A todas viciadas do mundo
Seguia no chapa, em pé, um homem cuja aparência indicava ter mais de sete dezenas de anos de idade. O cabelo e a barbicha tímida da cor do algodão, a pele enrugada e aqueles óculos com arranjo de borracha e arrame denunciavam centenas de milhares de horas de vida. As conversas dentro do chapa eram banais, porém, em tom ensurdecedor, mal dava para ouvir a voz do cobrador que de lá da porta, criteriosamente, definia qual passageiro transportar até ao novo destino. Alheio às prosas, adequadas para mais nada se não distrair a pobreza, o homem mantinha um olhar distante e penetrante para o horizonte de tremido que se apresentada por detrás do vidro embutido na poeira.
Foi então que, com a rota do chapa já avançada do meu ponto de partida, uma mulher, mais jovem, começou a passar mal! Primeiro veio a queda, ninguém deu muito crédito, pensou-se que podia ser um mau jeito na disputa por um lugar para colocar o pé no soalho do chapa. Emergiram, em seguida, as convulsões e alguma ameaça de vómito. A cara da moça mudou de cor e as pupilas quase que iam sendo engolidas pelas pálpebras, foi então que os passageiros deram a devida vénia a situação, provavelmente com algum exagero, talvez para compensar a inicial desatenção. Os gritos dos passageiros causaram o esgotamento da pouca paciência do cobrador, que imediatamente emitiu a ordem de descida da passageira.
– Está a morrer cobrador, devemos leva-la ao hospital! Você não tem coração? – Gritaram alguns dos passageiros ao cobrador aparentemente de coração inerte e insensível a situação. Outros olhavam com desdém para a jovem e já começaram a emitir algumas teorias explicativas do súbito mal-estar dela.
– “Está grávida”; “Deve ter feito aborto”; “É anemia, só pode ter feito aborto”; “Deve estar a voltar da noite e não comeu”;
Haviam porém outras vozes ligeiramente mais sensíveis e apelativas:
– “Não digam isso, talvez está a dar de mamar, não comeu”! “Ou talvez está grávida” “não é da nossa conta, nós vamos lhe deixar no hospital… só e acabou”. O motorista, não fosse o engarrafamento, já teria chegado ao hospital pois já não suportava aquela choradeira daqueles bezerros desmamados.
O velho permanecia com o olhar distante, alheio a situação, provavelmente perdido em seus devaneios! Ia sendo empurrado e molestado pelos irrequietos colegas de viagem até que finalmente virou-se para de soslaio para a jovem, que continuava a causar preocupação. Ela começou a balbuciar coisas que não se percebiam, nem havia certeza se eram palavras, logo de seguida as lágrimas saíram. O pranto era profundo, parecia recordar-se de todos seus antepassados de uma única vez, causando-lhe aquela avalanche de emoções.
Alguém levantou a mão e gritou! “Sou um médico, afastem-se, vou ajudar”. O velho voltou a prestar atenção no caso, sorriu! Um sorriso sarcástico e continuou perdido nos seus devaneios janela a fora. O jovem médico esclareceu, sou médico… mas, estagiário! Olhou as pupilas, mediu a pressão, sentiu os batimentos cardíacos, mediu a temperatura do corpo e vaticinou “Está tudo bem”! Outro corajoso no chapa gritou:
– Só pode ser viciada, dêem-lhe soruma, isso passa e deixa de nos incomodar! – houve um silêncio absoluto! Parecia haver consenso e pareceu-me que que alguém já começava a ajeitar alguma coisa num papel castanho, daqueles que utilizava-se para encapar os livros, até que o velho, finalmente, escorregando entre os passageiros, chegou perto da jovem, olhou-a nos olhos, ficou inerte por alguns segundos e com a sua voz áspera, embora confiante, confirmou a hipótese:
– É uma viciada sim! Há muito tempo que não alimenta o seu vício! Mas não é um vício qualquer, dêem-lhe um papel e uma caneta! – Quando todos pediam por mais explicações o velho já descera do chapa e perdera-se na multidão! Alguém no chapa aproximou-se da jovem e deu-lhe um papel e uma caneta a cair aos pedaços. Viciada que era, a jovem pegou no papel e na caneta e começou a escrever, escreveu palavras soltas, formou frases, depois versos, os versos amontoaram-se, agruparam-se em estrofes todos continuavam atónitos no chapa até que, uma mulher, visivelmente emocionada, gritou:
– É um poema! Ela é uma poetiza! É uma poetiza – parece que o velho tinha razão, pela quantidade dos versos, de certeza que há muito que ela não escrevia!
Quando desci do chapa a jovem estava sorridente e carregava o seu poema no colo, porém, antes de eu descer ela segredou-me:
– O parto de um poema dói, a alma fica toda despedaçada.