhos). Gibran, neste caso, diz-nos que os filhos não são, por assim dizer, pertences dos pais. Uma vez, estes filhos, dotados de livre arbítrio, os pais devem apenas protegê-los e encaminhá-los na vida, mas sem nunca impor-lhes sobre suas escolhas, sejam elas filosóficas, religiosas, ideológicas ou mesmo de opinião.

“Os vossos filhos não são vossos filhos.

São os filhos e as filhas da Vida que anseia por si mesma.

Eles vêm através vós, mas não de vós.

E embora estejam convosco não vos pertecem.

Podeis dar-lhes o vosso amor, mas não os vossos pensamentos, pois eles têm os seus

Próprios pensamentos.

Podeis abrigar os seus corpos, mas não as suas almas.

Pois as suas almas vivem na casa do amanhã, que vós não podereis visitar, nem em sonhos.

Podereis tentar ser como eles, mas não tenteis torná-los como vós.

Pois a vida não anda para trás nem se detém no ontem”

 “Asas Partidas” é uma novela de amor, autobiográfica, aliás, como quase toda a obra de Gibran. São relatos do seu primeiro amor quando tinha 18 anos. Das milhentas definições que possa ter, o amor é um repositório de felicidade e também de angústias. O amor é como a “energia escura” que não interage com a matéria, embora compenetrando-a, envolvendo-a, influenciando-a. O amor (in)depende da pessoa/objecto amado, pois na sua (in)temporalidade actua sempre enquanto dura; ele é a luz em potência, que tanto pode iluminar como pode escurecer o nosso espírito. Neste alinhamento, Khalil Gibran revela-nos:

“Não sei. Mas sei que naquele entardecer fui invadido por sentimentos que jamais conhecera antes. Moviam-se em volta do meu coração como as almas devem ter esvoaçado por cima dos abismos antes da aurora dos tempos. Daquele sentimento, nasceram tanto minha felicidade como minha desgraça.”   

Mas quando o amor se revela num poeta de forma directa e instantânea como um raio de trovão, torna esse momento, essa ocorrência, não só absolutos em si mesmos como também eternos na sua duração relativa, tal como acontece nos instantes da criação poética quando o poema começa a ganhar corpo e substância. Sem dúvida, são realmente momentos únicos de esplendor e totalidade. E Khalil Gibran, ainda em “Asas Partidas”, quando conhece e se apaixona pela Selma – seu primeiro amor -, vive justamente o mesmo sentimento:

“A moça olhou intensamente nos meus olhos como se quisesse descobrir neles o motivo da minha visita. Depois, estendeu-me a mão, branca e macia como os lírios do vale. Senti, ao apertá-la, um sentimento novo e estranho, similar ao pensamento poético quando começa a formar-se na imaginação.”

Gosto de poetas, mas daqueles poetas maiores, como Gibran, que definem assim a beleza duma mulher, ou seja, a beleza por detrás da beleza duma mulher: “A beleza de Selma não estava no seu cabelo dourado, mas no halo de pureza que o rodeava. Não estava nos olhos, mas na luz que emanava dos olhos. E não estava nos lábios, mas na doçura que deles fluía; (…) A beleza de Selma na estava na perfeição do seu corpo, mas na nobreza de sua alma, uma chama branca que se elevava da terra para o infinito. A beleza de Selma vinha da mesma fonte que produz o génio poético, cujos reflexos encontramos nos poemas semíticos e nas pinturas e músicas imortais.”

Este grande e multifacetado poeta libanês, que também foi pintor, ensaísta, novelista e filósofo liberal, faleceu a 10 de abril de 1931 em Nova Iorque e, a seu pedido quando em vida, foi sepultado em Bsharri, no Líbano. O seu corpo foi recebido em festa, pois era o filho de regresso à terra que o vira nascer a 6 de janeiro de 1883.

O homem que no seu âmago não tenha música/

E que não se comova com a harmonia de sons melodiosos,/

Está pronto para traições, estratagemas e pilhagens.

William Shakespeare

 

No livro O mercador de Veneza, de William Shakespeare, a personagem Jéssica, filha de Shylock (um judeu), diz, a certa altura: “Não me sinto alegre quando ouço música sentimental”. Em resposta à sua noiva, Lourenço afirma austero: “O homem que no seu âmago não tenha música/ E que não se comova com a harmonia de sons melodiosos,/ Está pronto para traições, estratagemas e pilhagens,/ Os impulsos do seu espírito são escuros como a noite,/ E as suas afeições tenebrosas como Érebros/ Que não se confie em semelhante homem… Ouçamos a música”.

Como que a seguir a sugestão daquela personagem gerada nos finais do séc. XVI, de modo a estar-se bem longe de traições, estratagemas e pilhagens, ouvi música. Boa música! Feita por moçambicanos que acrescentam outros valores à arte nacional. No primeiro plano, “Madre Aya”, de Michel William, que vive e trabalha em Portugal. A música faz parte do álbum I’ve got a plan, constituído por 11 temas, entre os quais, por exemplo, “Don’t be blind”, “Obaia Mantra”, “Oh mama” ou “Ouve o grito”.

Em três minutos e quinze segundos, Michel William produz em “Madre Aya” qualquer coisa de penetrante, harmonizando, ao nível temático, traços típicos do sermão com uma visão vanguardista em relação à vida. Nisso a emoção, elemento chave em qualquer obra de arte, é essencial. Ou seja, almejando transmitir uma mensagem voltada para a purificação do coração do ser humano, o cantor e compositor constrói nas notas da sua guitarra, aparentemente acústica, o princípio de um diálogo entre um sujeito virtual e um receptor que se pretende bem real. “Madre Aya”, a partir de uma letra e execução instrumental simples, é uma música motivacional – sentimental, se quisermos parafrasear Jéssica –, que parte da experiência do “eu” para atingir as sociedades.   

“Madre Aya” deve ser a música mais bonita do I’ve got a plan, também pela particularidade de, num mundo com tanto caos, ainda conseguir iluminar a lâmpada da esperança, da determinação e do afecto. Ali a felicidade é uma finalidade, que, absolutamente, depende do indivíduo: “O paraíso na terra é se eu quiser”. A partir desse excerto, a música de Michel William pluraliza o discurso que se adivinha promissor para a Humanidade. Isto é, se cada indivíduo quiser fazer da terra um paraíso o mundo torna-se mais habitável e, eventualmente, menos aborrecido para a maioria.

O que se destaca em Michel William em termos de mensagem para um destinatário colectivo, observa-se igualmente em Deltino Guerreiro. Como calha em “Madre Aya”, no seu novo single, “Com amor se paga”, o autor do álbum Eparaka identifica no amor pelo próximo uma razão da vida. Fundamentalmente, a música condena o materialismo excêntrico, que põe em causa todos os valores atinentes ao altruísmo. No lugar do Metical, em Deltino Guerreiro o sorriso é mais relevante, daí quem nos canta nunca compreender a razão dos seus vizinhos e conhecidos quererem pagar por uma ajuda desinteressada: “Amor com amor se paga. Eu não quero mais nada. Se te dei amor, me paga com amor”.

Na música de Deltino Guerreiro são evidenciados os propósitos que movem a comunidade no sentido mais autêntico: a solidariedade, a partilha dos problemas e dos sucessos. Atento ao ritmo do mundo, “Com amor se paga” apresenta-se como uma proposta com essa pretensão de reaver a lógica da fraternidade a esfumar-se um pouco por todo lado. Quatro minutos e catorze segundos foram suficientes para Deltino Guerreiro opor o bem e o mal numa perspectiva correctiva.  

Quer em termos temáticos, quer em termos rítmicos, “Com amor se paga” é uma convocação para um espaço, no qual “o amor não deve ter câmbio”, está acima de todas as coisas efémeras e redundantes. Com efeito, os sons da percussão adiciona esse carácter afro alguma coisa que se funde perfeitamente com o RAP, na colaboração com Azagaia.

“Madre Aya” é uma música mais serena, para ouvir e desejar chorar na visualização de um lugar ideal, que pode ser onde se está: o paraíso. “Com amor se paga” não coloca possibilidades sobre – entenda-se a metáfora – o paraíso ser onde se está. O espaço é coisa acabada, o que não está é a(s) pessoa(s), que sempre pode(m) ser melhor(es) para habitar(em) o paraíso que tanto procura(m). Nos dois casos, claro está, a música é a letra com um propósito: colorir o mundo cinzento que há em nós.

A vontade de Deus jamais nos levará aonde a sua graça não nos pode alcançar;

Chico Xavier

 

O cinzento do céu e os tenebrosos relâmpagos prolongaram, por mais algumas horas, o tempo de trabalho de Marisa. Quando se apercebeu que as águas que seguiram a tempestade cairiam por mais tempo do que o esperado, ela decidiu retornar à casa.

Voltar a casa transformou-se num calvário diário para Marisa. De dia, mulher bem-sucedida, directora de uma das empresas cita na majestosa cadeia dos edifícios mais luxuosos do país, mas, ao cair do sol, ela arrependia-se por estar viva.

Os vidros escuros do seu carro testemunharam o diário funeral do olhar altivo e dominante que reinava durante o dia. Os dias eram todos iguais, sem nada de novo para viver. Quis o destino que aquele dia fosse diferente. O destino, justamente ele, que ela tanto odiava.

Ao parar o seu carro ao lado dum jardim, que ficava a escassos metros dos edifícios onde ela trabalhava, viu uma criança que tentava, a luz dos faróis dos carros, usar um papelão como colchão e um plástico como manta para que as águas da chuva não o atingissem.

Marisa tentou ignorá-lo, mas as forças invisíveis da natureza, novamente, não colaboraram. Uma árvore caíra perto do semáforo impedindo momentaneamente a progressão das viaturas que já se tinham enfileirado, daqueles eventos típicos em dias de chuva. Minutos passaram-se e, por detrás dos vidros escuros, Marisa continuava a observar o rapaz que empenhava-se cada vez mais em evitar que as águas da chuva o atingissem. Foi nessa incomum atenção que a mulher se apercebeu que jaziam, na face do menino, pequenas gotículas de água. Não era, indubitavelmente, a água da chuva que escorria pela sua face, ela conhecia aquele estado. Era febre.

Subitamente uma preocupação tomou conta de si, reflexões que nunca tivera invadiram a sua mente. Como é que aquele menino foi parar na rua? Os seus pais? Os familiares? Se realmente ele estiver doente, quem o socorrerá sob aquela chuva? A mulher olhou a volta e enxergou que o mundo continuava a girar e as pessoas continuavam a sua vida normalmente ignorando aquela situação. Ela também o fizera durante a vida toda.

Já na casa dos 40, os eventos da sua vida a ensinaram a ter sensibilidade para aqueles casos, porém, ela continuava sem saber o que fazer. Ficou por muito tempo a pensar, a ponderar diversas hipóteses, que nem se apercebeu que os restos da árvore tinham sido removidos e o tráfego fora reestabelecido. Foi o ruído das buzinas dos outros carros que a fizeram retornar à terra.

Movida pelo instinto, a mulher decidiu encostar o carro e chegar perto do menino. Ao abrir a porta do carro teve consciência do quão frio estava no exterior e do quão necessitado aquele menino, provavelmente, estava.

Ao se dar conta da presença da elegante mulher, o menino tentou reagir, mas em vão. A febre não o deixou. Pacificamente o menino deixou-se levar pela mulher e enroscou-se no seu colo enquanto era transportado para o banco traseiro do carro. Nem as lendárias histórias do Tatá Mamã e Tatá Papá o assustaram, afinal isso só servia para quem tinha pai e mãe.

Ao chegar a casa, apesar de ter o banco traseiro do seu carro inundado, a mulher sentia-se renovada, tinha um motivo para viver. A casa não estava mais vazia. Lembrou-se, por instantes dos tempos em que ela andou cheia, com brinquedos a voar por todo lado, as colunas a expelirem um som alto, o uísque a marcar o seu território no odor da casa, a cheirosa comida do entardecer pronta na mesa para, em família ser devorada…  Apressou-se em colocar o menino na banheira, imergindo-o de seguida em água morna. No fogão estava em ebulição uma sopa de legumes, que a fez lembrar do sr. Martinho que, sempre solícito, deixava todo santo dia uma sopa no fogão. Sorriu ao lembrar como ela era feliz e uma lágrima escorreu-lhe o rosto ao lembrar como, num sopro, a vida fora dura com ela. 

Enquanto Marisa empenhava-se em lavá-lo à banheira, o menino mantinha os olhos fixos nela. Parecia querer falar com ela, mas algo o impedia. A mulher pegou nos pés do menino, analisou a sua altura, adivinhou a sua idade. Ele deveria ter entre 7 e 8 invernos. Marisa caminhou lentamente para o compartimento esquecido, o quarto proibido, onde reinavam as memórias mais doces e mais tenebrosas da sua vida. De lá trouxe algumas roupas, bem engomadas e cheirosas, todas coloridas que serviram na perfeição o menino, dos pés a cabeça.  Amaldiçoou a perfeita coincidência.

Encaminhou o rapaz para a sala de estar e o pousou no sofá. “Ainda consigo”, pensou ela. Foi buscar a sopa e, colher a colher, foi o dando de comer e ele a saboreava no silêncio dos deuses e no final deu-lhe um analgésico. Marisa não insistia que ele falasse e o menino continuava sempre com o olhar fixo nela e um sorriso misterioso.

Marisa foi novamente ao quarto proibido e desta vez trouxe consigo um cobertor. Colocou sobre o rapaz que, sem nenhuma resistência, deitou-se no sofá. Voltou a passar-lhe a mão na cabeça e no seu pescoço e, para a sua alegria, certificou-se que a febre baixara. Desajeitadamente ela deu um beijo na testa dele e ele a puxou para um abraço mais demorado. Marisa sentiu uma energia passar entre os dois e uma paz interior a invadiu.

No corredor, em direcção ao seu quarto, a choradeira foi inevitável. Em silêncio, gritou, deixou as lágrimas escorrerem-lhe o rosto, deixou a dor desvanecer, um sentimento há muito sedimentado em seu coração. Agachou-se, viu as águas da chuva escorrerem pela janela, lembrou-se do dia em que o seu filho foi diagnosticado um cancro em fase terminal, lembrou-se do momento em que lhe disseram que sobravam-lhe apenas dois meses e, no final das contas, tudo resumiu-se em apenas um mês. Marisa chorou, chorou como no dia em que velou o próprio filho diante de uma plateia de olhares acusadores.  Desta vez já não chorava em silêncio, gritava como uma criança.

Os dias seguintes ao velório foram tenebrosos. O Marido foi o primeiro a quebrar silêncio, segurou nas suas malas e saiu de casa. Culpou-a pela morte do filho, o único herdeiro. Acusou-a de se concentrar demais no trabalho e de ignorar os sinais de uma doença que há muito consumia o rapaz.

Marisa desistiu de ir ao seu quarto, foi novamente ao quarto proibido. Dispensara, logo após o trágico evento, o sr. Martinho, fiel zelador da casa, e abraçara a solidão desde então. Cheirou, ainda em pranto, as roupas do falecido filho. Se tivesse prestado mais atenção nele, se tivesse faltado àquela reunião, se tivesse adiado àquela viagem, se tivesse cancelado àquela formação, certamente o teria levado mais cedo para o hospital e provavelmente ele estaria, naquele dia, correndo pela casa. Ela era a culpada, a única culpada daquilo tudo, como se o filho fosse somente dela e, foi no meio da choradeira e do cansaço que ela pegou no sono, ali mesmo, naquele quarto.

Marisa acordou no dia seguinte sob o barulho da diarista que vinha zelar pela casa. Atordoada foi a correr para a sala e não havia nenhum sinal do rapaz. Questionou a diarista e ela disse que não vira ninguém e não havia nenhum rasto de sopa no fogão e nem loiça suja, que tudo estava como ela deixara no dia anterior. Correu para o carro…. Estava seco, sem sinal de ninguém ter estado lá. Recorreu as camaras de vigilância e, infelizmente, tiveram um apagão de cerca de duas horas que foi devidamente justificado pela direcção do condomínio. O porteiro não pôde atestar se ela estava só ou não, pois, os vidros do seu carro eram escuros.

Marisa percorreu desesperada a casa toda a procura de algum sinal da presença daquele rapaz e quanto mais procurava nada encontrava. Desesperada voltou para o quarto do falecido filho e procurou pela roupa que ela vestira o rapaz. A roupa estava lá, engomada e bem cheirosa, como se ninguém a tivesse mexido. Terá sido apenas um sonho? Não! Marisa jurava que não. Remexeu nos bolsos da calça que vestira o rapaz e lá encontrava-se um bilhete. Marisa leu-o, como se fosse um poema. Olhou para o alto, agradeceu e pôs-se novamente a chorar.

Um ano depois Marisa dava entrada na sala do parto para, mais uma vez, dar à luz a uma nova vida. Quando dava o grito final relembrou-se do escrito no bilhete.

Mãe, não foste a culpada. Os desígnios de Deus são sempre incompreensíveis aos corações humanos. Obrigado pela sopa, estava boa, como sempre me habituaste.

Mãe…. voltarei, e vamos começar tudo de novo, desta vez rodeados de pessoas que confiam em ti e apoiem os teus sonhos

 

Quando se deu por terminado o período da Guerra-Fria em 1989, depois de intensos anos de rivalidade entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas (URSS), representando o bloco Capitalista e Socialista, respectivamente, vozes apareceram a tentar descrever o que seria a Nova Ordem Mundial (NOM) sob ponto de vista de actores, estrutura do Sistema e Agenda Internacional. Dentre estas vozes, destacam-se de três autores, Fukuyama, Huntington e Kissinger. Para este artigo, interessa questionar o primeiro e provavelmente o mais peremptório na descrição da NOM.

Fukuyama em seu artigo “O Fim da História?” escrito em 1989, que culminou com a publicação do livro “O Fim da História e o Último Homem” publicado em 1992, procurou desenhar aquilo que para ele seria o fim do processo evolutivo da humanidade, e tal, seriam a Democracia e a Economia Liberais.

Em sua obra, Fukuyama baseia o seu pensamento nos debates de Hegel e Karl Marx, filósofos que abordaram também esta questão usando a terminologia fim da história, no sentido em que, este fim da história seria quando a humanidade tivesse satisfeito os seus profundos e mais fundamentais desejos. Para Hegel, o fim da história seria o Estado Liberal, enquanto para Marx, seria a Sociedade Comunista.

 Fukuyama, tendo visto estas duas formas de governo digladiarem-se durante a Guerra-Fria, e tendo visto a Democracia Liberal se sair vencedora, teria concluído categoricamente que este seria o fim da história, portanto colocando fim ao debate dos seus predecessores. Para a nova era, Fukuyama previu um mundo que, sob ponto de vista de actores, teria vários actores, ou seja, seria multipolar. Contudo, haveria uma predominância dos Estados Unidos da América (EUA), no sentido em que, as fragilidades dos outros actores irão perpetuar o domínio dos EUA, que é a maior Democracia Liberal existente.

Sob ponto de vista de Paz e Segurança, Fukuyama trouxe-nos a visão Hegeliana da luta pelo reconhecimento, que na ordem normal conduz os Estados à uma luta generalizada pela supremacia. Mas com o liberalismo promovido pelos EUA, esse simples desejo pelo reconhecimento condutor à conflitos, é substituído pelo desejo irracional de ser reconhecido igual diante dos outros, pelo reconhecimento da legitimidade por outros Estados. Com isso, Fukuyama viu a Nova Ordem Mundial como uma boa nova, pelo facto de haver uma universalização destes valores liberais, o que seguindo a lógica de Kant e reiterada pelo próprio Fukuyama, é positivo, dado que as democracias liberais não se digladiam.

Com a eclosão do Corona vírus, ou Covid-19, em Janeiro de 2020, uma pandemia de nível mundial com origem em Wuhan, na China, que até finais de Abril já havia atingido mais de 1 milhão de pessoas e morto cerca de 64 mil, tendo como países mais afectados os EUA, a itália e Espanha, foram sendo reveladas as ineficiências do sistema liberal, os problemas de solidariedade liberal existentes e permitiu o reposicionamento da China e da Rússia como as principais referências de uma liderança global depois de muito tempo de dominação dos EUA e dos países europeus, contrariando totalmente o que Francis Fukuyama vaticinara em 1992.

A crise do modelo liberal de economia e de vida é de longe uma consequência do Corona Virus. Os seus problemas já se vêm revelando desde as arbitrariedades da invasão americana ao Iraque em 2013 e se prolongaram até à invasão à Líbia em 2011, deixando para trás nada mais do que rastos de destruição em Estados que apesar de problemas nos seus modelos de liderança, conheciam níveis de vida muito melhores do que de democracias liberais consolidadas. A hipocrisia revelada ao estabelecer relações de amizade com autocracias como da Arábia Saudita, é prova das incorrespondências entre o discurso e a acção da maior liderança do modelo liberal, os EUA. Fazendo vincar a máxima realista de que os Estados guiam-se puramente por interesses e pelo desejo de domínio ou exercício de poder sobre os demais Estados, e quando for favorável, aliam-se à qualquer tipo de regime.

A crise económica eclodida em 2008, que afectou as principais economias Ocidentais, as crises internas nos Estados Ocidentais, o contínuo envolvimento em conflitos, seja de forma directa ou indirecta, sem dúvidas levantaram questionamento não só da natureza pacifista do modelo liberal mas também da sua sustentabilidade. Sobretudo num período em que a China, por outro lado, ia aumentando e consolidando a sua influência global através da Estratégia de “Ascensão Pacífica” enunciada em 2003, e catapultada pela iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” que se materializa através de investimentos e desenvolvimento de infra-estruturas em mais de 70 países.  

Os EUA, acordando para esta inevitável conquista chinesa do mundo, iniciou um processo revisionista liderado pelo presidente Donald Trump, que consistia em rever os principais acordos comerciais dos EUA, já começando pelo banimento do Trans-pacific Partrnership (TPP) em 2017, revisão dos acordos comerciais com o Canadá e Mexico, bem como com a União Europeia e com a China. Com este último deflagrou um conflito comercial que gerou muita perda económica aos dois Estados e ao mundo no geral. Está subjacente neste revisionismo a ideia de que os EUA precisavam tornar a América grande novamente, mas isso começaria por emendar as relações comerciais que estavam a ser feitas às expensas dos mesmos. Ainda neste processo, os EUA exigiram maiores direitos na Organização das Nações Unidas (ONU), sendo que são o principal financiador.

Todas estas manobras iniciadas por Trump eram na tentativa de adiar o inevitável, a perda significativa do poder americano no mundo, atrelada à crise do modelo neoliberal como principal referência de crescimento das economias, que nos últimos anos produziu mais diferenças sociais do que benefícios para os seus povos – no contexto do corona vírus mais de 10 milhões de pessoas foram levadas ao desemprego nos EUA. Portanto, o que para Fukuyama parecia certo, era que este modelo continuaria a prosperar garantindo paz e desenvolvimento para todos os Estados do mundo. Entretanto, o que se vê hoje em dia é o modelo misto de Estado centralizado e economia liberalizada adoptado pela China e pela Rússia a florescer e a conquistar progressivamente o mundo.

Na conjuntura actual em que vivemos, a China e Rússia não só mostraram resolução e liderança global para lidar com uma pandemia que tinha potencial de atingir proporções gigantescas nos seus territórios, como também revelaram os desajustes e incompetências existentes nos seus pares ocidentais para salvaguardar os seus nacionais. E isto justifica-se pela evolução rápida das infecções e mortes nos EUA, Itália e Espanha. Actualmente, assumindo o papel antes assumido pelas potências ocidentais, a China e a Rússia prestam apoio ao mundo e aos seus mais directos contendentes, como os EUA e Estados europeus. Ademais, países na sua linha de orientação apresentam sinais claros de capacidade para apoiar os demais Estados do eixo-ocidental, é o caso da Cuba a prestar apoio à Italia e ao Reino Unido, enquanto a Itália reclama indiferença dos seus pares da União Europeia na oferta de assistência básica para o combate ao Covid-19. Portanto, se em 1992 Francis Fukuyama vaticinou o fim da história, a história nega-se a vergar à sua própria condenação, mostrando que à ela não se lhe pode colocar ponto final, pois ela é cíclica e o ciclo de domínio do modelo neoliberal a nível global parece estar a conhecer os seus piores momentos, senão o seu fim.

 

Rufino Sitoe: Analista político, docente e pesquisador da Universidade Joaquim Chissano

 

Por debaixo da ferida rançosa que cobre a cidade, mais do que tudo, salta à vista o medo do perecimento de uma espécie que duvida de sua eternidade autoconcedida. Talvez o silêncio destes tempos, ainda que seja efémero, cure os cancros de um planeta adoecido por excessos. Mais funesto que o distanciamento social no qual a cidade vive é demasiado doloroso o isolamento afectivo.

Pequenas gotas de chuva vão regando o fim de tarde de uma Primavera gelada e silenciada pela pandemia. As ruas estão vazias e um céu parcialmente nublado oculta as estrelas zonzas que lutam para dar as caras. Andamos todos num luto imposto; quando é que o luto não é imposto?

Um prédio amarelo continua sendo a única lanterna deste bairro periférico. Tem cinco pisos, cada um com as suas misérias. Um desses pombos que guardam a cidade bate as asas e levanta voo. Quase com o corpo no fim do prédio, o pequerrucho pára numa das janelas do quinto piso e fixa os olhos num miúdo de aproximadamente seis anos que se esforça para ignorar a realidade. O miúdo conduz o seu carro no chão da sala; brinca, mas sem conseguir esconder o semblante triste. O cheiro de cebola a apodrecer, na estante presa à parede da cozinha, vai infestando o fim de tarde.

De repente, um daqueles sons humanos que despertam a atenção de qualquer pessoa invade a sala através da porta do quarto, é um grunhido doloroso. Desde que amanheceu, o estado clínico da mulher que definha nos lençóis floridos da cama se deteriorou. É tão cinzenta a alma de um doente!

Perdeu a noção do tempo que passou desde que está deitada. Nem sequer se lembra que há cinco dias a cabeça foi tomada por fortes dores. Nem sequer se lembra que no meio de um sonho preso em calafrios perguntou-se quantos espíritos tinha no corpo. Nem sequer se lembra da cor creme das paredes que dão luz ao quarto. Não se lembra de nada, apenas grunhe e vê a viagem que se aproxima.   

O miúdo suspende a viagem que faz no chão da sala; pára de conduzir o seu pequeno carro. Ninguém consegue se concentrar por muito tempo com isto tudo a acontecer.  A cada segundo que passa, respirar é um sacrifício para a mulher; o bicho parece ir lhe fodendo os pulmões; ela dá luta, embora os grunhidos que lhe saem por todo o corpo se assemelhem aos de um asmático na última agonia. De vez em quando tudo pára e recomeça com fortes sessões de tosses que lhe deixam com um peito em chamas como o interior de um vulcão. O miúdo levanta-se e apoia-se ao corpo gordo do pai que lhe passa a mão grossa nos seus cabelos escuros. Enquanto duas filas de lágrimas grossas enchem a bagageira do carro, pergunta aos soluços

a mamã vai ficar bem?

O homem tira a mão dos cabelos do miúdo, enxuga as lágrimas que descem lentamente a face e diz

a mamã vai ficar bem, meu filho.

Enquanto o diz, ouve o som da campainha a tocar. São eles, pensa o pai do miúdo. O semblante não engana o seu estado de alma; se mantém altivo, mas está destroçado. Nunca é fácil ver uma pessoa amada a perecer. Se afasta do miúdo e rapidamente vai abrir a porta.

Muitos dos que nos precederam não esqueceram os seus anos de pestes. Poucos de nós apagaremos da memória os pedregulhos deste ano, cujas chamas desafiam a eternidade.

Cinco pessoas que trazem trajes verde brancas que cobrem o corpo inteiro e máscaras brancas que tapam a face entram na casa. O primeiro, sem cerimónias, pergunta onde está a doente. O pai do miúdo aponta para a direcção de onde vem os grunhidos. Três dos quatro homens que acabam de entrar seguem de imediato, com uma maca hospitalar, em direcção ao quarto. O primeiro homem a entrar na casa, o chefe da equipe médica, diz ao pai do miúdo

  vocês tiveram contacto com ela nos últimos dias. Provavelmente estão infectados. Também terão de vir connosco ao hospital.

O pai do miúdo parece que vai dizer alguma coisa, mas apenas deixa cair lágrimas apressadas e corre ao quarto quando ouve uma voz sobressaltada a gritar

ela está inconsciente, doutor Padilha.  

À Amina,

que a pouco chegou ao mundo

e já lhe andam à volta algumas coroas

 

— Pai, por que lhe chamam quarentena? — sentada no tapete de linóleo da sala de estar, perguntou a minha filha mais nova, a Amina, enquanto penteava delicadamente o cabelo da Sushi, sua companheira de todos os segundos, uma boneca que difere da Lília e do Rafa, primeiro por ser feita de pano, segundo por não trazer roupas aos corpo, terceiro e quarto por ter apenas um olho de botão e estar sempre a sorrir de orelha a orelha embora não tenha orelha alguma.

— Assim lhe chamam — disse-lhe, ajeitando os meus óculos com lente de fundo de garrafa —, porque há muito, muito tempo, muito antes dos avós dos teus avós terem nascido, numa cidade europeia chamada Veneza, os navios que vinham de lugares que sofriam de uma doença muito má chamada Peste Negra eram obrigados a esperar quarenta dias antes de atracarem no porto daquela cidade italiana.

— Entendi. Mais… ou… menos. Mas, pai!

— Sim, filha.

— A nossa casa é um navio?

— É claro que não. Nem sequer vivemos sobre a água. Mas onde é que tiraste essa ideia?

— É que a mãe disse-me, hoje cedo, porque estamos em quarentena, não podemos sair para fora de casa.

— E ela tem toda a razão do mundo.

— Não entendo, pai.

— O que não entendes, minha filha?

— Por que razão tenho eu de sofrer hoje por algo que aconteceu antes dos avós dos meus avós terem nascidos?

— Olha, filha! Nós não vivemos em Veneza. E a nossa quarentena não tem nada a ver com a Peste Negra. A verdade é que o tempo faz as coisas mudarem. De tamanho. De significado. E de outras coisas mais. Hoje, por exemplo, és pequenininha, mais ou menos do tamanho do meu travesseiro. Contudo já foste do tamanho de um camarãozinho. Com o passar do tempo, como sem dúvida a vida te vai mostrar, num piscar e abrir de olhos já terás o tamanho do Christian, depois do Laerty, não tardando que sejas tão alta quanto a tua irmã mais velha, a mana Naycha.

— E a Sushi, também irá crescer?

— Sim. Do jeito dela. Mas também irá crescer.

— E como é que as bonecas crescem?

— As bonecas não crescem como as pessoas. Elas não mudam de tamanho. Apenas mudam de significados aos olhos das pessoas que gostam delas.

— Para mim, a Sushi será sempre a Sushi: o mesmo tamanho e o mesmo significado.

— Fico feliz por ti.

— E eu e a Sushi agradecemos. Continuando…

— Ah, sim. Como eu ia dizendo, as pessoas crescem, para não dizer que mudam, e as palavras não ficam atrás.

— O pai quer dizer que a palavra quarentena não tem o mesmo significado que tinha antes dos avós dos meus avós terem nascido?

— Na mosca. Hoje, quarentena significa o tempo que as pessoas suspeitas de terem uma certa doença têm de ficar isoladas até que se tenha certeza que elas não estão doente.

— E os quarenta dias da época da tal Peste Negra: ainda continuam?

— Não. O tempo de quarentena é determinado pelo tempo de incubação da doença.

— Tempo de incubação?

— Desculpa, filha. Às vezes me esqueço que ainda tens de crescer. Tempo de incubação é o período necessário para o aparecimento dos primeiros sintomas de alguma doença.

— Então, estar em quarentena não é mesmo que ficar quarenta dias em casa?

— Não. A nossa quarentena, por exemplo, terá a duração de catorze dias, que corresponde ao período de incubação da doença de nome bonito, como lhe gostas de chamar.

— Viu, Sushi! — E a Amina passou o polegar pelo olho de botão da sua boneca, enquanto dizia: — Não há como não ter orgulho de um pai que nos fala de coisas que não sabemos.

— E eu digo mais ou menos a mesma coisa: não há como um pai não se encantar com a vida, tendo uma filha que lhe faz falar de coisas que ele também não sabia que sabia.

Tornei o corpo e os olhos para o ecrã do computador sobre a escrivaninha. Foi bom ter relaxado. Já me doía o pescoço. E sobre ele tenho a dizer alguma coisa, ou seja, existem pais que, para aliviar as suas dores, prefiram ir a uma farmácia ou a um hospital. Comigo é diferente. Eu já sei que as nossas casas escondem remédios naturais para muitas enfermidades do corpo e da alma — brincar com os nossos filhos.

— Pai! — disse a Amina, enquanto eu terminava a frase que me faltava para enviar o e-mail que o meu superior hierárquico pedira.

— Sim, filha — correspondi-lhe depois de fechar o computador novamente, para virar o corpo para a minha filha e a seguir, os olhos para a Sushi.

— Que idade tem a mãe?

— Quarenta.

— E a mana Naycha?

— Catorze.

— Por que então chamam à mãe de quarentona e à mana Naycha, de catorzinha?

— Por que os adultos adoram tornar as coisas difíceis.

— Os adultos deviam ser como as crianças, simplificar sempre, até o mais simples.

— E como é que a minha querida filha simplificaria o problema que viu nas palavras quarentona e catorzinha?

— Não seria mais fácil chamar-lhes apenas quarentona e cartozona ou quarentoninha e cartorzinha? — Meneei a cabeça, como se abrisse espaço para pensar mais a fundo no que acabava de ouvir. — E tem mais — disse ela, olhando depois para a Sushi com olhos iriados de brilho. — A partir de hoje, nós não estamos em quarentena; estamos em catorzena.

           

 

 

O obituário refere 1941-2020 como espaço temporal da passagem do Professor Carlos Serra pelo planeta terra e Moçambique. Também, faz alusão à Tete como a cidade onde ficou enterrado seu cordão umbilical. Todavia, algo deve estar errado! O Professor Carlos Serra, um dos mais profícuos e engajados intelectuais moçambicanos, não partiu para lugar algum. Ele permanece imortal e devoto às análises epistemológicas. Carlos Serra, no jeito Samoriano, não poderá, nunca, despedir-se da sua terra, dos seus estudantes e seguidores.

Ao redigir esta evocação, das mais complexas que alguma vez pude fazer, evitei a expressão “Pai da Sociologia Moçambicana”. Não é que eu tenha dúvidas dessa paternidade, como os sociólogos locais assim o apelidam, mas não queria, pelas experiências anteriores, recriar, bem no modelo político nacional, mais uma paternidade para designações comuns. Porém, concordo, salvaguardadas as devidas proporções, que o Professor Carlos Serra, a seu tempo e espaço, contribuiu, como ninguém, para recriar esta sociedade. De todos, se faz um país e, o bom do Professor interpretou e desmistificou realidades sociais complexas que, de outro modo, teriam passado inexplicadas.

Não fazia ideia que o haviam tratado por obstinado e excêntrico, em algum momento da sua intensa e bem vivida carreira. Mas, ele era um nacionalista, convicto e livre. Foi assim quando sentiu que o fervor azul da revolução conduzia, irremediavelmente, a uma aceitação e esquecimento colectivos e pacíficos da história de Moçambique, pela história da revolução e dos 10 anos de luta de libertação nacional.

Temia que perdíamos a capacidade de questionar e ajuizar as realidades sociais. Sem se eximir das suas responsabilidades, à semelhança do que propõe Noam Chomsky, “falar a verdade e expor mentiras dos governos”, o Professor foi escrevendo textos dilacerantes sobre a história pré-colonial moçambicana, para que não se deturpasse, nunca, uma historiografia secular prenhe de heróis e heroicidade, um percurso histórico de reinados e sultanatos memoráveis e inexpugnáveis. Nem se coibiu de pesquisar a essência do proto-nacionalismo, onde Kamba Simango se destacou não só pela sua tenacidade, mas, e principalmente, pelo seu academicismo.

Mas o Professor Carlos Serra não partiu, e deve estar, algures, repousando. Nos recusaremos, perpetuamente, a aceitar, de consciência, essa ausência física. Ainda acredito, talvez lunaticamente, que ele regressará, com os textos inéditos, com reflexões pertinentes e actuais, conclusões assertivas e, outros juízos de valor perspicazes. Regressará porque deixou inconcluída uma obra que pertence a este povo e país.

O Professor regressará para esclarecer a pandemia do coronavírus, o reacender dos discursos Samorianos nos chapas, os linchamentos que o “encrencado” sistema de justiça não consegue desvendar e travar, os raptos que estão na moda e, até, o entendimento sobre as igrejas pentecostais e profetas em períodos de mudanças climáticas. 

Professor Carlos Serra regressará mesmo, pois, ainda carece de autorizações para se ausentar. Carecemos todos de um entendimento sobre a fome, as epidemias, a inanição e a violência que perduraram, e algumas até prevalecem, incontroláveis, ao longo de milhares de anos. Esta natureza imperfeita, não aceita o domínio humano no modelo actual e, por isso, se rebela. Também, ele precisará de abordar o porquê de viveremos resguardados e com a sensação de que o mundo já não precisa dos humanos. Ou será que voltaremos a rezar aos deuses e anjos para nos salvarem?

Como forma de o honrar, teremos de resumir, em quatro ou cinco parágrafos, bem no seu estilo, a sua contribuição epistemológica. Resumir o deslumbramento dessa mente brilhante e preocupada. Dizer em duas palavras a chave e as soluções para todas as questões sociais, económicas e jurídicas. Para isso, serviram as oficinas de sociologia, uma das suas mais marcantes inovações.

Não resistiria, nestes resumos, de resgatar os dois volumes sobre a história de Moçambique que fizeram dele um historiador de referência e, dos estudantes, agentes activos de uma mudança que construiu Moçambique e suas gentes.  O blog e o diário de um sociólogo merecem referência. Pelo seu blog, antes bem mais visitado que agora, o Professor não se limitou a reproduzir conceitos, mas, antes, recriou um modelo híbrido e endógeno de observação e interpretação de alguns dos fenómenos sociais que marcaram os nossos anos de independência e liberdade.

Os textos mais científicos ou mais jornalísticos inspiraram e cimentaram o entendimento de que um sistema se alicerça muito para além da democracia representativa e de eleições multipartidárias. Para lá dessa linha de horizonte, existe um povo culturalmente maduro, uma classe média com valores e regras de conduta, uma massa também menos esclarecida, mas ciente das verdades mundanas e uma academia que procura firmar-se dentro e além-fronteiras. Enfim, existem as crenças, religiões, arte e vontade próprias. Todos nós procuramos, de forma incessante, rebuscar as fórmulas e os modelos que farão desta sociedade e país, um lugar de paz e prosperidade.

Também ficará órfã a página do Savana sem o Fungula Masso. Mas o Professor pregou-nos uma partida! Mudou-se para uma outra galáxia quando ainda precisava de finalizar um conjunto de cadernos de ciências sociais que, nos últimos anos, coordenou com mestria e habilidade. Cadernos que se converteram em manuais de consulta para todos os extractos sociais, com respostas simples sobre temas complexos. Esta colecção combinava simplicidade e rigor de autores de vários quadrantes do mundo, falantes de língua portuguesa. Qual constelação de pesquisadores espalhados pelo mundo e várias universidades! Ninguém conseguiria congregar tantas e mais variadas áreas de saber num projecto que tinha alma e espírito.

“Olá, muito bom dia, boa tarde ou boa noite, consoante o vosso fuso horário. Apenas para vos dizer que foram editados mais 5 livros da nossa colecção, com capas e contracapas em anexo……”. Era assim que ele aparecia em nossas telas, todas as semanas, solicitando os trabalhos e cuidando da posterior edição.  Nestes cadernos, seu último trabalho epistemológico de vulto, foram desconstruídas matérias eclécticas e complexas. O direito e a justiça, revisitou a pobreza e o porquê de continuarmos pobres, esgrimiu argumentos sobre ideologia e poder político, viajou no âmago da nossa sofrida educação e da violência sexual, enfim, pincelou as facetas sobre como se produz a cultura do medo e tantas outras coisas.

Estou convencido que ele andaria, bem no jeito dos heterónimos de Fernando Pessoa, dialogando sobre a insurgência de Cabo Delgado. Afinal, nem importa desbravar apenas o fenómeno, teremos de seguir por uma via de resolução de conflitos. Um país como o nosso merece paz, bem-estar e desenvolvimento social. Merecemos, todos, um Moçambique com as mesmas oportunidades e direitos.

Só mais um detalhe, obrigado pelos múltiplos conselhos sobre educação. Foi uma bênção ter sentado consigo para entender o porque do sistema educativo nacional ter colapsado. Ainda ecoa, pelos nossos ouvidos, a proposta de Pacto Nacional sobre educação, com especial atenção a ser dada a formação de professores. Onde quer que estejas, Professor Carlos Serra, repousa em paz e ao som do Soul Makossa de Manu Dibango.

Principiarei e culminarei o presente artigo opinativo com uma frase – da autoria de António de Oliveira Salazar, ex-estadista nacionalista português, já ido – a qual constituirá o espírito que me animará o âmago durante todo o transcurso do presente texto (sic): «aguardamos apenas a realização de condições convenientes para que o remédio não seja pior de sofrer do que o mal que se destina a curar».

A frase, ou melhor, o pensamento nela reflectido, surge a propósito dos “males” que a recente e inédita declaração do Estado de Emergência (constante do decreto-presidencial n.º 11/2020 e ratificado pela Lei n.º 1/2020) pretende “curar”, tendo em atenção às competências excepcionais atribuídas às Forças de Defesa e Segurança (FDS) destinadas a fiscalização das normas incorporadas na predita Lei.

No momento em que grafo o presente texto – 2 de Abril de 2020 – Moçambique vive o segundo dia de cumprimento das medidas adoptadas para vigorar no período de duração do Estado de Emergência, sendo que, paradoxalmente, já ecoam preocupantes relatos que apontam para uma exibição de excesso de zelo observado por parte das FDS – coadjuvados pela Polícia de Protecção (PRM) e Polícia Camarária – no âmbito da incumbência de executar as medidas decretadas, que lhes foi outorgada por intermedio do n.º 4 do artigo 3 do citado decreto-presidencial.

Sendo certo que, em conformidade com o estabelecido no preâmbulo do referido decreto-presidencial (sic): «tendo presente a alta de taxa de morbi-mortalidade e o impacto social e económico negativo que mesma provoca, mostra-se necessária a implementação urgente de medidas de contenção da propagação da doença, com vista a salvaguardar a vida e saúde pública» (fim de citação), houve necessidade de se determinar medidas limitativas de direitos e garantias individuais, constitucionalmente consagrados, e que o cumprimento de tais medidas assume uma dimensão fulcral visando evitar as maleitas atrás reproduzidas, e, por isso, o Estado viu-se, justificadamente, obrigado a manusear meios repressivos de carácter “anormal”, também é certo que a actuação dos retro mencionados meios devem ajustar-se adequada e perfeitamente dentro das fronteiras limítrofes estabelecidas no decreto-presidencial aqui sindicado.

Em condições normais, as tarefas de executar as medidas decretadas, excepcionalmente atribuídas às FDS durante a vigência do Estado de emergência, são exercidas pela PRM, designadamente, o Ramo da Polícia de Ordem e Segurança Pública (aqui, vale a pena recordar que a PRM contém ainda o Ramo da Polícia de Fronteiras e o Ramo da Polícia Costeira, Lacustre e Fluvial), em conformidade com as competências da PRM delineadas no artigo 14 da Lei n.º 16/2013 – Lei da PRM – e no artigo 10 do Estatuto Orgânico da PRM aprovado pelo Decreto n.º 58/2019.

Se confrontarmos as competências da PRM descritas nos compêndios legais referidos no parágrafo precedente com os princípios que regem a actuação as FDS, constantes da Lei n.º 18/2019 – Lei de revisão da Lei n.º 18/97, que aprova a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (LDNFADM), capta-se, essencialmente, que, por um lado, à PRM, cabem tarefas de prevenção e repressão à ordem e tranquilidade públicas, ou seja, tipicamente ligadas à segurança interna, e, por outro, às FDS, cabem, tarefas de âmbito militar, umbilicalmente vinculadas à salvaguarda da soberania, com a responsabilidade de assegurar a defesa militar da República de Moçambique contra qualquer ameaça ou agressão externas (n.º 1 do artigo 15 e n.º 1 do artigo 16, ambos da LDNFADM).

Traduzindo-se acepção de carácter insofismavelmente indiscutível que as FDS durante o Estado de Emergência, não actuam ao abrigo das suas atribuições originárias, mas sim recepcionam por empréstimo as atribuições da PRM, é pacífico e lógico afirmar, com certeza indubitável, que, durante aquele período, os limites de actuação das FDS, são os limites normais de actuação da PRM.

O que se disse acima, encontra respaldo no disposto no artigo 25 da LDNFADM cuja epígrafe é: “Emprego das Forças Armadas de Defesa de Moçambique no Estado de Sítio ou Estado de Emergência”, que preceitua que «as Forças Armadas de Defesa de Moçambique podem ser utilizadas na segurança interna nos casos em que os meios da polícia não podem fazer face à situação prevalecente».

Assim, conforme vínhamos defendendo, durante o período de vigência do Estado de Emergência, a amplitude, extensão e limites da actuação das FDS devem coincidir com os da PRM, previstos nos já citados artigo 14 da Lei da PRM e artigo 10 do Estatuto Orgânico da PRM.

Essencialmente, essa actuação – completamente deslocada daquela que se exigiria, por exemplo, num cenário de guerra (que ocasionaria um estado de sítio) – orienta-se de modo a garantir a ordem, segurança e tranquilidade públicas; protecção de pessoas e bens; prevenção de prática de crimes, contravenções e outros actos contrários à lei; observância e cumprimento de obrigações legais que regem a realização de reuniões, manifestações e espectáculos públicos; entre outras, típicas do ramo de segurança interna, repete-se, completamente distanciada dos princípios que regem a actuação militar(izada).

E porque assim é, as FDS, durante o período do Estado de Emergência, estão, acima de tudo, adstritos ao cumprimento dos princípios fundamentais do funcionamento e actuação da PRM, destacando-se, no que releva para a presente abordagem, «o respeito pelos direitos humanos» (n.º 3 do artigo 2 da Lei da PRM) bem como, «no uso dos meios coercivos para a garantia da ordem, segurança e tranquilidade públicas, a PRM [o que equivale dizer FDS durante o Estado de Emergência] observa os limites da necessidade, razoabilidade, proporcionalidade e adequabilidade» (n.º 4 do artigo 2 da Lei da PRM).

Pelos assustadores relatos que ecoam de todos os cantos do país, concernentes à actuação das FDS – logo no primeiro dia de execução das medidas decretadas para o Estado de Emergência – torna-se irrefragavelmente indiscutível que os princípios emprestados à FDS – adequabilidade, proporcionalidade, razoabilidade e necessidade – estão a ser alvos de clamorosa violação (por parte das próprias FDS).

Pior do que isso, é o facto de o princípio-mestre que os arcaboiça – o princípio da legalidade ínsito no n.º 3 do artigo 253 e n.ºs 1 e 2 do artigo 262, ambos da Constituição da República, alterada e republicada pela Lei n.º 1/2018, ex vi n.º 1 do artigo 2 da Lei da PRM e ainda artigo 19 da LDNFADM – estar, também [o princípio da legalidade], a ser alvo de desprezo, porquanto, a título meramente exemplificativo, a alínea c) do artigo 7 do decreto-presidencial que declara o Estado de Emergência estatui que «durante a vigência do estado de emergência deverão ser mantidos os serviços e actividades públicas e privadas essências, destacando-se [a] venda de bens alimentícios e de primeira necessidade».

Ora, determinar o encerramento de estabelecimento comerciais destinados à venda de bens alimentícios e de primeira necessidade, como se não bastasse, com recurso a coercibilidade, é uma actuação largamente contrária aos elementos espirituais e literais do decreto-presidencial que declara o Estado de Emergência.

É necessário que as FDS sejam doutrinadas sobre a imprescindível necessidade de se pautarem por uma postura didáctico-pedagógica, instruindo o povo na assunção de um compromisso de amplitude nacional na luta contra o surto pandémico do COVID-19, fazendo-o ficar cônscio, através de métodos professorais, sobre a anormalidade do actual quadro panorâmico que, por sua vez, justifica a adopção de novos e atípicos comportamentos.

Não se deve perder de vista que um exponencial segmento do povo moçambicano – que nunca esteve mergulhado num Estado de Emergência – carece de cognoscência exacta sobre esta figura, não sendo, por isso, causador de estranheza que nos primeiros tempos de vida do Estado de Emergência, haja uma semi-desculpável relutância no acatamento das medidas decretadas pelo Presidente da República.

A propósito da necessidade de se privilegiarem, em primeira linha, actuações didáctico-pedagógicas por parte das FDS (que, temporariamente, actua sob as vestes da PRM), lembra-se, que nos termos do artigo 33 da Lei da PRM, deve-se dar primazia à utilização de meios persuasivos e só em última e recôndita instância é que é admitido o manuseio de meios coercivos.

Com efeito, propugna a alínea b) do n.º 2 do artigo 33 da retro mencionada Lei que «é permitido o uso de meios coercivos para vencer a resistência à execução de um serviço no exercício das suas funções, depois de procedido à intimação formal de obediência e esgotados outros meios para o conseguir».

E chama-se a atenção que, inclusive, os meios coercivos devem conformar-se com os princípios da necessidade, proporcionalidade e razoabilidade (n.º 3 do artigo 33 do mesmo compêndio legal).

Há motivos mais do que justificados – até porque o passado é farto de exemplos disso – que o excesso de zelo das FDS pode dar azo à causação de uma atmosfera de revolta no seio da população, que, por sua vez, pode originar rebeliões refractárias cujos resultados são – conforme a memória do passado nos recorda – susceptíveis de redundar num caos social tingido de sangue.

Logicamente, o que se disse aqui não equivale dizer que se deve apadrinhar actos de desacato ilícito, desobediência ilegal e resistência ilegítima por parte da população. Nem de perto nem de longe. Todavia, reconhecendo-se a incomparável superioridade das FDS relativamente à população – em razão do material bélico com o qual aqueles se fazem transportar –, aliado à peculiaridade da situação gerada e especialidade das condições socio-económico-culturais de Moçambique, alvitra-se que sejam convocados, por parte das FDS (que devem actuar como actuaria a PRM e não inspirada em postulados militares) os “princípios costumeiros” da parcimónia, do bom-senso, da equidade, da tolerância, compaginando-os aos “princípios legais” da proporcionalidade, razoabilidade, necessidade e adequabilidade.

Sendo que o Estado de Emergência, justificadíssimo por unanimidade, destina-se a evitar e/ou mitigar o contágio e propagação do COVID-19 e seus efeitos infecciosos altamente mortíferos, a forma de executar as medidas conducentes ao alcance desse desígnio não podem, elas próprias, resultar noutro tipo de catástrofes «para que o remédio não seja pior de sofrer do que o mal que se destina a curar».

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

Era uma vez numa terra onde havia muita fome. Um dia, o povo foi pedir ajuda ao rei, pois este tinha uma machamba muito grande. O rei disse a todas as pessoas para irem colher todo o milho que estava na machamba para, posteriormente, dividi-lo equitativamente pelos presentes. Todos foram à machamba e cada um usava um saco para colocar o que colhia.

No grupo, havia uns que colhiam muito, outros que colhiam pouco, e outros ainda que não colhiam nada, somente carregavam um saco cheio de cascas de milho, e ainda falando no seu coração: “quando virarmos, o rei vai pensar que é milho”.

De repente, quando o povo já estava a regressar da machamba, o rei mandou um mensageiro para dizer à população o seguinte: “cada um pode levar para casa o saco com milho colhido”.

Cada um foi para a sua casa, mas aqueles que não tinham colhido nada e que queriam enganar o rei, com sacos cheios de cascas, começaram a chorar. Os que tinham colhido pouco ficaram arrependidos e com inveja dos que tinham colhido muito.

Os que tinham colhido muito foram felizes para as suas casas, pois ganharam muito pelo esforço e dedicação.

Contado por Eva José

 

Nota do editor:

Anguista Tomás escreveu esta história quando frequentava a 7ª classe, há dois anos. Hoje é aluna da 9ª classe, na Escola Secundária de Nharichonga, em Nhamatanda, Sofala. Com a história, venceu a terceira edição do Concurso de Redacção de Contos Tradicionais, organizado pela Associação Kulemba, sedeada na cidade da Beira. “Tempo de fome” foi publicado no livro infanto-juvenil À volta da fogueira vol. III, em 2018. A todos, um feliz Dia Internacional do Livro Infantil.

 

 

Este céu nem parece o mesmo que deixei no dia em que, acocorado numa barcaça, parti com a minha crença no amanhã submersa em águas turvas. Águas que me roubaram sonhos. Águas que me tiraram a espinha dorsal da vida. Águas que suprimiram toda a razão do meu ser. Só Deus sabe para onde estas águas da morte terão levado a minha família: esposa e filhos.

Hoje estou aqui. Debaixo de sol quente e céu azul. Contemplo um horizonte distante e sem obstáculos de permeio. As águas voltaram ao leito e, aparentemente inocentes, deixaram-se comprimir pelas margens do rio. As marcas de lodo seco no chão e o livre raio de alcance da minha vista testemunham o desastre: a minha aldeia foi arrasada.

O que as águas assassinas nunca souberam é que podiam sim destroçar a aldeia, mas nunca riscá-la do mapa. A minha aldeia não é apenas feita de palhotas, campos de cultivo e gado. É também feita de homens e mulheres de fibra. E estamos de volta.

Saímos daqui içados numa pinça de salvação e a pingar gotas de amargura nas asas de um tempo sem dó. Aguentámos a dura vida colectiva no branco das tendas de acolhimento. Hoje voltámos. Estamos dispostos a recomeçar tudo.

Palmilhar a minha terra firme através destes atalhos da vida não me silencia os sentimentos. Fecho os olhos, abro os braços e canto o cheiro da brisa fresca da minha terra. A brisa do meu chão. Foi aqui que nasci, cresci e fiz a família que a água levou. Este é um reencontro comigo próprio. Um raio frio fulmina-me a alma.

Deixo o coração da aldeia e caminho em direcção ao que sobra da minha casa. Sei que não serei recebido pelo riso magnetizante das minhas filhas que, correndo, se precipitariam para ver qual delas me abraçaria primeiro. Sei que não reencontrarei o calor da mulher que a vida inteira me deu amor e me fez acreditar que o sorriso habita os areais da vida. Tudo a água levou. As minhas lágrimas substituem os meus sonhos. O amanhã eclipsou-se.

Acende-se um ténue esgar de espanto quando descubro que o bloco queimado com que construí a minha casa resistiu à força destruidora da água. As chapas de cobertura seguiram os destinos dos ventos, mas a estrutura, sem porta nem janelas, continua intacta. Uma boa base para recomeçar.

Pequenas dunas, com um manto de matope seco, pontificam a espaços, um pouco por todo o quintal. Desde que as águas voltaram ao rio nunca mais ninguém colocou aqui os pés. Cada passo que dou decalca marcas do esbranquiçado original da areia. 

O silêncio penetra-me pelos tímpanos e anicha-se num enorme vazio que me enche a alma. Os meus passos não são firmes. São titubeantes. São a personificação de uma carga emocional interna que quase que me faz levitar. Deixo-me levar. Sigo o destino.

Vários riscos pretos e horizontais serpenteiam toda a largura da casa deixando claro as marcas de onde a água foi descansando enquanto vazava de volta ao leito. Chego à entrada. Estremeço. É de emoção. Galgo uma pequena escada que me separa da porta e entro. A minha vista tacteia o nada de uma casa construída com suor e lágrimas. Passo a vista de relance num pavimento com uma lama seca de cerca de meio metro de altura. Um pequeno entulho, igualmente coberto de lodo seco, desenha um estranho polígono preso a um dos cantos.

Respiro fundo e ganho fôlego para pôr as mãos ao trabalho. Não tenho pá nem enxada para remover matope seco. Mas alguma coisa tenho de fazer. No quintal procuro restos de ramos secos que fazem de enxada e pá e volto ao interior para começar a minha fascina. Priorizo o pequeno entulho. É o ponto que me parece mais crítico. Com o pau remexo. Não sei o que é, mas é algo duro. Remexo com um pouco mais de força, tentando tirar a camada preta de lodo. A minha respiração fica suspensa com a visão. Não grito, mas dou um pulo para trás. Os meus olhos arregalam-se. Volto a estremecer. Agora é de susto!

Um esqueleto – na verdade são dois esqueletos – jazem calcinados pelo matope no interior da minha casa. Uma mulher e uma criança. A criança estava no colo da mãe quando ambas foram colhidas pelo último suspiro. Ainda são visíveis os restos da roupa que trajavam e da capulana com que a mulher amarrava o filho nas costas. Da própria carne e do cheiro nada sobra. Foi tudo levado pelas águas.

Esta mulher e esta criança não são e nem podem ser os meus. A minha gente tentou, em vão, contornar a morte bem longe daqui. Estes esqueletos são de pessoas que me são estranhas. Mais do que trucidar a minha família, as águas transformaram o interior da minha casa num cemitério. Será isto uma maldição, ou a voz oca do espírito do mal?  

Impossível continuar com a minha limpeza. Volto à rua e grito! Grito forte! Não é de socorro que busco. Procuro pela pena de um pássaro, voando bem alto, para pousar a minha voz. Choro para que a vida me escute.

 

Ainda estou para perceber como é que os jovens daquele tempo começavam a namorar tão cedo. Namorar é uma maneira de dizer porque bastava uma menina sorrir para um rapaz para este começar logo a dizer “…eh!… vocês sabem duma coisa? Eu namoro com a fulana de tal…”; ou então começava a propagar o boato de que assim sucedia, embora a moça fosse a última a saber que já namorava. O caso que vou contar é dum sujeitinho dado a galã, de nome Mateus, que dizia “namorar” uma moça chamada Fina. Até há algum tempo atrás eram vizinhos no Bairro Indígena, mas os pais dela divorciaram-se e a mãe mudou-se para a Bela Rosa. Aí as dificuldades provocadas pela separação começaram a apertar. Para se aguentarem, a mãe da Fina resolveu vender alguns produtos mesmo em frente à loja do Chilepfane. A Fina ajudava nas vendas durante as férias e aos fins-de-semana. Mas eis que chega aos ouvidos do Mateus que a Fina tinha compromissos com outro rapaz. Cheio de fúria, não fez mais nada senão recrutar uns valentes da sua malta. Tomaram caminho em direcção ao Chilepfane para dar uma lição ao usurpador dos seus amores. Isto foi num fim-de-semana. Quando chegaram à varanda da loja encontraram a Fina a vender peixe frito, mais propriamente magumba com piri-piri, a chalacear com um rapaz mais ou menos da idade dela. “…já apanhámos o tipo… este é que deve ser o tal novo namorado da Fina…”, disse o Mateus aos cúmplices. Eram ao todo uns seis, todos fortalhaços e com caras mal lavadas, de quem veio mesmo para fazer zaragata. A discussão foi assim:

   “Olá , Fina: Quem é este gajo aqui?”, perguntou o “namorado” traído.

   “ Qual gajo?”, quis a Fina saber, surpreendida pela rispidez da pergunta.

   “ Não te faças de surda. Eu bem sei que desde que saíste do nosso bairro andas a namorar com este tipo aqui”.

   “ E se eu ando a namorar com ele o que é que tu tens a ver com isso?”, fogo na resposta da Fina.

Um ooohhh! de gozo explodiu da pequena multidão que se aglomerava à volta dos desavindos.

   “ E se eu for namorada dele, porque é que isso te dói? Eu não sabia que era tua namorada! Mesmo que soubesse não tens direito de me pedir contas. Deixa-me em paz”, disse a Fina melindrada com o embaraço. Se a mãe vier a saber dos seus namoricos devolve-a logo para Gaza, donde ambas provêm. E escola é esquecer. A mãe bem avisou: “…se me fazes trafulhices por aqui, devolvo-te para a casa do teu avô…”. Daqui concluo que a memória tem fraca memória de si própria: a mãe da Fina divorciou-se porque foi apanhada na cama em flagrante pelo marido, com um vizinho de lado de nome Ruben.

O moço acusado de namorar com a Fina ficou especado de estupefação com o rumo da discussão. Nada tinha a ver com esses assuntos de namoros, nem sequer intenção de pretender a Fina, que até nem era uma beleza de rapariga, com a cara toda cheia de sardas e, ainda por cima, tinha uns dentes grandes e umas gengivas muito pretas por causa da mulala.

O Mateus não foi capaz, ou não quis compreender a inocência dos acusados e disse a um dos companheiros:

  “Samson, segura a minha camisa, quero dar uma lição a este gajo por me roubar a namorada”. E despiu a camisa, já meio despedaçada pelo tempo e pelas lavagens frequentes. O amigo segurou a tal camisa já em vias da reforma. Os contendores puseram-se em termos de luta. O Mateus só dizia: “… eu vou-te matar… eu vou-te matar…”, mas mantinha uma distância de segurança, fora do alcance dos punhos do outro. Deram umas voltas assim, para a direita e para a esquerda, para a frente e para trás, sem se tocarem.

Mal sabiam que alguém fora avisar o Chilepfane: “… anda lá fora um grupinho de rapazes a abusar da Fina, a filha da comadre Virgínea… sim, essa que vende peixe  aqui na  varanda da loja…”. Aquele não se fez de demoras. Tirou o cavalo-marinho de debaixo do balcão e dirigiu-se ao local da confrontação. À socapa misturou-se no ajuntamento que já engrossara; escutou parte da conversa e os preparativos dos adversários para o combate. Identificou os intrusos, porque conhecia toda a gente da zona. E então o cavalo-marinho “entrou de serviço”. Aquilo não foi bater. O Chilepfane era de facto um justiceiro. Batia como se matasse cobras. A gritaria era tal que até os motoristas dos carros que circulavam na estrada pararam e outros fizeram marcha-atrás para ver a causa do alarido. Os membros do grupo invasor estavam em maus lençóis. Foram imobilizados pelos residentes. Depois de demoradamente, competentemente e suficientemente sovados foram obrigados a pedir perdão pelas inconveniências causadas à comunidade e deixar a promessa de que nunca, mas nunca mesmo, atravessar estradas para vir provocar inocentes nas suas próprias residências e provocar escaramuças noutros bairros. Na circunstância esqueceram-se da camisa do seu representante. O valentão ciumento e apaixonado teve de arranjar uma desculpa a todos os títulos mirabolante para convencer a mãe de que a mesma fora-lhe roubada num assalto ali na Mafalala. Aquela só disse: “não tenho dinheiro para te comprar outra camisa… aguenta-te como puderes”.  E assim o assunto de namorados e seus ciúmes ficou enterrado. Até hoje, o Mateus e os do seu grupo fingem que nunca ouviram falar dum lugar chamado bairro Chilepfane, nem de nenhuma moça que responda pelo nome de Fina; mas lá no fundo dos corações têm a memória das dores provocadas pelo cavalo-marinho do senhor Pedro Chilepfane.

Um mal nunca vem só. Naquela tarde da sova o Mateus foi visto por um tio seu, o senhor António Boy, antigo mineiro e reformado da vida produtiva. Despendia o tempo ao balcão da cantina do Silva, ali nas proximidades, na companhia do vinho tinto e de mulheres de ocasião. Presenciou os eventos ocorridos com aquele sobrinho, mas não se manifestou para evitar embaraços e compromissos. Mas, dois dias depois, deu conta dos factos à prima, a mãe do Mateus. Esta encarregou-o de ministrar ao sobrinho o correctivo a que este tinha direito. E fê-lo como um pai, com muita demora e competência, como nunca o fizera em vida, porque esse era o papel de um tio responsável, compenetrado no cumprimento dos seus deveres de educador zeloso. E o Mateus andou sem camisa uma grande porção de tempo até apropriar-se duma, num assalto a um garoto na bucaria da Mafalala.

 

“O choro pode durar uma noite, mas alegria vem pela manhã”

(Salmos 30:5)

A sucessão de pandemias, guerras, violência, escravatura, fome e desastres naturais no mundo configura-se uma contínua reprovação do sonho iluminista do progresso da história da humanidade. Tanto a evolução moral como material dos homens tiveram sempre no seu caminho o egoísmo, a inveja e a destruição como empecilhos. Estes males têm sido responsáveis pelo retrocesso moral e material da história da humanidade. Poder-se-ia aqui acrescentar a ignorância no banquete dos elementos malignos que atravancam o desenvolvimento humano, mas a história tem também exemplos inexoráveis de que a simples consciência entre o bem e o mal nunca foi a condição sin quan non para o homem praticar o bem.

Quantos casos de julgamento houve no mundo em que um homem, ciente da verdade, se fez passar por falsa testemunha até a condenação duma vítima inocente? Por que muitos políticos africanos continuam a saquear os bens do Estado, sabendo que há milhões de crianças a passar fome no seu país? Como entender a contínua poluição do meio-ambiente, sobretudo, em países desenvolvidos, quando a ciência prova em grande parte que as mudanças climáticas são uma realidade? Será o bem um valor inferior a outros valores ao ponto de ele ser sacrificado? Nesta complexidade ético-moral, o juízo de Artur Schopenhauer ganha mais sentido: o homem é único ser no mundo capaz de fazer o mal com objectivo de fazer o mal. E quando não é ele a fonte do mal que dá rasteira ao progresso da história da humanidade, derrubando tudo ou metade daquilo que a humanidade conquistou, lá vem natureza com os seus tornados, sismos, chuvas torrenciais e seca para destruir o que levou anos ou séculos para se construir.

O progresso da história é uma ilusão e o ciclo vicioso é o movimento do mundo. A longa luta contra colonização em África, parece pouco valer, quando o Ocidente e a China voltam a tolher a nossa independência por meio de dívidas. A escravatura que havia sido ultrapassada na antiguidade greco-romana renovou-se na expansão mundial e ameaça eclodir com a nova crise de migração. A Europa que passou sevícias nas mãos dos nazistas, aos poucos volta a ser dominado pela extrema-direita e movimentos nacionalistas. Os chineses que viveram tempos sombrios da revolução cultural de Mao Tse Tung, voltam a prostrar-se ante um líder vitalício, Xi Jinping, quem lhes escamoteia a liberdade de expressão, indemnizando-os com pão. Já os Estados Unidos que, outrora, foram um país de oportunidade e liberdade para todos, aos poucos, se vão encarcerando com os muros de Trump. Após Mandela ter instaurado uma África do Sul multicultural e plurirracial, quem esperaria que o seu legado fosse posteriormente manchado por ondas de xenofobia?

Ou seja, toda a realidade determinante que temos vivido no mundo não passa dum ”deja vu“ vestido duma nova roupagem. O mundo é uma esfera que gira em torno dum vaso cilíndrico que de tempo a tempo varia as suas cores. Movemo-nos dentro do eterno retorno, alternando entre a regeneração e a degradação, como chegou a observar Nietzsche. O fim é sempre um novo recomeço. A pandemia COVID-19 gerada pela SARS cov-2 afigura-se-nos uma nova doença, mas os seus efeitos já foram sofridos em diversas idades do passado. Tudo é uma questão de as consequências voltarem a manifestar-se no mundo sob o pretexto duma nova doença. A pandemia COVID-19 configura-se uma nova fase de decadência do eterno retorno do próprio cosmos. E não nos é um caso novo em termos do seu impacto psicológico, social, económico e global.

Em passados ultrapassados, já tivemos reacçoes similares a COVID-19 ante outras enfermidades globais, guerras ou calamidades naturais que nos fizeram recear pelos finais dos tempos, quando era simplesmente um período de metamorfose do próprio mundo. Uma volta à história permite-nos perceber que o pânico apocalíptico gerado pela COVID-19 já foi vivido no passado, quando, se deu, por exemplo, a peste negra do séc. XIV que acabou com um terço da população europeia. A gripe espanhola de 1918 que em menos de dois anos matou cerca de 50 milhões de pessoas no mundo. A gripe russa de 1889-90 que fez cerca de 1.5 milhão de vítimas mortais. A gripe asiática, suína, as guerras mundiais, as febres amarelas, o surto do ébola, a fome, os sismos e outros eventos de maior dimensão trágica acompanhados de interpretações escatológicas e pseudo-científicas fizeram temer a humanidade pelo fim da sua existência no cosmos, Porém, em todos estes períodos de desespero apocalíptico agravado por pilhas e pilhas de cadáveres de todas as faixas etárias, o mundo mostrou-se-nos contraproducente, ao abrandar e, com ar complacente, seguir adiante, deixando os homens recompor-se, em meio a lágrimas e dores, mais e mais uma vez. Apesar de ser um período de dor e medo intensos em que maior parte da humanidade chega a compor sentimentos anárquicos, nihilistas e, ou, ateístas devido à vaga de mortes indiscriminadas de crianças, mulheres, homens bons, maus, devotos, ímpios, é possível encontrar-se um significado iluminante desse dessa fase macabra.

Certos pensadores teleológicos chegaram a afirmar, por exemplo, que foi, em parte, graças à peste bubónica que a Europa resolveu aventurar-se pelo mundo fora, desafiando os oceanos e desencadeando a expansão mundial. Em Haiti, a peste amarela favoreceu a independência dos nativos, quando cerca de 50 mil soldados franceses morreram contaminados e outros três mil viram-se obrigados a abandonar a ilha americana. Já a peste bovina em África levou milhares de negros a morrer à fome, facilitando a ocupação e a partilha do continente pelos europeus que acabavam de sair da conferência de Berlim. Em poucas palavras, cada desastre no mundo cumpre um determinado desígnio que, por breve ou longo tempo, pode escapar à compreensão dos homens.

A actual pandemia COVID-19 deve ter, por sua vez, um papel oculto que está a desempenhar no mundo. Mas para evitarmos ser falsos profetas, afigura-se-nos mais prudente que as reflexões teleológicas sejam exercidas após o evento desta partícula do eterno retorno. Por enquanto, importa-nos mais o entendimento de que a pandemia COVID-19 não é um cavalo apocalíptico, mas uma fagulha do movimento rotacional e translatório do mundo. Sendo assim, o mais importante a indagar não é o final dos tempos do mundo, mas sim o final dos tempos da vida de vários homens que podem ser eu, tu ou os nossos amados. Todavia, pensar a morte não deixa de ser um exercício aparentemente ridículo, pois nada do que lhe descobrirmos nos ajudará a finta-la. A certeza inabalável é que todos nós fisicamente vamos morrer, basta a morte bater-nos a porta, vestida a COVID-19, à guerra, a terrorismo, a vício, à velhice, à vingança ou simplesmente nua. Não obstante o desaparecimento físico de alguns de nós, o certo é que a vida dos outros sempre continua.

Isto quer dizer que somos todos seres prescindíveis para com o mundo e para com outros e, se não o fossemos, seriamos imortais. Se calhar, a própria morte tenha melhor entendimento da prescindibilidade do ser humano no mundo, quando num piscar de olho, varre tragicamente uma toda vila, incluindo crianças, mulheres grávidas e homens inocentes ou de grande importância. Quando isso sucede, há sempre um breve momento de silêncio em que os homens choram, lamentam, amaldiçoam, desacreditam, mudam, mas pouco depois, a vida continua no seu exercício de eterno retorno. Nada dura para sempre nem a COVID-19 é capaz de violar este princípio. Tudo vai passar e tudo vai recomeçar de diversas formas. A COVID-19 está a cumprir apenas com o seu estranho desígnio que, aos olhos humanos de hoje, é incompreensível e merecia ser abortado. Entretanto, nem por isso, defendo que os humanos devam resignar-se e descuidar-se perante a pandemia. Pelo contrário, todas as precauções recomendadas pela OMS são deveras importantes para preservação da vida humana, embora o desígnio da pandemia seja inelutável. Aqueles que se mostrarem mais incautos poderão, por si só, cumprir a obra do destino, sem sacrifício dos que tentam defender-se da pandemia. Daí que urge o mundo comprometer-se com o estoicismo, cuidando-se e resistindo a cada golpe desferido pela pneumonia viral até último fôlego. O mais importante é manter resiliência e serenidade em momentos difíceis quanto esses, acreditando num novo amanhã.  

Hélder Augusto

“O Inconvencional”

e-mail: tsembah@gmail.com

Chorarei quanto for preciso,/ para fazer com que o mar cresça

Cecília Meireles

 

Júlio Carrilho é um dos vários poetas moçambicanos que se ergue com o Índico. Ter nascido em Pemba e o afecto daí consequente, provavelmente, contribuem para a sua poesia realçar o mar enquanto espaço-líquido construtor de memórias. À semelhança de Nónumar (2001), por exemplo, o seu livro mais recente, De noite o mar (2019), apresenta o mar como uma área onde tudo brota. O mar em Carrilho é a essência da poesia, daí ser uma base notável na reconfiguração da relação existente entre o ser e o lugar.

Logo no texto inaugural, “Servir as ondas”, está salientada a perspectiva de que nesta escrita o sujeito é consequência do lugar de partida e, só depois, de onde se encontra: “Esta coisa de se ser ilhéu/ é ser-se líquido/ crispar-se com o vento/ amolecer com a lua” (p. 11).

Ora, no 11º texto do livro, “Suspeito desejo”, o mar também é um lugar de purificação, para o qual o sujeito retorna virtualmente à procura de renovação: “Queria tanto/ deitar no mar as mágoas/ dores minhas e de todos nós/ lavá-las com as espumas das marés/ para cá e para lá/ até ficarem exactamente eu/ exactamente nós, limpos de medo” (p. 24).

Há neste exercício sobre a linguagem um mecanismo de revisitação de lugares e das dimensões que os mesmos propõem. Este movimento implica a efectivação de viagens que ressalvam a permanente insatisfação do sujeito de enunciação: “Chego ao porto/ para que viajei/ abriu-se o tempo/ de olhar para o infinito” (p. 16).

Na verdade, a partida e o regresso dos sujeitos poéticos em De noite o mar parecem um argumento de Júlio Carrilho para repensar o Homem, na qualidade de ser instável à imagem do meio circundante: sempre em rotação cíclica. Esta situação é acompanhada por um exercício sobre a consciência, do qual se reflecte uma espécie de repensar o país e o mundo. No primeiro caso, escrito eventualmente a partir de um fragmento do passado, o poema “Alívio mineiro” revela-se actual ao que se passa, curiosamente, na província onde Júlio Carrilho nasceu. Naturalmente, o poema transporta o leitor a Cabo Delgado: “Há um temor de andar na própria terra/ transformada na montra que uma guerra/ expõe os seus produtos mutilantes” (p. 22).

“Alívio mineiro” é um poema incisivo. Forte e esclarecedor na identificação do problema. Pode-se dizer o mesmo do poema “Ébola ou paisagem contemporânea”. Neste, embora ébola seja a grande alusão, facilmente o poema salta para este contexto em que o mundo é abalado pela COVID-19: “É só um vírus ávido de gente?/ Ou apenas um corpo inerte/ sem nome/ na marquesa?/ Uma colecção de perdas/ a prolongar-se para dentro/ das empresas?” (p. 48). E na estrofe seguinte o “questionário” continua: “É a avidez e a fome/ a cobrir-nos de máscaras/ que só o medo sabe confirmar”.

De noite o mar coloca o sujeito poético como que a repensar sobre algumas situações contemporâneas, ora acenando para o que vai mal, ora para o que nunca deveria existir. Por exemplo, a ganância e o hedonismo extremo.   

Em termos de enunciação, com efeito, há essa variação entre uma escrita singularizada e pluralizada, com uma evidente preocupação de os sujeitos exprimirem suas emoções na condição de entidades pertencentes ao colectivo. Logo se vê, o “nós” não só é recorrente como tem razão de ser. “Somos hoje donos de nós próprios?” (p. 16). A pergunta é pertinente, e, seguramente, merece resposta de quem lê.

Finalizando, De noite o mar é um livro com uns interessantes jogos alegóricos, delicado, que não se prende à forma. Há no livro alguns sonetos com rimas alternadas, mas é no verso livre, sobretudo quando o poema é extenso, que se observa a qualidade poética de Júlio Carrilho.  

 

Título: De noite o mar

Autor: Júlio Carrilho

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 14

Toda memória que guarda sobre crise humanitária foi me passada pela minha mãe, sendo a mais agoniante a da guerra dos dezasseis anos, mas hoje sinto ser pouca coisa, o que me contaram, se comparando com o que o mundo está hoje a enfrentar e o que Moçambique poderá não conseguir enfrentar nos próximos meses. A pandemia da Coronavírus pode vir a ser a pior de todas as crises que já passamos, cá em Moçambique.

 

Nas peripécias trágicas da minha mãe, sobre a guerra civil em Moçambique, há, em certos momentos, donativos, ajudas humanitárias, campos de refugiados, deserções e outras artimanhas que salvava as pessoas.  Mesmos nos cenários sóbrios impostos por crises que eu passei, como ciclones e cheias do ano dois mil, que fustigaram o país, nem o idai e kenneth no ano passado, houve alguma alternativa de salvaguardar a vida humana, como subidas no tecto, nas árvores, onde chegou a nascer a Rosita, ajudas humanitárias, como resgates de helicópteros, entre outras formas de apaziguar o sofrimento do povo.

 

Contudo, nesta pandemia do COVID-19 pode não haver nenhuma dessas ajudas humanitárias e nem donativos, tudo porque os países que bem o fariam estão a passar pelo mesmo cenário. E sem qualquer ajuda à Moçambique todos nós vamos sucumbir, quando digo todos digo-o literalmente, desde os nyongos aos insurgentes em Cabo delgado, todos nós podemos perecer dentro dessa nossa incongruente ignorância. Por essa razão, mais do que nunca somos chamados à consciência.

 

Tenho acompanhado todas às notícias pelo mundo a fora, a impressão que fica em mim é que, até aqui, ninguém, mesmo os chineses que se dizem estar salvos, tem domínio dessa pandemia, estamos todos cegos a tatear o invisível, enquanto uns proíbem uso de máscaras aos não infectados os outros dizem que o vírus sobrevive no ar por duas horas, ou seja, pode alguém tossir num local e um outro vir a infectar-se por passar naquele local duas horas depois, ou mesmo, o vírus pode voar ir à procura de vítimas.  

 

Meus patrícios, perante tudo que se fala e o que se está a passar nos países como Itália, Espanha, França, agora EUA, a única alternativa que nos resta é transformar as nossas casas em campos de refugio, isso mesmo, vamo-nos refugiar em nossas casas. E por incrível que parece, vejo uma certa relutância de certos moçambicanos, estou ciente que não será fácil manter todo mundo em casa, visto que alguns simplesmente não têm casas por onde estar, ou mesmo tendo-as, sobrevivem das ruas, é aqui onde aqueles senhores que sonegam os nossos impostos são chamados a agir, a agir rápido e de forma inteligente.

 

Sei dos problemas que nos afectam, desde as guerras mal resolvidas com a oposição e mais essa dos insurgentes que já começa a ter rostos, é preciso encarar o cenário com mais seriedade, nada de omissões de verdades que bem podiam consciencializar e colocar um pouco de lucidez nestes moçambicanos desavisados que fazem piadas com o futuro sombrio que nos espera.

 

Vamos mandar os trabalhadores, dos públicos aos privados, para casa; vamos parar de encher os “tepeémis” e Chapas como se nada estivesse a acontecer, vamos paralisar os voos, dos internacionais aos domésticos, e mais o governo deve trazer medidas concretas que beneficiem o povo, como por exemplo suspender o pagamento de água e energias neste período de quarentena nacional, alguns dirão que não tenho noção do impacto económico disso, a resposta é simples: o que vale ter economia quando não há pessoas para dirigi-las, a vida humana neste momento é o que mais importa, vamos ser sérios, meus senhores.

 

E nada de apontar dedos a certas pessoas, fulano ou sicrano é que trouxe o vírus à Moçambique, era inevitável que o coronavírus não entrasse à Moçambique, nós somos um país dependente e estamos num contexto de globalização, o facto é que o Covid-19 já cá está mesmo sem convite, vamos pensar no que fazer antes que seja tarde.  

  

Vamos ser proactivos. Não esperemos pelo pior, o país que temos, o nosso não-sistema de saúde não nos permite traçar planos além dos preventivos, só a prevenção nos pode salvar dessa hecatombe que está a caminho. Declarem guerra, ao COVID-19 e aos sem-convite em Cabo Delgado. Por mim já estaríamos em Estado de emergência. Já agora, mais do que lavar as mãos, lavem a mente, haja consciência disso. Tenho dito!

 

 

 

 

Matias seguia, com muita dificuldade, dirigindo pela avenida Julius Nyerere depois de mais uma entrevista de emprego, decerto, frustrante. Ia ao leme de um corolinha, bravo corolinha, como ele o apelidava, daqueles com mais de 20 anos desde o seu fabrico, porém, teimava em o acompanhar para as suas frustrações diárias.

Ao passar pelo primeiro semáforo o jovem sentiu que não era o único frustrado, o corolinha parecia, igualmente, nutrir do mesmo sentimento. Não era a habitual falta de combustível, pois, sobre isso eles já tinham conversado e, após várias rondas de negociação, tinham chegado a um entendimento definitivo e efectivo: o corolinha tinha de aprender a viver a conta-gotas. A inquietação do corolinha, naquele fim de manhã, tinha suas raízes em dores maiores. Aparentemente, escasseava lubrificação ao longevo motor, ou então, um dos pneus sentia-se tonto de tanto girar, ou era o triangulo cansado de suportar o peso da viatura, em suma, era uma dor que o Matias não compreendia.

A situação fugia do controle, e o seu fiel companheiro choramingava, cada vez mais alto. Tinha finalmente quebrado o silêncio e acompanhava o seu pranto de alguns soluços pesarosos. Todos, que passavam pelo Matias na Julius Nyerere, lançavam-lhe olhares acusadores! Provavelmente acusavam-no de irresponsável, insensato e inconsequente por manter em circulação aquele pobre carro que visivelmente caía aos pedaços.

 “Não sou irresponsável” pensou o jovem! Pelo contrário, julgava-se esforçado. Ganhara uma bolsa para fazer o seu mestrado algures pelo mundo e, na sua partida, todos vaticinavam-lhe um futuro promissor. Conseguiu o mestrado com distinção, seguiu ininterruptamente para o Doutoramento. Mais uma vez, o bravo estudante voltava a se distinguir, mas desta vez era na avenida Julius Nyerere, por estar no leme de uma viatura barrulhenta e velha. Em ocasiões anteriores sentia que amigos e familiares tinham medo de ir na sua boleia, temiam contrair tétano ou doenças mais graves no interior daquela chaparia a cair aos pedaços.

Rezava, Matias, que nunca fora a nenhuma igreja, para que o semáforo sempre que o visse mantivesse a sua luz verde acesa, pois, não raras vezes, quando interrompia a marcha da viatura o motor calava-se e, às vezes, era necessário chamar um psicólogo ou um mecânico para faze-lo voltar a falar, causando mais distinção na estrada. 

Festava pelos três semáforos ultrapassados com sucesso quando, já perto do majestoso edifício da presidência, que se estendia ali mesmo, na avenida Julius Nyerere, a choradeira do carro cedeu! Aleluia! Continuava apenas a choradeira no lado do pneu que ameaçava descolar-se do carro a qualquer momento. “Esse pneu só ladra” pensou Matias, pois há muito tempo que emitia aquele som mas nada acontecia.

Não tardou até que se apercebeu que o carro se calou apenas para mudar de estratégia. Logo em frente ao edifício da presidência, o motor foi abaixo e uma fumaça denunciou-o. “estou lixado”! Disse o distinto estudante para si mesmo. Pensava que nada mais o surpreenderia naquele dia. De imediato veio uma comitiva de agentes da segurança civil, militar e alguns agentes da protecção à presidência. Talvez viessem lhe dar as boas vindas à presidência, mas não era o caso, vinham pedir-lhe para que removesse o carro dali.

Após compreenderem o sucedido, colocaram-lhe água no radiador e o carro voltou a funcionar. “Graças a Deus” pensou Matias. Sabia muito bem que era proibido estacionar ao pé da presidência e quanto mais deixar descansar uma viatura inoperacional. Como punição mais grave podia ir preso, processado como inimigo do estado e ser obrigado a pagar uma multa, o que neste último caso era pior.

Continuou a sua marcha, a vida era madrasta, continuava pensando. Sancionou os seus pensamentos. Coitada das madrastas. Interrompeu os seus pensamentos quando viu o semáforo da praça do destacamento feminino acender a cor laranja, em breve ficaria vermelho. Para não incorrer a riscos maiores, com a possível interrupção da marcha da viatura, Matias decidiu acelerar. Acelerou até onde pôde, acelerou até onde o bravo corolinha permitiu.

Matias venceu o semáforo, mas para tal, teve de desviar a direcção num ângulo de noventa graus pois pretendia subir pela avenida Keneth Kaunda! Péssima decisão do Matias, aquela era a avenida das embaixadas. Para seu azar, após alguns metros, quando tentava, controlar a velocidade do seu pobre carro a fumaça voltou ao ar e, para piorar, o pneu que só ladrava decidiu morder, porém, infelizmente, o fez sozinho. Os dois pneus companheiros da vanguarda soltaram-se do carro há alguma velocidade e, aos trampolins, contornaram o murro de protecção dos edifícios de duas embaixadas que por ali se encontravam e invadiram o interior dos edifícios causando diversos danos materiais.

Quando tentava, com recurso à força, abrir a porta da viatura que imobilizara-se instantaneamente a meio da Keneth Kaunda uma fumaça cobriu o rosto do Matias. Segundos depois, ninguém soube ao certo explicar como foi, mas viu-se um clarão acompanhado de um estrondo transformando o carro, minutos depois, em cinzas.

Horas depois, era noticiado em praticamente todos quatro cantos do mundo que, em Moçambique, houve um ataque terrorista internacionalmente orquestrado contra representações de vários países. O atentado fora perpetrado por um jovem que fora recrutado por um grupo terroristas e enviado para treinamento fora do país, sob disfarce de uma bolsa de estudos. Reportou-se ainda que o jovem armadilhou o carro, disfarçado de antigo, com bombas de última geração, porém, para seu azar, as bombas foram acionadas antes do tempo.

Todos acreditaram e reproduziram a história!

 

 

A propósito desta pandemia que leva o nome de COVID-19 ou, simplesmente, Novo Corona Vírus, lembrei-me dum livro que li em tempos com o título “A Peste”, da autoria de Albert Camus. Mas antes, saibamos um pouco sobre este autor de peças de teatro, novelas, filmes, ensaios e poemas, a partir dos quais, de acordo com os críticos, ele desenvolveu um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição humana e na revolta como uma resposta a esse absurdo.

ALBERT CAMUS (Argélia, 1913 — França, 1960) foi um escritor, filósofo, romancista, dramaturgo e ensaísta franco-argelino. Também foi jornalista militante da Resistência Francesa, durante a segunda guerra mundial, no quadro das correntes libertárias então em voga na França e não só. Prémio Nobel de Literatura, 1957, Camus foi, sobretudo, à margem de outras correntes filosóficas, uma testemunha de seu tempo. Intransigente, recusou qualquer filiação ideológica. Lutou energicamente contra todas as ideologias e abstrações que, na sua perspectiva, deturpavam a natureza humana. Foi assim que se confrontou com o existencialismo e marxismo – correntes filosóficas muito em voga na época. Se o seu livro “A Peste” é, por um lado, resultado da tomada de consciência moral face aos problemas do seu tempo, por outro lado, é o espelho do seu pensamento filosófico ressumado num humanismo que tem como pano de fundo a condição humana.

A história do livro “A Peste” (1947) desenrola-se numa cidade fictícia chamada Oran, no norte da Argélia, em 1940. Um médico de nome Bernard Rieux – principal personagem do livro – à saída do seu consultório encontrou um rato morto nas escadas. Sobre o facto ele informa o guarda do prédio, que se mostra não convencido. Nos dias subsequentes são encontrados outros ratos no mesmo sítio e noutros lugares da cidade.

“Na cidade, lu?gubre e gelada, algumas crianc?as corriam, ignorantes ainda do que as ameac?ava. Mas ningue?m ousava anunciar-lhes o Deus de outrora, carregado de oferendas, velho como o sofrimento humano, mas novo como a jovem esperanc?a. So? havia lugar no corac?a?o de todos para uma esperanc?a muito velha e muito taciturna, a mesma que impede os homens de se entregarem a? morte e que na?o e? mais que simples obstinac?a?o em viver.”

Entretanto a quantidade de ratos mortos vai aumentando exponencialmente a cada dia que passa. Recolhidos, são queimados, tendo chegado ao número de oito mil ratos incinerados num único dia. Paralelamente ao problema de ratos, eclode um surto de febre que vai matando muita gente. O Doutor Rieux ainda não interiorizou a seriedade da situação.

“Mesmo depois de o Dr. Rieux ter reconhecido, diante do amigo, que um punhado de doentes dispersos acabavam de morrer da peste, sem aviso, o perigo continuava irreal para ele. Simplesmente, quando se e? me?dico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginac?a?o. Ao olhar pela janela sua cidade que na?o mudara, era com dificuldade que Rieux sentia nascer dentro de si esse ligeiro temor diante do futuro, que se chama inquietac?a?o. Ele procurava reunir no seu espi?rito o que sabia sobre a doenc?a. Flutuavam nu?meros na sua memo?ria, e dizia a si pro?prio que umas tre?s dezenas de pestes que a histo?ria conheceu tinham feito perto de cem milho?es de mortos. Mas que sa?o cem milho?es de mortos? Quando se fez a guerra, ja? e? muito saber o que e? um morto. E ja? que um homem morto so? tem significado se o vemos morrer, cem milho?es de cada?veres semeados atrave?s da histo?ria esfumac?am-se na imaginac?a?o. O me?dico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Proco?pio, tinha feito dez mil vi?timas em um so? dia.”

A peste transforma a cidade num território irrespirável e os seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas também de compaixão de proporções desmedidas. Entretanto as autoridades da cidade decretam um estado de emergência e inicia-se a quarentena. As famílias são separadas em consequência da pandemia.

“Na verdade, uma das conseque?ncias mais importantes do fechamento das portas foi a su?bita separac?a?o em que foram colocados seres que para isso na?o estavam preparados. Ma?es e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separac?a?o tempora?ria, que se tinham beijado na plataforma da nossa estac?a?o, com duas ou tre?s recomendac?o?es, certos de se reverem dentro de alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estu?pida confianc?a humana, momentaneamente distrai?dos de suas ocupac?o?es habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem. Sim, porque as portas tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicado o decreto do prefeito e, naturalmente, era impossi?vel levar em conta os casos particulares.”

Afinal tratava-se da peste bubónica (doença transmitida por uma bactéria que vive em roedores de pequeno porte e suas pulgas). O Doutor Rieux, embora surpreendido com a situação, vai lutando contra a pandemia entre a confiança e a hesitação.

“Os flagelos, na verdade, sa?o uma coisa comum, mas e? difi?cil acreditar neles quando se abatem sobre no?s. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como nossos concidada?os, e? necessa?rio compreender assim as duas hesitac?o?es. E por isso e? preciso compreender, tambe?m, que ele estivesse dividido entre a inquietac?a?o e a confianc?a. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ”Na?o vai durar muito, seria idiota”. E sem du?vida uma guerra e? uma tolice, o que na?o a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreende?-la-i?amos se na?o pensa?ssemos sempre em no?s. Nossos concidada?os, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si pro?prios. Em outras palavras, eram humanistas: na?o acreditavam nos flagelos. O flagelo na?o esta? a? altura do homem; diz-se enta?o que o flagelo e? irreal, que e? um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, sa?o os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois na?o tomaram suas precauc?o?es.”

A história continua narrando a situação da peste que vai separando famílias, os doentes transferidos para outros pontos da cidade. Um padre local, num dos seus sermões, diz que aquela desgraça é um castigo de deus, uma vez que a cidade o merecia, que os cristãos deviam aceitar o destino. No entanto o padre acaba depois sendo também vítima mortal da peste. Depois de dez meses a doença começa a reduzir. As mortes também. A cidade aos poucos começa a reencontrar-se. Até as autoridades organizam uma festa oficial de comemoração do fim da pandemia. Todavia, há sempre um mas…

“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameac?ada. Porque ele sabia o que essa multida?o eufo?rica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste na?o morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos mo?veis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos poro?es, nos bau?s, nos lenc?os e na papelada. E sabia, tambe?m, que viria talvez o dia em que, para desgrac?a e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

É indiscutível a dimensão filosófica, política, moral deste livro. É, digamos, um testemunho de resistência, resiliência e sobrevivência em todos os sentidos das palavras. Mais do que isso o livro narra e ressalta a solidariedade, a solidão, o desespero, a esperança e desesperança, a morte e outros temas fundamentais da condição humana.

Independentemente de o livro ser ou não uma espécie de metáfora da França ocupada pelo nazismo durante a segunda guerra mundial, do ponto de vista epidemiológico é um tratado que pode ajudar a humanidade nos dias de hoje, incluindo os moçambicanos, a encarar com firmeza, tenacidade, esperança e optimismo a luta contra o COVID-19.

 

Reflectir é resistir

A propósito do Dia Mundial do Teatro, que este ano se celebra a meio à grande crise sanitária global, considerada por muitos, a maior peste dos tempos modernos, a pandemia do novo coronavírus ou covid-19, a humanidade é chamada a uma reflexão transdisciplinar sobre como encontrar soluções alternativas, que passam por uma nova maneira de pensar e agir, para lidar com esta crise e evitar que tal se prolongue por mais tempo e ou se repita no futuro. E sendo o teatro, um importante veículo de emporwerment: consciencialização, mobilização e transformação social, cabe-lhe um dos papéis primordiais nessa reflexão global.

O papel do teatro passa, acima de tudo, por promover o emporwerment, ou seja, devolver às pessoas o poder de resinificar as suas vidas e a sua relação com a sociedade e o meio que as envolve. O teatro é pela ecologia, consciente de que a existência humana está dependente do meio e das circunstâncias que a envolvem: a natureza, a sociedade e obviamente a subjectividade de cada indivíduo. É nesta perspectiva ecológica de pensar e agir, que acredito estar a ênfase do debate necessário e urgente que nos permitirá resistir e superar esta fratura humana e social, na qual nos encontramos.

Pela forma de contágio do coronavírus é impraticável o teatro na forma em que o conhecemos: encontro entre pessoas que partilham o mesmo espaço e trocam afectos,o que, muitas vezes, implica contacto físico. Teatro online ou via televisão é treta, já dizia o meu amigo, o encenador português Fernando Mora Ramos e eu concordoplenamente. Portanto o desafio passa por redescobrir alternativas estéticas, que respondam a esta crise sem subverter a essência do teatro, o encontro presencial entre as pessoas. Outras possibilidades de levar o teatro aos diversos públicos sem que esse acto coloque a vida das pessoas em risco.

É essa questão com a qual artistas do teatro de todo o mundo têm se debatido actualmente, e é esse exercício de busca e criação de possibilidades que transcendam as limitações impostas pelas circunstâncias em que nos encontramos, o propósito desta mensagem, neste dia tão especial para a humanidade.

Há que reinventar formas alternativas de fazer com que o teatro não fique em confinamento estético, mas que permaneça no estado de impermanência, adaptando-se sempre às necessidades e aspirações dos seres humanos.

Entretanto há que pensar o teatro para além da cena. Oorganismo que fala, canta, dança e enche o palco de poesia e vitalidade, o que Patrice Pavis, académico francês e renomado homem do teatro, chama de “virtuosos atletas afectivos”, é extensão do corpo quepensa, idealiza, planifica e sonha. O que quer dizer que este momento de confinamento, esta paralisação social, deve ser preenchido com o exercício da reflexão.

Por isso, esta mensagem, que endereço especialmente aos praticantes, amantes de teatro e toda população moçambicana, é um convite para que se faça deste momento de quarentena, uma oportunidade de refletir sobre a prática teatral no país. Visto que continuamos a mercê da efemeridade da cena. O teatro é aqui e agora, mas também não podemos nos esquecer do “depois”. É sobre a posteridade, sobre o legado histórico, construído através do registo, sistematização e analise crítica e analítica o que mais precisávamos neste momento.

Em quase meio século de independência e prática teatral assinalável no país, faltam-nos referências e testemunhos de gerações de actores, encenadores e dramaturgosnacionais, que tão bem souberam fazer da nossa rica diversidade cultural um ingrediente particular que em muito tem contribuído para a evolução do teatro, a nívelmundial, no sentido de servir de uma fonte de frescor estético imprescindível.

O espectacular trabalho do Mutumbela Gogo, a mais antiga e importante companhia de teatro em Moçambique, aplaudido e admirado pelo mundo há mais de três décadas é um exemplo da riqueza do nosso teatro. Podia citar outros exemplos de companhias e artistas independentes, principalmente os da nova geração, cujo trabalho tem revolucionado o paradigma estético e temático do teatro moçambicano e cada vez a ganhar espaço na arena internacional. Não nos esqueçamos que no final do ano passado “Incêndios”, (texto de WajdiMouwad e encenação de Victor de Oliveira) que juntava três gerações de actores moçambicanos esteve na lista dos dez melhores espectáculos de teatro apresentadosem Portugal. Estes e outros factos sublinham a necessidade de um rastreio e registo das práticas dos artistas de teatro no país, de modo a fazer ecoar a nossa voz no mundo.

A prática teatral está intrinsecamente vinculada ao social, à política, à religião, à cultura, entre outros factores, e serve de ponto de convergência entre as diversas formas artísticas. Portanto pensar o teatro significa, em últimaanálise, pensar a arte, a história, a cultura, o país e o mundo. E porque o teatro é a versão mais genuína ou se quisermos, a mais “perfeita” versão da democracia, odebate que encerra nas suas temáticas, metodologias de criação, assim como de interação com o público, o âmbito comunitário, inclusivo, dialógico e dialético.

Fazer uma reflexão sobre as práticas teatrais desenvolvidas pelos grupos, companhias, actores e os diversos agentes culturais, ao longo da nossa história enquanto nação, é uma forma de potencializar e valorizar as artes, a cultura, os artistas e em última instância opovo moçambicano. É ter a possibilidade de sermos, finalmente, nós próprios a contar a nossa história. E haverá uma forma mais genuína de reafirmar e exaltar a nossa identidade?

À academia, me refiro em especial ao Curso superior de Teatro da Escola de Comunicação e Artes – Universidade Eduardo Mondlane e outras instituições de ensinosuperior da área, cabe-lhe o papel principal na resposta deste desafio de rastrear e registar as práticas teatrais realizadas nos diferentes contextos sociais e culturais dopaís. No entanto os artistas, jornalistas e, acima de tudo, organizações como a AMOTE (Associação Moçambicana de Teatro) não estão isentos deste desafio nacional, cujo sucesso está dependente do envolvimento e cooperação de todos.

Esta mensagem é também de encorajamento a todos os artistas, e não só, que por conta desta crise sanitária global perderam a sua fonte de rendimento/sustento, numcontexto em que escasseiam políticas culturais e sociais que os protejam e os tratem condignamente. Há que resistir e fazer deste momento de crise uma trincheira, uma armadura e continuar a luta por um mundo mais humano e justo para todos.

É dia mundial do teatro, é dia de celebrar a humanidade, portanto vamos todos pintar de luz esta tela sombria em que a vida se tornou, nos últimos tempos. Há que semear esperança e a crença de que com a colaboração de todos iremos sobreviver a esta catástrofe sanitária.

Aos fazedores do teatro vai a minha vênia por fazerem da existência humana, um acto poético, e uma mensagem de amor, solidariedade e inclusão.

 

Lisboa, 25 de Março de 2020

MATIMBA YA NGWENHA I MATI

                               (A força do crocodilo é a água)

 

Ao celebrar, aqui em Moçambique, o Dia Mundial do Teatro, desejo começar por citar um provérbio Changana, que diz: Matimba Ya Ngwenya I Mati, o que significa “a força do crocodilo é a água”.

Parafraseando esta sabedoria popular, poderíamos dizer que a força do teatro é o palco. Ambos, fora do nosso elemento, nós e o crocodilo, perdemos algo da nossa vitalidade. Só em complementaridade somos, nós e o público, o crocodilo e a água.

Tudo na natureza conduz a esta sabedoria. Se formos à reserva dos elefantes de Maputo veremos como os elefantes mastigam o capim, vagarosos, concentrados, como num enlace amoroso.

O poderoso elefante, a sua força e tremenda soberba, o que seriam, se a erva fizesse greve e, à sua passagem, se enfiasse na terra que ele pisa?

Tremenda lição de humildade: quando come o capim – uma coisinha pouca, ínfima, rasteira – quem está cheio é a erva, o elefante está vazio: mudaram de importância.

A poesia e o teatro são as expressões privilegiadas para captar este jogo da reversibilidade que nos mostra como dependemos da fraternidade universal, pois não passamos de um elo. E nesta consciência, a poesia e o teatro, funcionam não como uma fuga da realidade mas como uma fuga para a realidade. É esta uma das funções sociais do teatro.

Infelizmente, escrevo-vos numa altura em que até juntarmo-nos periga a nossa continuidade. É um período de excepção, em que o corona vírus obriga a isolarmo-nos uns dos outros – eis – nos num período sombrio em que tudo parece acontecer contra os rituais. Como se a natureza nos quisesse proibir o karingana wua karingana, onde damos voz aos nossos mitos.

Devemos ser positivos e afirmar que vivemos hoje uma experiência histórica excepcional. Quando tudo isto passar, o que acontecerá, o mais inteligente para a Humanidade – a começar por aqueles que a governam – é começar a interiorizar que nem tudo vale… e que talvez a natureza esteja pedindo para que mudemos as nossas vidas. Além de mudanças climáticas, existem muitos sinais que nos vêem sendo enviados e há que mudar de comportamentos se pretendemos continuar a ser viáveis como espécie.

E como espécie necessitaremos de, como diria o encenador Peter Brook, voltar a combinar a “proximidade” do dia-a-dia com a “distância” do mito – porque sem essa proximidade não conseguimos relacionar-nos uns com os outros e sem essa distância não consigo maravilhar-me, o primeiro passo que conduz à necessidade de melhorarmos e de melhor nos conhecermos.

E é nessa busca que faz todo o sentido que nos unamos. Que a força de cada um de nós, nesse infindável novelo que é a vida, nos aglutine numa só voz personificada na força e forma de uma Associação Moçambicana de Teatro (AMOTE)… uma entidade voltada para o palco da vida; afinal, o teatro é o palco ideal onde estes saberes populares e novos personagens míticos ganham rosto, voz, gesto, uma raiz.

Mas nunca nos podemos esquecer do elefante e do capim, do crocodilo e da água, de como o elemento que parece o mais fraco afinal pode ser o fundamento que permite às coisas acontecerem.

E esta lição devemos estendê-la ao âmbito social em que actuamos – neste momento de fraqueza universal devemos abraçar a ideia de que o teatro também deve actuar como uma esfera de influência para o problema da inclusão, que esta é uma nova missão a que nos devemos devotar.

Pensem, como o mundo seria diferente, como o mundo do espírito e mesmo o mundo físico seriam mais pobres se Homero, o cego, ou se Stephen Hawking, esse brilhante físico e cosmólogo agarrado a uma cadeira de rodas por doença degenerativa, não tivesem transformado os seus problemas em vantagens com a força da resiliência. O universo da sensibilidade humana e o nosso conhecimento do espaço seriam muito reduzidos.

Todos temos potencialidades transformadoras dentro de nós e só temos de assegurar que todos sem excepção possam ser ouvidos na sua narrativa. Lembrando sempre que somos, cada um a seu modo, os elos que, juntos, darão expressão a AMOTE.

Nós temos o palco para isso, e teremos de ter igualmente a humildade para dar voz aos diferentes. É este o reforço de que necessitávamos para nos galovanizarmos como humanidade, eis o novo desafio: integrar.

E é esta a mensagem que vos deixo, fazendo votos para que para o ano estejamos aqui a celebrar de novo o Dia Mundial de Teatro com redobrada paixão.

 

 

 

A ciência jurídica traduz-se, incontornavelmente, numa realidade destinada a caminhar de mãos dadas com as vicissitudes que se sucedem no globo terrestre, quer em termos positivamente evolutivos quer em termos negativamente desastrosos.

As transformações – sejam elas de que índole forem – que se sucedem ao longo dos tempos, têm exigido do Direito, entanto que fenómeno universal de fixação de normas destinadas a orientar as regras conduta em torno das quais se estabelecerão as relações – que se pretendem harmónicas – entre as pessoas e se extrairão os critérios objectivos de dirimição dos litígios decorrentes daquelas relações, assim que a ambicionada harmonia seja ilícita e/ou ilegitimamente beliscada em prejuízo de um interesse tutelado pelo Direito.

Esta factualidade exige da ciência jurídica uma contínua e ininterrupta capacidade de resiliência à qual se deve aliar a perspicácia na busca e alcance das soluções mais adequadas e convenientes, como forma de se adequar às mais heteróclitas e subitamente inesperadas transformações que, quer sob o consciente impulso da acção humana quer sob a irreversível manifestação da natureza, produzem efeitos modificativos no curso normal das relações a que as pessoas (psicofísicas e colectivas, públicas e privadas) se encontra(va)m vinculadas.

O mundo, de a um tempo a esta parte, já tinha sido chamado a erguer um novo ramo do (e no) Direito: o Direito Digital, como consequência da eclosão do fenómeno tecnológico que foi dominando o “modus actuandi”, “modus faciendi”, “modus vivendi” das pessoas, reflectido numa autêntica emigração comportamental do mundo real para o mundo digital, respaldado pelas [já] indissociáveis Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) que passaram a constar do epicentro do perímetro da vida das pessoas e das empresas, nas suas mais variadas formas de articulação e inter-relação.

A penetração do Direito Digital é visível desde o registo de uma criança recém-nascida (Registo e Notariados) à constituição de uma empresa (Direito Empresarial); desde o pagamento de obrigações fiscais junto às Entidades que superintendem as áreas das Finanças Públicas (Direito Fiscal) até a compra de uma panóplia de móveis (Direito das Obrigações/Comercial/Consumidor); da simples e questiúncula transferência bancária (contrato de doação) à publicação de um anúncio público pela internet (eficácia da declaração negocial); sendo insofismável que a constituição, modificação e extinção das obrigações passam pelo uso e manuseamento das TIC’s, edificando-se uma realidade – a “realidade digital” – relativamente à qual o Direito não podia, dela, se colocar à margem, em virtude de, conforme avançámos supra, dessa nova forma de actuação emergem efeitos jurídicos que, ainda que não sejam necessariamente novos, apresentam uma nova faceta que força a extracção de soluções também novas, que se afigurem, de modo terminante, as mais eficazes, tendo em conta as feições dos factos peculiares causadores de problemas peculiares e que reclamam por soluções também peculiares.

Uma das mais paradigmáticas facetas das relações que se originam no mundo digital/tecnológico/telemático, prende-se justamente com o facto de elas se estabelecerem sem necessidade de os seus intervenientes manterem contacto físico-presencial. As relações brotam, desenvolvem-se, transfiguram-se, modificam-se e produzem efeitos jurídicos sem que, necessariamente, os respectivos protagonistas se vejam compelidos a abandonar os correspondentes domicílios.

As TIC’s, consagradas através de veículos electrónicos, telemáticos e digitais, encarregam-se de estabelecer os canais através dos quais se vão concretizar os efeitos pretendidos. Para tanto, torna-se fulcral que estejam garantidas condições de segurança e fiabilidade desses canais, visando assegurar a confiabilidade, disponibilidade, confidencialidade e integridade das respectivas informações (aqui, nos referimos a matéria relativa à Protecção de Dados), bem como com o fito de se obviar a qualquer tipo de intromissão ilegítima ocasionada por desígnios criminosos (aqui, já nos referimos à Cibersegurança), a bem da difícil homogeneidade e harmonia que constituem apanágio de qualquer relação jurídica (aqui, nos referimos às Transacções Electrónicas, em geral).

A consagração dos desideratos vertidos no parágrafo precedente só se alcançam através da adopção de normas jurídicas de carácter preciso, claro e translúcido, embora, obviamente, se reconheça que, no campo jurídico-digital-tecnológico-cibernético, dada a heterogeneidade e heteroclidade dos circuitos que esse mesmo campo encerra em si mesmo, tal objectivo constitui uma tarefa ingrata e árdua, pois, nos referimos a uma realidade que quotidianamente sofre significativas alterações, quer sob os auspícios da criatividade e inteligência humanas quer sob à égide da capacidade delituosamente prevaricadora que os mencionados humanos possuem, susceptível de desvirtuar, truncar, deturpar, discrepar e causar distopias disfuncionais nas relações jurídico-digitais.

A erupção vulcânica do covid-19, associada a determinação universal da necessidade de obediência de um período de quarentena (quer para os contagiados quer para os que pretendem evitar o contágio, obviando-se, assim, a desenfreada deflagração do vírus), força que os países tenham de lançar mãos a mecanismos excepcionais conducentes a salvaguardar a continuidade de muitas relações jurídicas já iniciadas e cuja produção de efeitos, desaconselham a respectiva suspensão, sob pena de serem imensuravelmente incalculáveis os prejuízos daí advenientes, se suspendidos. Os primeiros e decisivos sinais do que se aflorou atrás já são nitidamente visíveis em vários ordenamentos jurídicos, os quais, como forma de facear o covid-19, determinaram uma série de medidas extraordinárias de carácter urgente com a finalidade de salvar a vida dos correspectivos concidadãos.

Reconhecendo-se que a obrigatória quarentena implica a restrição de movimentos, urge o desencadeamento de medidas que, dentro dessas especiais circunstâncias, permitam a fluidez das relações jurídicas (iniciadas e a iniciar) quer na esfera das pessoas singulares ou colectivas, quer na das instituições privadas ou públicas.

Neste espectro, emerge, como realidade incindível, o Direito Digital, cujas normas à si atreladas desempenharão o protuberante papel de garantir a continuidade do curso normal quanto baste da vida das pessoas. Este contorcionismo independe da denominação a que for votada a medida levada a cabo pelos Governos: “Estado de emergência” aqui, “Estado de alerta” ali e “Estado de calamidade” acolá.

Com efeito, os sujeitos contratuais das relações jurídico-laborais (entidade empregadora e trabalhador), visando evitar o contacto e o risco de contágio entre os correspondentes colaboradores, são compelidos a lançar mãos à figura do teletrabalho – também conhecido como “trabalho à distância” ou “home office” (escritório em casa) ou “home working” (trabalho em casa) ou ainda “trabalho remoto ou portátil”, comummente definido como sendo aquele que é realizado em ambiente diverso das instalações do empregador, onde, em condições normais, teria de ser executado, com recurso a equipamentos, técnicas, tecnologias e meios comunicacionais que permitem que a finalidade da prestação laboral seja cumprida, tal e qual seria se o trabalhador estivesse fisicamente presente nas instalações da entidade empregadora. O teletrabalho, assim, assegura a continuação da prestação da actividade que constitui objecto do contrato de trabalho, a partir do domicílio habitual do trabalhador. Ordenamentos há em que, por medida excepcional legislativa, foi conferida às entidades empregadoras a prerrogativa de determinar unilateralmente (sem a aquiescência do trabalhador) a fixação do regime do teletrabalho, no entanto, ressalvando-se o ónus e múnus da empresa em aprovisionar as condições necessárias objectivando a consecução do seu fim (podendo estar, à ele, subjugado, os direitos relativos às prestações adicionais ao salário base, tal seja o subsídio de alimentação, ou deveres de vigilância electrónico-digital com o fito de “miliciar” o cumprimento das horas respeitantes ao período normal de trabalho diário a que o trabalhador está adstrito a observar).

As relações disciplinadas pelo Direito Civil (aquelas que se estabelecem entre os particulares/privados ou entre estes e o Estado, desde que esta entidade pública não esteja munida do seu “ius imperi” que lhe habilita a faculdade de instituir as chamadas “cláusulas exorbitantes” e outras prerrogativas típicas do poder público que lhe conferem, nos contratos, uma posição de supremacia comparativamente ao outro contraente), encontram, muitas delas, no campo parametrizado pelo Direito Digital o socorro eficiente para fazer face ao covid-19. A título meramente exemplificativo, regras contratuais previamente fixadas e determinativas do lugar da prestação, caso se reportem à prestações de natureza estritamente pecuniária (entrega de valores monetários, pagamentos, etc.), tendem a ser alteradas, por força dos princípios de carácter universal como o do “rebus sinc stantibus” que determina que a variação substancial/anormal das circunstâncias repercute-se sobre o vínculo originariamente assumido e pactuado, implicando, inelutavelmente, o desvio ao princípio “pacta sunt servanda” que é tido como a chave da validade e eficácia dos contratos e que assevera que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, tal e qual previstos na sua forma originária. Assim, ao invés do devedor ter de se movimentar ao local da prestação, este satisfaz o interesse do credor, via on-line, através da utilização de serviços digitais denominados e-banking (homebanking), que se traduzem em canais telemáticos que conjugam os meios informáticos com os meios de comunicação à distância – canais de telecomunicação –, por meio de uma página segura do Banco, os quais se revestem de extrema utilidade para os seus usuários, visto que permitem o manuseamento de serviços bancários fora do horário de atendimento e a partir de qualquer lugar desde que haja acesso à Internet.

Dentro do actual quadro de surto pandémico infligido pelo covid-19, e no campo do Direito Societário-Comercial-Empresarial, excepcionalmente, as assembleias gerias electivas – aquelas cuja realização se afigurem de urgência inadiável – podem ser realizadas sem quaisquer tipos de interrupções, usando-se, para o efeito, mecanismos do voto electrónico por correspondência. Assim, de forma concomitante, por um lado, se obvia a desaconselhável aglomeração dos sócios num recinto confinado e, por outro, se assegura a continuidade do curso normal da vida da sociedade comercial, permitindo-se a tomada de decisões importantes e improrrogáveis.

O plano judiciário também não se alheia do fenómeno digital, existindo países, inclusive em África onde se poderia cogitar que tais medidas não fossem exequíveis, que estabelecem um sistema de realização de audiências a partir dos respectivos tribunais com recurso às funcionalidades da tecnologia do videoconferência, permitindo-se, assim, o contacto visual e sonoro entre pessoas que estão em lugares diferentes (juízes e partes processuais), mantendo-se a ritologia processual-judicativa ininterrupta.

Sendo um Direito dos tempos modernos – da era cibernética ou das sociedades da Informação – o Direito Digital, em tempos nefastos de colonização impingida pela funesta pandemia do covid-19, consubstancia-se numa verdadeira “arma secreta” à mercê dos Estados para que a máquina da Justiça não conheça uma suspensão mais arreliadora do que aquela que, em face das reais circunstâncias das situações, tem de, inevitavelmente, conhecer.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

A poucos metros, firme impõe-se um hotel de cinco estrelas com os seus enormes pavilhões orientais. Mais adiante está o aeroporto repleto de aviões e helicópteros de várias bandeiras. Aeronaves que mostram que a Beira não está sozinha. O mundo chora as lágrimas da Beira.

A cidade está de joelhos, mas casmurra nega a vergar-se. Reergue-se. A muito custo. As árvores são disto o testemunho. A maioria das copas não mais são verdes, mas sim castanhas. As raízes não resistiram. Os troncos jazem nas bermas. À espera do tempo.

Beira chora os seus mortos. Ecoa o esgar da dor, do pânico, da desolação e da incerteza no amanhã. Quando o sol se esconde, a cidade transfigura-se num enorme monstro que, na escuridão, resmunga e movimenta-se ao ritmo das suas gentes que buscam chão para continuar a sonhar.

Com os seus dez anitos de idade, a menina Neta jaz sonolenta no canto de um enorme esbranquiçado de lona. Ela abstém-se de uma Beira, de um aeroporto ou de um hotel de traço chinês totalmente desconhecidos.

 Os seus olhos não mais cintilam. Sulcam cada pedaço deste amplo espaço repleto de tendas que se espalham que nem os cogumelos de Metuchira. Contempla cada criança esfomeada, cada homem deprimido e cada mãe que, presa nas teias do silêncio, entra e sai das tendas. Todos buscam alimentação, água, calor e amparo.

O seu olhar curva-se e detém-se numa tenda marcada por uma enorme cruz de cor vermelha. Entram e saem crianças e adultos com marcas de fome e desidratação. São pessoas que, como ela, o ciclone desenraizou-lhes e hoje procuram a reconciliação com o horizonte. 

Indivíduos bem nutridos e falando todas as línguas do mundo transformam-se nas pessoas mais atarefadas que alguma vez viu na sua ainda curta vida. Andam para cima e para baixo procurando cavar sobrevivência para centenas de almas.

A menina Neta não se mexe. Traja um vestido branco encardido que vai até um palmo abaixo dos joelhos. Os pés descalços e o cabelo desgrenhado não escondem a ingenuidade da idade que a impede de se preocupar em vaidades femininas. O seu foco é apenas o pensar no amanhã e em conservar uma pequena bolsa que traz protegida pelo sovaco.

As recordações de Metuchira consomem-na. Pensa no dia em que o ciclone chegou, tirou-lhe a mãe e a irmã e deixou-lhe com a bolsa debaixo do sovaco.

Lembra-se do pai que ao tentar, aos gritos, salvar-lhe, foi levado pelas torrentes evadidas do rio. Foi para sempre. Nem um adeus sequer. Deixou lhe apenas com a bolsa debaixo do sovaco.

Recorda-se da forma como foi puxada da árvore em que estava empoleirada para o interior de um barco de borracha cheio de gente desesperada e assustada. Ela com a bolsa debaixo do sovaco.

Na retina conserva a longa viagem de Nhamatanda para a grandiosa, mas destruída, cidade da Beira. Foi na carroçaria de um camião das “Calamidades”. Na sua pequenez, ela esteve lá entalada entre tantas outras almas tão devastadas quanto ela. Sempre com a bolsa debaixo do sovaco.

A menina continua sentada. Corroí-lhe a ausência dos pais e dos irmãos. Está só no mundo, mergulhada no meio daquela gente muito simpática, mas que lhe é estranha. Não soluça, mas um par de lágrimas não resiste e galga-lhe as faces sedentas de carinho maternal.

O céu é apenas azul. O infinito do tempo não atravessa os seus dez anitos, fica nebulado na esquina que se segue. A menina não tem cabeça suficiente para ler o amanhã. Tem apenas um coração para sofrer e um par de olhos para chorar.

Não quer os brinquedos com que (os doadores) lhe encheram. Não quer as tendas que se estendem à sua frente. Não quer o pão e leite que lhe dão todas as manhãs. Quer a mãe. Quer o pai. Quer os irmãos. Chora. A pequena bolsa sempre protegida pelo sovaco.

Uma mulher não só vê, mas também lê o choro profundo da menina. É dessas mulheres de botas, calças jeans, camisete, boné e colete com estampado de uma organização internacional qualquer. Aproxima-se e dá-lhe um abraço.

«Por que choras?»

A menina não responde. O seu choro não explode, mas mistura-se com intervalos de soluços.

«Por que choras, minha querida?», a voz da mulher não disfarça a ternura e o sentimento de compaixão que a domina. O coração da menina lê isso e impele-a a abrir-se e a deixar que os seus lábios timidamente e com uma voz entrecortada pronunciem: 

«Quero a minha mãe!»

A mulher não diz palavra. Abraça a menina com mais força. Um abraço bem apertado que atravessa o contacto físico e atinge a pequena alma. Conforta-a. A menina quer retribuir o abraço, mas não quer que a pequena bolsa se solte do sovaco.

«O que levas na bolsa?», indaga a mulher. Solta um ligeiro sorriso e afaga-lhe os cabelos crespos.  A menina volta os olhos para o chão. Não pestaneja. Os grãos de areia que contempla parecem ser a única fonte da vida. Respira fundo e responde com um sussurro:

«Comprimidos.»

«Que comprimidos são esses?»

«Minha mãe deu-me antes de ser levada pelas águas», os olhos da menina agora arregalam-se e lacrimejam, «ela disse que devia tomá-los todos os dias. Se parar de os tomar vou morrer.»

«Posso vê-los?», pergunta a mulher franzindo o sobrolho. Abre a minúscula bolsa da garota e a sua espinha é atravessada por um calafrio. Volta a abraçar a moça com mais força ainda. É a vez da mulher lacrimejar.

«Estão quase a acabar», diz a menina, «vou morrer dentro de poucos dias.»

«Não vais morrer. Não te vou deixar morrer», a mulher fala lentamente e a soluçar, «quando acabares os teus tomamos juntas os meus.»

A menina fecha os olhos e abraça a mulher com emoção. O choro apaga-se. Um sorriso de esguelha esculpe-se na sua pequena cara. Mas a mulher não pára de chorar. Acredita ser seu dever de mãe partilhar os seus antirretrovirais com a pequena Neta.  

 

Intróito e considerações metodológicas

Por volta de finais de Janeiro do corrente ano, um representante da Associação de Escritores Moçambicanos solicitou que eu proferisse, em meados de Março, uma palestra com o título acima mencionado, num programa denominado “No Gume da Palavra”, organizado por aquela agremiação.

Pus “mãos à obra” e, num período que durou um pouco mais do que um mês, fiz o mapeamento das obras produzidas em Moçambique, no período que me tinha sido imposto. O intervalo afigurava-se longo e aventei como hipótese abordar apenas alguns rastos e rostos referentes à produção literária, em função da sua “qualidade literária”. Mas faltaria encontrar um critério que me permitisse justificar a minha escolha. Afinal o que é que seria “qualidade literária” de um conjunto de obras que não teria a chance de ler todas? Sendo difícil, fui recenseando obras, utilizando como categorias: “autor’, “obra’, “editora”, “ano de publicação”, “género literário”, “prémios atribuídos ao autor” e “textos críticos” que tivessem recaído sobre essas obras. Factos dispersos, na maioria dos casos, e com dados omissos em vários acervos que consultei.

Essa categorização pareceu-me ambiciosa para produzir resultados palpáveis num curto período de tempo, uma vez que, em tal ínterim, não conseguiria fazer o levantamento exaustivo de ensaios, monografias, entrevistas ou qualquer género de texto crítico feito para determinada obra, nem se quer ler os textos produzidos. Entretanto, assumi que os prémios literários consagrados aos autores poderiam constituir um elemento para legitimar a sua obra, a ponto de eu o escolher como destacável para o apresentar como rosto da década 2010-2020. Mas, uma vez que o critério “prémio literário” não seria suficiente, por imensas razões discutíveis, ligada à legitimidade de determinados júri, aventei a hipótese de ressaltar os autores que tivessem mais do que uma publicação, critério que se foi abaixo, logo que constatei a existência de autores como Paulina Chiziane, Fátima Langa, Carlos Santos, Adelino Timóteo, Aldino Muianga, João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Hélder Faife, entre outros que me tenham escapado no mapeamento, que têm cinco ou mais do que cinco obras produzidas nesse período. Constatei que, com esse critério, haveria de ter que falar apenas sobre aqueles escritores sobre quem mais se estuda e escreve e omitiria a obra de muitos outros bons escritores que, apesar de terem produzido pouco em quantidade, trabalharam e empenharam-se muito no tocante à qualidade dos seus textos.

Então, continuei a fazer o recenseamento, usando as categorias acima mencionadas e, ao acaso, foi-se desenhando uma perspectiva de análise que me permitiria destacar algumas obras em detrimento de outras com boa qualidade. Quando parei de fazer o mapeamento, uma vez que já se aproximava a data de apresentação da palestra, 11 de Março, detive-me a analisar a estética literária dos textos recenseados, em função dos sub-géneros literários e cheguei às conclusões que mencionarei mais adiante, após a obrigação que tenho de estabelecer aqui alguns parâmetros teóricos.

Algumas questões gerais e teóricas

O primeiro tem a ver com a Sociologia da Leitura, que me permitiu abordar as obras em função das categorias que defini e chegar às conclusões a que cheguei com o estudo, nomeadamente: suportes de leitura – autores, obras literárias e editores; instituições e leitura:

Escola, porque o meu critério de análise é escolástico; Ensino da leitura – formação do hábito ou do gosto pela leitura; práticas culturais e a leitura – profissional versus outros, relativos a indivíduos.

Num total de 285 obras recenseadas, encontrei cerca de 133 autores. Estimo que 41 são escritoras e 92 escritores, (cf. a lista no final deste texto). Algumas obras foram publicadas por grupos de autores, outras, como por exemplo, as de literatura infanto-juvenil (na sua maioria) vêm apresentadas com dois nomes, de onde, o primeiro é o autor do texto e o último, autor das ilustrações. O recenseamento foi realizado ao acaso, considerando os livros, à medida que os fosse encontrando, em livrarias; editoras (que consultei em presença livro a livro ou as que cuja consulta foi na base catálogos), tanto a nível nacional ou internacional; diferentes bibliotecas moçambicanas (públicas e privadas); bem como consultas por internet, incluindo conversas com jornalistas, bibliotecários, literatos e amantes da literatura. Há neste mapeamento alguma margem de erro, tal como em qualquer tipo de estatísticas, obviamente, para além da limitação do período em que o estudo decorreu, muito curto. Mas foram os dados que pude juntar para conversar com os participantes da palestra. Certamente que este estudo continuará, até porque, depois da palestra ainda tenho encontrado mais obras. Além de que, para ser eficaz, deverá ser realizado num grupo mais alargado. Terá que ser um trabalho de equipa.

Só para deixar alguma informação do ponto de vista da quantidade de editoras que  publicam obras de moçambicanos, umas nacionais e outras estrangeiras, nomeio as que foi possível documentar: Alcance, Selo Jovem, Indico, Escola Portuguesa de Moçambique, Xidjumba, Oleba, Fundza, Fundação Fernando Leite Couto, Cavalo do Mar, Ndjira, MOLIJU, TDM, Literatas, AEMO, JV, Kwandika, Editora Kuvaninga, Plural, Kapulana, Chiado, Letras, Miller A. Matine, Chil, CEMD, Labirinto de Letras, INCM, PAWA, Texto Editores, Editorial Novembro, EMIJOMO.

 

Correntes de crítica literária

É importante destacar que a crítica académica é regida por determinadas escolas, nomeadamente: Formalismo russo, cuja análise é feita em função da mensagem; Estruturalismo, que centra a sua análise em modelos linguísticos; Desconstrução, que aborda a disseminação de sentidos; Crítica realista marxista, que glorifica os heróis da sociedade comunista; Realismo socialista, que trabalha basicamente o texto e a realidade na qual este é produzido; Nova Crítica, a que separa o texto do autor (nesta corrente, a análise literária deve apenas considerar o texto). O tipo mais comum de crítica que encontrei é o de linha estruturalista, o que me faz concordar com o estudo de um docente moçambicano, Artur Minzo, que defende a tese de que, nas escolas moçambicanas, a interpretação do texto explora mais unidades linguísticas do que trabalha a questão da interpretação do sentido. Eu particularmente tenho trabalhado mais na linha da contestada “desconstrução”, cf. a minha obra de ensaios Entre o Indico e o Atlântico: ensaios sobre literatura e outros textos (2014).

 

Tipos de crítica literária

Considerei ainda, para esta pesquisa, estudos realizados a partir da crítica literária e já agora, elenco alguns nomes e tipos de crítica: Crítica académica – Ana Rita Santiago; Vanessa Pinheiro; Ana Mafalda Leite; Almiro Lobo; Sara Jona; Pe. Manuel Ferreira; Cremildo Bahule; Francisco Noa; Sérgio Raimundo e Matos Mathonse; e o seguinte grupo de autores de monografias produzidas na Universidade Eduardo Mondlane: Francisco Nhantumbo; Orlando Mazivila; Odete Ernesto; Carlos Nhangumele; Valério Langa; Mussa Moses; Hassane Momad; Manuel Timane. Importa, relativamente a este grupo, mencionar que não consultei teses, nem monografias ou dissertações produzidas na antiga Universidade Pedagógica, que leciona cursos de literatura.

Crítica Jornalística – Japone Arijuane; Pedro Pereira Lopes; Leonel Matusse; Eduardo Quive; Elton Pila; Marcelo Panguana e José dos Remédios; Crítica de leitores – Virgília Ferrão. Neste estudo ainda não menciono os títulos das obras que foram objecto de análise destes autores. Fiz este destaque, para deixar a sugestão do quão a crítica literária se encontra aquém do número de publicações que vão saindo.

Mas devo ainda deixar claro que uma investigação mais aturada poderá revelar mais críticos, até porque, tal como mencionei, não consultei os acervos de produção crítica da Universidade de Maputo, que a par da Universidade Eduardo Mondlane leciona Literatura, nem de acervos.

Características de géneros literários

Do ponto de vista da teoria literária, sem me alongar, seria, também, de todo importante me referir aos sub-géneros literários. Quanto às suas características essenciais, pode-se destacar que o Romance Histórico contém: um personagem referencial, a descrição da cor local dos lugares descritos, metaficção, o recurso à memória, a base na verossimilhança e no imediatismo (intromissão do narrador no texto), entre outras. O Romance Policial tem no seu cerne um crime, aborda o medo, faz uma investigação, há um enigma, mas deve-se descobrir o crime, há o recurso à memória e à verossimilhança para o escrever e há também o imediatismo. A Auto-ficção ocorre no romance que simula ou camufla uma biografia, com recurso à ambiguidade mais a ficção. Do ponto de vista do texto em verso, existe ainda a Poesia autobiográfica, na qual o autor não se revela no texto, mas aspectos extratextuais dão pistas sobre a sua identidade. Devo ainda referir-me à Ficção jornalística, género baseado no jornalismo e que se socorre do diálogo entre Jornalismo e Literatura, fazendo o que não se pode num texto jornalístico, como por exemplo, opinar e neste tipo de texto se pode ultrapassar os limites da notícia como acontecimento actual e breve, porque se pode recorrer ao passado. A ficção jornalística faz também uma densa descrição da cor local.

Tendo em linha de conta estas características, e considerando algumas das obras que eu tinha lido, ficou encontrado o critério para destaque dos rostos e rastos de 2010-2020, que se centra na “inovação” em termos de sub-géneros literários. Cheguei às conclusões que se seguem, mesmo considerando que existem, no conjunto das destacadas obras, algumas de género híbrido. A discussão sobre as características e generalizações acerca dos géneros literários é sobejamente conhecida, mas importava encontrar alguma categoria de análise que me permitisse trabalhar.  Considerando o conteúdo de cada uma das obras seleccionadas, constatei que alguns dos livros fogem ao formato padrão, quer do ponto de vista da sua estética, quer no conjunto do seu género literário.

Inovações: rostos e rastos de 2010-2020

Considerando o que acima mencionei, destaquei que alguns autores inovaram, por ter constatado um recrudescimento na produção do Romance Histórico. Devo lembrar que, anteriormente, quem mais tinha produzido neste género literário tinha sido Ungulani ba ka Khosa e a ele se juntaram, no período em estudo: Paulina Chiziane, com as obras O Alegre Canto da Perdiz e As Andorinhas; Aurélio Furdela, com a sua obra Saga d’Ouro; Adelino Timóteo, com Apocalipse dos Predadores e Os Oitos Maridos de dona Luíza Michaela da Cruz; Mia Couto, com Mulheres de Cinza, A Espada e a Azagaia e O Bebedor de Horizontes e João P. B. Coelho, com O Olho de Hertzog.

Salienta-se ainda, deste mapeamento, o aumento de obras infanto-juvenis, cujos autores são: Adelino Timóteo e Silva Dunduro; Alexandre Dunduro; Alexandre Dunduro e Orlando Mondlane; Benjamin João e Carmen Muianga; Carlos Santos; Celso Cossa e Alberto Correia; Celso Cossa e Luís Cardoso;        Celso Cossa e Luís Cardoso;          Cristiana Pereira; Ivânea Mudanisse/”Dama do Bling”; Fátima Langa; Hélder Faife; Hélder Faife e Mauro Manhiça; Marcelo Panguana e Luís Cardoso; Margarida Abrantes; Mauro Brito e Bárbara Marques; Mia Couto e Malangatana; Pedro Pereira Lopes; Pedro Pereira Lopes e Filipa Pontes; Pedro Pereira Lopes e Luís Cardoso; Pedro Pereira Lopes e Walter Zand; Rogério Manjate e Celestino Mudaulane; Rogério Manjate e Ivone Ralha; Sara Rosário; Sónia Sultuane; Tatiana Pinto; Tatiana Pinto e Tomás Muchanga; Ungulani ba ka Khosa e Américo Manave; Vários autores (trabalho resultante de uma Oficina Criativa). A maior parte desses textos foi editada pela Escola Portuguesa de Moçambique, que se tem dedicado à produção deste sub-género literário.

Houve ainda o surgimento do Romance Policial, de onde vale a pena mencionar: Lucílio Manjate, em A Legítima dor da dona Sebastiana e Rabhia, Pedro Pereira Lopes, através da obra Mundo Grave, e Virgília Ferrão, com O Inspector Xindzimila. Surgiu ainda o Romance auto-ficcional de Cri Essência, Em Busca do Mar Certo, de Álvaro Carmo Vaz, Um Rapaz Tranquilo – Memórias Imaginadas, e de João P. B. Coelho, Ponta Gêa, bem como a Poesia biográfica de Álvaro Taruma, em Para uma Cartografia da Noite. Do grupo de “inovações” o último destaque deste estudo vai para a Ficção Jornalística, obra de Bento Baloi, intitulada Recados da Alma.

Considerações finais

Ao concluir este estudo, acabei por me questionar: será que alguns dos autores que publicaram neste período fizeram “Literatura engajada”, inscrevendo-se naquilo a que chamamos “Artivismo”? Este é um assunto que me proponho estudar mais tarde, mas deixo mencionados alguns autores que me parecem estar a escrever nessa perspectiva: Sangare Okapi, em Os Poros da Concha; Adelino Timóteo, Nação Pária; Japone Arijuane, Ferramentas para Desmontar a noite;  Hélder Faife, Pandza; Contos de Fuga e Poemas em Sacos Vazios que Ficam de pé;  Álvaro Taruma, Para uma Cartografia da Noite;  Eduardo White, O Libreto da Miséria; Dany Wambirre, A Adubada Fecundidade e outros Contos; Eduardo Quive, Lágrimas da Vida, Sorriso da Morte; Sérgio Raimundo/”Poeta Militar”,  Avental de um Poeta Doméstico; Paulina Chiziane, quase toda a sua obra;  Clemente Bata, Retratos de um Instante e outras Coisas.

Os outros autores, ao que me parece, encontram-se a escrever na perspectiva da chamada Arte pela arte e dou alguns exemplos: Léo Cote; Nelson Lineu; Hélder Faife; Amosse Mucavele; Andes Chivangue; Tânia Tomé, Emmy Xys; Sónia Sultuane, Ana Mafalda Leite; Rogério Manjate e Hirondina Joshua.

E mesmo a terminar este texto, deixo ficar a lista de obras que pude recensear, trabalho que, tal como o referi durante a palestra, ainda carece de alguma lapidação.

Lista geral de autores recenseados

Por uma questão de tornar a lista arrumada e apetecível de ler, coloquei os nomes de autores e títulos de obras em parágrafos, que significam absolutamente nada. Assim o fiz, apenas por uma questão estética para o texto. Devo ainda afirmar que as obras foram recenseadas independentemente da edição na qual foram publicadas.

Adelino Timóteo, Cemitério dos Pássaros (2019):    Nós, os do Macurungo (2013):  O Voo das Fagulhas (2020); Não chora, Carmen (2012); Os Oitos Maridos de dona Luíza Michaela da Cruz (2016); Apocalipse dos Predadores (2015); Livro Mulher (2013); Nação Pária (2010);  Dos Frutos do amor e Desamores até à Partida (2011);  A Volúpia da Pedra (2018); Adelino Timóteo e Silva Dunduro, Na Aldeia dos Crocodilos (2013). Agnaldo Bata, Sonhos Manchados, Sonhos Vividos (2018). Albino Magaia, Duas Vidas à Procura do Mar e Outros Contos (2019). Aldino Muianga, Os Funerais de Mubengane (2019); Asas Quebradas (2017); Mito, (Histórias de Espiritualidade) (2010); Meledina ou a História de uma Prostituta (2010); Xitala Mati (2011); Ngamula, o Homem do Tchova (ou o Eclipse de um Cidadão) (2012); Caderno de Memórias (2013); Contos Profanos (2013).

Alex Barca, Leis do Amor Poesia (2017); Aliança com a Solidão (2015) Dores do Parto, Dores de Inspiração (2013). Alex Dau, Recluso do Tempo (2017); Os Habitantes do Inóspito (2017); Os Heróis de Palmo e Meio (2011). Alexandre Dunduro, Mutondi o Tocador de Timbila (2017); Alexandre Dunduro e Orlando Mondlane, O Casamento Misterioso de Mwidja (2014). Almeida Cumbane, Ilusão à Primeira Vista (2016 e 2019). Almiro Lobo, O Berlinde com Eusébio lá Dentro (2016). Álvaro Carmo Vaz, Um Rapaz Tranquilo – Memórias Imaginadas (2019). Álvaro Taruma, Matéria para um Grito (2018); Para uma Cartografia da Noite (2016). Amélia Matavele/ “Predestinada”, Xitsuketa (2015). Amilca Ismael, Efémera Liberdade (2014); Casa das Recordações (2010); A história da Nádia (2010). Amin Nordine, Soladas (2019). Amosse Mucavele, Geografia do Olhar: Ensaio Fotográfico Sobre a Cidade (2017).

Ana Mafalda Leite, Outras Fronteiras: Fragmentos de Narrativas (2019); Livro das Encantações e outros Poemas (2010); O Amor Essa Forma de Desconhecimento (2010). Andes Chivangue, Fogo Preso (2016). Mbate Pedro e António Cabrita, Os Crimes Montanhosos (2018). Armando Artur, Muery, Elegia em Si Maior (2019); A Reinvenção do Ser e da Dor da Pedra (2018). Armindo Mathe, (Des)Contos do Tempo (2016); Romaria: Três Dimensões do Vento (2016). Associação Kulemba, À Volta da Fogueira Vol. I (2016); À Volta da Fogueira, Vol II (2017); À Volta da Fogueira, Vol III (2018).

Aurélio Furdela, As Hienas Também Sorriem (2012); Saga d’Ouro (2019). Beni Chaúque, As Vozes d(o) Eus d (e) Eu (2015). Benjamin João E Carmen Muianga: João, a Donzela e o Monstro das Doze Cabeças (2018). Bento Baloi, Recados da Alma (2016). Bento Sitoi, Zabela (2013). Calane da Silva, Gotas de Sol: a Manifestação da Palavra (2015). Carla Soeiro, Entre Prosa e Poesia, Apenas Escrevia (2016). Carlos dos Santos, Ecos das Sombras (2016); O Pastor de Ondas (2010); A Quinta Dimensão (2010); As Cores da amizade (2011); Um Passeio pelo céu (2012); O mundo e Mais Eu (2013); O Caçador de Ossos (2013); Bichinho da Curiosidade (2014); O Passeio das Espécies (2015); Os Pastores de Letras (2016). Carlos Osvaldo, Amorismo, ou as Vidas do Bernardo Souto (2010); Omitir não é Mentir (2014); Bárbara(mente) (2012); Paternizando Diário de um Pai em Cativeiro (2017).

Carlos Paradona, Carota N’tchakatcha, Feitiços e Mitos (2018); N’tsai Tchassassa, a Virgem de Missangas (2013).  Celina Macome/ “Clássica”, Embarque na Escrita Poética (2017). Celso Cossa, 7 Estórias sobre a Origem de Quem come Quem (2015); Celso Cossa e Alberto Correia, A Capoeira dos Sete Pintos (2017); Celso Cossa e Luís Cardoso, O Gil e Bola Gira (2016); Celso Cossa e Luís Cardoso, O Menino que Odiava Números (2019). Chikampunda, O Sabor do suor (2017). Clarice Machanguana, A Estrela, Luz da Minha Alma (2013). Cláudia Chatonda Elija, A Almadia de Remos Negros (2019). Clemente Bata, Outras Coisas: Contos (2016); Retratos do Instante (2010). Cri Essência, Em Busca do Mar Certo (2018). Cristiana Pereira, A Formiga Juju na Cidade das Papaias (2012); A Formiga Juju e o Sapo Karibu (2013); A Formiga juju e o Professor Mosquito (2014); A Formiga Juju e a Borboleta Mwarusi (2018). Ivânea Mudanisse/”Dama do Bling”, Melissa e o Arco-íris (2011).

 Dany Wambire, O Curandeiro Contratado pelo Meu Edil (2015); A Adubada Fecundidade e Outros Contos (2016); Sobresalente (2018); Quem Manda na Selva (2016). Delmar Gonçalves, Edmar e a Montra da Loja Franca (2020); Entre Dois Rios com Margens (2013). Deusa d’Africa, Ao Encontro da Vida ou da Morte            (2014); Equidade no Reino Celestial  (2014); A Voz das Minhas Entranhas (2014). Diogo Araújo Vaz, A Ira da Chama, (2010). Diogo Araújo Vaz, Diário de um Positivo (2012); Os Novos Contos de Guicalango (2017). Dragão Bee Yoni, A Virgem Prostituta da Montanha (2018). Eduardo Alfredo, Embericano (2017); Jorge de Diocese (2019). Eduardo Quive/ “Xiguiana da Luz”, Lágrimas da Vida, Sorriso da Morte (2012). Eduardo White, O Libreto da Miséria (2012). Eliana N’zwalo, Elefante Tendai e os Primos Hipopótamos (2020). Élio Mudender, A Cidade Subterrânea 2012); Eliodoro Baptista Jr., Detalhes de uma Vida de Silêncio (2017); Énia Lipanga, Sonolência e alguns rabiscos (2020). Eunice Matavele, Retalhos de uma Vida (2013).

 Euse Patrício, Vozes Malogradas (2015). Fátima Langa,   O Leão, a Mulher e a Criança (2016); O Coelho e a Água (2012); O Rapaz e a Raposa (2012); O Galo e o Coelho (2015); A Gazela, o Carneiro e o Coelho (2015); Ndinema e o Final de Ano (2015); Memórias de uma Enfermeira (2016). Florentino Kassotche, Moçambicanamaniamente (2016). Francelino Wilson/ “Mukwarura”, Nykakwe a Reforma da Prostituta (2010). Francisco V. da Costa e Victor T. Jr., Vida Desregrada (2010). Fraviga O Xiphene, Caminho de Herói (2019). Guilherme Ismael, Os Dois Casamentos do Mutante Sancho. (2013). Hélder Faife, Contos de Fuga (2010); Poemas em Sacos Vazios que Ficam de Pé   (2010); Desdenhos: Temas Infantis para Adultos (2017); Pandza (2013); Hélder Faife/Mauro Manhiça, As Armadilhas da Floresta (2014).

 Hélder Libelela, Círculo da Vida (2018). Hélder Muteia, O Barrigudo e Outros Contos (2018); Nyambarro (2018). Helga Languana/“Clássica, Prédio 333 (2014). Heliodoro Baptista, Por Cima de Toda folha (2019). Hipólito Sengulane, Um Pulsar de Fel (2010). Hirondina Joshua, Os Ângulos da Casa (2016).  Isabel Gil e Soerano Marcelo, Canto Poemas sobre Meninos e Pássaros (2010). Ivone Machado/”Npaiy”, Em contos: Diário de Maputo (2016). Ivone Soares, Salpicos de Águas e Sóis – Meu eu Poético (2019). Jaime Munguambe, As Idades do Vento (2016). Japone Arijuane, Dentro da Pedra ou as Metamorfoses do Silêncio (2014); Ferramentas para Desmontar a Noite (2020). Jofredino Faife, Filha de um Deus Menor (2012). José Craveirinha, Moçambique e outros Poemas Dispersos (2018).

JP Borges Coelho, Rainhas da Noite (2013); Ponta Gêa (2017); Quatro Histórias  (2019); JP. Água, uma Novela Rural (2013); O Olho de Hertzog (2010); Coelho Cidade dos Espelhos (2011). Júlio Carrilho, De Noite o mar (2019). Juvenal Bucuane, Meu Mar (2019); Crendice ou Crença – Quando os Manes Ancestrais se Tornam Deuses (2012); O Fundo Pardo das Coisas (2014). Karina Jamal, Bipolaridade do Amor (2017); Mulheres Resilientes (2019); Meu Chefe, Meu Pecado           (2019). Leko Nkhululeko, Há Gritos no Silêncio (2011); Bíblia Longe (2018). Léo Cote, Carto Poemas de Sol a Sal (2012); Campo de Areia (2019); Total Poesia (2013). Lica Sebastão, Ciclos da Minha Alma – Cidade, Sol e Vento (2015); Poemas sem Véu (2010); Terra, Vento e Fogo (2015). Lídia Musá, O Lado Oculto (depoimentos entre ficção e realidade) (2015). Lília Momplê, Neighbours (2012). Lino Mukuruza, Vontades de Partir e Outros Desejos (2014); Almas em Tácitas (2015). Lúcia Baptista, Serpentear nas Esteiras do Tempo (2012).

Lucílio Manjate, A Triste História de Barcolino: o Homem que Não Sabia Morrer            (2017); Rabhia (2019); O Contador de Palavras (2011); A Legítima dor da Dona Sebastiana (2013). Luís Carlos Patraquim, Impia Scripta (2011); O Deus Restante (2017); O Cão na Margem (2017); Enganações de Boca (2010). Luís Cezerilo, Sons para a Minha Amada (2013). Makunda Pinho, Mulher de kuMpeia (2018). Malahleki Sambu, Feteni, o Aldeão de Lipangu (2014). Manuel Multimucuio, Moçambique com Z de Zarolho (2018); Visão (2017). Manuela Xavier “Emy Xys, Contar Ser Gregos (2012); Cada Ver em Vez de Viver (2016); Espelho (2011); De Sol Acções a Sol Unções (2013); Escritas na Mão do Mar à Ria (2015).

 Marcelo Panguana, O Chão das Coisas (2010); Como um Louco ao Fim da Tarde (2010); O Vagabundo da Pátria (2016); Marcelo Panguana e Luís Cardoso, Leorna, a Filha do Silêncio (2011). Márcia Santos/“Rinkel”,  Emoções e Abstrações (2011). Margarida Abrantes, O Cavalo e a Borboleta (2017). Margarida Abrantes, O Sonho de Menina (2015). Mário Secca, A Criação da Memória (2015). Martins Mapera, Poema Aberto e a Tela da Diversidade (2017). Matos Mathonse, A Sombra dos Sonhos (2017). Mauro Brito e Bárbara Marques, Passos de Magia ao Sol (2016). Mauro Manhiça, Cheio de Tão Vazio (2014). Mavildo – M. P. Bonde, A Descrição das Sombras; Ensaios Poéticos (2017). Mbate Pedro, Debaixo do Silêncio que Arde (2015); Vácuos (2017). Melita Matsinhe, Ignição dos Sonhos (2017).

Mia Couto, Mulheres de Cinza (2015); O Outro Pé da Sereia (2016); O Bebedor de Horizontes (2017); A Confissão da Leoa (2012); A Espada e a Azagaia (2016). Mia Couto e E. Agualusa, O Terrorista Elegante e outras Histórias (2019). Mia Couto/Malangatana, O Pátio das Sombras (2010). Miller A. Matine, Talakune (2018); Este Conto Não tem Titulo (2018); Quando o Meu corpo Estava Devastado (2018); Mélissa Mia Petaloúda (2019); Brogúncias do meu Bairro (2019). Mouzinho Narope, O Ventre das Missangas (2019). Mulahleki Sambu, O Aldeão do Lipango (2014). Natália Constâncio, O Homem que Vivia Dentro dos Sonhos (2016); O Roubo das Letras e das Cores do Arco-Íris (2015); A Súplica de D. Pedro (2014). Nelson Lineu, Cada um em Mim (2014); Asas da Água (2019). Nizete Monteiro, 50 Poemas da Nilzete, (2010). Osvaldo das Neves, A Vingança de Jesus Cristo (2014).

Paula Lovena, A Espontaneidade do Eu (2019). Paulina Chiziane, O Canto dos Escravos (2017); Imagine África (2014); Balada do Amor ao Vento (2017); O Alegre Canto da Perdiz (2010); Na Mão de Deus (2016); As Andorinhas (2013); Paulina Chiziane e Mariana Martins, Ngoma Yetu: o Curandeiro e o Novo Testamento (2013).  Paulina chiziane e Rasta Pita,         Por quem Vibram os Tambores do Além (2013). Pedro Chissano, Algumas Estórias & Brincadeiras com B Grande (2012). Pedro Pereira Lopes, O Mundo que Iremos Gaguejar de Cor (2017); Mundo Grave (2018); A Invenção do Cemitério (2019); O Homem dos 7 Cabelos (2012).  Pedro Pereira Lopes e Filipa Pontes, Viagem pelo Mundo num Grão de Pólen e outros Poemas (2013). Pedro Pereira Lopes E Luís Cardoso, A História de João Gala-Gala (2017). Pedro Pereira Lopes E Walter Zand, Kanova e o Segredo da Caveira (2013); O Comboio que Andava de Chinelos (2019).

Rafael Inguane, Carta para uma Cabocla    (2013). Rogério Manjate, Cicatriz Encarnada (2017); Rogério Manjate e Celestino Mudaulane, Wazi (2011). Rogério Manjate e Ivone Ralha, O Coelho que Fugiu da História (2019). Romão Cossa, A Ministra (2011). Sadya Bulha, Um pé de Amarílis (2019); Sangare Okapi, Os Poros da Concha (2017); Mesmos Barcos Ou Poemas De Revisitação Do Corpo (2017). Sara Rosário, A Sementinha que Veio do Saco de Sementes (2017). Sebastião Alba, Ventos da Minha Vida (2018). Sérgio Raimundo, Avental de um Poeta Doméstico       (2015). Sérgio Veigas, O Velho e o Mato (2014). Sérgio Vinga, Gona Dzololo e outros Contos (2018). Siahepe Faife, Kupitakufando (2019). Sónia Jona e José Carquete, O Ritual de Águeda e Monte Binga (2010). Sónia Sultuane, Roda das Encarnações (2016); Celeste, a Boneca com Olhos Cor de Esperança (2017); A Lua de N'weti (2014); Roda das Encarnações (2016). Suleiman Cassamo, A Carta da Mbonga (2016). Tânia Tomé Agarra-me o Sol por trás (2010); Conversas com a Sombra (2011). Tatiana Pinto e Fábio Capelão, O Coração Apaixonado do Embondeiro (2011/2016). Tatiana Pinto e Tomás Muchanga, A Viagem            (2012).

Teresa Taimo, Regresso do Descontente (2019). Teresa Xavier Coito, Em Busca das Origens – Os Benefícios da Mudança (2015). Ungulani ba ka khosa, Entre as Memórias Silenciadas (2013); Cartas de Inhaminga (2017); Gungunhana (2017); Ungulani ba ka Khosa e Américo Manave, O Rei Mocho (2012). Vana Vapamuzi, Um e outros Telegramas (2018). Vários autores (Oficina Criativa), O Dia em que as Palavras Desapareceram (2018). Virgília Ferrão/”Awaji Malunga”, O Inspector Xindzimila (2016). Yoyô de Jesus, Filosofias da Vida (2013).

 

*Sara Jona Laisse é docente na Universidade Politécnica e membro do Movimento Internacional de Mulheres Cristãs, Graal. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

 

 

 

Não há dúvidas para ninguém que África poderá ser num futuro próximo o novo epicentro da pandemia do novo coronavirus. Por isso, a Organização Mundial da Saúde, OMS, tem estado a apelar os países a testarem todos os casos suspeitos e a tomarem medidas para conter a propagação da doença.

E a medida que se mostrou eficaz em vários cantos do mundo é o distanciamento social, que consiste em encerrar tudo e mandar as pessoas ficarem em casa. A medida pode parecer irracional, mas tem a sua racionalidade e funcionou, por exemplo, em Macau e outras partes do mundo.

Moçambique é dos últimos países do mundo a registar casos do COVID-19, por isso, tem à sua disposição exemplo de países e ou territórios que foram felizes na contenção do alastramento da doença, mas também tem os maus exemplos, de países que achavam que encerrar tudo era uma medida exagerada e agora tem os seus sistemas de saúde quase que literalmente “esmagados” pela pandemia. E estamos a falar de países do primeiro mundo que de longe têm os melhores sistemas de saúde do mundo.

Infelizmente Moçambique está a optar em seguir o último exemplo. O nosso Governo prefere pagar para ver. Esperar até que a doença tenha afectado um determinado número de pessoas para tomar as medidas drásticas. E se esquece que nessa altura já não teremos capacidade para controlar a pandemia.

A partir do momento que a África do Sul e Portugal (países com os quais temos maior circulação de pessoas) notificaram os primeiros casos devíamos ter adoptados medidas drásticas que incluem o encerramento de fronteiras para a circulação de pessoas e voos internacionais. E teríamos feito o que os outros países do mundo fazem, as fronteiras só ficam abertas para a circulação de mercadorias.

Já temos casos notificados no país, mas mesmo assim o Governo se mostra hesitante em tomar medidas para controlar a doença, não obstante haver condicionalismos constitucionais para a declaração de um Estado de Emergência que precisam ser sanados. Mas há a percepção de que todos que decidem pensam que a doença está sob controlo, o que é um redundante engano. É difícil controlar o COVID-19, porque a pessoa só passa a ser suspeita de estar contaminada quando apresentar sintomas e mesmo sendo assintomático se estiver contaminado não deixa de propagar a doença pelas pessoas com que vai mantendo contacto.

E o primeiro grande erro que o país cometeu foi apenas submeter à quarentena obrigatória apenas as pessoas provenientes de países com registo diário de 100 novos casos ou com mais de mil casos notificados, tal permitiu que durante muitos dias pessoas provenientes de Reino Unido, Portugal, África do Sul mesmo estando contaminadas e sem sintomas pudessem propagar a doença porque a quarentena não era obrigatória.

O rastreio feito nas fronteiras e aeroportos não é garantia de nada e isso está mais do que provado, nem podemos nos fiar na quarentena obrigatória porque está mais do que garantido que o nosso país não tem capacidade de policiar a todos que estão em quarentena, por isso, dependemos da boa vontade e consciência de cada um.

Moçambique nem está a conseguir coordenar com os países vizinhos, por exemplo, África do Sul que é o país com mais moçambicanos na diáspora e com mais casos na África Subsaariana, sobre as medidas de contenção da doença. Aliás temos estado a reboque dos sul-africanos. E isso tem consequências. É que o Governo sul-africano decidiu fechar tudo e em Moçambique está tudo aberto a consequência imediata é que moçambicanos e sul-africanos atravessam a fronteira aos milhares quer os que já estão infectados, quer os que estão saudáveis.

Apesar de haver a obrigatoriedade de terem que observar a quarentena a verdade é que possivelmente poucos irão observar essa medida porque não temos capacidade de controlar essa quarentena. Nos bairros e aldeias aguarda-se festas de recepção dos migrantes acabados de chegar da África do Sul, de certeza, alguns que se calhar não vêm à terra natal há vários anos.

Se o Governo moçambicano tivesse igualmente decidido encerrar as fronteiras e um “lockdown” em todo o país ou na zona sul, os que estão na África do Sul haveriam de preferir ficar lá porque na mesma não teriam a liberdade que agora procuram em Moçambique, nos dois países. E dada a melhor capacidade da África do Sul tratar os doentes muitos prefeririam ficar lá.

Outra preocupação é que com o regresso dos moçambicanos as áreas de maior risco de contaminação pela doença deixam de ser as principais cidades e agora o risco se alastra para as zonas rurais, alguns dos quais recônditos como Machaze em Manica, Chibabava e Machanga em Sofala, alguns de Inhambane, Gaza e Maputo, porque é dessas regiões donde provém a maior parte dos moçambicanos que trabalham na África do Sul. Portanto em teoria uma melhor coordenação inter-estadual poderia ter evitado a massiva fuga de moçambicanos da África do Sul, o que pode sobrecarregar o nosso Sistema de Saúde já débil, apesar de ser responsabilidade do nosso Estado proteger e cuidar dos cidadãos nacionais, pelo que sempre teríamos em quaisquer circunstâncias que receber os nossos emigrantes.

Até agora a nossa capacidade de testagem está em menos de dois mil e só pode ser feita em Marracuene no Instituto Nacional de Saúde. Para se poder fazer na Beira e Nampula o país aguarda pelo donativo da China de 20 mil kits. Com a exposição gritante que nos colocamos por hesitação, 20 mil não será nada.

A justificação dada pelo Ministro da Saúde, Armindo Tiago, para o país não tomar medidas drásticas é que era preciso evitar o colapso da economia, mas a nossa economia haveria sempre de colapsar tal como está a acontecer com todas outras, pelo que sem tardar era só seguir a mensagem que circula nas redes sociais que diz “FALIDO RECUPERA-SE, FALECIDO NÃO”.

A outra coisa que não entendo é que muitas empresas e instituições têm a prerrogativa de tomar medidas de prevenção contra o COVID-19 e continuarem a funcionar mesmo no pico da epidemia, mas todos estão à espera que oficialmente haja um número que justifique tomar medidas severas, mas todos estamos conscientes de que esta doença vai nos afectar severamente. Porque não tomar já medidas, e garantir que tem funcionários colocados em protecção, para quando os que estiverem a trabalhar não puderem mais os outros serem chamados a continuar com as operações? É preferível funcionar agora a “meio gás” e manter-se a funcionar por muito mais tempo, do que funcionar a todo vapor agora, para dentro de poucos dias colapsar porque manteve todos os seus funcionários em risco.

Se como país e empresas não tomarmos agora medidas sérias de prevenção quando acharmos que chegou a altura de as tomar já estaremos aniquilados, pior porque a nossa capacidade de diagnóstico é bastante fraca.

Se acham que estou a mentir, analisem com muita calma o que se está a passar na Itália, na Espanha, na França e nos Estados Unidos de América.

Que Deus abençoe Moçambique!

 

 

Há dias fui visitar a minha terra natal kaManyiki, no distrito de Homoíne, província de Inhambane. O que me conduziu àquele espaço foi a saudade do lugar, do ambiente humilde, pacato e, principalmente, das pessoas: daquelas que me viram crescer e daquelas que me fizeram crescer. Com todas elas, enquanto vivi naquela aldeia, na infância, comuniquei-me na nossa língua local. Em kaManyiki, foi através do xitshwa que muitos como eu manifestaram a capacidade da fala ainda pequenos. Com o xitshwa tive as primeiras lições da vida. Aprendi, e apreendi toda uma forma de ser e estar na cultura e no meio social. Então, é graças à esta língua bantu que sou o que sou. Ainda que hoje saiba falar outros idiomas, a minha matriz cultural assenta na minha L1, a língua materna.

Evoco todo este raciocínio porque ao revisitar a minha aldeia natal, tantas décadas depois de lá ter saído, levei comigo, consciente ou inconscientemente, uma postura urbana, que tem no português, seu mecanismo de expressão. Aliás, além do português ser essa “língua significativamente urbana” é também considerada a língua de unidade nacional, pois é falada um pouco por todo o território moçambicano e, se quisermos, é a única língua oficial do país. Nas escolas, nos hospitais, nos tribunais, no Parlamento, nos escritórios ou em tantas outras instituições, públicas ou não, é fundamentalmente por via do português que nos comunicamos. A questão que se coloca é: o facto de a língua portuguesa ser oficial garante, realmente, a unidade nacional?

Não há dúvidas que em todas as cidades e vilas o português é a principal língua de comunicação. Por um lado, essa ocorrência é uma grande vantagem, pois, assim, seja de que região forem, as pessoas entendem-se e partilham de algo comum: a língua oficial, que, inclusive, permite-lhes entender-se com os outros cidadãos da CPLP. Ou seja, o português tem uma dimensão transnacional. Até aqui, tudo bem! O problema surge quando pensamos ao nível local, muito em particular. Na minha aldeia, a língua de unidade é o xitswa. Quando lá apareço e ponho-me a falar em português, falo, mas não comunico. Os velhos, museus vivos do lugar, e homens como eu, que lá vivem, revêm-se, todos eles, na língua local. As cerimónias tradicionais e religiosas são dirigidas através do xitswa porque essa, além do mais, é a língua dos nossos antepassados. Então, há certas coisas que não podem ser ditas em português. Não teriam valor nenhum e nem seriam reconhecidas.

À semelhança de kaManyiki, existem várias “aldeias” moçambicanas em que a língua local é a que realmente importa. Entretanto, a necessidade de sermos nacionais afasta-nos das nossas particularidades.

Não há dúvidas que o português é a tal língua económica e factor de oportunidades, mas nem tudo se mede por aí. A cultura e a identidade de um povo, que têm na língua o principal factor de exposição, são importantes e devem ser sempre consideradas. Cada cidadão moçambicano que tem o português como língua materna é, geralmente, mais um falante (fluente?) que as línguas bantu perdem. Concomitantemente, à medida que a cidade cresce, vão escasseando os lugares de aprendizagem das línguas locais. Então, da mesma forma que se investe no ensino por via do português, é necessário que se faça o mesmo com as línguas bantu, de modo que não haja nenhum tipo de conflito entre o local e o nacional.

O que concorre para esta falta de harmonia é o preconceito em relação às línguas bantu. Preconceito este, que herdamos do colono. Com efeito, quantos de nós não vedamos as crianças de aprender as nossas próprias línguas maternas (bantas), com as mais variadas alegações? Para muitos de nós, na verdade, o que importa é que a criança aprenda a ler e a escrever em línguas europeias. Ora as nossas línguas bantu para que servem?

Urge, caros leitores, mudarmos a nossa forma de ver as línguas. Não se deve criar zonas polares no nosso próprio país, nas quais, de um lado, está a “língua da cidade” e, do outro, as “línguas da aldeia”. Cada língua deve merecer a sua importância e sua dignidade, consoante o espaço e o contexto de uso. O que devemos é prepararmo-nos para aprendermos tantas línguas quantas quisermos e pudermos, porém sem esquecermos as que representam a nossa moçambicanidade. A unidade nacional, social e cultural, certamente, vai advir daí.

 

Na Copa Mafalala, não se “come a relva”, porque ela não existe. Nem a natural, nem a sintética. Mas nem a areia  que por vezes invade a boca dos jogadores, impede-os de demonstrarem o seu talento. O pano de fundo é a vivacidade, manifestações de amizade, reencontro entre velhos e novos.

Vem gente dos bairros circunvizinhos, os jogos são “a doer” e surgem voluntários para tudo. Técnicos de ocasião, cantineiros da zona prometendo “uma rodada”, controladores das invasões às linhas laterais, apanha-bolas, vendedeiras das redondezas…

Dos inúmeros espaços que “pariram” muitas estrelas – com Eusebio à cabeça – aquele campinho vai resistindo, como símbolo e recordação de um tempo em que os espaços livres não eram para o “business”!

O campo tem dimensões reduzidas e por isso só se pode jogar 7 contra 7. O árbitro dirige o jogo com os seus auxiliares a controlarem o público. As linhas praticamente não se vêem e por isso as marcações são feitas pelos pés do espectadores. Mas há algo que por lá sobra e que infelizmente rareia no futebol federado: um empenhamento até aos limites!

Esta é a Copa Mafalala, prova com tradição naquele populoso bairro. Não falta um espaço para confraternizacão e música, onde os artistas se apresentam com muita força e intuição, com pormenores individuais à mistura, muitos deles dignos dos grandes palcos.

No dia da partida final, monta-se um palco, com convidados especiais, em regra “madalas-estruturas”, que outrora por lá jogaram.

CALÇÕES CURTOS
PARA CRIANÇA QUE CRESCE

E não é, seguramente, só a premiação final o que empolga os artistas, nem eventualmente o desfilar dos pormenores técnicos, ou mesmo uma eventual alta qualidade de futebol, difícil de obter num piso daqueles, mas a oportunidade do reencontro de velhos e novos amigos.

As “obrigatórias” enchentes, podem ser explicadas em duas palvras: tradição e festa!
Daí que….

Ninguém tem o direito de pôr em causa uma iniciativa que movimenta tantas emoções, tanto voluntarismo e voluntariedade dentro e fora das quatro linas. No espaço que resistiu aos tempos e aos ventos, num lugar que se orgulha de ter sido o berço de Eusébio e de outros craques, canta-se o Hino Nacional antes dos jogos e há futebol com uma entrega fora do comum. O espaço, que tem sido religiosamente (salva)guardado pelos residentes, na coração do místico bairro da Mafalala, nesses dias, transborda de alegria.

Toda a gente se envolve e colabora, com a rua fechada ao trânsito, as mamanas a reforçaram os “colmans” e os fogareiros, para uma festa que já tem tradição. E acontece, amiúde, festa com direito à invasão (ordeira) após cada golo, em todo o espaço circundante.

Mas o que há que repensar por parte dos “donos” desta prova, é que a criança que decidiram “parir” há mais de 3 décadas, já não cabe em tão pequenos calções. Assim, pelo menos em dia de final, os (e as) residentes terão que vestir o seu trajo de gala (“bana estilo”) e deslocarem-se ao Estádio do Mahafil, da Machava ou mesmo do Zimpeto, com direito a autocarro gratuito, com a intenção de se estender uma iniciativa que demostra perseverança à cidade toda.

Estamos perante a “consequência” natural de um crescimento. Nada de bater mais na criança. Ela já não cabe nos calções que outrora lhe serviam que nem uma luva. O torneio continuará com a sua tradicional designação – Copa Mafalala – mas a finalíssima tem que ganhar outra visibilidade, para exemplo de outros bairros.

UM BAIRRO HISTÓRICO

Eusébio Ferreira da Silva. Todos, sobretudo os mais velhos, já terão ouvido falar deste astro  moçambicano no futebol mundial. Pois o seu berço é esse bairro suburbano de uma complexidade cultural e histórica interessante: a Mafalala. Este nome correu o mundo graças à classe do “Pantera Negra”. Mas há mais: Samora Machel, Joaquim Chissano, José Craveirinha, Wazimbo, de entre outras figuras de proa da sociedade moçambicana, nasceram e cresceram naquelas labirínticas e estreitas ruas de um dos bairros mais carismáticos de Moçambique.

MISTICISMO E MULTICUTULARIDADE

Impressiona a multiculturalidade,  misticismo e convivência harmónica das gentes  da Mafalala, de tal modo que diversas instituições tenham considerado que existem potenciais factores de atracção turística cultural – as damas do tufo são uma atracção –  ombreando mano-a-mano com zonas tradicionalmente chiques como a da Marginal, ou a mítica Baixa da Cidade. Aliás, sabe-se que a Mafalala honrosamente ostenta o epíteto de primeiro bairro suburbano a ser habitado por populações consideradas indígenas no assombrado período colonial. Hoje, muitas das suas tradicionais casas de madeira e zinco foram substituídas por residências de cimento, mas o encanto daquele lugar mantém-se.

A confluência de valores religiosos, com o islamismo a pontuar em número de mesquitas e fiés devotos, é uma marca indelével que percorreu os tempos e suplantou as vontades globalizadoras dos centros cosmopolitas. O tufo, o artesanato, a agilidade e o menear dos corpos na dança da corda, as festas dos ritos de iniciação trazem um colorido muito especial a um bairro onde falta muita coisa, mas que “tem tudo para dar certo”.
 

 

 

Isaac Zita enquadra-se na geração prosadora emergente no pós-independência de Moçambique, escrevendo com base na herança deixada pela primeira geração de prosadores.

Márcia dos Santos

 

Corria o ano 2000 quando Márcia dos Santos apresentou e defendeu a dissertação com o título «As tensões de uma escrita emergente: Os Molwenes de Isaac Zita». Passadas quase duas décadas, leio o seu trabalho e deparo-me com uma voz apelativa a convocar-nos para a valorização d’Os Molwenes (AEMO, 1988). Eu diria que não se trata apenas da obra de Zita, mas de quantos escritores terão sido, digamos, vítimas do esquecimento. E, como é óbvio, este não será um problema apenas da literatura moçambicana, mas um pouco de outras literaturas africanas de língua portuguesa consideradas emergentes, só para situar a questão a nível dos PALOP. Por isso mesmo, leio, no trabalho de Márcia dos Santos, um apelo extensivo a essas outras literaturas.

Das motivações apresentadas pela pesquisadora para o estudo sobre Os Molwenes, gostaria de destacar duas. A primeira tem a ver com o facto de ter verificado que a obra e o seu autor não eram mencionados no curso de Linguística ministrado na Universidade Eduardo Mondlane, concretamente na disciplina de Literatura Moçambicana em Língua Portuguesa.

Não mencionar uma obra e o seu autor, ainda que não intencionalmente, pode significar que são vedadas as possibilidades de conhecimento de outras representações e, assim, de saber que representações têm sido conservadas ao longo de gerações de autores moçambicanos, africanos ou universais. O trabalho de Márcia dos Santos vai na contracorrente e mostra a utilidade de um compromisso em abrir as literaturas para o conhecimento de visões do mundo que, afinal de contas, tendem mais a aproximar os povos ao invés de os distanciar, como se regressássemos à Pangeia de todos nós, antes da deriva continental. Para além disso, o esquecimento de livros como o de Zita explica, por exemplo, por que este autor é desconhecido sobretudo a partir dos jovens da década de 2000. Mudam-se os tempos e as vontades também. Recorro a este ditado para evocar outra questão relativa ao desconhecimento d’Os Molwenes sobretudo por parte dos jovens.

Se, por hipótese, pensarmos que a obra de Isaac Zita pode criar a ilusão de nada sugerir às novas gerações, quiçá uma resultante da corrente realista em que se pode circunscrever a sua estética, teremos de admitir que os jovens de hoje, que tendem a viver no mundo da tela, com o facebook, instagram e whatsapp, encontrarão na obra dificuldades em manter-se na alienação a que se entregam, incapazes de assumir as dificuldades «reais» do dia-a-dia, as mesmas representadas, mais ou menos, em Os Molwenes. Neste sentido, correríamos o risco de assumir que livros como o de Zita representam hoje a falência do poder do texto literário, o de espevitar a nossa imaginação e criatividade, exactamente porque há uma mudança no tipo de leitores. Mas, e se editássemos o livro para uma versão e-book, mudaria alguma coisa? O índice de sugestão das histórias aumentaria ou diminuiria?

Não me parece que seja uma questão (apenas) de adaptar os livros de ontem às tecnologias de hoje. Pelo contrário, penso que os problemas de iliteracia que enfrentamos dizem-nos que Os Molwenes são mais importantes hoje do que ontem, e por razões que se predem, por exemplo, com a possibilidade de acesso a uma determinada cultura e com a formação do juízo crítico. Eles são, no mínimo, a consciência do passado que tem faltado a muita boa gente, sobretudo aos mesmos jovens. E, se me é permitido o cliché, como viver condignamente este presente sem a consciência do nosso passado?

Mas não mencionar uma obra é também, por si só, razão suficiente para se pesquisar as razões dessa omissão, e foi exactamente o que Márcia dos Santos fez. Mais recentemente, alinhando no diapasão da autora, Albino Macuácua escreveu o texto «O social em Os Molwenes de Isaac Zita: uma representação atemporal», publicado no livro de ensaios Literatura Moçambicana – Da ameaça do esquecimento à urgência do resgate (Alcance Editores, 2015). Isto pode significar que, do ponto de vista da crítica académica, continua a missão resgatadora de uma obra que, segundo Albino Macuácua, «é representada, mais particularmente, uma sociedade moçambicana, marcada pela pobreza e pela tensão, clivagem entre a classe desfavorecida e privilegiada.» (p. 35) Resta agora esperar que os editores moçambicanos ou qualquer outra entidade comprometida com a promoção do que existe de melhor da literatura moçambicana encontre nos trabalhos que vão sendo feitos sobre Os Molwenes razões suficientes para a reedição («imediata») da obra e a sua disponibilização aos moçambicanos e não só.

A segunda motivação a destacar da pesquisa de Márcia dos Santos diz respeito à polémica que se instalou depois da publicação d’Os Molwenes. A revista Tempo é testemunha da querela, como foi, aliás, de muitas outras. Recordo-me de dois textos publicados em 1989: «A “Raiva” de Isaac Zita ou “Dina” de L. B. Honwana?» e «O “plágio” de Isaac Zita», assinados por Irene Mendes e Nataniel Ngomane, respectivamente. Neste caso, o texto de Nataniel Ngomane é uma resposta ao texto de Irene Mendes. Ora, é no respaldo desta polémica que Márcia dos Santos, a partir da uma análise comparada com outros autores, para o que se serve, fundamentalmente, do conceito de Intertextualidade, vai desenvolver o seu trabalho com três objectivos: verificar as principais características da obra e assim mostrar em que medida Os Molwenes é uma obra original; mostrar que influências a obra de Zita sofreu de outros escritores; e definir o lugar do autor e da sua obra na história da literatura moçambicana. Seguindo estes objectivos, a autora compara Os Molwenes com Chiquinho, do escritor Baltasar Lopes, caboverdiano; com o Nós Matámos o Cão-tinhoso, do moçambicano Luís Bernardo Honwana; com Baixa e Musseques, do escritor angolano António Cardoso; com o Yô Mabalane, outro livro a reclamar a reedição, do escritor moçambicano Albino Magaia; com A Mãe, do russo Máximo Gorki; com a Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, outro narrador angolano; com Os Meus Amores, do português Trindade Coelho; e com Godido e Outros Contos, do escritor moçambicano João Dias. E eis que nos deparamos com uma parte da nossa Pangeia!

O trabalho de Márcia dos Santos permitiu, para além de dar uma «nova vida» aos Molwenes, reforçar a necessidade de um conhecimento amplo sobre o funcionamento do sistema literário, especialmente no que diz respeito à produção da obra literária e, finalmente, determinar e compreender as condições do surgimento, desenvolvimento e consolidação da ficção moçambicana, fixando as suas características dominantes. Com efeito, na sua conclusão, Márcia dos Santos salienta que Zita usa os vários tipos de narrador: o que participa nos eventos da história como personagem principal, o que dela faz parte como personagem secundária e o que teoricamente não faz parte da história. Digo «teoricamente» porque, ainda que não tenhamos a marca de um sujeito pessoalizado que diga «eu», em termos práticos, essa história deve ser concebida, ironicamente, como o resultado da produção de um sujeito cuja ambição é justamente ocultar-se. Um outro aspecto de conclusão é que Zita usa predominantemente personagens anónimas, para além de os contos do autor dialogarem entre si num exercício ou jogo de complementaridades.

Uma segunda linha da conclusão refere que Zita não só sofreu influências da obra de Luís Bernardo Honwana como também da escrita da geração de 60 da literatura moçambicana. Percebe-se, igualmente, a influência indirecta de obras de outros autores africanos de língua portuguesa, do realismo português e da literatura russa. Destaque-se, igualmente, que Zita não só se apropria de textos literários, como também da realidade moçambicana no que toca às questões da fome, da miséria, do trabalho árduo, da repressão, da morte.

A terceira e última linha da conclusão de Márcia dos Santos enquadra Isaac Zita «na geração prosadora emergente no pós-independência de Moçambique, escrevendo com base na herança deixada pela primeira geração de prosadores.»

Termino com um bem-haja a Isaac Mário Manuel Zita, escritor moçambicano que perdeu a vida em 1983, com apenas 22 anos. Apesar do seu desaparecimento precoce, quis o destino que Zita driblasse o tempo e legasse à literatura moçambicana uma obra bela, tecida com o pulsar da própria vida.

 

 

 

Márcia dos Santos é também conhecida como poetisa, assinando com o pseudónimo de Rinkel. Publicou Almas Gêmeas (1998), Revelações (2006) e Emoções e Abstracções (2011).

Dados sugerem que África é o terceiro continente mais extenso do mundo, depois da Ásia e da América. Com cerca de 30 milhões de quilómetros quadrados, cobrindo 20,3 % da área total da terra firme do planeta alberga o segundo maior universo populacional da Terra, fora os recursos de vária ordem de que é pejado.

Apesar desse potencial, a maioria dos países africanos situa-se na linha dos mais pobres do mundo, com problemas de subnutrição, analfabetismo, salubridade e baixas  condições de saúde. Hoje, não pode haver dúvidas de que o corona vírus chega para destapar os telhados de vidro das elites africanas.

Depois do tempo que Moçambique se manteve invicto da grassa do Covid-19 pelas fronteiras do mundo, ontem a ficha caiu, um caso importado do Reino Unido. Com o vírus na Europa, pela primeiríssima vez, na memória de África e do mundo, as elites políticas e/ou económicas do pós-independência batem-se por ficar em casa, ou regressar ao continente para o alcance de melhor ambiente de saúde.

Embora existam países africanos com qualidade de vida e saúde razoáveis, Moçambique, com 154 distritos, assemelha-se a tantos outros que comportam desigualdades no acesso à saúde moderna. Esses países, seguros da possibilidade de gozo nas Europas e outros mundos adiante, têm o sistema de saúde que têm. Entre esses distritos que perfazem Moçambique, a maioria ainda depende da medicina tradicional, fora uma vasta gama de crenças que distraem a mazelas psicológicas das populações, a mercê de problemas de outra índole, mormente social e económico. Calculemos, alguns infectados pelo Covid-19 à mão de curandeiros e maziones…

Porque o continente africano, quase sempre, representou uma espécie de cemitério, onde depois da vida além-fronteiras, com direito a compra de casas e tratamento médico, as elites económicas (quase sempre o mesmo que políticas), às sempre desajudadas populações, a viver na precariedade de condições de saúde, face ao vírus que ora grassa a Europa, devem, de facto, assumir a nova fatalidade, partilhar a desgraça de uma doença trazida pelas elites, no regresso a casa em busca de um túmulo ou de um ambiente menos afectado pelo Covid-19.

E porque esse regresso, pelo menos desta vez, não será de simples afago de saudades e degustação da lembrança do madhledhlele, ou então cair numa espécie de última ceia, esperemos que o Covid-19 traga o melhor de si para África: a ideia da falibilidade da boa vida na Europa. Desse modo, a pandemia conseguirá mobilizar os líderes africanos, mudar-lhes a consciência para a visão de que é preciso melhorar o Sistema de Saúde dos seus países, para níveis da que buscam nas Europas, como torná-la acessível para todos, visto que as clínicas privadas sempre constituíram uma outra barreira entre os dois mundos que vivem em África, em Moçambique alegoricamente representados na Av. Julius Nyerere, de um extremo ao outro.  

Portanto, de que vale ter nascido em um dos mais extensos continentes, o segundo  mais populoso da Terra, com imensidão de recursos, mas sem nenhuma vontade política de investir na educação, na melhoria de condições de vida e de saúde? Caso para buscar Drummond de Andrade e situá-lo nesta fase de marcha da vida das elites africanas na Europa: 

E AGORA, JOSÉ?

A festa acabou,

a luz [ou Europa] apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,(…)

 e agora, José?

 

A terminar, dizer que este não é momento de deixar os moçambicanos a entreterem-se com práticas mágico-religiosas. As rádios, as televisões, os próprios líderes políticos, incluindo os da oposição que parecem ter eclipsado, as autoridades governamentais, o corpo de saúde nacional, etc., deverão redobrar esforços na difusão de mensagens úteis à prevenção e de esperança, bem diferente de alguns fatalismos pululantes nas redes sociais. Pois, de facto, o Nosso Maior Valor é a Vida, e por que não, a integridade física!

 

 

 

 

 

Chivavice foi para a cidade grande em busca dos segredos do saber. Partiu com a cabeça cheia de sonhos. Quer voltar munido do engenho e da sabedoria necessária para ajudar a nossa aldeia a voar nas asas do tempo.

Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que ele seguiu a estrada com uma mochila às costas. Esmagou o meu peito contra o seu. Sorveu-me os lábios. Fiquei-me pelos bicos dos pés para entrelaçar os meus braços à altura dos seus ombros largos. Deixou a minha firme estrutura feminina a desmoronar-se. O abraço foi a confissão e expressão da minha entrega a um amor que, esculpido na aldeia, tinha de ser alimentado à distância.

«Eu volto para ti, meu amor. Eu volto para te amar, casar e fazer de ti a mulher mais feliz do mundo», como se o tal mundo começasse e terminasse apenas onde os nossos corações desaguam os seus enlaces de ardor e paixão.

E partiu!

Para trás fiquei. Fantasias alimentaram os meus sonhos em noites intermináveis de um luar sem brilho. Rios de lágrimas foram enxugados na almofada do meu canto.

Reservei-me para um encanto, um fulgor e uma paixão que só ele me podia dar. Cada minuto virou uma eternidade. Cada suspiro, um choro. Guardei-me só para ele. 

E hoje chegou!

Veio de férias. Estranho em pleno mês de Março, mas isso lá ele saberá explicar. O que eu sei é que ele chegou.

A pressão que a minha mãe me impõe, nos afazeres domésticos, toma-me o dia por completo. Mas em cada prato que lavo, em cada pedaço de roupa que enxugo no pedregulho das traseiras da palhota, ou de cada vez que coloco a panela de barro por cima da lenha em labaredas, apenas sonho com o abraço envolvente do meu macho.

A noite é que logra desarmar a minha mãe. Não há mais tarefa alguma que me possa dar. A sua energia, vivacidade e vontade de querer ver tudo em ordem é vencida pelo sono e cansaço. As suas pálpebras rendem-se e ela tomba nos braços do meu pai. Amanhã também é dia, lá diz o velho adágio popular.

Eu é que não espero pelo amanhã. Quero desbravar as sombras da noite. Conheço bem os atalhos da aldeia e palmilho-os ao encontro do meu Chivavice. Atravesso o vento forte que me chicoteia a face e faz esvoaçar o meu vestido de seda. Chego à sua casa quando todos já dormem. Os cães não ladram. Conhecem o meu cheiro tal e qual eu conheço a palhota do meu homem.

Não preciso de bater a porta. Ele sente a minha presença. Entrego-me aos seus abraços. Esborracho os meus seios pontiagudos no seu peito. Os seus lábios colam-se aos meus e não me deixam dizer palavra. Caio no seu braço que me envolve e puxa-me para a berma da cama. A luz ténue da lamparina esculpe as nossas silhuetas transformadas numa sombra que se projecta na parede de argila.

«Eu te amo, filha.»

Não respondo. Fecho os olhos e a minha face simula um sorriso que não explode. Sinto as suas mãos percorrendo cada pedaço do meu corpo. Estremeço. Não sei o que fazer. Chivavice toca-me com ternura. É tudo o que sempre quis, mas o meu entusiasmo amaina quando confrontado com a coragem que agora se impõe. Mas eu quero ser mulher! Abro os olhos e falo para a penumbra:

«Vai com calma, amor. É a minha primeira vez.»

Mais do que acalmá-lo as minhas palavras espicaçam-no. Sinto a sua masculinidade a roçar-me a feminidade. Volto a fechar os olhos, cerro os dentes, contraio todos os meus músculos e peço a Deus que me dê toda a força de que preciso. Quero ser mulher.

Uma forte e inesperada rajada de vento levanta a cobertura da palhota pelos ares. A luz da lamparina apaga-se. Tudo o resto abana: a estrutura da casa, as roupas e os lençóis. Quem não abana é Chivavice que se agarra a mim com toda a sua força. Enterra-se no meu eu e entra em transe independente à chuva torrencial que derrama sobre os nossos corpos sacudidos pelo vento.

Já não sei o que sinto. Não sei se o que emito é grito de dor ou gemido de prazer. Ou são as duas coisas. A verdade é que não sei até que ponto resistiremos à força do vento. A chuva junta-se ao massacre. É torrencial. O fôlego pendular de Chivavice só cessa quando, pela primeira vez na vida, sinto um quente algo pastoso percorrendo-me as entranhas.

Esperei a vida inteira por este momento. Nunca imaginei que fosse ser à chuva e ao ritmo de um vendaval. Não sonhei com rosas a banhar a minha primeira cama, mas queria, para mim, algo menos tumultuoso. Deus quis que assim fosse e assim foi.

Chivavice está ofegante. Eu tapo a cara com as mãos enquanto as gotas de chuva desfazem-se por cima do meu corpo. Ambos levamos tempo para perceber que a água não só entra por cima como também por baixo, pelos lados e invade, por todos os lados, o que resta da palhota. As paredes maticadas cedem uma a uma.

Temos que fugir para um lugar mais seguro. Puxa por mim e tentamos correr de mãos dadas. Ele é mais forte, rápido e mais veloz. Eu arrasto-me como se as minhas pernas estivessem carregadas de chumbo.

Não sei se são vozes, mas ouço sons estranhos imiscuindo-se por entre o canto do vento forte e o resmungar dos céus. Olho para o lado para descortinar o ruído. Tropeço. A minha mão solta-se abruptamente da de Chivavice. Não sei se chego ao chão, mas sou colhida por um forte golpe na cabeça. As minhas mãos fraquejam. As pernas e o resto do corpo deixam de me obedecer. As pálpebras ficam pesadas e lutam contra a escuridão da noite e da vida que as forçam a vergar.

Ainda me lembro de sentir os braços de Chivavice me carregando e a voz dele a gritar em pânico. Depois tudo se apaga: a chuva deixa de existir; a trovoada deixa de ecoar; o vento deixa de cantarolar. Apenas o silêncio e o escuro dominam o meu ser.

***

Uma nuvem turva volta a encher-me os olhos. A muito custo consigo mexer as pálpebras. Os meus neurónios gravitam em torno do nada e tudo em minha volta circula. Curioso que estou rodeada de branco: o tecto, o chão, as paredes e até as pessoas que vejo são todas brancas e vestidas de branco. Será que cheguei ao reino dos céus?

Depois da visão fusca sinto que o meu corpo descansa num colo. Uma mão passa-me pela testa e depois escuto uma voz familiar:

«Ah acordou! Deus é grande!»

Ergo os olhos. Vejo um enorme vulto negro. Sempre me ensinaram que os anjos eram brancos. Estarei no inferno? Sim. No mesmo inferno de onde nunca parti. No inferno do vendaval, cheias e trovoada. No inferno da terra. A mão que me acaricia é de Chivavice. Duas gotas de lágrimas tombam sobre o meu corpo. São do meu homem, que volta a dizer:

«Deus é grande!»

E Deus é realmente grande. Protegeu-me. Insuflou as energias necessárias para que Chivavice aguentasse comigo no colo cruzando correntes de água, esquivando-se das árvores que tombavam e mantendo equilíbrio contra os duzentos quilómetros por hora eólicos. O rapaz desesperou-se, chorou e buscou, do além, todas as forças até desaguar nesta tenda-hospital de emergência.

Os meus olhos abrem-se completamente e brilham. Não gemo de dor. Não sorrio. Não lacrimejo. Apenas estendo o meu coração num manto branco para que Chivavice sonhe com o poema de uma vida.  

 

A Resolução n.º 5/2019, de 20 de Junho, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (“CUACPDP”), disciplina, no seu capítulo III, a matéria relativa a “Promoção da Cibersegurança e a Luta contra o Cibercrime”.

De entre as directrizes emitidas pela CUACPDP que os Estados-membros devem adoptar nos correlatos ordenamentos jurídicos internos, através da aprovação de diplomas legais que as concretizem, o capítulo relativo à “Promoção da Cibersegurança e a Luta contra o Cibercrime” constitui, contrariamente ao que se sucede com os outros dois capítulos (“Transacções Electrónicas” e “Protecção de Dados Pessoais”), aquele que, no ordenamento jurídico moçambicano, mais carece da sobredita regulação, sendo que muitas das aludidas directrizes corporizadas no capítulo III da CUACPDP, não encontram, ainda, manifestação em formato legal da sua consagração.

Sublinhamos, outrossim, fazer notar, de forma enfática, que, no concernente aos restantes dois capítulos (“Transacções Electrónicas” e “Protecção de Dados Pessoais”), é o primeiro o que mais mereceu regulação na ordem interna por parte do legislador moçambicano (avultando, desde logo, a Lei de Transacções Electrónicas [“LTE”] – Lei n.º 3/2017 – e o Regulamento do Sistema de Certificação Digital de Moçambique [“RSCDM”] – Decreto n.º 59/2019 – cujas algumas temáticas por ambos os diplomas legais disciplinados, foram objecto de análise nas edições anteriores, sendo ainda curial frisar que, de entre os dois, o regime do último capítulo essencialmente decorre directamente do preconizado na Constituição da República [“CRM”] – e tenuemente regulamentado entre os artigos 63 a 65 da LTE, que foi, aliás, objecto de debruço exclusivo na “Parte VI” da presente série).

Algumas matérias relativas à cibersegurança, cujas directrizes constam da CUACPDP, já exibem a sua fisionomia no ordenamento jurídico moçambicano, sendo que, neste artigo, ocupar-nos-emos de uma das suas temáticas: “medidas legais ao combate do cibercrime”, a qual, nos termos da CUACPDP, subdivide-se em quatro vectores: (i) Legislação de Combate ao Cibercrime (ii), Autoridades Reguladoras Nacionais, (iii) Direitos dos Cidadãos e (iv) Protecção de Infraestruturas Críticas.

Ao longo desta série, temos procurado chamar atenção que, a despeito de a CUACPDP ter sido introduzida em Moçambique após a sua ratificação em 2019, através da Resolução n.º 5/2019, a respectiva adesão ocorreu em 2014, sendo por isso que que alguns dos diplomas legais aprovados em cumprimento dos quatro vectores referenciados no parágrafo anterior, ocorreram antes da sua ractificação (em 2019), como se sucede com a Legislação de Combate ao Cibercrime (introdução dos “crimes informáticos” no Código Penal de 2014), Autoridades Reguladoras Nacionais (Lei n.º 2/2017 – Cria o Serviço Nacional de Investigação Criminal “SERNIC”) Protecção de Infraestruturas Críticas (Aviso do Banco de Moçambique que estabelece as Directrizes de Gestão de Risco, abreviadamente designadas por DGR – Aviso n.º 4/GBM/2013).

Antes de quaisquer desenvolvimentos, e como forma de melhor se precisar os contornos da temática a ser abordada, mostra-se curial a conceptualização, sintética, de figuras nucleares associadas à retromencionada temática. 

O termo cibersegurança (segurança do ciberespaço), que constitui uma justaposição entre as expressões “ciber” (que exprime a noção de Internet ou de comunicação entre redes de computadores) e “segurança” (cuja conceptualização não oferece dificuldades de percepção), traduz-se no conjunto de meios e tecnologias que visam proteger, da produção de danos e intromissões ilícitas (não autorizadas), programas, computadores, redes (Bluetooth e Wi-Fi), e dados. Aos elementos elencados atrás, acrescentam-se, também, os chamados dispositivos inteligentes, onde se incluem os smartphones, televisores e vários dispositivos pequenos que constituem a Internet das Coisas (“Internet of Things” – “IoT” – aqueles objectos conectados à internet e entre si através da rede, munidos de sensores, circuitos electrónicos e softwares e capazes de colectar, processar, armazenar e trocar dados). Portanto, cibersegurança é a protecção de sistemas de computador contra roubo ou danos ao hardware, software ou dados electrónicos, bem como a interrupção ou perturbação dos serviços que fornecem.

E porque o prefixo “ciber”, conforme ilustramos, deriva da Internet ou de comunicação entre redes de computadores (sem nos perdermos de vista relativamente aos demais dispositivos que, em função do recrudescimento avassalador das TIC’s vão surgindo ao longo dos tempos, como, por exemplo, a “IoT”, estaremos, essencialmente, em face de cibercrime sempre que essa conduta delituosa (crime) for cometida com recurso/intermediação de meios tecnológicos/digitais, enfim, com base nas TIC’s.

Em consonância com a determinação plasmada no n.º 1 do artigo 25 da Convenção, cada Estado-parte deve adoptar as medidas legislativas e ou regulamentares que julgar eficazes, considerando como infracções criminais substantivas os actos que afectam a confidencialidade, integridade e disponibilidade e a sobrevivência dos sistemas das TIC’s, os dados que eles processam e as infraestruturas de redes subjacentes, assim como as medidas consideradas eficazes para a busca e julgamento de criminosos.

Rememora-se que, na Parte VI da série Direito Digital na ordem jurídica moçambicana, oportunamente, salientamos que confidencialidade, a integridade e a disponibilidade são os principais atributos da segurança de informação, umbilicalmente vinculados à Protecção de Dados. E é, essencialmente, mas não só, no esforço que os Estados vêm realizando, visando à defesa e protecção de dados pessoais que, em cumprimento dos alvitres da Convenção, Moçambique introduziu normas conducentes ao combate ao cibercrime, na medida em que, conforme é mundialmente assente – e fizemos menção a este facto na Parte I da presente série – foi a sofisticação tecnológica dos meios de cometimento de crimes, que mais impulsionaram o surgimento do Direito Digital. Os delinquentes mais arrojados viram nas TIC’s, e expedientes equiparáveis, um mecanismo de ludibriar os sistemas de prevenção e repressão criminal, principiando com a proliferação de práticas delituosas, as quais encontraram muitos ordenamentos jurídicos em contrapé, como se de emboscada se tratasse, não se lhes dando a mínima hipótese de se defenderem dos surpreendentes meios sofisticados manuseados por aqueles criminosos.

Como forma de dar resposta adequada a essa nova realidade, o Código Penal (CP) ainda vigente – aprovado pela Lei n.º 35/2014 – trouxe figuras inovatórias no combate ao cibercrime, no Capítulo dos “crimes informáticos”, tais sejam: intromissão através da informática (artigo 316) “incitação de menores por meios informáticos (artigo 317), furto informático de moedas ou valores” (artigo 318), “burla por meios informáticos e nas comunicações” (artigo 319), “violação de direitos de autor com recurso a meios informáticos” (artigo 320), “escuta não autorizada de mensagens” (artigo 321), “violação de segredo de Estado por meios informáticos” (artigo 322), “instigação pública a um crime com uso de meios informáticos” (artigo 323).

Por sua vez, o CP recentemente aprovado pela Lei n.º 24/2019 (ainda no casulo da respectiva vacatios legis) traz figuras como os crimes de “devassa da vida privada” (art. 252), “base de dados automatizada” (art. 254), “gravações ilícitas” (art. 257), “burla informática e nas comunicações” (art. 289), “fraudes relativas aos instrumentos e canais de pagamento electrónico” (art. 294); chama-se também à colação determinadas formas de cometimento dos crimes de “difamação” (art. 233) e “injúria” (art. 234), na parte em que a Lei refere-se a «qualquer outro meio de publicação»; a secção do CP respeitante à “falsidade informática e crimes conexos”, nos quais se incluem os crimes de “falsidade informática” (art. 336), “interferência em dados” (art. 337), “interferência em sistemas” (art. 338), “uso abusivo de dispositivos” (art. 339).

Se acima se notaram os esforços legiferantes empreendidos no direito substantivo penal, manifestados na tipificação como crimes de condutas delituosas que ofendem bens e valores jurídicos protegidos pelo Direito Penal Digital/Cibernético (desde a honra, reputação, bom nome e imagem, passando pela segurança de dados e desembocando na reserva da intimidade da vida privada), cuja valoração axiológica faz redundar a ofensividade e lesividade das normas desobedecidas na mais extremosa pena estabelecida em Moçambique – a de prisão –, igual empenho é também visualizável na dotação, ao direito adjectivo penal, de mecanismos tecnológicos vinculados à cibersegurança no novíssimo Código do Processo Penal (CPP), aprovado pela Lei n.º 25/2019, no regime consagrado para as “Escutas Telefónicas”, um meio especial de obtenção da prova, através do qual se permite a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas de suspeitos (art. 222 do CPP), extensível às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente telemóvel, correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (art. 225 CPP), em plena harmonia com o que já vinha preceituado nos arts. 17, 18 e al. a) do art. 21 da Lei que cria o SERNIC. 

Dentro das medidas legais ao combate do cibercrime e no que concerne ao vector relativo às Autoridades Reguladoras Nacionais, o n.º 2 do artigo 25 da CUACPDP insta que «cada Estado-parte deve adoptar medidas legislativas e ou regulamentares que julgar necessárias para conferir `as responsabilidades específicas às instituições – quer as instituições existentes quer novas – assim como os funcionários destas instituições que forem designados, a fim de lhes conferir autoridade estatutária e a capacidade legal de agir em todos os aspectos da aplicação à cibersegurançanao se limitando a dar respostas aos incidentes nestes domínio, coordenação e cooperação em matéria da justiça, investigação forense, julgamentos, etc.», directriz que encontra acolhimento no estabelecido no que tange às competências do SERNIC, preceituados na alínea g) do artigo 6 e alínea c) do n.º 1 do artigo 7, ambos da Lei que cria o SERNIC que atribuem à este organismo poderes funcionais para investigar crimes informáticos e estabelecer ligações com a INTERPOL no que à cooperação judiciária diz respeito,

Ao abrigo desta cooperação judiciária, merece destaque o estatuído no artigo 23 da Lei n.º 21/2019 (aprova os Princípios e Procedimentos de Cooperação Jurídica e Judiciaria Internacional em matéria Penal) nos termos do qual, os Estados podem «utilizar na transmissão dos pedidos [de informação] os meios telemáticos adequados, desde que estejam garantidas a autenticidade e a confidencialidade do pedido e a fiabilidade dos dados transmitidos», no âmbito da troca de informação sobre detidos/suspeitos/arguidos relativamente aos quais se impõe a respectiva extradição, de Moçambique para outros Estados e vice-versa.

Por fim, ainda no que diz respeito às medidas legais ao combate do cibercrime e no que concerne ao vector referente à Protecção de Infraestruturas Críticas, merece-nos realce o propugnado no n.º 4 do artigo 25 da CUACPDP, nos termos do qual «cada Estado-parte deve adoptar as medidas legislativas e ou regulamentares que julgar necessárias para a identificação dos sectores considerados sensíveis para a sua segurança nacional e o bem-estar da economia e dos sistemas das TIC’s, destinadas a funcionar nesses sectores como infraestruturas críticas de informação» que constitui uma directriz que vai ao encontro do que já estabeleciam as Directrizes de Gestão de Risco, abreviadamente designadas por DGR, ínsitas no Aviso n.º 4/GBM/2013, do Banco de Moçambique.

Aqui, chama-se novamente a atenção que, a despeito de CUACPDP ter sido ratificada em 2019, Moçambique adoptou (sem ter ratificado) a adesão às normas da Convenção em 2014, e antes mesmo de a ter ratificado e tornado vigente no seu ordenamento jurídico – nos termos do n.º 1 do artigo 18 da Constituição da República, que estabelece que «os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique» – como consequência do reconhecimento da necessidade de implementação da “Política da Sociedade da Informação (Resolução n.º 17/2018, que reformou e revogou a “Política de Informação” ora aprovada no ano 2000), aprovou, antes, em 2013, as DGR, tornou vigente, em 2017, a Lei que cria o SERNIC e deu validade jurídica, em 2014, ao CP aprovado pela Lei n.º 35/2014, não podendo, por isso, estranhar-se a diacronia existente entre o espírito da CUACPDP e as Leis que cumprem as suas directrizes – no sentido de regulamentarem um diploma que só entrou em vigor depois depois das normas regulamentadas –, pois estas Leis, além de terem, algumas, sido aprovadas antes da adopção (sem ratificação) da CUACPDP, também possuem como respaldo a Política de Informação ora aprovada no ano 2000.

 

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

O novo coronavírus chegou a mais de 120 países e infectou mais de 127 mil pessoas. O alarde é global, e as suas consequências transcendem à ameaça à saúde pública. A economia global foi afectada, a religião e a educação, idem. 

Grande parte das nações ao redor do mundo, elevaram nas últimas semanas medidas de luta para combater a proliferação do vírus, preparando-se para as diversas consequências. Em Moçambique, entre as várias medidas, o governo suspendeu a organização de eventos com mais de 300 pessoas: uma medida pontual para o contexto, mas prejudicial para vários sectores, principalmente quando não é acompanhada por um plano de subsistência. 

O sector da cultura, é um dos mais afectados, vários espectáculos e eventos artísticos de diversas categorias foram cancelados. As restrições esvaziaram a agenda cultural e deixaram os artistas, produtores, agentes culturais e técnicos sem trabalho, e as consequências são fatais. 

Como diria um amigo músico, que partilhamos o mesmo grupo virtual, “em Moçambique, ainda não se registrou casos da pandemia, mas já estamos a morrer de fome…”. Uma questão importante para reflectir. Grande parte dos artistas dependem exclusivamente da aglomeração de pessoas para sobreviver “fazer o seu pão semanal, pagar água, energia” e esta medida tem implicações drásticas. 

Perante este cenário e 5 dias depois do anúncio da medida, a falta de um plano concreto por parte do Ministério da Cultura e Turismo é preocupante. Enquanto isso, países como Alemanha dão um passo extra, prometendo assistência financeira a instituições de arte que enfrentam incertezas em meio a queda no turismo e na economia provocada pela série de restrições a eventos com elevada concentração de pessoas; França suspende a cobrança de contas de água, luz, gás e cria um pacote de apoio financeiro às empresas (incluindo artísticas); EUA vai emprestar-sem juros – e doar dinheiro a pequenas empresas (onde as galerias de artes são elegíveis) desde que demonstrem que as suas vendas caíram em 25% ou mais desde o surto; Chile conta com um fundo nacional de artes que pode ser aplicado para questões de emergência, entre outros exemplos.

E em Moçambique? Quem salvará o sector das artes e ao artista? 

A resposta deveria ser óbvia “o Ministério da Cultura e Turismo”, mas existem (várias) incertezas. Arrisco-me, e com alguma base confiável, a dizer que as autoridades não têm noção de quantos eventos artísticos foram cancelados, que impacto tiveram na vida do artista e de toda a cadeia de produção, e qual é a alternativa de subsistência dos mesmos para os próximos dias. Não há números que quantificam as perdas que podem estar em causa e sem essas cifras, dificilmente pode-se pensar em soluções. E isso desvenda um problema antigo, da falta de rigorosidade no registro e controle dos eventos artísticos. 

É evidente que as medidas foram tomadas pelo Presidente da República, mas a sua aplicação depende da colaboração ministerial. Para tal, cada ministério deveria fazer o levantamento das implicações de cada medida. Restrição de eventos com mais de 300 pessoas (?) Certo, ajuda no combate, mas que implicação prática tem essa medida? Principalmente para os que dependem da aglomeração de pessoas para sustentar-se? No caso dos artistas, agentes culturais etc, que medidas estratégicas podem ser tomadas para evitar a disrupção do sector? Este é um questionamento técnico-ministerial que deveria ser feito anteriormente e anunciado após a comunicação do chefe do Estado. 

Num país em que o paradigma de governação cultural restringe-se na promoção das artes (o que venho criticando), no mínimo deveríamos ter um sector cultural estruturalmente organizado. Com registros e controle dos eventos, fundos de promoção artística, quantificação dos artistas, sólida e constante monitoria de eventos artístico, etc. O que não acontece. Eis, a vergonha dos eventos que desfilam por aí. As crianças participam em eventos de adultos, o deficiente não tem informações sobre a acessibilidade de cada evento, os produtores ditam as suas próprias regras, a pirataria parece mais legal que ilegal, etc.

Voltando às consequências da pandemia. Quais são as possíveis soluções? 

Antes de tudo, é preciso ter em conta os diversos grupos artísticos que temos, vou destacar três: uma elite artística que dada a sua condição privilegiada, experiência e trajectória possui outras bases de sobrevivência (publicidades com empresas, investimento pessoal etc) e dependendo do período, podem não ser afectados de maneira drástica. Ao contrário, há um outro grupo maioritário, que vive apenas da arte e depende exclusivamente dos espectáculos semanais para sobreviver, promovem espectáculos na sexta e sábado para pagar as contas da semana seguinte. E por fim, estão os técnicos, centros culturais e galerias que dependem dos dois anteriores. O segundo, é o mais vulnerável e deve constituir a nossa maior preocupação, sem descartar os outros. 

Alguns dirão que o artista deve ter a capacidade de gestão pessoal. Sim, concordo, mas é também obrigação do Estado (e isso vem explícito na política cultural) criar condições que permitam maior sustentabilidade das artes e dos artistas. Infelizmente, não temos nenhuma estrutura sustentável que poderia servir de base para responder às necessidades do sector em situações de emergência. No entanto, o ministério (em coordenação com as direcções províncias) ainda pode tomar algumas medidas urgentes: 

1. Levantamento a todos os níveis (ainda é possível) dos eventos cancelados durante este período e a sua natureza; 2. Quantificação das perdas e as suas implicações na vida do artista e/ou da cadeia de produção envolvida. 3. Procurar mecanismos para convencer o governo a reduzir (no mínimo) às taxas de cobrança de contas água, energia e outros possíveis impostos aos artistas afectados e/ou às centros culturais. 4. Caso se intensifique, estabelecer acordos com alguns bancos e criar um pacote de empréstimo bancário para às empresas artísticas que registarem prejuízo elevado (de 30%). E para o futuro, reorganizar o sector a todos os níveis e criar acções robustas que influenciam na mudança do actual paradigma de actuação. 

Se realmente temos um compromisso com a promoção das indústrias culturais e criativas, com a economia da cultura e outros termos emergentes, então será inevitável que o Estado intervenha para proteger a frágil economia da cultura de uma disrupção que já está sendo fatal. É hora de dar o exemplo na valorização das artes e do artista.

*Consta-me que o ministério terá encontro com alguns produtores da cidade de Maputo. Que a iniciativa produza resultados e que seja replicada nas províncias… Viva a cultura! 

A vós, escravos das artes e cultura, os meus pares: um forte abraço!

   Nesta zona do Chipepfane teve lugar um evento que muito teve de insólito pela sua natureza e por ter dado tanto que falar que até envolveu a Polícia, o Exército e a Pide-DGS. Fora aquela a primeira vez que em todo o subúrbio ocorria semelhante fenómeno. O caso passou-se assim:

   Na Avenida Craveiro Lopes havia uma paragem de autocarros que era notória pelo seu movimento. Situava-se precisamente no início da rotunda que conduzia ao Aeroporto Gago Coutinho. Era o ponto de cruzamento das populações, a caminho do bazar do Adelino, ou do bairro de Mavalane, e – pois então?! – de clientes que vinham à procura de novas sensações nos compondes de prostitutas, crescidos nas proximidades dos escritórios do que se chamava “Urbanização”. Aquele homem destacara-se daquela multidão, proveniente donde não se sabe, carregado de um cesto de verga, no qual transportava uma mercadoria devidamente camuflada. Postou-se na paragem, tal como outros passageiros, para aguardar pela chegada do autocarro. A hora era das dezassete e trinta, e o movimento de gente nos passeios crescia; ora eram estivadores que deveriam pegar a faina às dezoito, trabalhadores das redondezas, vendedeiras do mercado e “mulheres da vida” madrugadoras a sonhar com ganhos avultados nos cabarés da Rua Araújo. O autocarro finalmente chegou. Um a um, os passageiros foram embarcando ordeiramente. O homem do cesto fez o mesmo, sempre a segurar com visíveis cuidados a carga que lhe pesava nas mãos. Ocupou o banco traseiro e aí permaneceu embora com evidente nervosismo. Terminado o embarque, o cobrador deu sinal para se retomar a viagem.

   Mas eis senão quando, precisamente na paragem defronte à loja do Chilepfane, um galo  resolveu  exibir as suas habilidades canoras com um sonoro có-có-ró-côôô!… que emergiu do cesto daquele passageiro, para espanto e gáudio dos passageiros. A tripulação do machimbombo não quis crer que aquele canto fora emitido do interior do veículo. O cobrador deu sinal de paragem imediata: havia clandestinos a bordo, e um deles era um galo! Nada  lhe custou identificar a proveniência do problema, visto que o galináceo repetiu o canto, desta vez  mais sonoro e prolongado. Ao cobrador não restava outra alternativa senão convidar aquele passageiro a abandonar o autocarro. Ao que este fez ouvidos de mercador.

   “Será que você não sabe que é proibido embarcar animais nos autocarros? Faça o favor de sair imediatamente”.

   Silêncio e imobilidade foi a resposta do interpelado. Então teve lugar aquele jogo de empurrões, uma escaramuça movimentada entre ambos; o passageiro a reivindicar direitos de fazer-se transportar naquele autocarro na companhia dos seus animais que, depois apurou-se, eram cinco frangos, um coelho e um pato. Como a refrega atingissse proporções que o cobrador era incapaz de superar, o motorista abandonou o volante e intrometeu-se na luta como uma reserva de força. A batalha ganhou dimensões por ninguém imaginadas. Já no passeio, o passageiro largou a encomenda, para disponibilizar as mãos à luta. Derrubou o cobrador no chão, e esmurrou-o com violência ao ponto deste deixar verter o saco das moedas das cobranças que até ali fizera. Foi outro pandemónio. Passageiros que iam embarcar esqueceram-se da honestidade e envolverem-se num tumulto em que cada um queria apanhar o maior número possível de moedas. Uma barafunda!

   Os passageiros já a bordo estavam a ficar agastados com o atraso. Os estivadores, que eram a maioria, levantaram os seus protestos. “Eh, estamos a atrasar. Vamos embora. Temos que pegar no serviço às dezoito, senão vamos arranjar problemas com os chefes. Vamos embora!”

   Dito e feito: um homem corpulento destacou-se de um banco do meio e, com modos de salvador, ocupou o lugar do motorista. Daí a retomar a marcha ao veículo foi questão de um minuto. Quando o verdadeiro motorista se apercebeu de que o autocarro já levava a dianteira gritou ordens em plenos pulmões, numa tentativa de fazer o machimbombo parar. Este avançara mais de duzentos metros na estrada, e assim prosseguiu a viagem para deixar a tripulação na maior das impotências e do desespero.

   A bordo ninguém continha a alegria.

   “…ó senhor motorista, pisa a Maria!… carrega masé no acelerador!…”.

    Muitos aplaudiam porque fariam aquela viagem sem custos e sem os aborrecimentos causados pela tripulação. O improvisado motorista obedecia com rigor às regras de trânsito, assim como parava para embarcar e desembarcar passageiros como se, alguma vez, tivesse cumprido aquela missão.

   O final do frete no terminal da Praça 7 de Março foi marcado por uma ovação e muitas gargalhadas dos passageiros que, pela primeira vez, usufruíram do direito de uma  viagem  livre de gastos, mas cheia de humor e de estórias para contar.

   O que sucedeu depois à tripulação daquele autocarro e do passageiro turbulento não reza a História. Das aves sim, essas foram apropriadas por quem teve forças para as arrebatar das mãos dos que as disputavam.

   Esta história correu de boca em boca em todo o subúrbio: a dum machimbombo sequestrado que deixou em terra os tripulantes, a favor de um grupo de homens corajosos que, por causa dos abusos daqueles, resolveu fazer justiça e tomar em mãos a missão de os transportar seguros aos seus destinos. Na manhã seguinte os jornais anunciaram que “…cerca das dezassete e trinta horas de ontem um grupo de malfeitores sequestrou uma unidade móvel dos Serviços Municipalizados de Viação, mais precisamente um ónibus da carreira número 15, quando este se dirigia à cidade, no seu trajecto do terminal do Aeroporto Gago Coutinho e a baixa da cidade . O veículo foi mais tarde recuperado estacionado na Praça 7 de Março sem estragos aparentes. Agentes da Polícia Judiciária, da Pide-DGS e da Polícia Militar encontram-se a recolher pistas que conduzam à detenção dos autores deste audacioso acto…”.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

Em jeito de contextualização ultra sintética, como forma de não se esbanjar tempo com e redundantes sínteses recapitulativas, rememora-se que na pretérita edição tínhamos principiado a dissecação das normas corporizadas na Resolução n.º 5/2019, de 20 de Junho, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (doravante “CUACPDP”), que, conforme, asseveramos, encontra-se dividida em três capítulos, (i) Transacções Electrónicas, (ii) Protecção de Dados Pessoais e (iii) Promoção da Cibersegurança e a Luta contra o Cibercrime, sendo que o texto da aludida edição foi suspendido no início da abordagem que se pretende realizar acerca do Capítulo II – Protecção de Dados Pessoais electrónicos – e, sem quaisquer delongas, é, pois, a partir daqui que se dá continuidade à dissertação.

A disciplina relativa à protecção de dados prevista nas normas da CUACPDP deve ser compaginada com os preceitos estabelecidos na Lei de Transacções Electrónicas – que reserva, entre os artigos 63 a 65, um capítulo próprio destinado ao tratamento desta temática – sem nunca se perder de vista o que dispõe, sobre a matéria, o Regulamento do Sistema de Certificação Digital de Moçambique (SCDM), aprovado pelo Decreto n.º 59-2019, sendo da conjugação interpenetrada dos citados compêndios legais que se extrairá o regime a que se subordina a disciplina da protecção de dados pessoais electrónicos.

Entretanto, antes de mergulharmos nas profundezas do “quadro legal” atinente à regulação do direito aqui em sindicância, afigura-se míster elucidar que, em Moçambique, o direito à protecção de dados possui dignidade constitucional, no sentido de emanar directamente da Constituição da República (CRM), enquadrado no capítulo “direitos, liberdades e garantias individuais”, facto que faculta ao respectivo titular de um direito que assume posição hierarquicamente relevante na ordem jurídica interna, devido ao facto de as normas Constitucionais, caracterizadas, em regra, pela sua natureza de direitos fundamentais, prevalecerem sobre as demais normas (infraconstitucionais), advindo, desta factologia, que o legislador ordinário esteja legalmente proibido (na verdade, constitucionalmente proibido) de aprovar e colocar em vigor normas que se direccionem num sentido oposto aos princípios constitucionalmente consagrados concernentes a esta matéria.

Assim, em consonância com o que se disse supra e por força das disposições contidas nas alíneas do artigo 56 da CRM – “princípios gerais dos direitos, liberdades e garantias individuais” –, «Os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis» (n.º 1); «O exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição» (n.º 2); «A lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição» (n.º 3); «As restrições legais dos direitos e das liberdades devem revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo» (n.º 4).

Esmiuçando sinteticamente o alcance dos preceitos legais acima reproduzidos, significa dizer que os direitos, liberdades e garantias individuais – onde se incorpora, no artigo 71 CRM, o direito à protecção de dados pessoais – são de aplicação imediata, no sentido de, para a respectiva concretização, em regra, não dependem de intermediação legal infraconstitucional, não pertencendo, por isso, à categoria de normas meramente programáticas (que estabelecem princípios genéricos e órfãos de concretização infraconstitucional), visto que possuem força jurídica para, efectivamente, regular directamente as situações, actos ou relações jurídicas que pretendam regular).

Sublinha-se, ainda, o facto de a própria Constituição determinar que estes direitos vinculam, tanto as entidades públicas, como as particulares e só admitem restrições previstas na própria Constituição – restrições essas que não podem atingir o núcleo essencial do direito em causa – implicando, assim, um conteúdo normativo negativo (abstenção do Estado em agir num sentido que vise impedir o exercício desses direitos) e um conteúdo normativo positivo (obrigação a que o Estado está incumbido de assegurar tanto o exercício bem como a defesa desses direitos).

Ultrapassada a análise do princípio gerais constitucionalmente consagrados sobre a matéria, entremos para a norma constitucional que, concretamente, consagra e confere forca normativa robusta ao direito à protecção de dados pessoais electrónicos.

Com a epígrafe “utilização da informática”, estabelece o artigo 71 da CRM que «é proibida a utilização de meios informáticos para registo e tratamento de dados individualmente identificáveis relativos às convicções políticas, filosóficas ou ideológicas, à fé religiosa, à filiação partidária ou sindical e à vida privada» (n.º 1); «a lei regula a protecção de dados pessoais constantes de registos informáticos, as condições de acesso aos bancos de dados, de constituição e utilização por autoridades públicas e entidades privadas destes bancos de dados ou de suportes informáticos» (n.º 2); «não é permitido o acesso a arquivos, ficheiros e registos informáticos ou de banco de dados para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, nem a transferência de dados pessoais de um para o outro ficheiro informático pertencente a distintos serviços ou instituições, salvo nos casos estabelecidos na lei ou por decisão judicial» (n.º 3); «todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respectiva rectificação» (n.º 4).

Do cotejo interpretativo das alíneas elencadas no citado artigo 71 CRM, emergem os princípios fundamentais aos quais está adstrita. Desde logo, o infere-se que o conteúdo do direito à protecção de dados pessoais corresponde (i) à faculdade de acesso às informações em causa, incluindo (ii) a finalidade do tratamento de que são objecto, (iii) possibilitando a rectificação e actualização das que não estejam correctas.

As normas protectoras à privacidade e confidencialidade de dados pessoais (quer as emanadas directamente da CRM quer as previstas nas leis ordinárias, que complementam e regulam aquelas, com particular realce para a Lei de Transacções Electrónicas, a Convenção ratificada pela Resolução n.º 5/2019 e o Regulamento do SCDM) foram sendo aprovados em reconhecimento da inelutável importância que as mesmas encerram, porquanto, munem o titular de um mecanismo que lhe permite controlar a forma como suas informações são utilizadas por organizações, empresas e inclusive pelo Governo. Elas visam colocar o respectivo titular numa situação de segurança no que concerne ao controlo do uso desses dados (por quem quer que seja), sendo ele detém o pecúlio, em regra exclusivo, de pautar as regras de jogo sobre quem, como, onde, seus dados podem ser manuseados.

Com a erupção vulcânica das TIC’s, as informações/dados das pessoas, em meios digitais, encontra-se em ininterrupto, supersónico e vertiginoso estágio de propagação, avultando a crescente preocupação de se discernir o conteúdo dessas informações/dados, onde e como são recolhidas, processadas e armazenadas e à quem cabe a responsabilidade pelo acesso àquelas informações/dados.

O glossário da Lei de Transacções Electrónicas define “Dados Pessoais” como sendo «qualquer informação relativa a uma pessoa singular que possa ser identificada directa ou indirectamente através da referência a um número ou a um ou mais factores específicos a mesma», destrinçando-os dos “Dados de Criação de Assinatura Electrónica” que são aqueles «dados únicos tais como códigos ou chaves privadas codificadas que são utilizadas pelo signatário para criar uma assinatura electrónica».

Sendo essa informação, susceptível de circular de forma desenfreada e descontrolada pelos canais e meios digitais (ex.; internet), respeitante à esfera de uma determinada pessoa, singular ou colectiva, pública ou privada, ela necessita de ser adequadamente protegida, pois se sabe, de forma sobeja, que ela pode ser perigada pela actuação de vários intervenientes (muitos deles desconhecidos), com o objectivo de a deturpar, falsear, roubar e demais actos de natureza ilegítima que colocam em causa os direitos do respectivo titular, advindo, da mais que verosímil verificação dessas nuances nefastas a necessidade de estabelecimento de mecanismos de segurança do acesso e circulação dessas informações.

Com efeito, a confidencialidade, disponibilidade e integridade são universalmente reconhecidos como sendo atributos da segurança da informação, sendo que a “confidencialidade” diz respeito à inacessibilidade da informação, que não pode ser divulgada para um usuário, entidade ou processo não autorizado; a “integridade” pressupõe que informação deve manter-se intacta (inamovível, em alguns casos), apenas sendo alterada (ou movível) ou suprimida (destruída) com autorização do respectivo titular; e a “disponibilidade” traz a ideia segundo a qual o acesso aos serviços dos sistemas digitais onde é armazenada, recolhida, processada a informação é somente permitida para utilizadores ou entidades autorizados.

O que se referiu supra encontra materialização expressa no texto da Lei, concretamente no artigo 64 da lei de Transacções Electrónicas, que estabelece que não é permitido o acesso a arquivos, ficheiros e registos informáticos ou de banco de dados para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, nem a transferência de dados pessoais de um para o outro ficheiro informático pertencente a distintos serviços ou instituições, salvo nos casos estabelecidos na lei ou por decisão judicial. Este preceito (previsto na Lei de Transacções Electrónicas, no capítulo disciplinador da Protecção de Dados Electrónicos Pessoais), com epígrafe “proteccção de dados” corresponde ao espírito e letra da norma disposta no n.º 3 do artigo 71 da CRM.

Visando conferir segurança à informação e dados pessoais, e em consonância com o previsto no n.º 1 do artigo 11 da Convenção ratificada pela Resolução n.º 5/2019, que insta os Estados-membros aderentes à Convenção (dos quais Moçambique é parte integrante) a criar uma autoridade responsável pela protecção de dados pessoais, a Lei de Transacções Electrónicas institui uma figura denominada “Processador de Dados”, definida nos termos do respectivo glossário como sendo «qualquer pessoa, pública ou privada, singular ou colectiva, que requeira, recolhe, processe ou armazene electronicamente informação pessoal de ou a respeito de um sujeito de dados».

Esta figura – Processador de Dados Pessoais – está adstrita ao cumprimento das obrigações delineadas no artigo 63 da Lei que o cria (acima citada) e sujeito, em caso de incumprimento dos seus deveres – que apontem para a violação dos direitos relativos à protecção de dados pessoais – às responsabilidades elencadas no artigo 65 do mesmo diploma legal, cujas infracções podem dar azo à contravenções (artigo 67) ou constituir ilícitos criminais (artigo 68) consoante for a forma de cometimento.

A todas viciadas do mundo

Seguia no chapa, em pé, um homem cuja aparência indicava ter mais de sete dezenas de anos de idade. O cabelo e a barbicha tímida da cor do algodão, a pele enrugada e aqueles óculos com arranjo de borracha e arrame denunciavam centenas de milhares de horas de vida. As conversas dentro do chapa eram banais, porém, em tom ensurdecedor, mal dava para ouvir a voz do cobrador que de lá da porta, criteriosamente, definia qual passageiro transportar até ao novo destino. Alheio às prosas, adequadas para mais nada se não distrair a pobreza, o homem mantinha um olhar distante e penetrante para o horizonte de tremido que se apresentada por detrás do vidro embutido na poeira.

Foi então que, com a rota do chapa já avançada do meu ponto de partida, uma mulher, mais jovem, começou a passar mal! Primeiro veio a queda, ninguém deu muito crédito, pensou-se que podia ser um mau jeito na disputa por um lugar para colocar o pé no soalho do chapa. Emergiram, em seguida, as convulsões e alguma ameaça de vómito. A cara da moça mudou de cor e as pupilas quase que iam sendo engolidas pelas pálpebras, foi então que os passageiros deram a devida vénia a situação, provavelmente com algum exagero, talvez para compensar a inicial desatenção. Os gritos dos passageiros causaram o esgotamento da pouca paciência do cobrador, que imediatamente emitiu a ordem de descida da passageira.

Está a morrer cobrador, devemos leva-la ao hospital! Você não tem coração? – Gritaram alguns dos passageiros ao cobrador aparentemente de coração inerte e insensível a situação. Outros olhavam com desdém para a jovem e já começaram a emitir algumas teorias explicativas do súbito mal-estar dela.

– “Está grávida”; “Deve ter feito aborto”; “É anemia, só pode ter feito aborto”; “Deve estar a voltar da noite e não comeu”;

Haviam porém outras vozes ligeiramente mais sensíveis e apelativas:

–  “Não digam isso, talvez  está a dar de mamar, não comeu”! “Ou talvez está grávida” “não é da nossa conta, nós vamos lhe deixar no hospital… só e acabou”. O motorista, não fosse o engarrafamento, já teria chegado ao hospital pois já não suportava aquela choradeira daqueles bezerros desmamados.

O velho permanecia com o olhar distante, alheio a situação, provavelmente perdido em seus devaneios! Ia sendo empurrado e molestado pelos irrequietos colegas de viagem até que finalmente virou-se para de soslaio para a jovem, que continuava a causar preocupação. Ela começou a balbuciar coisas que não se percebiam, nem havia certeza se eram palavras, logo de seguida as lágrimas saíram. O pranto era profundo, parecia recordar-se de todos seus antepassados de uma única vez, causando-lhe aquela avalanche de emoções.

Alguém levantou a mão e gritou! “Sou um médico, afastem-se, vou ajudar”. O velho voltou a prestar atenção no caso, sorriu! Um sorriso sarcástico e continuou perdido nos seus devaneios janela a fora. O jovem médico esclareceu, sou médico… mas, estagiário! Olhou as pupilas, mediu a pressão, sentiu os batimentos cardíacos, mediu a temperatura do corpo e vaticinou “Está tudo bem”! Outro corajoso no chapa gritou:

Só pode ser viciada, dêem-lhe soruma, isso passa e deixa de nos incomodar! – houve um silêncio absoluto! Parecia haver consenso e pareceu-me que que alguém já começava a ajeitar alguma coisa num papel castanho, daqueles que utilizava-se para encapar os livros, até que o velho, finalmente, escorregando entre os passageiros, chegou perto da jovem, olhou-a nos olhos, ficou inerte por alguns segundos e com a sua voz áspera, embora confiante, confirmou a hipótese:

É uma viciada sim! Há muito tempo que não alimenta o seu vício! Mas não é um vício qualquer, dêem-lhe um papel e uma caneta! – Quando todos pediam por mais explicações o velho já descera do chapa e perdera-se na multidão! Alguém no chapa aproximou-se da jovem e deu-lhe um papel e uma caneta a cair aos pedaços. Viciada que era, a jovem pegou no papel e na caneta e começou a escrever, escreveu palavras soltas, formou frases, depois versos, os versos amontoaram-se, agruparam-se em estrofes todos continuavam atónitos no chapa até que, uma mulher, visivelmente emocionada, gritou:

É um poema! Ela é uma poetiza! É uma poetiza – parece que o velho tinha razão, pela quantidade dos versos, de certeza que há muito que ela não escrevia!

Quando desci do chapa a jovem estava sorridente e carregava o seu poema no colo, porém, antes de eu descer ela segredou-me:

– O parto de um poema dói, a alma fica toda despedaçada.

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