Assinala-se, hoje, o centenário de nascimento de José Craveirinha. O poeta dos “vaticínios infalíveis” nasceu a 28 de Maio de 1922 e fez um pouco de tudo: poesia, prosa, desporto e jornalismo, tendo colaborado com órgãos como O brado africano e A tribuna.
No dia 19 de Agosto de 1962, Eugénio Lisboa proferiu uma palestra no 2º Sarau de Poesia da Câmara Municipal de Lourenço Marques. Intitulada “Algumas considerações em torno da poesia de José Craveirinha”, a intervenção foi publicada no órgão A voz de Moçambique e, bem mais tarde, em 1973, na Crónica dos anos da peste I. Nesse livro que pensa a literatura moçambicana através de vários ângulos, às vezes, em que os mais conservadores podem ficar chocados sobre algumas posições do ensaísta em relação aos grandes poetas de Moçambique, Lisboa defende, por um lado, que “Craveirinha é uma voz do nosso tempo e da nossa circunstância – não há-de ser-nos, portanto, demasiado difícil circunscrever-lhe as belezas mais evidentes”.
Por outro, Eugénio Lisboa sustenta que “a poesia de Craveirinha é, não fica dúvida, uma poesia de indignação e acusação de uma realidade que se interpela e se rejeita”. Tendo nascido numa época adversa, em que o colonialismo português vigorava em África, José Craveirinha afirmou-se como nacionalista, o eterno poeta dos “vaticínios infalíveis”. O contexto colonial deve ter contribuído imenso para que fosse um “poeta indignado”, pois, enfrentou e conviveu com injustiças sociais típicas dos anos 40, 50 ou 60 do século passado.
De igual modo, depois de ter nascido lá para as bandas do Xipamanine, na então Lourenço Marques, José João Craveirinha foi viver para Mafalala, que por causa do próprio contexto colonial e das migrações internas, conforme observa Francisco Noa em Além do túnel, “institui-se como um notável ensaio laboral de coabitação multiétnica, multicultural e plurirracial”. E diz ensaísta acrescenta: “Mafalala é uma escola para além do tempo e do espaço”. Então, tendo essa base, através da arte literária, Sontinho (nome por que era tratado Craveirinha na família materna, por ter nascido num sonto, do rhonga, domingo em português) soube sonhar um país e foi ousado na configuração de uma Nação que, agora, só os seus leitores saberão dizer se já existe.
Entre esses leitores, encontra-se Tomás Vieira Mário. Segundo disse o jornalista, numa breve entrevista cedida no evento Noites de Poesia, realizado no Museu Mafalala, em Maputo, Craveirinha era uma pessoa muito angustiada, que sonhou com um país desenvolvido e próspero. Mas “terá morrido sem ter visto esse seu sonho”.
Muito antes de morrer, a 6 de Fevereiro de 2003, em Joanesburgo, na África do Sul, Craveirinha foi autodidata, plural e diverso na sua condição de eterno aprendiz. Foi um homem de palavras e de ideias, sem que a sua poesia se tornasse panfletária. Por isso mesmo, o seu legado literário é transversal e o primeiro Prémio Camões africano, 1991, faz-se hoje, igualmente, um poeta deste tempo, comprometido em levar à poesia os eventuais silêncios do seu povo. “Craveirinha é um marco importante na História do nosso país, da nossa cultura e das letras moçambicanas”, disse o Secretário-Geral da AEMO, Carlos Paradona.
Por isso mesmo, no ano que completaria 100 anos de idade, se estivesse vivo, o país celebra-o como nunca o fez: em saraus, conferências, colóquios, palestras, conversas e homenagens de outra natureza. A vida do poeta sempre esteve entre fronteiras: das nacionalidades (Moçambique e Portugal – filho de mãe rhonga e pai português), das cores (brancos e pretos) ou das tradições e identidades. Tudo isso permitiu-lhe ser um poeta irónico, utópico e das liberdades, cuja escrita interessou a muitos ensaístas. Por exemplo, o ensaísta Luís Cezerilo tem duas publicações sobre o poeta, designadamente: Obra poética de José Craveirinha e Eduardo White e O erotismo como linguagem na obra de José Craveirinha. O segundo trabalho “foi uma pesquisa aturada, em que eu fui resgatar poemas escritos pelo poeta Zé, inéditos, manuscritos nunca antes publicados em livro”.
O estudo de Cezerilo contém, inclusive, imagens desses poemas, ora rasurados pelo poeta, ora corrigidos. A pesquisa permitiu ao ensaísta concluir que em Craveirinha quase tudo é combate e intervenção. Até o erotismo. “O erotismo, na poética do Zé, não é concebido no sentido etimológico da palavra erotismo. Ele traz-nos o erotismo como combate, como intervenção. E é este jogo bonito que ele faz entre as metáforas do corpo para representar uma situação da Nação”.
Mesmo a propósito dessa Nação tão particular ao poeta, quem também pensa Craveirinha nessa dimensão é Gilberto Matusse. Num artigo publicado no livro Nação e narrativa pós-colonial I: Angola e Moçambique, o professor universitário considera que “A poesia de José Craveirinha apresenta fortes marcas narrativas. A partir dessas marcas, observa-se que o autor procurou reflectir os aspectos mais marcantes da sociedade do seu tempo, particularmente a problemática da Nação”.
Estudos literários sobre Craveirinha, em Moçambique e no estrangeiro, não faltam. No entanto, segundo afirmou o escritor Nelson Saúte, numa conversa com estudantes de literatura realizada na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, a escrita de J. C., J. Cravo ou Abílio Cossa (pseudónimos) ainda é pouco conhecida. “O melhor Craveirinha é o Craveirinha desconhecido. O mais conhecido é aquele que seria a voz dos povos oprimidos”. No entanto, além do poeta das liberdades, que não desvaneceu mesmo quando foi preso pela PIDE, para Saúte, é urgente conhecer no poeta a dimensão mais lírica e intimista.
Como se tivesse ouvido Nelson Saúte, a Ministra da Cultura e Turismo, Eldevina Materula, na cerimónia do anúncio do vencedor do Prémio de Literatura José Craveirinha, considerou: “Discutindo o desconhecido em José Craveirinha, estaremos a contribuir para uma sociedade melhor”.
Na mesma cerimónia, o escritor laureado, Mia Couto, disse que Craveirinha inaugura um momento novo em Moçambique, “não só porque ele anuncia na sua própria voz uma Nação nova, mas porque ele é o primeiro dos não veteranos de guerra que toma lugar na cripta dos heróis nacionais”.
José Craveirinha marcou e ainda marca gerações de artistas moçambicanos. O álbum de estreia do rapper Azagaia, Babalaze, tem no poeta uma inspiração. A obra literária O escutador de silêncios, de Ricardo Santos, é uma homenagem ao poeta. Em saraus, artistas como Helena Rosa, Tânia Tomé, Cândita Mata ou Lucrécia Paco continuam a declamar o poeta com muita vivacidade.
Fora das artes e letras, o autor de Xigubo, Karingana ua karingana, Babalaze das hienas ou Maria praticou e foi um grande entusiasta de desporto. Foi nessa condição que contribuiu imenso para estimular Lurdes Mutola a seguir o atletismo. O jornalista Renato Caldeira, que bem acompanhou a história da “Menina de ouro”, não se farta de repetir esse acontecimento épico: “A Lurdes foi incentivada pelo poeta Craveirinha a deixar o futebol e a seguir o atletismo”. Nessa altura, Mutola competia com homens, o que é contra as regras da FIFA. “A Lurdes Mutola confidenciou uma vez que foi fazer um treino ao Parque dos Continuadores, com Stélio Craveirinha [o falecido filho do poeta, que treinou Mutola], e voltou a casa com dores nos músculos. Ela desistiu, mas o poeta Craveirinha teve mérito extraordinário no surgimento da Mutola e insistiu para que ela não desistisse”.
Em rhonga, há uma expressão popular: mawaku, que significa “que sorte é a tua!”. Será o caso para dizer mawaku, Moçambique, por ser o berço desse herói nacional? Ao invés de qualquer resposta ou vaticínio infalível, esta tentativa falhada de reportagem, que tão-somente ignorou a narração cronológica da biografia do poeta-mor, aqui ficam alguns excertos do poema “Cantiga em três tempos”, extraído do livro Cela 1: “O poeta enclausurado/ ou mesmo incomunicável seis meses/ circula/ e funciona/ como um irrevogável/ perfeito golpe de estado.// Até Platão/ esperto já sabia disso!”.