O saudosismo não é de todo mau! Quando uma nação pretende perspectivar o futuro, é necessário não perder de vista o seu ponto de partida, o seu percurso, os seus “achievements”, os seus pontos fracos e os seus erros.
Não é possível corrigir o que não se sabe e muito menos corrigir só por mera praxe, senão estragamos. Para corrigir, é preciso ver o quê, como, quando e quem o deve fazer…
Agarrar-se às boas práticas do passado, alguns chamam a isso saudosismo, com uma conotação negativa, como se tudo o que passou devesse cair ao esquecimento e nunca ser rebuscado.
No meu país, os fazedores da política e de políticas públicas parecem não ter feito parte do passado comum desta nação. Há um vício incessante de corrigir (estragar).
A correcção deve ter em vista a melhoria. Quando isso não ocorre, parar e recuar não é uma desinteligência. Muitos aprenderam de Jacques Derrida a ideia da desconstrução.
A desconstrução, para Derrida, é um termo positivo, que se insere numa ideia de reinventar a roda quando esta não está a girar como deve ser, desconstruir conceitos, lógicas, éticas sociais em busca de resolver os males da sociedade como uma colectividade.
Esta desconstrução tem como fim último trazer alento, novos conceitos, novas lógicas na forma de encarar e buscar o bem comum. Nesta desconstrução, não se deve deitar por completo o que está bem.
A desconstrução referida neste contexto é, muitas vezes, confundida quer por distração quer por vontade maléfica dos actores do processo ou por mera incúria.
O termo escangalhar foi normalizado e até visto numa perspectiva positiva nas hostes da política nacional.
Ora, desconstruir não é sinónimo de escangalhar. Podemos até tentar dar sentido positivo ao termo, mas não são sinónimos.
Na implantação da Primeira República (1975–1990), o termo escangalhar derivava de duas situações: a primeira situação, o abandono de toda a máquina colonial que assegurava a administração pública e todo o funcionamento da província ultramarina, que era Moçambique, deixando tudo à deriva, com necessidade de se dar um “reset” ao país e nação recém-criados. Aqui o sujeito era o outro, o que está a abandonar;
A segunda situação, que é da perspectiva de quem ficou, os novos “donos” do país no caso, era a de quebrar qualquer vínculo com o colonizador. Qualquer tradição e práticas coloniais tinham de ser abandonadas, criar o que é novo, até o homem. Perspectivava-se a criação do novo.
A educação foi encontrada nesta encruzilhada, tendo sobrado para ela a segunda opção, aqui entrava em cena o termo escangalhar com vista a criar nova coisa que se pretende boa para a sociedade, até porque há novos valores a implantar, há nova história a ensinar, há o rebuscar da cultura outrora marginalizada, etc…
Criou-se o famoso SNE, Sistema Nacional de Educação, Moçambique foi um exemplo e pioneiro na região.
Como em todos os processos, este também teve prós e contras, mas o que ressaltava, aqui, é que havia e se sentia vontade de criar algo sólido, com bases e objectivos claros.
Os envolvidos na altura, parece que tinham a intenção de desconstruir ou mesmo escangalhar com vista à melhoria. Podiam até fracassar, mas há sensação de que havia preocupação em construir um sistema que se pretendia sólido.
Havia honestidade intelectual. Pedagogos como Paulo Freire foram convidados para ajudar a melhorar de alguma forma este “bebé” recém-nascido.
Estavam bem definidas as competências básicas, requeridas por cada classe, o porquê daqueles conteúdos, o que visam alcançar… havia uma atenção especial para a educação, o foco no professor (embora ainda não fosse o desejável) como um dos pilares do processo de ensino-aprendizagem. Esta atenção perdurou um pouco para além da implantação da segunda República (1990).
Foi neste sistema implantado por Samora Machel, que perdurou até finais dos anos 90 e início do novo milénio, que uma boa parte da geração jovem decisora do país estudou, incluindo-me a mim, autor deste artigo. Arrisco-me a dizer que 90% (estatísticas não confirmadas) da geração de 1975 a 1990 estudou em escolas públicas e os estudantes das pouquíssimas escolas privadas existentes eram ostracizados e, infelizmente, discriminados devido à qualidade de ensino que se presumia existente lá. (Mas isso é o saudosismo puro meu).
A educação deve ser um espaço comum de uma nação que se preze. Deve ser lá, onde estão espelhados os valores mais sublimes de um povo. É lá onde se forja e se lapida o protótipo de sociedade, por isso a falha na implantação de políticas certas leva toda uma geração ao descalabro.
O que se pode construir em dez (10) anos, pode destruir-se num ápice, e o que se destrói em 10 anos pode levar uma eternidade a corrigir. A educação é um sector produtivo, sim.
Se por um lado é saudosismo falar das boas práticas sociais do passado viradas à educação, que perduraram até ao Governo do PR Joaquim Chissano, como o passe escolar, lanche escolar, os quadros de honra, os simpósios académicos, os exames orais (as famosas provas orais), as redacções, as resoluções faseadas das operações físicas, matemáticas e outras ciências (substituídas por multichoice), as olimpíadas académicas, o jornalismo escolar, a rigidez e a permanência dos curricula, entre outras práticas, deve ser também saudosismo referir que o estudante moçambicano era competitivo, era admitido “de caras” a qualquer universidade do mundo e ombreava com qualquer estudante de outras proveniências.
Não estamos a defender que a educação deve ser estática, parada no tempo. Não é esta a visão nem opinião que se procura passar. Ela deve, sim, ser dinâmica, evoluir e acompanhar os desafios dos novos tempos, mas sem abdicar das suas boas conquistas, nem deve ser vítima do seu dinamismo.
Os últimos 20 anos, foram de tentativas e experiências de curta duração neste sector, muitas delas sem se perceber a sua “ratio”, (é verdade que muitas delas foram impostas pelas políticas do Banco Mundial e outras organizações) experiências abolicionistas, mudanças só porque as devemos fazer, sendo que maior parte delas tem como alvo principal o professor.
Num ataque desenfreado, em que não interessa o dano colateral criado ao aluno desde que se atinja o suposto corrupto, o professor.
Isto não é fazer políticas públicas de um Estado, é preciso alto sentido de Estado, elevado senso de responsabilidade e de consequência.
Em Direito, diz-se que ao emanar-se uma norma/lei, é preciso a sua “ratio legis”, então qualquer norma, para além das suas razões históricas, deve definir o problema que esta norma vem resolver, isto é, a sua razão de ser, a “ratio legis”.
É difícil buscar as razões de ser de muitas normas emanadas ultimamente pelo MINEDH, dentre elas a
– Introdução da 7ª classe no ensino secundário;
– A eliminação das famosas provas orais – ainda não vislumbro, o que pretendiam acrescentar à educação!?
– A introdução de testes e exames 100% múltipla escolha – ainda não vejo os efeitos;
– A eliminação das dispensas dos alunos, factor que impulsionava a competitividade;
– A introdução do teste provincial – fomentou mais fuga de enunciados nas vésperas dos testes;
– A redução da carga horária em disciplinas de ciências e outras;
– A eliminação do exame de Desenho.
Mais caricato, houve anos em que o estudante escolhia que exames ele pretendia fazer, onde tinha a opção de escolher substituir o exame de Matemática pelo de Filosofia, totalizando cinco exames à sua escolha.
Ora, respeito de igual maneira as duas cadeiras, mas não acho que uma possa excluir a outra, não vejo a “ratio” disso. (ainda bem que se recuou com essa prática).
Todo o mundo fala da educação, fala do professor, mas ninguém fala com o professor. A sua participação no processo de elaboração dos curricula é insipiente e quase inexistente.
A educação não deve ser um lugar de sucessivos testes e experimentos mal concebidos, uma política educativa. Os curricula, os instrumentos e a atenção virados à educação devem ser construídos sobre bases sólidas, com alto sentido de Estado, com projectos bem definidos do que se pretende alcançar.
Uma nova política, directivas e curricula no sector da educação devem ser experimentados durante um período mínimo de cinco anos ou mais. Não se pode, a cada dia que nasce, lançar apenas ordens e alterações só porque o devemos fazer. É necessário existir a “ratio” destas novas normas emanadas.
O meu pai comprava-me os livros da 7ª classe, eu ainda na terceira classe, porque era uma certeza de que eu os ia usar.
Um simples estudante sabia o que lhe esperava quando chegasse à classe seguinte, quais os requisitos de admissão, dispensa, exclusão de todas as classes, ciclo, etc… Quais as matérias ministradas em todas as classes subsequentes e matérias examinadas, porque o sistema era sólido e com alguma previsibilidade.
Hoje, entristece-me que, para além do aluno, é também o professor que não sabe como e quais são os requisitos para admitir ou excluir o seu aluno quando chegar o fim do ano, porque só nas vésperas do exame é que as ordens superiores vão definir a nota mínima e as constantes ordens “vão todos ao exame”, o brilhante, o medíocre, o faltoso, o ausente e o inexistente.
Entristece-me ainda a falta de giz, material didático, energia, água, em escolas da cidade em pleno século XXI, entristece me que o aluno hoje não saiba retirar os dados, a fórmula resolvente e demonstrar os caminhos usados para a solução numa operação matemática simples, porque hoje já não é preciso, o estudante só tem de dizer se A, B, C ou D.
Moçambique deve ser exemplo único no mundo, onde passados alguns anos, quando regressamos para visitar as escolas que frequentámos, não registamos avanços, apenas retrocesso, escolas destruídas, tecto revirado… o que existia deixou de existir, o brilho esmoreceu… apenas nostalgia.
O professor está desanimado, debate-se com problemas básicos, do tipo dinheiro de transporte… toda uma classe desmoralizada. O professor que outrora era exemplo já deixou de ser, o pontual já não é, o motivado já desistiu.
É caso para uma reflexão profunda como sociedade, se o fruto da educação dos últimos 15-20 anos não estará hoje a tomar lugares de decisão em sectores nevrálgicos do nosso Estado.
Mais ainda, é a ausência da sociedade na fiscalização, monitoria, crítica, apoio à educação, que se vai destruindo perante o olhar impávido e cúmplice de todos nós.
Não existe um jornalismo investigativo na área da educação, não existe uma ONG de defesa da educação, as que existem são amigas da educação, amigas desta educação!
Assiste-se, nos últimos dias, ao encerramento de escolas por falta de pagamento de horas extras aos professores, sem nenhuma reacção enérgica da imprensa, da sociedade, dos escribas, dos pensadores, dos supostos académicos. Parece que ninguém se incomoda com a situação destes jovens todos atirados à sua sorte, a que se retirou um direito fundamental básico, que é também um direito humano plasmado na DUDH.
Se não são os livros que tardam a chegar, é o salário dos professores e as suas horas extras. Tudo isso contribui para o fraco desempenho no sector da educação.
Ignorar todos estes factores é uma desinteligência e inconsequência. Podemos reduzir as consequências de estar a atirar toda uma geração à ignorância colectiva, pelo simples facto de colocar os nossos filhos no ensino privado e de ter uma condição social confortável aqui e acolá, mas isso, para além de sugerir a imoralidade, é, também, um tremendo erro de cálculo.
Esta geração a que se está a dar uma educação deficitária e atirada à ignorância é a maioria da população deste país.
De que vale prover a melhor educação para o seu filho, enquanto amanhã vai coabitar com jovens frustrados por lhes ter negado esse direito básico?
Por mais condições e meios que tenha o filho da escola privada, mas a ter de usar as mesmas ruas onde vai cruzar com a nudez, a frustração, a intolerância, sim a intolerância, porque a educação tem, também, a grande missão de formar bons cidadãos, pois um indivíduo de diligência média, com uma instrução aceitável, tem mais apetência e predisposição a ser tolerante, cauto e consequente.
Como sociedade devemos, também, questionar se a juventude que temos hoje é a juventude que a nação moçambicana merece. É essa juventude fruto da educação da independência?
Juventude que não questiona, não participa no desenho de políticas públicas sérias e futuristas deste país, juventude que não distingue dignidade, integridade da imoralidade, juventude que senta em cada palmo e meio das grandes cidades nas barracas e bares e debater “nonsense”, a discutir qual nova estratégia de adulação ao novo chefe, de que forma bajulou ontem o fulano e o beltrano, de que forma vendeu a sua dignidade por uma caixa de charutos, roupa de griffe e aquele par de benesses fáceis, e por este e aquele cargo público, de que forma vai usar o Estado para a próxima bolada.
Não será fruto da educação dos últimos 20 + (“plus”) anos…???
Não deixemos a educação cair na desgraça. É papel e tarefa de todos nós abraçar. Vamos participar, este é um grito de apelo à responsabilidade de todos nós.
Intervir e fiscalizar a educação é um dever patriótico, não é apenas papel do Estado, nem do novo timoneiro da Ponta Vermelha, é responsabilidade nossa, como nação e sociedade.
É caso para dizer “Pátria Amada, quo Vadis?”