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ARTIGOS DE OPINIÃO

À porta de Agosto, quando o mês se apresenta como uma tela em branco, Paulina Chiziane, a celebrada escritora cujas palavras moldaram paisagens literárias, nos oferece uma nova forma de expressão: “Timbila ta mina”.

Num cenário onde a timbila, com o seu murmúrio ancestral, entrelaça-se com a introspecção emocional, Chiziane transforma sua prosa em uma sinfonia de dor e descoberta. Esta obra não é apenas uma canção, mas uma travessia poética, onde o som da timbila se torna o pincel que pinta o retrato da condição humana com tonalidades de tristeza e esperança.

A música que se insere no género marrabenta, combina elementos visuais e sonoros que transportam uma carga significativa que, naturalmente, é preenchida de um ambiente sombrio.

A dança da mulher de um rosto coberto de pintura tribal, vestida com elementos típicos dos curandeiros, não é apenas uma performance, mas uma fusão entre o antigo e o novo, reflectindo as dificuldades da continuidade cultural.

O cenário ritualístico estabelece um contraste profundo com o lamento pessoal expresso na música, criando um diálogo entre a tradição e a experiência individual.

Formando um espaço de intimidade e comunhão, Chiziane posiciona-se ao redor de uma fogueira com uma jovem no seu colo, ambas descalças, um detalhe que simboliza uma conexão directa com a terra e a essência da tradição.

Em meio a isso, um homem toca a timbila (Cheny wa Gune), enfatizando a importância da tradição como um meio de expressão e resistência face à dor.

A letra, cantada em changana, é um grito visceral de sofrimento e alienação. Frases como “A minha timbila é de tristeza” e “A minha existência é de sofrimento” são repetidas com uma intensidade que sublinha a persistência da agonia. Nesse contexto, diria Armando Guebuza,“É preciso refletir-se sobre o que somos e o que queremos ser”.

A imagem de um homem revirando um contentor de lixo em busca de alimento, esse acto de buscar comida entre resíduos, representa a desigualdade e a degradação que afectam os mais vulneráveis.

Efectivamente, a cena não evidencia apenas a miséria, não obstante, destaca também a luta desesperada de indivíduos que, confrontados com a indiferente opulência ao seu redor, buscam qualquer forma de sustento. Portanto, a representação do acto na música serve como uma crítica incisiva, ou por outra, a invocação a Deus e o lamento pela rejeição dos “homens de bem” acrescentam uma esfera espiritual e social, entretanto, sugerindo uma crítica às atitudes da sociedade em relação aos marginalizados. Como diria Said Augusto “Estamos em um país onde todos são iguais, mas vivemos submergidos em total desigualdade social”.

Apesar do envolvimento afectivo e valor cultural, “Timbila ta mina” pode ser vista como excessivamente sombria e introspectiva para alguns. A ênfase no sofrimento e na dor, embora autêntica, pode limitar o apelo da música para aqueles que buscam uma abordagem mais equilibrada.

Além disso, a pujança dos elementos visuais e a intensa conotação simbólica podem tornar a interpretação da música desafiadora para alguns, que podem sentir dificuldade em conectar-se com a narrativa. A escolha predominante de tons e imagens sombrias pode também fazer com que a música seja percebida como um lamento contínuo, sem oferecer momentos de alívio ou esperança.
À medida em que Moçambique se prepara para as eleições presidenciais, “Timbila ta mina” emerge como um espelho das aspirações e frustrações do país. A música, com suas nuances de dor e introspecção, ressoa como uma premonição das lutas que transcendem o simples acto de votar.

Cada nota da timbila e cada lamento na letra ecoam a voz de um povo que, como o homem que busca comida entre o lixo, se vê à margem das promessas e expectativas. A jornada entre o sofrimento e a esperança na música reflecte a tensão entre a necessidade de mudança e o desafio de encontrar um alívio real.

Assim, a música, em sua forma actual, serve como um poderoso espelho das aspirações e frustrações de Moçambique, reflectindo a complexidade das lutas sociais e culturais, mas também revela a necessidade de um equilíbrio entre lamento e esperança para alcançar um impacto mais universal e duradouro.

 

Artista – Paulina Chiziane
Título – Timbila ta mina
Género – Marrabenta
Lançamento- 2024

 

 

 

 

 

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma.

in A insustentável leveza do ser, Milan Kundera.

Há uns anos, publiquei um artigo no qual defendi que O menino que odiava números, de Celso Cossa, foi o melhor livro publicado em Moçambique, em 2019. Lembro-me que nesse mesmo texto manifestei o desejo de continuar a ser amigo do Celso, pois, no ano anterior, um artigo similar quase me custou amizade com Álvaro Taruma. Cortando etapas, o poeta não reagiu muito bem ao artigo em que indiquei o seu Matéria para um grito como a principal proposta para vencer o Prémio BCI de Literatura. Com alguma razão, pois teve de suportar sozinho a acusação (de outros autores) de que eu fazia uma propaganda gratuita a seu favor. Como se eu fosse um lobista…

Talvez por ser ficcionista, Celso Cossa não ficou nada constrangido com o meu artigo. Pelo contrário, sem demora, enviou-me um SMS a dizer-me que tinha gostado imenso do texto e a garantir-me que a nossa amizade estava completamente salva. Aliás, algumas semanas mais tarde, o nosso escritor convidou-me a apresentar O menino que odiava números, na Escola Portuguesa. Sem pormenores (Celso, agora ficas a saber a verdade), inventei uma viagem qualquer e assim evitei apresentar aos leitores uma história muito bem elaborada.

Só uma nota de rodapé: nem foi por maldade que menti ao Celso, coitado. Apenas julguei que, sobre o seu infanto-juvenil, que, na altura, me valeu umas conversas muito animadas com vários escritores, estava tudo dito. Inclusivamente, no dia seguinte à publicação do meu artigo, O menino que odiava números foi considerado Prémio BCI de Literatura, isto é, melhor livro do ano publicado no país em 2019. E eu agora pergunto-te, ó Celso: já imaginaste quantos porcento poderias ter-me pago, se eu fosse um nhoguista?

Como na crítica não há nhongas, e com a amizade manifestamente fortalecida, cinco anos depois, Celso Cossa volta a convidar-me para apresentar um livro. No caso, este A greve das palavras. Desta vez, não tive argumentos contrários, até porque o nosso escritor teve o cuidado de ir lá a casa oferecer-me um exemplar, logo num domingo de manhã, em que tanto se sacrificou ao trocar um copo de cerveja por outro de água que o ofereci.

Não podendo resistir ao privilégio de apresentar o novo livro do Celso, aceitei satisfeito o convite, convicto de que tinha em mãos um excelente livro juvenil. E não me enganei. A greve das palavras é um exercício literário interessantíssimo, quer do ponto de vista temático, quer em termos de abordagem estética. Quando o li, a primeira questão que me ocorreu captar é “A infância como ponto de partida” para a escrita. Quer dizer, o nosso escritor, ao fazer jus a esse substantivo, realiza uma viagem anacrónica para a sua própria meninice, da qual, como fazem os grandes escritores deste e do outro século, recupera um conjunto de ocorrências prolíferas para a ficção. Há-de ser por isso que as histórias deste livro encerram perspectivas sugestivas na definição do espaço, enquanto categoria da narrativa onde as personagens se movem e sofrem acções suficientemente robustas para moldar comportamentos humanos.

O espaço de A greve das palavras, tendencialmente agreste, no entanto, longe daquele registo paisagístico (feito de colinas, árvores e aves), recorrente em imensos infanto-juvenis, é coerente e complementa-se com o tempo. Mas não há aqui um tempo concreto. Nos seus contos, Celso Celestino Cossa explora um tempo indeterminado, porém possível, o que faz com que as histórias possam ser referentes a um instante do passado e até do futuro. Nesse aspecto, este livro juvenil é uma espécie de pêndulo, sem fronteiras fixas entre o possível e o imaginário. Contribui, para esse cenário, a destreza do escritor na manipulação dos estatutos do narrador. Em alguns casos, participando no enredo como protagonistas e, noutros, como enunciadores do discurso apenas. Seja qual for a situação, vale a pena observar o investimento que o nosso autor faz, mais do que no final, no princípio da narração. Vejamos, por exemplo, o primeiro conto, designado “O livro desaparecido”:

 

O detective contratado para encontrar o livro desaparecido passeou os olhos pelas prateleiras da biblioteca, retirou os livros que lhe pareciam suspeitos e, com a minúcia de quem procura uma agulha num palheiro, inspeccionou as lombadas, as orelhas, as capas e as contracapas, antes de folhear as páginas e constatar que o objecto de leitura ali não se encontrava (p. 9).

 

Aparentemente simples, o excerto revela uma capacidade descritiva acrescida. Num só período, repare-se, inicial, o narrador consegue apresentar uma personagem (detective), uma missão (encontrar o livro desaparecido), um espaço (biblioteca), uma acção (retirou os livros que lhe pareciam suspeitos) e, enfim, introduzir uma bela história de uma forma sublime. Num só período, o nosso escritor introduz a história de modo a gerar encanto e expectativa, explorando até alguns recursos estilísticos no exercício da sua linguagem.

Outro aspecto que me chamou atenção, durante a leitura deste livro, é o que considero “A desconstrução de um paradigma” no conto “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Primeiro, a narrativa de Celso Celestino Cossa fez-me regressar à época em que dei aulas numa escola primária em Tete. Lembro-me que em 2008 e 2009 tive alunas que, mal passavam do sétimo para o oitavo ano de escolaridade, tinham de cancelar os estudos porque, de acordo com a vontade dos pais, tinham de se casar mal vissem a menarca.

Em geral, a situação das minhas alunas é ficcionada em “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Esta é um conto sobre uma menina inteligente, que, por isso, ganha uma bolsa de estudo, surpreendendo a comunidade escolar e as autoridades locais por ser a primeira do sexo feminino a atingir tal realização. Entretanto, quando o pai toma conhecimento do êxito da filha, imediatamente vocifera:

 

Não quero ouvir nada sobre este assunto advertiu meu pai. A nossa filha já completou a 7ª Classe. Isso é mais do que suficiente para uma mulher! Agora, ela deve, mais é, ficar a cuidar da casa e dos seus irmãozinhos, até que eu lhe arranje um marido (p. 20).  

 

Triste e inconformada com a decisão do pai, Dandiwa confessa, quase num monólogo silencioso:

 

Não cabia na minha cabeça que a mulher somente nasce para cuidar do lar, do marido e dos filhos (p. 21).  

 

E mais adiante:

 

Para provar que em certas sociedades é mais fácil desenterrar as raízes profundas de um embondeiro a deixar que as mulheres corram atrás dos seus próprios sonhos, alguns dias depois o meu pai reuniu na nossa casa todos membros da família e anunciou que já me tinha arranjado um marido. Aquele que eu tinha para marido era o homem mais próspero da nossa aldeia. Para além de uma população inestimável de gado, extensas áreas de cultivo e vários fontenários, a maioria da população da nossa aldeia trabalhava para ele, o que fazia dele o melhor partido para qualquer pai casar uma filha” (p. 21).

 

Com a protagonista desta história, inevitavelmente, também sofremos, quando lemos. E, no enredo, o sofrimento é bom, porque nos purifica e nos situa na nossa realidade e na nossa condição de moçambicanos. Muitas vezes, quem nunca viveu no interior no país, corre o risco de julgar que certos hábitos e costumes estão ultrapassados. Ficciona-los, com efeito, contribui para a arte literária afirmar-se como elemento essencial e imprescindível na construção de uma cidadania condizente com a nossa contemporaneidade. Afinal, o futuro das nossas filhas, sobrinhas ou irmãzinhas importa na mesma proporção que o futuro dos nossos filhos, sobrinhos e irmãozinhos.

Além da forte possibilidade de nos ligar ao nosso contexto, “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos” apresenta uma intrínseca intertextualidade com o conto “A mulher sobressalente”, de Dany Wambire. Neste último caso, há uma menina que, impedida de estudar, foge de casa, da sua aldeia, e vai trabalhar para cidade como empregada doméstica. Pressionada pelo pai da pequena, entretanto, a mãe vai convencê-la a regressar a casa, de modo a salvar o casamento da irmã mais velha, que, segundo uma percepção machista, só gera meninas, quando o marido almeja um herdeiro.

À semelhança de “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos”, “A mulher sobressalente” apresenta um pai interesseiro, com uma visão do mundo redutora, injustificável na opressão da rapariga. A diferença encontra-se, sobretudo, no fim das histórias. Enquanto em Cossa a justiça impera no lançamento do destino da protagonista, em Wambire essa justiça é adiada irreversivelmente. Todavia, em todos os casos, a proximidade entre as duas histórias é tão particular que, a certa altura, questionei-me: Será que o Celso, pretendendo publicar um livro pela Editorial Fundza, pôs-se a escrever um conto que dialogasse com o do seu editor? Bem, o Celso é adulto e terá a oportunidade de responder a esta pergunta, se julgar conveniente.

Com ou sem resposta, levanto mais um aspecto que me interessou durante a leitura do livro, designadamente, “A perspectiva do outro”. Muitas vezes, nós julgamos e tomamos decisões  apenas em função do nosso ponto de vista, sem nos preocuparmos em ouvir ou compreender a outra parte num eventual conflito. Nesses casos, geralmente, falhamos e perdemos claras oportunidades de construir algo comum e duradouro.

Ora, o grande exemplo da relevância de nos colocarmos na “perspectiva do outro” é o conto “Zumbido de pernilongo”. Esta é uma história engraçada e dramática. A certa altura, um ser humano fere gravemente um mosquito. Já no leito da morte, o insecto conta à filha mais velha o que lhe aconteceu e esta jura vingança mal perde a mãe mosquito. A história é tão bem contada na perspectiva das vítimas que, ao longo da leitura, questionei-me várias vezes sobre quão injustos temos sido por nos julgarmos o centro do mundo, se preferirem, os donos da razão. Celso Cossa, na verdade, confronta os nossos juízos de valor numa narrativa aparentemente banal, mas carregada de uma intensidade e originalidade.

“Zumbido de pernilongo” é uma história sobre a empatia ao invés de ressentimento. Por isso mesmo, quando o mosquito localiza o homem culpado pela morte da mãe, no momento em que ele brincava com o seu filho, pergunta-se se seria justo deixar o menino órfão de pai na sequência da sua vingança. Quer dizer, antes de qualquer sentença, o insecto coloca-se no lugar do outro (ainda que esse outro seja um ser vivo de outra espécie), imagina e capta as possíveis dores do menino. Só depois disso o insecto vingador toma a decisão que torna o conto ainda mais sugestivo em abordagem. Como é óbvio, não vou contar qual foi essa decisão porque sabe melhor quando lemos em silêncio.

O grande problema de “Zumbido de pernilongo”, entretanto, é que de há algum tempo a esta parte eu já não consigo matar um mosquito. Sempre que um insecto voador passa por mim, penso que pode ser um zumbido de pernilongo. E reparem. Eu vivo em Infulene, na Matola, e lá o que temos demais são mosquitos. Então, não me vai admirar nada se daqui a algum tempo, ó Celso, seres acusado de contribuir para o aumento de casos de malária. Quem manda escrever tão bem uma história que nos faz reflectir sobre a importância de todo tipo de vida?

É bom que se lhe diga. Celso Cossa tanto sabe escrever sobre a abstracção do afecto quanto sobre o “Contexto crítico”. Motivado ou não pela nossa actualidade política e social, o escritor traz-nos “A greve das palavras”, conto que empresta o título ao livro. Apesar de o autor não tocar categoricamente em aspectos contextuais, na leitura, é difícil não relacionarmos as greves que colocam em xeque as instituições do nosso país. Sem ser explícito, mas sugerindo, o conto consegue atravessar um tempo e uma realidade, claro está, dando-nos a possibilidade de escolher a melhor interpretação para cada evento.

A mim, em particular, “A greve das palavras” fez-me lembrar da escrita do meu amigo Mélio Tinga, no que se refere ao investimento discursivo dos narradores e das personagens em detrimento do enredo. Esse último de seis contos é, principalmente, um exercício sobre a linguagem literária, sobre a susceptibilidade do nosso escritor criar sempre, tendo os mais novos como a razão e finalidade da escrita.

A propósito dos mais novos, em Levantando do chão (salvo o erro), Saramago escreve uma frase como a seguinte: “As crianças são a melhor coisa do mundo. Sobretudo quando precisamos de uma rima para danças”. Eu não sei se o Celso leu aquele romance do único autor de língua portuguesa a vencer o Nobel. Seja como for, abusado como é, contraria o escritor português quando nos sugere que a criança não é uma rima para coisa nenhuma, pelo contrário, é o poema inteiro. E, como nos sugere o narrador do conto “O rato e o dicionário”, as histórias deste livro tanto valem por si como também valem pelo perfil de quem as conta. Neste universo imaginário, com efeito, “conhecer as palavras é sinónimo de resolver quase todos os problemas” (p. 57).

Para terminar, que esta apresentação já vai longa, Celso, deixo-te mais uma pergunta. Sinceramente, espero que respondas: já reparaste que te estás a tornar uma das grandes referências do infanto-juvenil em Moçambique?

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro A greve das palavras, de Celso Cossa, no Camões Centro Cultural Português em Maputo, no dia 25 de Julho de 2024.

Por: Sara Nhabau

 

A menina da Ronil. Assim dizem, quando relatam a minha história. Afinal, quem é a menina que assombra o bairro? É a Leonor. Esta é a minha história. Aos meus 15 anos, saí às ruas de Lourenço Marques. Estava um dia lindo e as acácias traziam cor à cidade. Não sabia eu que era a última vez que via a estrada cheia de viaturas de marcas e jovens desfilando os seus estudos. Atravessava para junto aos outros esperar transporte para regressar à casa, quando um condutor, sob efeito de álcool, bateu-me. No momento perdi consciência. O meu corpo ficou estatelado no passeio e cheio de vinho que das veias escorria. A minha perna não se mexia. O condutor viu a minha condição e preferiu colocar-se em fuga. Na hora, fiquei sem forças. Pedi ajuda, mas ninguém se aproximava. Então, vi os meus antepassados. Era a morte!

Fechei os olhos. O meu coração parou de bombear sangue e a minha alma deixou o corpo. Haaa, a ambulância chegou. Aliás, o coveiro veio tirar-me. Aí começou o terror. A minha família teve informação. Rapidamente, vieram reconhecer o meu cadáver. No dia seguinte, procederam com o meu funeral. E pronto. Abandonaram-me. Não houve oitavo dia, nem seis meses, mal esperei pela missa de um ano.

O condutor, este tinha um filho cinco anos mais velho do que eu. Nele recaíram os males do pai, para todo caso há um acaso. O jovem, já com 25 anos, fez-se às ruas da cidade, justamente na Ronil. A minha alma amargurada pelo abandono após o acidente e após a morte, decidiu assombrar os vivos. Num vestido cor da noite, com um sorriso e toda deslumbrante, fiz-me ao local onde Armindo, filho do condutor, estava, humildemente. Saudei-lhe. Ele foi gentil que a conversa alongou-se até que saímos para uma barraca onde bebemos até a madrugada, mal imaginava que estivesse com uma alma morta. O passeio foi agradável até que o meu filme começou.

Disse-lhe que sentia muito frio e era asmática. Gentilmente, emprestou-me seu casaco. Levou-me ao portão da minha casa e despediu-me com a promessa de nos vermos mais logo. Chegado a sua casa, com o sorriso no auge, relatou o sucedido à sua família que alegremente felicitaram-no pois nunca havia saído para passear com uma jovem. Às 16 horas, preparou-se e foi à casa que lhe tinha apresentado como minha. Chegado lá, bateu e minha mãe atendeu.

Quem é? – perguntou minha mãe.

Sou Armindo, amigo da Leonor. – respondeu o jovem.

Em quê posso ser útil? – perguntou novamente minha mãe.

Venho ter com ela, pode chamá-la? – perguntou o jovem.

Minha mãe ficou espantada e em simultâneo ficou triste porque achou que o jovem estivesse ali para tirar sarro dela. O jovem não entendeu o motivo da repentina mudança do semblante da minha mãe, dona Judite.

Ela morreu, passam cinco anos. – disse minha mãe.

Não é possível, estive com ela ontem, a mesma levou-me até aqui e ficou com o meu casaco porque sentia muito frio, alegando que é asmática. – relatou o jovem.

Sim, ela era asmática e morreu num acidente, inclusive fez cinco anos ontem. – explanou minha mãe.

Não, não é verdade. – Armindo recusou-se a acreditar.

É, sim. – afirmou dona Judite.

Minha mãe convocou todos os que estavam em casa: senhor Nguluve, meu pai e meus dois irmãos, Alfredo e Zaina, estes também confirmaram o que a minha mãe antes dissera. O jovem não acreditava, então, levaram-no à minha campa. Quase caía por trás, quando viu o seu casaco estendido no meu sepulcro. Foi aí que a minha família percebeu que o jovem falava a verdade.

Depois de presenciar aquele cenário, o jovem voltou à casa abatido, e mais uma vez relatou o sucedido à família, deixando assim o pai a transpirar, acreditando que a menina vinha se vingar. Dia seguinte, a família de Armindo foi à casa de Nguluve, conversaram e decidiram que deviam fazer missa.

Passado um mês, fizeram o decidido e todos passaram a ter uma vida normal. Armindo, com os seus 27 anos, já tinha a sua família, mas nunca mais passou da Ronil. A minha família e do condutor já havia recebido o meu perdão pelo abandono sepulcral.

A minha história até os dias actuais é narrada em Maputo, cidade das acácias e antiga Lourenço Marques.

04 de Maio de 2024

Muita da pintura abstracta é, de facto, pintura literária, a expressão de ideias.

in Um mundo de estranhos, Nadine Gordimer.

 

Os artistas plásticos têm a particularidade de exprimir em imagens o que, eventualmente, é redutor em palavras. Nos movimentos tácitos do pincel, o pintor esmera-se em alcançar uma harmonia demiúrgica, geralmente, a condizer com um estado emotivo: pretendido ou sugerido. Com efeito, entre o vazio e o absoluto, a ideia e a finalidade, denota-se, no campo visual, a representação pessoal das condições do inconsciente expresso simbolicamente, o que em Jung se resume a uma palavra: sonho.

No universo das cores esteticamente concebidas, parafraseando Adler, as funções primordiais do sonho incluem pensamento e sensação, claro está, transbordando sentidos como analogia da vida. Quer dizer, ao contrário do que Freud diria, o sonho não é absolutamente egoísta, mas profunda partilha (às vezes) experimentalista do estado da alma. Categoricamente, é nessa concepção que Languana situa a sua oficina, enquanto dimensão intangível do corpo e do mensurável.

Na sua mais recente individual de pintura, exposta na Galeria da Fundação Fernando Leite Couto, o artista realça que o seu “jardim dos caminhos que se bifurcam é a imagem incompleta, mas não falsa”* da existência. Na verdade, o jardim languaniano é a metonímia inversa de um mundo em convulsão, um lugar de pretensas animosidades políticas, ideológicas, económicas e culturais. Tendo em consideração um contexto adverso, depois da individual Conversando com o silêncio, novamente, Languana pinta, mais ou menos como Génesis procede com o Éden, uma dimensão degradante, mas subvertendo-a de conteúdo.

Nas suas representações, esquivando-se do horror e de todos níveis de indecência, da miséria, da leviandade e da consternação, o autor elege o Homem e a geográfica como fragmentos de uma narrativa escassa: na forma e no procedimento.

Dito de outro modo, Languana põe a rosa no lugar da arma, a sensualidade na ganância, a nudez na imperfeição e a infância no caos, até porque Nadine Gordimer prevê: “os psicólogos dizem que as brincadeiras das crianças são um longo ensaio para a vida”.

A partir dos seus Jardins de sonhos, o artista fixa projectos sintécticos sobre as coisas que realmente importam, intersectando, em geral, a abstracção das suas aguarelas sobre papel e a realidade envolvente. No seu conjunto, telas como “Esmola”, “Encontro de compadres”, “Todos de costas voltadas” e “A cadeira de leite e mel” reflectem o misticismo de um povo tradicional-animista, que encara a razão e a crença no mesmo nível de complementaridade.

Não obstante as frivolidades de algumas molduras, nas escolhas técnicas do tipo de material e nos acabamentos, às vezes com o papel mal esticado, Jardins de sonhos apresenta um autor sensível à configuração de um ecossistema suportado pelos distintos anseios do Homem. Com a excepção dos jogos de equilíbrio igualmente sustentados pelo carácter narrativo das telas, em Languana nada é total. Ao artista importa mais sugerir, com a coerência daí resultante, do que definir. Quiçá por isso, em algumas ocasiões, nota-se uma vaga de substâncias que, aparentemente, se consolida com tinta-da-china e com técnica mista. Nesses casos, a cor, enquanto elemento vibrante, desaparece. Há-de ser por essa razão que as telas “Cão de guia”, “Apocalipse”, “Brincadeira de criança” instauram uma atmosfera melancólica, em que a incerteza relativamente ao futuro das figurações é dominante. Naquelas três telas a preto e banco, Languana, como Amin Maalouf, parece subscrever que “o homem é tão vulnerável perante o Destino que mais não pode do que ligar-se a objectos rodeados de mistério”.

Finalmente, nas suas variadas estruturas e proporções, com ou sem mistérios, as obras de Languana são bifurcações do ser colectivo, a textura de um fiel jardineiro que, em silêncio, encontra nas artes plásticas a particularidade de intervir no seu território físico. Para o efeito, o artista inventa flores, fragmenta e distorce, recria e modifica, propondo, assim, uma realidade consentida e inadiável.

 

Título da exposição: Jardins de sonhos

Autor: Languana

Galeria: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 17

 

* Título e excerto original de Jorge Luís Borges, in Ficções.

Numa sociedade marcada pela tensão entre a preservação das tradições e a pressão da modernidade, “Lagartos de Madeira e Zinco” se destaca como um retrato vívido e crítico das complexidades da vida em Moçambique, capturando a luta pela identidade e a resistência diante das desigualdades.

A narrativa de Hélio Nguane mergulha profundamente nas adversidades enfrentadas por indivíduos que, em meio a uma realidade brutal, buscam dignidade e sentido.

Com uma combinação de lirismo e realismo, a obra expõe o impacto das transformações sociais e culturais sobre as vidas cotidianas, revelando as fissuras e as tensões que moldam a experiência de seus personagens.

Nguane utiliza uma linguagem imersiva e evocativa para retratar a luta pela sobrevivência e pela dignidade num contexto marcado pela precariedade. Desta forma, a crónica não só expõe as duras realidades da vida em Moçambique, mas também provoca uma reflexão mais ampla sobre o impacto da modernidade nas tradições culturais e nas relações sociais. Como diz Fernando Pessoa, “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”.

A linguagem, ainda que bela, no entanto, pode apresentar desafios, com palavras e expressões menos comuns que se desdobram pela narrativa, dificultando a compreensão para alguns.

De facto, através de personagens como João Matandza, o autor explora a luta diária pela sobrevivência. O vínculo com a ancestralidade e as raízes culturais é um tema recorrente, ressaltado por referências a locais significativos como Massinga e a presença constante de influências urbanas corruptoras.

A obra é permeada por conceitos e representações que provocam uma reflexão sobre a natureza humana e os conflitos sociais. Aliás, a descrição das roupas gastas e dos pés rachados de João Matandza não é apenas um detalhe físico, mas uma representação visceral de sua trajectória difícil e da aspereza do ambiente que o cerca.

“Quem com pés descalços conhece seu destino, com calos conta como foi dura a sua caminhada”, escreveu Josias Doba, e essa dualidade ressoa fortemente na luta e na esperança presentes na narrativa de Nguane. Cada passo que João dá com os seus chinelos, que “raspam a entrada, roçam a areia”, é uma metáfora para a árdua caminhada da vida. A caixa que ele carrega, destinada a conter 48 ovos cozidos, sal e o dinheiro da receita, evidencia responsabilidade e esperança, ainda que frágil, contrastando com seu estado físico debilitado.

Embora a construção dos personagens seja sólida, o desenvolvimento do enredo poderia ser aprimorado com uma estrutura narrativa mais clara e objectiva, o que potencializaria a dinâmica da história, tornando-a mais acessível e impactante.

Efectivamente, a interacção dos personagens com o ambiente urbano também é notável. Nguane descreve a presença do pregador no transporte colectivo como um reflexo da persistência da espiritualidade, num contexto de indiferença e rotina exaustivo.

Por um lado, a crónica apresenta várias passagens ambíguas. Aliás, a falta de clareza sobre os sentimentos e pensamentos internos de João, durante as interacções com as profissionais do sexo, pode dificultar a compreensão completa de suas motivações e reacções.

Por outro lado, a obra permanece intrinsecamente envolvente. As descrições minuciosas das adversidades diárias, como o caos no transporte colectivo e a necessidade de lidar com a violência e a coação, evidenciam as dificuldades enfrentadas pelos moçambicanos em busca de dignidade e estabilidade.

Ora, enquanto os atletas olímpicos se tornam heróis luminosos num palco mundial, a crónica de Nguane ilumina as sombras que persistem nas vidas das pessoas comuns, lembrando que, para muitos, a verdadeira vitória é encontrada nas batalhas silenciosas da vida cotidiana.

No capítulo intitulado “Ontem foi o meu aniversário”, o autor aborda a temática do tempo e da memória de maneira pessoal e introspectiva. Utilizando a celebração de um aniversário como pano de fundo para explorar reflexões mais profundas sobre a vida, as mudanças e as permanências.

A rotina matinal descrita pelo narrador, que envolve um olhar para a mãe no espelho do vaso e repetição acções cotidianas, contrasta com a reflexão interna sobre mudanças.

Nguane manipula o tempo narrativo de forma eficaz, demonstrando habilidade em transformar o ordinário em algo extraordinário. A menção ao aniversário serve como um ponto de ancoragem para reflexões mais amplas sobre o que mudou e o que permaneceu inalterado na sua vida.

Mais adiante, em “Perdi a minha melhor crónica”, o autor oferece uma narrativa que nos leva ao âmago da frustração criativa, enquanto também nos faz refletir sobre a dependência tecnológica e os desafios inerentes à escrita. Este capítulo é uma montanha-russa emocional que revela tanto os pontos fortes quanto as limitações da obra.

A falha do computador não é apenas um contratempo, mas uma metáfora para a fragilidade do trabalho digital. A tecnologia, que deveria ser uma aliada na criação, revela-se um campo minado, onde um simples erro pode destruir dias de esforço e inspiração.

Nguane compartilha uma experiência pessoal e íntima, conferindo uma sensação de realidade que ressoa profundamente com qualquer pessoa que já tenha enfrentado uma perda criativa. A inclusão de detalhes específicos, como a tentativa desesperada de recuperação e a oração final, reforça a veracidade e a proximidade da narrativa.

A narrativa, embora emocionalmente rica, sofre de previsibilidade. A ideia de uma falha tecnológica, causando a perda de um trabalho, é uma situação familiar e esperada. Isso diminui o impacto da história, que poderia se beneficiar de reviravoltas mais inesperadas ou de uma complexidade maior no enredo.

O capítulo toca em temas cruciais como a inspiração súbita e a dependência tecnológica, mas a exploração desses temas é superficial. Uma análise mais profunda sobre a natureza efémera da criatividade ou a luta dos escritores contra as limitações técnicas teria adicionado maior profundidade à narrativa.

“Lagartos de Madeira e Zinco” oferece um retrato imprescindível e evocativo, lembrando que, mesmo em meio à brutalidade da realidade, há uma beleza resiliente na luta pela identidade e pela justiça. Ao fim, a crónica nos exorta a valorizar as pequenas vitórias do cotidiano e a manter viva a chama da esperança e da resistência frente às transformações implacáveis do mundo moderno.

“Chókwè é um verdadeiro paraíso para negócio ilícito,[ porque], todo o mundo vê, as autoridades vêem, mas ninguém se preocupa. O enriquecimento ilícito não assusta a ninguém.”

In: Almeida Cumbane. “Ilusão à Primeira Vista”. 2.ed. 2016, p.75

Esta citação nos faz viajar para Ndaveni, em Mabunguanine, província de Gaza, distrito de Chibuto, para reflectir em torno do enriquecimento ilícito, tema abordado por meio da música.
Na década de 80, Moçambique foi surpreendido com uma belíssima canção intitulada “Metical”, do músico e compositor Alexandre Langa, na qual “Jossefa Mukombo”, uma personagem, andava sempre cheio de dinheiro e bêbado, mas desempregado. A música pertence ao género Marrabenta, tem apenas duas personagens, uma que é estranha e a outra chamada Jossefa Mukombo.

Na mitologia moçambicana, a marrabenta, nos seus primeiros anos de configuração como género musical, usava guitarras manufacturadas. Por isso, as cordas rebentavam com muita facilidade, daí que surge a palavra marrabenta, que, Segundo INFOPÉDIA, dicionário online da Porto Editora, vem do verbo “rebentar” (“arrebentar”, em vernáculo local), em uma provável referência às fracas cordas em guitarras de latas usadas na altura. As letras das canções deste género versam sobre temas como: a injustiça, o amor; a vida quotidiana; a história de Moçambique.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, alegre-moderado. Uma marrabenta, mas não agitada, tem um ritmo suave e fácil de acompanhar porque não precisa se mexer muito para dançar, a tonalidade está na escala de sol maior, uma escala muito bem seleccionada por ser uma música de carácter vivo e alegre, com ritmo característico da zona Sul do país.
Escutando a música é possível perceber que para a produção do instrumental foi usado: uma bateria e três guitarras.

A primeira guitarra faz solo, a que tem som mais agudo. A segunda produz ritmo, e a terceira faz baixo, som mais grave e juntas produzem uma melodia muito rica, porque para além de servirem de base para o corro também ornamentam a música através de ritmos repetitivos que preenchem perfeitamente os espaços vazios que a voz do corro não consegue cobrir.

Do modo particular, a guitarra baixo, fora marcar o andamento da música, função principal deste instrumento, também cria groove, permite com que quem escuta possa sentir ou ter vontade de dançar. A marcação do tempo da guitarra baixo coincide com os batimentos do coração e, por isso, aos ouvidos de quem escuta automaticamente gera movimentos involuntários sobretudo o abanar da cabeça para quem está de pé ou o chocar repetido do pé com o chão para quem escuta a música sentado.

Na projecção da ideia central, o músico monta um cenário de um silogismo, segundo a qual apenas os trabalhadores têm dinheiro. Logo, todo aquele que não trabalha não têm dinheiro. Mas o que é absurdo, escândalo nesta canção, acontece que, Jossefa Mukombo não trabalha, no entanto, tem dinheiro.

O facto de um desempregado ter dinheiro escandaliza a voz de enunciação, que quer saber onde Jossefa arranja tanto dinheiro mesmo não sendo trabalhador.

O momento mais alto deste diálogo trazido em forma de marrabenta é quando a personagem sem nome questiona J. Mukombo: “Metical pega quem trabalha. Você não trabalha. Onde encontra tanto dinheiro?”. Por sua vez, este cala, não diz nada. Porquê Mukombo não disse a proveniência do seu dinheiro? Será que era ilícito?

De referir que esta música é gravada nos tempos em que o país usava a música como uma via para persuasão e educação da moral social, diferente da música actual, que é mais uma simples contribuição para a idiotização da sociedade, sobretudo dos adolescentes.

A música de Langa é uma bússola na actualidade. Pós, o país encontra-se mergulhado nesta realidade de pessoas que não trabalham e meia volta aparecem ostentando carros de luxo, telemóveis caríssimos nas redes sociais. Os pais, na actualidade, são desafiados a ir buscar a coragem do músico e questionarem aos seus filhos a origem dos Ractis, IPhone 14 pro Max trazidos para casa diariamente por filhos que não trabalham e não produzem.

O que é incrível, nos dias de hoje, os pais fazem festas, abrem garrafas de champanhe para comemorar junto dos filhos bens de proveniência duvidosa.

Cada vez mais, a sociedade está de forma impávida a assistir a degradação da moral social. O eu lírico da canção é que diferente dos pais da actualidade. O compositor não corre para festejar, mas, sim, para questionar.

É difícil para, os pais, perguntarem onde uma rapariga de 14 anos encontra dinheiro para comprar IPhone 14? Um aparelho avaliado em um pouco mais de 2 mil dólares, o correspondente a 126 mil meticais. Sem falar dos cabelos de somas incalculáveis até aos olhos de um trabalhador que recebe salário mínimo,4.941 MT, quanto mais para uma pessoa que não trabalha!

Em Maputo, sobretudo nas zonas periféricas da cidade, até 2005, quando uma criança ia à escola, levava consigo, no ombro, uma pasta plástica, doada pela UNICEF, devido às cheias de 2000. No regresso da escola, os pais, sobretudo as mães, tinham o hábito de revistar a pasta no regresso da criança para se verificar se, por engano, não teria pego um livro, um caderno, um lápis, uma borracha que não fosse dela. Bastava encontrar algo impróprio ou que a mãe não reconhecesse, a criança tinha de devolver de imediato. Onde foi parar este hábito?

Como mencionado no livro o “Vagabundo da pátria”, do escritor Marcelo Panguana, “depois da independência, o país quando parou de vigiar. Logo do imediato, começou a produzir putas, ladrões e xiconhocas”.

O mérito da música de Alexandre Langa reside no facto dela educar a sociedade e ressaltar os valores. O músico nos lembra sobre a importância de questionar e não aceitar receber dentro de casa coisas de origem duvidosa. “Metical” é uma tentativa de resgatar os valores de uma sociedade que cada vez mais tende a tornar-se menos vigilante.

 

 

Artista: Alexandre Langa
Título da Música: Metical
Gênero: Marrabenta
Duração: 4’:54”

 

 

 

À medida que nos aproximamos do fim de um ciclo governativo de uma década e nos preparamos para um período eleitoral que inaugura outro ciclo, surge uma agitação crescente em relação ao futuro. As expectativas ampliam-se e as propostas para a próxima fase de governação começam a emergir como fundamentos essenciais para orientar o país nos anos seguintes. Nesse contexto, é imprescindível avaliar o papel e a importância da literatura moçambicana como um elemento vital no panorama do desenvolvimento nacional. Devemos questionar-nos qual será o papel que esta arte pode desempenhar neste próximo decénio.

É crucial lembrar que a literatura moçambicana, como um sistema, é relativamente jovem, com menos de 100 anos de existência, e a sua base na escrita representa um desafio significativo num contexto em que mais de 40% da população ainda é analfabeta. Além disso, enfrentamos contínuas e visíveis dificuldades no processo de ensino e assimilação da língua portuguesa, que é a língua oficial em Moçambique e na qual assenta, grosso modo, toda a produção literária nacional.

Ao pensarmos sobre a literatura moçambicana nos próximos 10 anos, é fundamental considerar, em primeiro plano, a massificação da alfabetização e o acesso ao livro: é essencial investir em soluções ou programas de alfabetização para reduzir o alto índice de analfabetismo em Moçambique, tendo o livro como centro. Devemos garantir que a população tenha acesso à literatura em todas as suas formas, seja por meio de livros físicos, digitais ou recursos audiovisuais. Só para citar este último exemplo, já tivemos em Moçambique, ao nível da rádio, programas de teatro radiofónico, que serviam para criar, adaptar e difundir a literatura local através da rádio e assim levar as nossas histórias e vivências imaginadas à maioria da população. É necessário, partindo desse tipo de experiências, encontrar novas formas de levar a literatura, o livro e as histórias, e devolvê-las para quem as faz ou as vive no dia-a-dia.

Em segundo lugar, devemos preocupar-nos com a inovação literária: a nossa literatura precisa continuar a inovar e explorar novas formas de expressão que reflictam as complexidades da sociedade contemporânea e abordem questões urgentes, como as mudanças climáticas, a vida urbana e rural, as desigualdades sociais e os direitos humanos. É preciso encontrar novas formas e modelos temático-narrativos que nos coloquem lado a lado com outras literaturas e preocupações que permeiam o mundo, partindo sempre da nossa experiência e dos nossos saberes locais.

Um terceiro aspecto, não menos importante, é a educação literária: necessitamos de voltar a investir na educação literária nas escolas, algo que a minha geração e as que a precederam assimilaram, mas que está descontinuado neste novo modelo de educação. Estimular as crianças ao livro é essencial para cultivar o amor pela leitura desde cedo, desenvolver habilidades críticas e analíticas e promover uma compreensão mais profunda da identidade moçambicana e da diversidade cultural. Isso passa, por um lado, por expor as crianças às histórias e aos escritores, ainda mais cedo.

Em último, e aqui, puxando a sardinha para a minha brasa, falo de uma melhor integração do escritor na cadeia de valores da indústria cultural e criativa: é necessário reconhecer o escritor como um profissional e fornecer-lhe todo o suporte necessário para que seja valorizado e ressarcido adequadamente pelo seu trabalho. Isso implica considerar a dimensão social do trabalho literário e apoiar toda uma indústria cultural emergente.

Outro factor que me leva a reflectir sobre os desafios enfrentados pelo sector literário é que, enquanto a produção literária cresceu nos últimos anos, as estruturas de suporte, como livrarias e editoras, sofreram com o fecho de muitos estabelecimentos e a falência de várias editoras. Além disso, os prémios literários, que muito motivavam o escritor, entre os iniciantes e os consagrados, e o compensavam, às vezes, das vendas incipientes que caracterizam o mercado livreiro nacional, foram fechados ou estão no limbo, caso de célebres prémios como o BCI de Literatura, o prémio TDM, o prémio 10 de Novembro, para mencionar alguns. É essencial resgatar e valorizar os verdadeiros talentos da literatura moçambicana, reconhecendo os precursores e os contemporâneos que têm contribuído significativamente para enriquecer o cenário literário do país.

Além disso, a literatura pode ter um impacto económico positivo, através da criação de empregos na indústria editorial, promoção do turismo cultural e geração de renda para escritores, editores e outros profissionais do sector. O investimento nas economias criativas e na literatura, em particular, pode proporcionar imensos ganhos e fortalecer a nossa cultura, condição indispensável para a consolidação da democracia. Uma literatura de qualidade, por exemplo, é condição para um cinema e televisão mais abrangentes e fortes, um teatro mais criativo e dinâmico e uma música mais capaz de narrar e poetizar histórias maduras e de qualidade.

Investir na literatura moçambicana no próximo decénio é essencial para garantir um desenvolvimento integral e sustentável do país, que promova a cultura, a educação e a economia, proporcionando um futuro mais promissor para todos os moçambicanos.

Para terminar, lanço aqui uma pergunta provocatória: quais são os últimos livros de literatura moçambicana que estão ou estiveram a ler os até então três candidatos à presidência da República?

 

Aproveitando-se da ausência do Estado, das normas emanadas pelos órgãos oficiais e da sua própria ausência nas estatísticas daquele, instalou-se aqui um Estado paralelo. Os seus limites geográficos vão para além dos parques e paragens de semicolectivos, as suas fronteiras são abstratas, mas bem consolidadas e não são porosas.

Exerce-se aqui um verdadeiro poder político. Ninguém dentro do povo que constitui este Estado ousa desobedecer ou pôr em causa qualquer norma. Este governo autoproclamado, consequência do caos da inexistência de quem deveria dar protecção e fiscalização, instituiu-se para pôr ordem à sua própria (des)ordem.

Ao cair da madrugada e o prenúncio do novo amanhecer, os sons dos pássaros e os estalidos dos seus bicos e pernas, que, augurando um bom dia de nova caçada, se vão misturando às vozes e cantos melodiosos que vêm dos “chapeiros”: Xiqueleneeeee, Baixa, Baixa, Xipamanineeee, em coros e dicção afinados e perfeitos para publicitar o destino.

Em contraste, vai o desejo de ninguém chegar ao destino, pois as paradas intermédias são as mais desejadas, porque é aqui onde se encontra o verdadeiro passageiro.

O que vai até o destino final, é mercadoria, é pedra ou acompanhante do “xiguiane”. Aqui só se deseja passageiro, o fugaz, o famoso sobe e desce.

Neste território, a soberania não reside no povo. Este é apenas um mero instrumento de garantia de receita. O passageiro aqui não escolhe o seu próprio destino, é-lhe imposto.

Constituem órgãos de soberania deste Estado:

I) O chefe de Estado – o “modjeiro”;

II) O Governo (constituído por dois ministros – o cobrador e o motorista).

“Modjeiro” – figura emblemática, é o chefe de Estado, o órgão máximo, tem concentrado para si todos os poderes:
a) o poder legislativo, é ele que emana todas as normas que funcionam no território deste estado, a Assembleia da República é ele mesmo, as suas regras vinculam a todos, o motorista, o cobrador, o passageiro, todos os outros “chapas” e, por vezes, a própria Polícia Municipal. As suas normas são de cumprimento obrigatório para todos, não passam pela fiscalização prévia da inconstitucionalidade, aliás nunca são declaradas inconstitucionais, porque o modjeiro é também o próprio conselho constitucional. Ninguém entra ou sai do carro sem obedecer a estas normas.

O modjeiro detém também:

b) o poder executivo, ele é quem determina o que o cobrador e o motorista devem fazer, em que local devem estacionar, quem deve entrar e sair da viatura, infeliz quem não cair nas graças deste. Os seus critérios de selecção dependem das suas necessidades momentâneas, humor, estado de espírito e o seu nível de lucidez. Não interessa a beleza do passageiro, seu sorriso contagiante, seus atributos físicos, sua indumentária, o tamanho da sua gravata, o preço do seu cabelo, seu diploma universitário, nem é dissuasor o seu destino.

—Vou à Faculdade moço, posso entrar?

— Aqui não funciona Faculdade, está bem!? – Vai saindo assim a ordem de Estado, numa voz arrogante, com algum boçalismo à mistura, numa demarcação clara e inequívoca de quem detém o poder naquele local.

É preciso cair nas graças dos modjeiros, para embarcar em qualquer odisseia nesta nave espacial supersónica mas sem espaço interior, são levados todos à sardinhada.

Todos viram mendigos e prestam vassalagem ao chefe para conseguir um bilhete de embarque no minúsculo espaço que sobra.

É nesta figura que está também descrito c) o poder judicial e judiciário, pois é ele quem dirime qualquer litígio e contenda que ali surgir, lavrando a sentença executória, transitada em julgado, em um processo sumaríssimo, que ele próprio fez diligências de prova, é testemunha, advogado e Ministério Público.

O direito à defesa, ao contraditório e o princípio “in dubio pro réu” aqui não existem. Ele Indica o tribunal: “vai para outro chapa”, “vai queixar onde quiser”, “vai ter com o motorista”.

O modjeiro profere e executa a sentença no momento, contra todos os que desobedecerem às suas normas. Tem o poder de emanar uma providência cautelar de “embargo de carregamento novo” contra qualquer outro carro que ousar efectuar carregamento antes do tempo e fora da fila, executando ele mesmo o encerramento da porta para impossibilitar a violação do direito do legítimo transportador.

É um verdadeiro justiceiro.

O chefe deste Estado [o modjeiro] é astuto, focado e objectivo, cumpre todas as suas missões com zelo e determinação, não se distrai do objectivo. Um verdadeiro Luís XIV, num autêntico “l’Estat c’est moi”. Exerce um poder absoluto, mas não é absolutista, escolhe o sistema e o governo do dia por conveniência, quando lhe convém, é democrata:

— “Só tenho 10, cobrador.”

— “Pode entrar.”

Escolhe a teocracia às vezes, “só carrego minhas manas da igreja”, “graças a Deus mana, conseguiste entrar”.

Por vezes é um monarca, só carrega o seu clã: “vem cá entrar, meu puto”, “para onde vais, tia Anabela?”, “hei, esse lugar reservei para a minha mãe, aí ninguém senta”.
Quando lhe é conveniente, é um oligarca… “Ei, bro, vais para onde? ah entra, meu babo” “não paga nada, mais logo chutas um bond para mim”, “teu chapa está onde babo?” “não jobas hoje?”.

Por vezes, é um tirano e déspota: “desce lá! Apanha táxi, aqui não vais subir”.

A ascensão do modjeiro ao poder foi minuciosa e calculada como a de qualquer ditador. Aproveitando-se da inoperância, luxúria, soberba e apatia do seu antigo patrão – [o cobrador], o modjeiro foi aos poucos caindo nas graças do grande público que consigo fazia negociatas para “furar” a fila. Foi acreditando no seu potencial de negociador e deu golpe de Estado palaciano ao cobrador, substituindo-se ele mesmo aos antigos atributos daquele, hoje tem o seu poder consolidado.

O cobrador – membro do governo, ministro das Finanças, outrora arrogante, boçal, exemplo de mau carácter, pouco apuro de glamour e higiene. Enamorado pelas belezas que transporta, decidiu dar um “upgrade” no seu “look” e estatuto, autopromoveu-se, passando ele mesmo à figura de “patrão” contratando seu subordinado. Virou um boémio, distraído pelos prazeres da vida, abandonou o leme, sentiu-se galã, era já um sedutor, um “Dom Juan”, traído pela libido, o “bon viven” Hoje golpeado pelo seu antigo empregado, agora seu chefe.

Pouco se diga desta figura, que lhe foi reduzida a extensão e dimensão do cargo “cobrador”, hoje exerce papel restrito, sobrando para ele apenas a colecta de receitas, ja pré-definidas e pré-negociadas pelo seu actual chefe (o ex-empregado), em perfeita semântica do seu nome (cobrar apenas).

O motorista – é a figura aparentemente mais calma e parca deste executivo, mas só durante a vigência das ordens do chefe modjeiro, pois, a partir do momento em que se faz a rodovia, é o piloto no cockpit do supersónico, liberta pelo escape, os gases da combustão na fuselagem. Contudo, há aqui, pelo menos, justiça social, este ministro pode-se confundir com o proletariado, é quem mais trabalha e de forma justa, o que mais ordenado recebe. Tem poder discricionário sobre os colegas, mas as suas ordens podem encontrar oposição por parte do modjeiro, quando este as julgar ilegais e furtar-se ao cumprimento. Este é o ministério dos transportes por excelência.

Este é um Estado, montado longe dos holofotes e escrutínio dos que ao conforto das suas viaturas se locomovem, não sentem o ar empoeirado que vitima os que àqueles parques se fazem para nutrir a sua necessidade obrigatória e diária de mobilidade. Aquele não é um caos, é um verdadeiro estado organizado, onde as normas são cumpridas na íntegra e a presença de ordem após o caos é materialmente sentida.

O modjeiro tomou de assalto aquele território para o organizar à sua imagem, está no pleno exercício de uma cidadania activa.

Não é nenhum Estado paralelo, aquele é o verdadeiro Estado!

A noite descia vagarosamente sobre a terra e precipitava o seu amadurecimento. O Wimbe chamava por mim na voz que abria a janela do Hotel Raphaels. Vestida de um robe de chambre branco, se me espreitavam a alma, os meninos de Faulkner no lodo, e das águas do mar soprava o Som e a Fúria. Haviam muralhas entre a morte e o medo e o mar fruía as feições de uma onça.

Pelos corredores de Nautilis, outro paraíso que detém a minha alma, cruzei-me com um ferido dentre tantos outros militares sul-africanos, sangrava pelo braço direito e com todo o seu corpo gigante apoiava-se com seu peso sobre os ombros de um outro coitado. Para Sartre (2004, p.19) “a prosa é antes de mais nada uma atitude do espírito…há prosa quando nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. E ainda hoje, o meu olhar atravessa o homem ferido no braço direito que continua passando pelo corredor das minhas lentes de longo alcance e o seu sangue que goteja pelo braço tinge ininterruptamente a capulana que cobre a terra que move tantos outros coitados.

Num mapa conceptual criei os meus personagens. Pessoas do quotidiano, com quem me cruzei amiúde na terra e no céu e outras imaginárias.

Steiner (1994, p.36) diz o seguinte: nunca me ha parecido que existan diferencias entre poesía y filosofía, entre música y matemáticas. Move-me este pensamento porque em mim nunca encontrei a fronteira entre os números e a literatura. A paixão que me move enquanto contabilista é a mesma que me move intensamente como escritora. Escrevo como analiso os números. A literatura é um conjunto de equações solúveis e insolúveis e nessas equações busco por via de caminhos individuais diversificados, uma resolução que me conduza à solução conjunta ou mesmo à epistemologia de enigmas que são os imbróglios que assombram o quotidino. A alteridade caracteriza o mistério com que se resolve uma função matemática.

Em “uma onça na cidade”, quebro o paradigma de se pensar a contemporaneidade como sacrossanta, e busco a hodiernidade, porque o passado cheira à mofo e a minha rinite não mais me aquiesce fuçar as narinas no pó, quero embrenhar os fluxos de consciência, os monólogos interiores e diálogos no contentor depositado agora, porque este é o meu tempo e tenho os meus olhos fixos na tela do tempo presente.

Penso na batata-reno que açoita a sociedade que procura por mesas para nelas pousar suas moscas, mesmo quando o seu preço tem função linear de assímptota vertical.
Uma calcinha que tira o sono de um homem de 1.90m é o plano estratégico de uma nação que pensa em morar eternamente dentro duma calcinha. Exercita-se a constuição de memórias dos tempos de autocarros que rasgavam as estradas das cidades até ao interior e hoje essas estradas rasgam o interior das paredes das cidades forradas de raptos e mortes.
Neste livro, escrevo sobre o polícia-ladrão, as leis de silêncio e silenciamento e os jornais fodidos pelas perseguições no exercício de suas funções de comunicar. Confesso-vos, que hoje tenho muito mais medo de polícia fardado que qualquer outro cidadão. Escrevo sobre a fuga da meritocracia nos ambientes de trabalho, o assédio sexual e nepotismo, que tornam a sociedade indigente.
Escrevo sobre mulheres fodidas pelo desemprego que desesperadas submetem seu curriculum e manifestam pedido de emprego depositando a sua candidatura na cama de um chefe em Matalane e Munguine, no serviço militar obrigatório, e o chefe despacha todos os pedidos dentro dos lençóis das camas adentro, ele defende a pátria, defende as mulheres desprotegidas engravidando-as e dando-as HIV, ele assegura a nação para que as mulheres tenham tranquilidade, emprego e amor, entram em Matalane e Munguine desempregadas e saem ocupando o posto de amantes do chefe e assim reduz a taxa de desemprego no país.

Todas as lágrimas que não cabem nos Homens cabem no Wimbe. Analiso a minha escrita como produção da consciência autoral que reside na terra: um idioma, uma etnia, uma religião e uma cultura.

E a Joaneta?

Joaneta, somos todos nós a quem apenas resta um orificio e não nos restam membros. Todos somos Joanetas, corpo decapitado, corpo de errante que vaga sem membros. Resta-nos apenas um orifício para que sejamos homens e mulheres. Todos nós somos Joaneta. A violência contra os homens, as mulheres e crianças, torna-se uma arte em escolas, igrejas e outras infra-estruturas públicas esfaceladas pelos al-shabaabs.

Entre a descrença e as imprecisões, há ainda serpentes que sobrevivem comutadas em humanos que alimentam-se de outros humanos. Ah, esses são Homens desta época, mitos da contemporaneidade.

O país não tem mais cabeça. Como se pensa sem cabeça? O país não tem mais olhos para contemplar a sua miopia. Tem uma sexualidade indefinida. Ao fim todo orificio serve para o alívio de quem está no aperto.

Na perspectiva de Guillermo Cabrera Infante (2012, pag. 232), “a única literatura possível estava escrita nos muros’’. Nesta reflexão reverberam-se sentimentos contrastivos que norteam a sociedade redefinida entre novíssimos muros edificados entre a ética e anti-ética, entre os ricos que fazem fronteira com os pobres e ainda que perfaçam diferentes estruturas sociais, continuam a respirar o mesmo ar que escreve a literatura nas paredes do quotidiano descrito em “uma onça na cidade”.

A arte é comunhão. O escritor entrega quando se dá à sua sociedade. Dá-se gratuitamente porque o verdadeiro amor não está no Mercado do Peixe e nem sequer no Zimpeto.

Na translineação estrutural do texto, em “uma onça na cidade” deparamo-nos com as rondas de negociação da paz, no Centro de Conferências Joaquim Chissano. A paz negociada em mesas e poltronas, um bem tão sonhado que habitou nossas casas em telas televisivas e jornais por via das pessoas que a negociavam. Destarte, ainda que durmamos em travesseiros de catanas e cubramos lencóis de medo, continuamos expectantes em ver os paletós sorrirem abraçando o corpo de dois homens de extremos diferentes, mesmo sabendo que hoje somos apenas beatas, dum cigarro que fora um mero projecto de um fumante.

A galeria da Fundação Fernando Leite Couto acolheu, no passado dia 3 de Julho, uma exposição individual, do artista plástico Aldino Dinis Languana, intitulada “Jardins de sonho”.

Dentre os quadros patentes na exposição, encontra-se “a cadeira de leite e mel”, obra aprimorada com recurso à técnica de pintura com aguarela sobre tela. A obra possui as dimensões 54x65cm, e foi criada em 2024.

O título “a cadeira de leite e mel” oferece-nos a ideia de um espaço confortável, um pedaço de lar, de aconchego, onde podemos sentar e sossegar. O quadro apresenta um homem sentado sobre um banco no meio de alguma rua, no alvorecer ou ensurdecer do dia, tendo uma possível zaragata, com três homens que se encontram em pé, sob o olhar impávido de um cachorro cinzento, provavelmente vadio como os homens, e um mamífero no canto inferior direito não tanto distinguível.

As linhas do desenho são finas e curvadas, criando uma sensação de suavidade e leveza, mas também são semi irregulares e acrescentam a percepção de estarmos perante um esboço de um desenho que ainda vem a seguir.

O ponto central da imagem assalta a atenção do observador, devido à ilusão de movimento, causada também pela sobreposição das figuras humanas, onde observamos os três homens praticamente tocando no peito ou ombro da figura sentada no banco, provavelmente desenfreando um assunto quotidiano.

As formas das figuras são humanas e animalescas mais próximas da realidade, permitindo maior envolvimento e interpretação do observador em relação à obra.

As cores modelam-se na passarela da tela, complementando-se e harmonizando entre si, com a variação entre o azul, amarelo, cinzento e tons diversos do laranja, que em cada canto da tela encontram o seu brilho. O castanho, ainda que camuflado, confraterniza em menos espaço com outras cores que, em uníssono, cintilam na tela.

Languana faz da sua tela um ambiente natural, provavelmente um jardim, ou uma rua sem movimento, onde as figuras interagem em busca da sua cadeira de leite e mel.
Mas porque três homens procurariam uma cadeira já ocupada num lugar público? Porque provavelmente não têm um lar. A presença de um cão próximo ao banco e aos homens indica, claramente, que se trata de uma praça pública ou de um lugar frequentado por pessoas sem lar.

A obra pode estar a convidar-nos para reflectir em torno das pessoas desfavorecidas que vivem na rua, sem lar e assistência. Em Moçambique, temos um extenso número de pessoas, inclusive de crianças que vivem na rua, sem esperança de ter um lar, um aconchego onde possam ter uma vida digna. Quanto de acção social ou solidariedade temos doado a este grupo social? Esta pode ser uma pergunta do autor.

Outro debate pertinente que o autor pode estar a omitir por trás das pinceladas é a disfunção familiar actual. Os homens não nascem em jardins, nem em praças públicas, eles vão lá parar por várias circunstâncias, conflitos, muitos deles envolvendo suas famílias vulneráveis financeiramente, onde não se pratica o amor, respeito e tolerância, resultam em disfuncionalidade e fragmentação.

Mas também se pode concluir, com este retrato, que Languana quer debater sobre a  economia do País, que está em queda, gerando a pobreza e miséria, e, por sua vez, a pobreza, gerando moradores de rua e mendigos que não têm rentabilidade para se susterem a si próprios.

Languana, ao colorir a obra “cadeira de leite e mel”, colore também o seu talento e a sua opinião sobre flagelos sociais no país, convidando o espectador a fazer parte do seu debate.

Nota: “a cadeira de leite e mel” é uma obra de Languana, que integra a individual “Jardins de sonho”, na galeria da Fundação Leite Couto. A exposição com curadoria pode ser visitada até 3 de Agosto.

A galeria da Fundação Fernando Leite Couto acolheu, no passado dia 3 de Julho, uma exposição individual, do artista plástico Aldino Dinis Languana, intitulada “Jardins de sonho”.
Dentre os quadros patentes na exposição, encontra-se “a cadeira de leite e mel”, obra aprimorada com recurso à técnica de pintura com aguarela sobre tela. A obra possui as dimensões 54x65cm, e foi criada em 2024.

O título “a cadeira de leite e mel” oferece-nos a ideia de um espaço confortável, um pedaço de lar, de aconchego, onde podemos sentar e sossegar. O quadro apresenta um homem sentado sobre um banco no meio de alguma rua, no alvorecer ou ensurdecer do dia, tendo uma possível zaragata, com três homens que se encontram em pé, sob o olhar impávido de um cachoro cinzento, provavelmente vadio como os homens, e um mamífero no canto inferior direito não tanto distinguível.

As linhas do desenho são finas e curvadas, criando uma sensação de suavidade e leveza, mas também são semi irregulares e acrescentam a percepção de estarmos perante um esboço de um desenho que ainda vem a seguir.

O ponto central da imagem assalta a atenção do observador, devido à ilusão de movimento, causada também pela sobreposição das figuras humanas, onde observamos os três homens praticamente tocando no peito ou ombro da figura sentada no banco, provavelmente desenfreando um assunto quotidiano.

As formas das figuras são humanas e animalescas mais próximas da realidade, permitindo maior envolvimento e interpretação do observador em relação à obra.

As cores modelam-se na passarela da tela, complementando-se e harmonizando entre si, com a variação entre o azul, amarelo, cinzento e tons diversos do laranja, que em cada canto da tela encontram o seu brilho. O castanho, ainda que camuflado, confraterniza em menos espaço com outras cores que, em uníssono, cintilam na tela.

Languana faz da sua tela um ambiente natural, provavelmente um jardim, ou uma rua sem movimento, onde as figuras interagem em busca da sua cadeira de leite e mel.

Mas por que três homens procurariam uma cadeira já ocupada num lugar público? Porque provavelmente não têm um lar. A presença de um cão próximo ao banco e aos homens indica, claramente, que se trata de uma praça pública ou de um lugar frequentado por pessoas sem lar.

A obra pode estar a convidar-nos para reflectir em torno das pessoas desfavorecidas que vivem na rua, sem lar e assistência. Em Moçambique, temos um extenso número de pessoas, inclusive de crianças que vivem na rua, sem esperança de ter um lar, um aconchego onde possam ter uma vida digna. Quanto de acção social ou solidariedade temos doado a este grupo social? Esta pode ser uma pergunta do autor.

Outro debate pertinente que o autor pode estar a omitir por trás das pinceladas é a disfunção familiar actual. Os homens não nascem em jardins, nem em praças públicas, eles vão lá parar por várias circunstâncias, conflitos, muitos deles envolvendo suas famílias vulneráveis financeiramente, onde não se pratica o amor, respeito e tolerância, resultam em disfuncionalidade e fragmentação.

Mas também pode-se concluir, com este retrato, que Languana quer debater sobre a economia do País, que está em queda, gerando a pobreza e miséria, e, por sua vez, a pobreza, gerando moradores de rua e mendigos que não têm rentabilidade para se susterem a si próprios.

Languana, ao colorir a obra “cadeira de leite e mel”, colore também o seu talento e a sua opinião sobre flagelos sociais no país, convidando o espectador a fazer parte do seu debate.

Nota: “a cadeira de leite e mel” é uma obra de Languana, que integrta a individual “Jardins de sonho”, na galeria da Fundação Leite Couto. A exposição com curadoria pode ser visitada até 3 de Agosto.

Sou Filomena Matusse, nasci em Moçambique, sendo assim, moçambicana e negra, com a pele muito escura, marcada pelo sol cuja intensidade aumenta a cada dia. A exposição solar é inevitável, agravando a minha negritude, uma vez que tenho de ficar exposta a ele para garantir sustento para a minha família; e não posso arcar com os custos dos protetores solares, que já ouvi falar por ai, pois são caros demais para o nível em que me encontro, pois, minha situação financeira não é boa.

Nasci em meio à pobreza, um facto que procuro aceitar diariamente, mas que não me impede de sonhar com um futuro diferente. Entretanto,  não quero falar no momento da minha pobreza, pois não é culpa minha ter nascido nesta condição, quero falar de outra questão que inquieta-me e  é ainda pior que a pobreza a mau ver…

Desde jovem, fui testemunha da pressão imposta às mulheres da minha comunidade, província e país, que tentam clarear a pele. Eu própria, num determinado momento, sucumbi a essa tendência, utilizando cremes clareadores acessíveis, disponíveis inclusive nos mercados locais por 100 meticais. Inicialmente, julgava e condenava essas práticas, pois não compreendia a motivação por trás delas. Contudo, após reflexões e experiências pessoais, a minha visão mudou.

Moçambique é um país africano e a raça que predomina é a negra, entretanto não tenho paz na minha própria terra onde tenho o direito de ser negra e deveria viver a vontade…

Uma  experiência dolorosa foi a de uma gestora sénior negra de certa empresa, que, embora competente, foi substituída por uma colega  de pele branca, revelando uma hierarquia baseada na cor da pele. Estas situações evidenciam a desigualdade e discriminação persistentes, influenciando até mesmo o crescimento profissional e pessoal. Passo a expor: Uma jovem altamente capacitada foi contratada por empresários asiáticos em Moçambique para actuar como gestora sénior  na sua empresa, onde os funcionários eram maioritariamente moçambicanos e negros. A convivência inicial entre todos era harmoniosa e produtiva. Todavia, tudo mudou quando o chefe da jovem decidiu contratar duas raparigas também asiáticas para a mesma empresa. Embora as novas funcionárias fossem fluentes em português e simpáticas, o chefe começou a introduzir divisões entre os colaboradores, separando-os pela cor da pele. Ele instituiu regras segregacionistas, tais como direcionar os negros para um lado e os brancos para outro, inclusive designando utensílios diferentes para uso de acordo com a cor da pele. Esta atitude discriminatória gerou desconforto no ambiente de trabalho.

A gestora, injustamente, foi removida do cargo sem motivo aparente para que uma das novas funcionárias brancas assumisse a posição, embora a gestora negra fosse mais competente. Esta era responsável por treinar as novas funcionárias e ensinar o sistema de contabilidade e gestão da empresa, inclusive as duas raparigas asiáticas foram instruídas por ela. Esta situação levou a jovem negra a concluir que, infelizmente, naquele contexto, a cor da pele parecia determinar a hierarquização e as oportunidades de trabalho, acima das qualificações e competências académicas. Este triste desfecho levanta a questão de como as desigualdades e preconceitos raciais ainda influenciam significativamente o ambiente profissional, mostrando que, para algumas pessoas, a pigmentação da pele pode influenciar injustamente as suas carreiras e oportunidades.

Este foi apenas um relato de muitos que poderíamos trazer, porque a discriminação racial é uma realidade na nossa sociedade, é fácil de ver as varias manifestações no nosso dia a dia, desde o acesso as oportunidades, até as suas formas mais graves. 

O preconceito baseados na cor da pele e a discriminação geram divisões e desigualdades profundas na sociedade. Observa-se que, mesmo dentro da comunidade negra, a tonalidade da pele frequentemente determina a hierarquia e o tratamento recebido, perpetuando padrões de opressão. Estas experiências refletem a complexidade e as feridas causadas pela discriminação racial, questionando se a opressão vivenciada resulta, em alguns casos, na perpetuação do ciclo de discriminação e divisão entre os próprios indivíduos de uma mesma comunidade.

A discriminação racial é uma realidade insidiosa que permeia a sociedade de forma profunda, criando divisões e desigualdades que prejudicam a todos. É imperioso reconhecer e confrontar activamente o racismo em todas as suas formas, desde os actos mais evidentes até as estruturas institucionais que perpetuam a injustiça. Apenas com consciência, empatia e acção conjunta podemos construir um mundo mais justo e inclusivo, onde a cor da pele não determine o valor ou as oportunidades de um indivíduo. Façamos a nossa parte para promover a igualdade e a diversidade e lutemos juntos contra o racismo em todas as suas manifestações!

Numa manhã que fazia sol, chuva, vento forte e brando, céu azul, cinzento e nublado, numa manhã comum de atmosfera corriqueira como aquela que cobre os dias mais ordinários das nossas vidas, não sabendo eu o que presentear as minhas sete filhas, todas aniversariantes do dia, decidi então proporcioná-las o que de mais valioso e prazeroso havia na vida: a felicidade.

Quem buscasse pela felicidade, precisava apenas de ir à pequena mercearia que se situa no centro da na nossa aldeia. A mercearia chamava-se sociedade. Então disse eu à minha filha, vá até à sociedade e traz-me felicidade conforme o teu desejo. Não precisa ser muita e nem pouca, basta apenas que seja suficiente para uma vida. Eu poderia ir lá buscar a felicidade dá-las de presente, seria até uma óptima surpresa, mas não seria a felicidade delas, seria a minha felicidade. Ela percebeu. Arrumou-se e lá se foi, a minha filha, para a sociedade, à busca da felicidade, da sua felicidade.

– O que buscas? – questionaram-lhe, os agentes da felicidade.

– A felicidade – respondeu ela, inocente.

Olharam-na. De soslaio, de frente, de trás, de cima, de baixo. Fizeram uma radiografia da sua imagem.

– Para ti não temos – sentenciaram os agentes, aquele que, lá na sociedade, cambiavam a felicidade.

– Como assim? – questionou, atónita, a minha filha.

– Olha para ti. Baixinha, pele escura, lábios e calcanhares rachados, dentes desalinhados, mãos ásperas, mal cuidadas e cheias de calos e esse corpo cheio de cicatrizes. Nem pareces uma mulher. Fazes o quê da vida? És uma adestradora de animais selvagens?

Não acreditei quando a minha filha narrou-me este infortúnio episódio. Pedi a segunda para que ela fosse até a sociedade buscar a felicidade e, curiosamente, a esta também lhe foi recusada.

– Não te podemos dar. Tão fina, comprida e com esse pé de colossal tamanho que mais parece de um soldado que de uma princesa. E essa tua cara? toda cheia de botões vermelhos e escuros? Deves ser uma doente.

Revoltado, pedi à minha terceira filha que fosse também a busca da felicidade, que igualmente lhe foi recusada. Disseram-lhe que não sabiam diferenciar se, entre ela e um elefante, quem era mais pesada. Sugeriram que ela aprendesse a fechar a boca antes de buscar pela felicidade. Disseram-lhe isso, lá na sociedade, na mercearia onde trafica-se a felicidade.

Foi a minha outra filha, a quarta. Riram-se dela e nem se deram o trabalho de ocultar o riso. Ordenaram-lhe que fosse primeiro buscar a pigmentação da sua pele e só depois disso poderia retornar e buscar pela felicidade.

À minha quinta filha, a sorte não lhe foi diferente.

– Toda vaidosa, com esses produtos coloridos nos teus lábios, essa face toda rebocada de químicos artificiais. Serás tu uma funcionária de uma fábrica de cimento? Ou terás deixado a tua face cair numa forma gigante de preparação de cimento e absorveste cimento suficiente para rebocar um edifício? E essa tua saia curta? Não te ensinaram a vestir em casa? ou pensas que és a única com ancas? Deves ser uma mulher de todos e de ninguém. És tu quem destrói os nossos casamentos e retiras a paz dos nossos lares. Não há nada para ti aqui – disseram isso, à minha filha, lá na sociedade, na mercearia onde ela foi a busca da felicidade.

Foi a minha sexta-filha, revoltada, aquela que tinha mais estudos, a busca da felicidade. À esta, foram contundentes com as palavras: – vá primeiro buscar um marido, sua bocuda. Os teus diplomas, aqui de nada valem. Se não tens um homem que dê sentido a tua vida, não és mulher suficiente para adquirir a felicidade aqui na nossa mercearia. São as solteironas como tu que atentam contra os bons valores das nossas famílias.

Foi a minha sétima filha, a minha última esperança. Pele clarinha, corpo esguio, cabelos longos, pele macia e movimentava-se suavemente. Chegou à sociedade, na mercearia onde vende-se a felicidade. Olharam-na, falaram-lhe cordialmente e disseram-na que o seu pedido seria atendido com a maior das honras que lhe são devidas. Mas antes, sarcasticamente, perguntaram-lhe:

– E a fatura? Enviamos para qual dos pais dos teus filhos? Sim… porque cada um dos teus filhos tem um pai diferente e não sabemos qual deles paga as tuas contas.

Era demais. Nenhuma das minhas filhas tinha direito à felicidade. A sociedade, aquela mercearia responsável pela felicidade, recusava-a, a todas elas. Decidi ir lá ter com esse agente da mercearia, esse homem que era o atalaia da felicidade, que decidia a quem dar e a quem não dar a felicidade. Esse homem teria de me explicar olhando nos meus olhos por que é que as minhas filhas, todas diferentes e perfeitas, não tinham direito a felicidade?

E as minhas filhas, em uníssono, disseram:

– Não foi um homem quem nos falou, foi uma mulher.

 

 

Por definição, a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) considera refugiado “qualquer pessoa, que (…) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade (…) e não quer voltar a ele”. Se prestarmos atenção, a definição não incorpora a dimensão das alterações climáticas, ou seja, os “refugiados climáticos” não têm o direito de pedir asilo à luz do Direito Humanitário Internacional. Talvez seja razoável interpretar que outrora a questão não estivesse em voga. Dessa forma, gostaríamos que ficasse patente, à priori, que o conceito de “refugiado” é diferente do “deslocado interno”, dado que às vezes se utilizam os termos como sinónimos. Nesta reflexão, cingimo-nos sobre os refugiados.

A partir dos anos 80 o assunto ganhou novo rumo, cujo precursor foi o Professor El-Hinnawi (1985) tendo cunhado o termo “refugiados ambientais” como sendo “aquelas pessoas que foram forçadas a abandonar o seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, devido a uma perturbação ambiental acentuada (natural e/ou desencadeada pelas pessoas) que pôs em perigo a sua existência e/ou afetou gravemente a qualidade de sua vida”. Nos dias que correm, o debate sobre as alterações climáticas tornou-se bastante mediático. Boeno and Ferrão (2016), chegaram a ponto de considerar que as alterações climáticas são um risco sistémico mais crítico do que os outros socialmente muito reconhecidos, tais como os ataques terroristas, as pandemias ou crises financeiras.

Se nos basearmos nos Relatórios da World Meteorological Organization (WMO, 2022), constatamos que, em relação ao período pré-industrial, a temperatura média global aumentou cerca de 1°C. As emissões de CO2, em resultado do uso de combustíveis fósseis, aumentaram 1% globalmente em 2022 em comparação com 2021. Os últimos oito anos, 2015 a 2022, foram os mais quentes já registados e a chance de pelo menos um ano exceder o ano mais quente já registado nos próximos cinco anos é de 98% (WMO, 2023). O nível médio global do mar atingiu um novo recorde em 2021, aumentando 4,5 mm por ano durante o período entre 2013-2021 (WMO, 2022). Em termos de danos, 50% de todos os desastres, 45% das mortes e 74% das perdas económicas à escala global nos últimos 50 anos foram relacionados aos eventos atmosféricos, clima e ao risco hídrico (WMO, 2021), sendo que mais de 90% das mortes e 60% das perdas económicas ocorreram em países em desenvolvimento (WMO, 2021, 2023).

Por sua vez, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC, 2022) reporta que, entre 2010 e 2020, a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis, em comparação com regiões de baixa vulnerabilidade. A região do Corno de África, por exemplo, está mergulhada na seca mais longa e severa já registada e contabilizam-se mais de 180 000 refugiados da Somália e do Sudão do Sul para países como Quénia e Etiópia, também fustigados pelo mesmo fenómeno (ACNUR, 2023). Em 2022, cerca de 2500 moçambicanos refugiaram-se para o distrito de Nsanje, em Malawi, vítimas das inundações, em resultado da ocorrência da Tempestade Tropical Ana (VOA, 2022). Estes, em emergência, infelizmente não puderam ter assistência humanitária internacional, pelo facto de não terem, na época, protecção legal.

Dados do IPCC (2022) indicam que até 2030 o número de pessoas que vivem em extrema pobreza aumentará em 122 milhões dos actuais cerca de 700 milhões. Ademais, cerca de 10% da superfície terrestre está sob condições de seca severa ou extrema (WMO, 2023) e o aumento na frequência, intensidade e gravidade de secas, inundações e ondas de calor e o aumento contínuo do nível do mar aumentarão os riscos à segurança alimentar em regiões vulneráveis. No mesmo diapasão, as Nações Unidas (2018) admitem que embora não sejam em si as causas dos movimentos de refugiados, o clima, a degradação ambiental e os desastres de origem natural interagem cada vez mais como motores dos movimentos de refugiados no período contemporâneo. No geral, exorta-se que o mundo reduza pela metade, anualmente, as emissões de Gases com Efeito de Estufa nos próximos oito anos, para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais (United Nations Environment Programme [UNEP], 2021).

Chegados aqui, podemos admitir que os efeitos das alterações climáticas são hoje uma questão de Direitos Humanos, de crise humanitária global, que requerem uma resposta imediata, em função das circunstâncias e contextos sociais. Busquemos o exemplo crítico de Kiribati, onde as projecções indicam que nos próximos 15 anos o país, composto por mais de 30 ilhas, corre o risco de desaparecer, devido ao aumento do nível médio das águas do mar em consequência das alterações climáticas. Aliás, face à realidade, em 2020 o Comité de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas reconheceu o cidadão Ioane Teitiota como um “Refugiado Climático”, depois de uma longa batalha que travou, a pedir asilo na Nova Zelândia, onde havia se refugiado. Provavelmente seja o primeiro na história a se beneficiar deste tratamento. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR, 2020) congratulou o acto e insta para que “pessoas fugindo de efeitos adversos das mudanças climáticas e o impacto de desastres repentinos e de início lento (como secas) podem ter reivindicações válidas para obterem status da condição de refugiado sob a Convenção de 1951 ou acordos regionais sobre refugiados”.

Para além do exemplo acima mencionado, é notório que a ocorrência dos desastres tende a aumentar em termos de frequência e intensidade. À excepção das secas, acompanhamos recentemente as cheias ou inundações que se abateram sobre alguns países, como por exemplo, Moçambique, Burundi, Tanzânia, Quénia, Brasil, Dubai, etc, a atingirem novos recordes, com impactos significativos na economia, ambiente e sociedade. Ora, face ao exposto, não seria urgente e producente que as Nações Unidas revissem os Estatutos do Refugiado, incorporando a categoria das alterações climáticas? O fenómeno cria efeitos múltiplos. O aumento do nível médio das águas do mar pode forçar a população das regiões costeiras a abandonar o seu local habitual, procurando regiões seguras. As cheias e as secas severas destroem culturas, o que pode igualmente obrigar as comunidades rurais, dedicadas à agricultura e à pecuária, a abandonarem para sempre as suas áreas tradicionais de produção e recorrendo a outros pontos alternativos, em busca de abrigo e sobrevivência. A população dos países pobres, que pouco contribui com a emissão de Gases com Efeito de Estufa, é a principal vítima desta crise global.

Por exemplo, o ciclone tropical Idai, que atingiu a cidade da Beira (Moçambique) em 2019, e a seca de 1990 na África do Sul são, conjuntamente, os dois eventos mais caros (ambos estimados em US$ 1,96 biliões) em África nos últimos 50 anos (WMO, 2021). Enquanto os países são desafiados a pautarem por um “Desenvolvimento Sustentável”, em várias dimensões, o Relatório da Agenda 2030 (Objectivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS], 2023), indica que é hora de soar o alarme, pois o progresso de mais de 50% das metas foi fraco e insuficiente; 30% estagnou ou retrocedeu, cujas metas importantes tem que ver com a pobreza, fome e alterações climáticas.

Assim, entendemos que travar os desastres climáticos constitui um quesito que se pode considerar problema de resolução complexa, dependente de múltiplos factores, mas há um conjunto de acções individuais e colectivas que podem ser tomadas em conta, que não caberiam mencionadas nesta reflexão. Tal como escreveu Spencer (2009), especialista da NASA, o clima vai alterar, com ou sem a intervenção antrópica (utilização de combustíveis fósseis, por exemplo, o carvão, o petróleo e o gás; o desflorestamento, a prática de agricultura, a industrialização, etc). Assim, a melhor forma de isolar os pobres dos riscos ou perigos ambientais é ajudá-los a suplantar a pobreza. Ou seja, se os pobres vivem numa zona costeira, que é ameaçada por ciclones, a resposta não é apenas aprovar leis sobre as alterações climáticas, pois estas não poderão reduzir as velocidades médias dos ciclones, mas sim oferecer meios ou condições para que as vítimas consigam fugir e ter acolhimento assim que o perigo for a chegar. É assim que se poderá impedir os maiores desastres, salvando vidas e aliviar o sofrimento das pessoas nos países pobres.

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra) de 1951 foi proposta e aprovada num contexto pós II Guerra Mundial, visando salvaguardar os direitos dos refugiados vítimas de perseguições (que apenas ocorreram antes de 1 de Janeiro de 1951). Sucede, porém, que a conjuntura geradora de crises humanitárias hoje ganhou novas dimensões, já não são apenas as guerras que estão em causa. Facto positivo é que o próprio dispositivo legal fornece mecanismo para uma proposta de revisão. Assim, havendo interesse e fazendo-se o uso da prerrogativa dos números 1 e 2, respetivamente, do artigo 45 da Convenção, “Qualquer Estado Contratante poderá, a qualquer tempo, por uma notificação dirigida ao secretário-geral das Nações Unidas, pedir a revisão desta Convenção. A Assembleia Geral das Nações Unidas recomendará as medidas a serem tomadas, se for o caso, a propósito de tal pedido.”

Ora, perante vários cenários críticos acima expostos, apresentamos as seguintes indagações: será que nenhum Estado, até ao momento, terá manifestado tal vontade? Se a resposta for negativa, porque não fazê-lo, é inoportuno? Será que o silêncio reflecte a falta de interesse por parte do secretariado-geral das Nações Unidas em discutir sobre esta matéria? Enquanto as respostas às perguntas colocadas ficam ao critério de cada um, em última análise, no nosso entender, é fulcral que as Academias, Juristas, Organizações da Sociedade Civil e outras partes interessadas, mormente os países em desenvolvimento, que se configuram como as principais vítimas das alterações climáticas, se mobilizem a nível internacional, criem lobby e reflictam sobre a necessidade premente da revisão do Tratado; com intuito de que os “Refugiados Climáticos” sejam reconhecidos e protegidos à luz do Direito Humanitário Internacional, à semelhança das perseguições raciais, políticas ou religiosas.

“Nhinguitimo”, que significa vento forte que vem do Sul, ou tempestade, é uma produção cinematográfica da Ébano Multimédia e Mahla filmes, a partir da adaptação de um conto de Luís Bernardo Honwana, que nos mostra como a união e liderança podem ser um divisor de águas.
A trama do filme de Licínio Azevedo se desenrola na Vila de Goana, num período de opressão colonial, em Moçambique, em que os nativos eram privados de direitos básicos, como liberdade, educação e salário digno.

O personagem principal é Alexandre Vírgula Oito Massinga, que, à semelhança de Maguiguana e Matchumbutana, seus colegas, trabalha como empregados do Sr. Rodrigues, um colono e proprietário de uma cantina com seu nome.

Vírgula Oito tem um ideal: tornar-se um patrão, produzir em larga escala, ser independente, e, mais tarde, casar-se com a jovem donzela Nteasse, que é a mulher dos seus sonhos com que ambiciona ser feliz. Porém, a classe burguesista, constituida pelo senhor Rodrigues e o Administrador, tem a ambição de aumentar o capital e explorar ainda mais as terras dos nativos, por isso oferece aos oprimidos apenas uma opção: serem empregados obedientes.

O roteiro do filme faz jus à realidade colonial, em que vários cidadãos ousaram sonhar um futuro melhor mesmo estando sob um regime de opressão. A figura de um jovem, Vírgula OPito, aliado ao desejo de mudança, tem um paralelismo com a realidade, pois os jovens é que mais buscam mudanças numa sociedade. Afinal, ser jovem e não ser revolucionário, é uma contradição genética (Guevara, 2017).

A fotografia a preto e branco estabelece uma autenticidade e longevidade ao tempo retratado, bem como a emoção e o carácter humilde das personagens vigentes nesse tempo.
Senhor Rodrigues, que recebe o Senhor Aministrador no seu bar, decide apelar-lhe, para, arbitrariamente, usurpar as terras dos indígenas, que são férteis do que as suas, pois planeia duplicar a sua produção sob alegação de que os nativos são incapazes ou não merecedores de terras férteis.

Coincidentemente, Vírgula Oito, entusiasmado, irrompe pelo bar onde encontra Maguiguana e Machumbutana e os conta sobre a grande produção na sua machamba e os seus planos futuros, que incluem efectuar uma mega produção, deixar de trabalhar para o Lodrica (Sr Rodrigues) e comprar um tractor. O som de suspense passeia pelo bar nesse momento, acompanhando à entrada do Senhor Rodrigues, dando a entender que Massinga deseja algo perigoso que o pode meter em sarilhos. Os seus colegas, que são mais velhos, e mais experientes, dão-lhe uma advertência, de que os brancos não iriam permitir que um indígena fosse tão abastado quanto eles, e isso traria problemas a todos. E concluem: Melhor seria continuar a trabalhar para o Lodrica e receber pouco, mantendo o emprego.

Em outras palavras, Maguiguana e Machumbutana são “House Negroes”.

Segundo (Malcom X, 1963), na história da escravatura, haviam dois tipos de negros: os “House negroes”, em português negros de casa, e os “Field negroes”, negros do campo.

Os “house negroes” vivem próximos do seu senhor, vestem suas roupas de segunda mão e comem alimentos que o seu senhor deixa na mesa. Quando o senhor diz: Temos boa comida, o “house negroe” diz: Sim temos boa comida. Quando o senhor diz: Estou doente. O “house negroe” diz: O que se passa, chefe, estamos doentes? Porém, o negro do campo, é aquele que vive longe do seu senhor e próximo das plantações. Estes são a maioria. Quando alguem diz: vamos nos revoltar, ele diz: vamos, mesmo não sabendo como.

Numa passagem de “Nhinguitimo”, vê-se Maguiguana e Machumbutana a serem servidos vinho à mesa, pelo seu senhor Rodrigues, e estes, quando ouvem as motivações de Vírgula Oito, demonstraram um conformismo absoluto, que os torna autênticos “house negroes”.

Aquele é precisamente o momento decisivo da narrativa, pois Vírgula Oito tem a causa, tem o objectivo, e tem recursos humanos que o podem apoiar, porém o seu foco, como agente de mudança, está limitado na perspectiva individual, inclusive os beneficios também.

O Administrador consulta Vírgula Oito sobre a produtividade das terras e, este, ingenuamente, entrega-lhe as cordas que os iam amarrar a posterior.

A trilha sonora do filme rima com os diversos momentos da película, sobretudo com o momento da ilustração das terras de Massinga, sua colheita e seu momento romântico com Nteasse. É um momento esteticamente belo, que narra a poesia dos sonhos de Massinga com precisão. Em oposição, durante o trabalho na machamba, Massinga é confrontado com uma cruel realidade: Os burgueses tomaram todas as terras dos indígenas, inclusive a sua. Massinga se insurge e mostra aos colegas que é momento de defender a libertação das suas terras.

No regresso ao trabalho, Vírgula Oito faz um último apelo aos companheiros, sobretudo Maguiguana e Machumbutana, que podem ajudar a mudar o paradigma, porém, nenhum deles deseja ouvir ou seguir a causa, impossibilitando a união.

Há um dualismo filosófico no final de “Nhinguitimo”, a tempestade propriamente dita e a tempestade do conflito presente, em que os nativos evadem-se covardemente, abandonando Massinga sozinho. Nesse sentido, à semelhança do que propõe Malcom X, “House negroes” são escravos que desistiram de sonhar, não crêem na liberdade, identificam-se com os seus senhores mais do que com os seus irmãos. Por isso, Maguiguana e outros servos antigos não abraçaram a causa da libertação das terras, pois estão em prisão mental. Maguiguana permance ao lado do seu senhor diante de um iminente assassinato de um amigo/colega.

“House negroes”, actualmente, podem ser os que, em Moçambique, num cenário de carências e misérias, servem interesses estrangeiros, com negociatas que não beneficiam a nação.
Com o filme, Licínio Azevedo quiz, provavelmente, nos mostrar que não se pode libertar os homens, as terras, sem primeiro libertar as mentes ou, se quisermos, os “house negroes”.

Nos meados do mês de Junho, na cidade suíça de Bürgenstock, realizou-se a chamada cimeira sobre a paz na Ucrânia. Em Kiev e nas capitais ocidentais, aplicaram-se todos os esforços para a apresentar como um acontecimento de proporções quase universais.

No entanto, na realidade, este desejo acabou por ser um fiasco completo. Contrariamente às tentativas de Zelensky e dos seus mestres, quase metade dos 160 convidados recusou-se a praticar o “turismo político”. A aposta em maximizar o envolvimento do Sul Global não resultou. Muitos países, apesar da chantagem, das ameaças e dos esquemas fraudulentos, mostraram resiliência, não sucumbiram a pressões duras e ignoraram os insistentes pedidos para irem aos Alpes.

O fracasso das “conversas” suíças era previsível. Não poderia ter acontecido de outra forma, uma vez que o regime nazi de Kiev e os seus marionetistas ocidentais não tinham, desde o início, qualquer intenção de procurar uma solução pacífica para a crise ucraniana. Não estão interessados na paz na Ucrânia; querem mais confrontos, uma escalada e um aumento das hostilidades, a fim de concretizarem o seu sonho irrealista de infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. Porquê? – Porque a Rússia se vê como um dos principais obstáculos no caminho do neocolonialismo e hegemonia global.

O resultado nulo da “reunião” alpina é também confirmado pela falta de unanimidade entre os seus participantes. Nem todos concordaram em apoiar o comunicado final, que tem um carácter manifestamente anti-russo. Inicialmente, 12 delegações recusaram-se a fazê-lo, mas depois da reunião o seu número subiu para 14. Entre elas, encontravam-se a Índia, a Indonésia, o Iraque, a Jordânia, o México, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, a Tailândia, a África do Sul e outros Estados com autoridade. Tornou-se claro que a maioria do mundo não aceita as receitas ocidentais de Kiev para resolver a crise ucraniana, vê a sua essência belicosa e não quer seguir as instruções dos Estados Unidos da América e dos seus satélites.

Atrás da fachada puramente pacífica do evento criada pelos media, sabe-se ao certo que, em Bürgenstock, o chefe de gabinete de Zelensky, Andrey Yermak, estava a negociar com delegações estrangeiras o aumento do fornecimento de armas às Forças Armadas da Ucrânia. Os acontecimentos subsequentes provaram mais uma vez para que fins servem estas armas… Cada dia ocorrem ataques contra povoações civis nas regiões de Belgorod, Kursk, Donetsk e Lugansk, deixando muitos feridos, casas e infra-estruturas destruídas. A 14 de Junho, um golpe terrível foi desferido em Shebekino, na região de Belgorod. Na sequência da utilização de um míssil Tochka-U pelos militantes ucranianos, a entrada de um edifício de cinco andares ruiu. Um mês atrás, a 12 de Maio, um ataque de míssil do mesmo tipo a um prédio residencial matou 17 civis e mais de 30 pessoas foram feridas. A 23 de Junho, em pleno domingo, as Forças Armadas ucranianas atacaram a cidade de Sebastopol, em Crimeia, utilizando cinco mísseis ATACMS com ogivas de fragmentação, cuja selecção de alvos e atribuição de tarefas de voo é efectuada por especialistas militares dos EUA. O resultado – 4 mortos, incluindo duas crianças, mais de 150 feridos. Esta tragédia eliminou as últimas dúvidas de que a Ucrânia é usada pelo Ocidente colectivo como um estado-tampão na guerra híbrida contra a Rússia.

A cimeira suíça, bem como várias outras iniciativas ocidentais ditas “pacíficas”, revelou-se mais uma tentativa de camuflar as suas intenções agressivas sob a “fórmula Zelensky”, que os seus autores estão a tentar apresentar como supostamente a única base para uma solução e estão a impor intrusivamente à comunidade internacional, sem ter em conta a opinião ou o desejo da maioria global de dar o seu próprio contributo para a resolução da crise. Esta fórmula desde já não implica quaisquer compromissos, alternativas. De facto, nas circunstâncias de proibição por decreto de Zelensky de manter quaisquer negociações com a Rússia, é um conjunto de ultimatos, que se reduzem ao único objectivo ilusório de castigar militarmente a Rússia.

Gritando sobre a urgência de paz, o Ocidente fechou os olhos a uma iniciativa do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, que propôs um caminho real e verdadeiro para uma resolução sustentável da crise. Os seus elementos-chave são a retirada das formações armadas ucranianas das Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk e das regiões de Zaporizhzhia e Kherson; o estatuto neutro, não-alinhado e não nuclear da Ucrânia, a sua desmilitarização e desnazificação. Além disso, prevê a garantia dos plenos direitos, liberdades e interesses dos cidadãos de língua russa na Ucrânia, consolidação de novas realidades territoriais – o estatuto da Crimeia, de Sebastopol, das regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye como partes integrantes da Federação da Rússia, cuja população, através de referendos, exerceu o seu direito à autodeterminação consagrado na Carta das Nações Unidas – no contexto da guerra desencadeada por Kiev contra eles.

No plano de Putin, não se fala da derrota de qualquer das partes, mas da satisfação das pretensões legítimas da Rússia na esfera de segurança e do reconhecimento das mudanças territoriais ocorridas de acordo com o direito internacional. O sinal mais importante, neste contexto, são as palavras do chefe de Estado russo de que Moscovo compreende a sua responsabilidade pela estabilidade mundial e reafirma a sua disponibilidade para dialogar com todos os países.

O Ocidente e Kiev têm de deixar de enganar a comunidade internacional, ao trocarem a causa e o efeito da crise ucraniana. Têm de compreender que não existe qualquer alternativa razoável às propostas russas. Quanto mais cedo se aperceberem deste facto, mais cedo se iniciará o processo de resolução real e o fim das hostilidades. A pergunta neste contexto é, portanto, se eles querem ou não uma paz, ou preferem tirar proveito da Ucrânia, expandindo a sua indústria militar à custa de vidas humanas.

Eventos como a “reunião” em Bürgenstock não são capazes de criar as condições e servir de plataforma para um diálogo verdadeiramente sério sobre a obtenção de uma paz verdadeiramente abrangente, sustentável e justa. É uma mera imitação do processo pacífico para servir a vontade e os interesses egoístas de alguns países que se consideram “árbitros globais”. A solução da crise requer uma conversa séria e pormenorizada sobre toda a gama de questões de segurança mundial.

 

Embaixada da Rússia em Moçambique

O saudosismo não é de todo mau! Quando uma nação pretende perspectivar o futuro, é necessário não perder de vista o seu ponto de partida, o seu percurso, os seus “achievements”, os seus pontos fracos e os seus erros.

Não é possível corrigir o que não se sabe e muito menos corrigir só por mera praxe, senão estragamos. Para corrigir, é preciso ver o quê, como, quando e quem o deve fazer…

Agarrar-se às boas práticas do passado, alguns chamam a isso saudosismo, com uma conotação negativa, como se tudo o que passou devesse cair ao esquecimento e nunca ser rebuscado.

No meu país, os fazedores da política e de políticas públicas parecem não ter feito parte do passado comum desta nação. Há um vício incessante de corrigir (estragar).

A correcção deve ter em vista a melhoria. Quando isso não ocorre, parar e recuar não é uma desinteligência. Muitos aprenderam de Jacques Derrida a ideia da desconstrução.

A desconstrução, para Derrida, é um termo positivo, que se insere numa ideia de reinventar a roda quando esta não está a girar como deve ser, desconstruir conceitos, lógicas, éticas sociais em busca de resolver os males da sociedade como uma colectividade.

Esta desconstrução tem como fim último trazer alento, novos conceitos, novas lógicas na forma de encarar e buscar o bem comum. Nesta desconstrução, não se deve deitar por completo o que está bem.

A desconstrução referida neste contexto é, muitas vezes, confundida quer por distração quer por vontade maléfica dos actores do processo ou por mera incúria.

O termo escangalhar foi normalizado e até visto numa perspectiva positiva nas hostes da política nacional.

Ora, desconstruir não é sinónimo de escangalhar. Podemos até tentar dar sentido positivo ao termo, mas não são sinónimos.

Na implantação da Primeira República (1975–1990), o termo escangalhar derivava de duas situações: a primeira situação, o abandono de toda a máquina colonial que assegurava a administração pública e todo o funcionamento da província ultramarina, que era Moçambique, deixando tudo à deriva, com necessidade de se dar um “reset” ao país e nação recém-criados. Aqui o sujeito era o outro, o que está a abandonar;

A segunda situação, que é da perspectiva de quem ficou, os novos “donos” do país no caso, era a de quebrar qualquer vínculo com o colonizador. Qualquer tradição e práticas coloniais tinham de ser abandonadas, criar o que é novo, até o homem. Perspectivava-se a criação do novo.

A educação foi encontrada nesta encruzilhada, tendo sobrado para ela a segunda opção, aqui entrava em cena o termo escangalhar com vista a criar nova coisa que se pretende boa para a sociedade, até porque há novos valores a implantar, há nova história a ensinar, há o rebuscar da cultura outrora marginalizada, etc…

Criou-se o famoso SNE, Sistema Nacional de Educação, Moçambique foi um exemplo e pioneiro na região.

Como em todos os processos, este também teve prós e contras, mas o que ressaltava, aqui, é que havia e se sentia vontade de criar algo sólido, com bases e objectivos claros.

Os envolvidos na altura, parece que tinham a intenção de desconstruir ou mesmo escangalhar com vista à melhoria. Podiam até fracassar, mas há sensação de que havia preocupação em construir um sistema que se pretendia sólido.

Havia honestidade intelectual. Pedagogos como Paulo Freire foram convidados para ajudar a melhorar de alguma forma este “bebé” recém-nascido.

Estavam bem definidas as competências básicas, requeridas por cada classe, o porquê daqueles conteúdos, o que visam alcançar… havia uma atenção especial para a educação, o foco no professor (embora ainda não fosse o desejável) como um dos pilares do processo de ensino-aprendizagem. Esta atenção perdurou um pouco para além da implantação da segunda República (1990).

Foi neste sistema implantado por Samora Machel, que perdurou até finais dos anos 90 e início do novo milénio, que uma boa parte da geração jovem decisora do país estudou, incluindo-me a mim, autor deste artigo. Arrisco-me a dizer que 90% (estatísticas não confirmadas) da geração de 1975 a 1990 estudou em escolas públicas e os estudantes das pouquíssimas escolas privadas existentes eram ostracizados e, infelizmente, discriminados devido à qualidade de ensino que se presumia existente lá. (Mas isso é o saudosismo puro meu).

A educação deve ser um espaço comum de uma nação que se preze. Deve ser lá, onde estão espelhados os valores mais sublimes de um povo. É lá onde se forja e se lapida o protótipo de sociedade, por isso a falha na implantação de políticas certas leva toda uma geração ao descalabro.
O que se pode construir em dez (10) anos, pode destruir-se num ápice, e o que se destrói em 10 anos pode levar uma eternidade a corrigir. A educação é um sector produtivo, sim.

Se por um lado é saudosismo falar das boas práticas sociais do passado viradas à educação, que perduraram até ao Governo do PR Joaquim Chissano, como o passe escolar, lanche escolar, os quadros de honra, os simpósios académicos, os exames orais (as famosas provas orais), as redacções, as resoluções faseadas das operações físicas, matemáticas e outras ciências (substituídas por multichoice), as olimpíadas académicas, o jornalismo escolar, a rigidez e a permanência dos curricula, entre outras práticas, deve ser também saudosismo referir que o estudante moçambicano era competitivo, era admitido “de caras” a qualquer universidade do mundo e ombreava com qualquer estudante de outras proveniências.

Não estamos a defender que a educação deve ser estática, parada no tempo. Não é esta a visão nem opinião que se procura passar. Ela deve, sim, ser dinâmica, evoluir e acompanhar os desafios dos novos tempos, mas sem abdicar das suas boas conquistas, nem deve ser vítima do seu dinamismo.

Os últimos 20 anos, foram de tentativas e experiências de curta duração neste sector, muitas delas sem se perceber a sua “ratio”, (é verdade que muitas delas foram impostas pelas políticas do Banco Mundial e outras organizações) experiências abolicionistas, mudanças só porque as devemos fazer, sendo que maior parte delas tem como alvo principal o professor.

Num ataque desenfreado, em que não interessa o dano colateral criado ao aluno desde que se atinja o suposto corrupto, o professor.

Isto não é fazer políticas públicas de um Estado, é preciso alto sentido de Estado, elevado senso de responsabilidade e de consequência.

Em Direito, diz-se que ao emanar-se uma norma/lei, é preciso a sua “ratio legis”, então qualquer norma, para além das suas razões históricas, deve definir o problema que esta norma vem resolver, isto é, a sua razão de ser, a “ratio legis”.

É difícil buscar as razões de ser de muitas normas emanadas ultimamente pelo MINEDH, dentre elas a
– Introdução da 7ª classe no ensino secundário;
– A eliminação das famosas provas orais – ainda não vislumbro, o que pretendiam acrescentar à educação!?
– A introdução de testes e exames 100% múltipla escolha – ainda não vejo os efeitos;
– A eliminação das dispensas dos alunos, factor que impulsionava a competitividade;
– A introdução do teste provincial – fomentou mais fuga de enunciados nas vésperas dos testes;
– A redução da carga horária em disciplinas de ciências e outras;
– A eliminação do exame de Desenho.

Mais caricato, houve anos em que o estudante escolhia que exames ele pretendia fazer, onde tinha a opção de escolher substituir o exame de Matemática pelo de Filosofia, totalizando cinco exames à sua escolha.

Ora, respeito de igual maneira as duas cadeiras, mas não acho que uma possa excluir a outra, não vejo a “ratio” disso. (ainda bem que se recuou com essa prática).

Todo o mundo fala da educação, fala do professor, mas ninguém fala com o professor. A sua participação no processo de elaboração dos curricula é insipiente e quase inexistente.

A educação não deve ser um lugar de sucessivos testes e experimentos mal concebidos, uma política educativa. Os curricula, os instrumentos e a atenção virados à educação devem ser construídos sobre bases sólidas, com alto sentido de Estado, com projectos bem definidos do que se pretende alcançar.

Uma nova política, directivas e curricula no sector da educação devem ser experimentados durante um período mínimo de cinco anos ou mais. Não se pode, a cada dia que nasce, lançar apenas ordens e alterações só porque o devemos fazer. É necessário existir a “ratio” destas novas normas emanadas.

O meu pai comprava-me os livros da 7ª classe, eu ainda na terceira classe, porque era uma certeza de que eu os ia usar.

Um simples estudante sabia o que lhe esperava quando chegasse à classe seguinte, quais os requisitos de admissão, dispensa, exclusão de todas as classes, ciclo, etc… Quais as matérias ministradas em todas as classes subsequentes e matérias examinadas, porque o sistema era sólido e com alguma previsibilidade.

Hoje, entristece-me que, para além do aluno, é também o professor que não sabe como e quais são os requisitos para admitir ou excluir o seu aluno quando chegar o fim do ano, porque só nas vésperas do exame é que as ordens superiores vão definir a nota mínima e as constantes ordens “vão todos ao exame”, o brilhante, o medíocre, o faltoso, o ausente e o inexistente.

Entristece-me ainda a falta de giz, material didático, energia, água, em escolas da cidade em pleno século XXI, entristece me que o aluno hoje não saiba retirar os dados, a fórmula resolvente e demonstrar os caminhos usados para a solução numa operação matemática simples, porque hoje já não é preciso, o estudante só tem de dizer se A, B, C ou D.

Moçambique deve ser exemplo único no mundo, onde passados alguns anos, quando regressamos para visitar as escolas que frequentámos, não registamos avanços, apenas retrocesso, escolas destruídas, tecto revirado… o que existia deixou de existir, o brilho esmoreceu… apenas nostalgia.

O professor está desanimado, debate-se com problemas básicos, do tipo dinheiro de transporte… toda uma classe desmoralizada. O professor que outrora era exemplo já deixou de ser, o pontual já não é, o motivado já desistiu.
É caso para uma reflexão profunda como sociedade, se o fruto da educação dos últimos 15-20 anos não estará hoje a tomar lugares de decisão em sectores nevrálgicos do nosso Estado.

Mais ainda, é a ausência da sociedade na fiscalização, monitoria, crítica, apoio à educação, que se vai destruindo perante o olhar impávido e cúmplice de todos nós.

Não existe um jornalismo investigativo na área da educação, não existe uma ONG de defesa da educação, as que existem são amigas da educação, amigas desta educação!

Assiste-se, nos últimos dias, ao encerramento de escolas por falta de pagamento de horas extras aos professores, sem nenhuma reacção enérgica da imprensa, da sociedade, dos escribas, dos pensadores, dos supostos académicos. Parece que ninguém se incomoda com a situação destes jovens todos atirados à sua sorte, a que se retirou um direito fundamental básico, que é também um direito humano plasmado na DUDH.

Se não são os livros que tardam a chegar, é o salário dos professores e as suas horas extras. Tudo isso contribui para o fraco desempenho no sector da educação.

Ignorar todos estes factores é uma desinteligência e inconsequência. Podemos reduzir as consequências de estar a atirar toda uma geração à ignorância colectiva, pelo simples facto de colocar os nossos filhos no ensino privado e de ter uma condição social confortável aqui e acolá, mas isso, para além de sugerir a imoralidade, é, também, um tremendo erro de cálculo.

Esta geração a que se está a dar uma educação deficitária e atirada à ignorância é a maioria da população deste país.

De que vale prover a melhor educação para o seu filho, enquanto amanhã vai coabitar com jovens frustrados por lhes ter negado esse direito básico?

Por mais condições e meios que tenha o filho da escola privada, mas a ter de usar as mesmas ruas onde vai cruzar com a nudez, a frustração, a intolerância, sim a intolerância, porque a educação tem, também, a grande missão de formar bons cidadãos, pois um indivíduo de diligência média, com uma instrução aceitável, tem mais apetência e predisposição a ser tolerante, cauto e consequente.

Como sociedade devemos, também, questionar se a juventude que temos hoje é a juventude que a nação moçambicana merece. É essa juventude fruto da educação da independência?

Juventude que não questiona, não participa no desenho de políticas públicas sérias e futuristas deste país, juventude que não distingue dignidade, integridade da imoralidade, juventude que senta em cada palmo e meio das grandes cidades nas barracas e bares e debater “nonsense”, a discutir qual nova estratégia de adulação ao novo chefe, de que forma bajulou ontem o fulano e o beltrano, de que forma vendeu a sua dignidade por uma caixa de charutos, roupa de griffe e aquele par de benesses fáceis, e por este e aquele cargo público, de que forma vai usar o Estado para a próxima bolada.

Não será fruto da educação dos últimos 20 + (“plus”) anos…???

Não deixemos a educação cair na desgraça. É papel e tarefa de todos nós abraçar. Vamos participar, este é um grito de apelo à responsabilidade de todos nós.

Intervir e fiscalizar a educação é um dever patriótico, não é apenas papel do Estado, nem do novo timoneiro da Ponta Vermelha, é responsabilidade nossa, como nação e sociedade.

É caso para dizer “Pátria Amada, quo Vadis?”

Numa era em que a modernidade, frequentemente, obscurece as raízes culturais, “O pastor mazione”, de Aldino Languana, uma das obras da exposição individual “Jardins de sonho”, inaugurada a 03 de Julho, na Fundação Fernando Leite Couto, emerge como um farol de resistência e introspecção, convidando o observador a um mundo onírico, onde a espiritualidade e a tradição se cruzam.
A técnica da aguarela, com a capacidade de criar transições suaves e atmosferas etéreas, é utilizada por Languana para capturar a essência visualmente envolvente.

A escolha de uma moldura discreta é eficaz, pois, permite que o observador se concentre inteiramente nas complexidades da pintura em si. Por conseguinte, o vidro protector adiciona um elemento estético e preserva a integridade da aguarela.

O uso de cores vivas e contrastantes pode ser visto como uma metáfora para a diversidade cultural e para a riqueza espiritual presentes na prática dos maziones. O laranja brilhante e os tons de azul e amarelo não só retêm a atenção, mas também exprimem a paisagem natural e a vivacidade da vida comunitária.

Os traços abstratos e as figuras sobrepostas conferem à peça uma sensação de transcendência, possivelmente reflectindo a espiritualidade e as práticas rituais associadas aos maziones, ou seja, a presença de um rosto em destaque, com olhos fechados, pode representar um estado meditativo ou de transe, comum em práticas espirituais. O outro rosto, mais subtilmente inserido, complementa a narrativa visual, representando talvez a presença de espíritos ou entidades que fazem parte das práticas rituais.

Os rostos, com as suas expressões serenas e contemplativas, são pontes entre o material e o imaterial, convidando o visitante da exposição a mergulhar na riqueza simbólica e cultural que a obra retrata. Entretanto, a especificidade do tema, centrado nas práticas culturais moçambicanas, pode limitar a compreensão e apreciação por parte de um público global. Quer dizer, a falta de familiaridade com as tradições representadas pode reduzir a conexão emocional do público de outras origens culturais.

Embora o estilo abstrato contribua para a atmosfera etérea da pintura, também pode ser uma barreira para aqueles que preferem representações mais realistas. A subjectividade necessária para interpretar a obra pode afastar os observadores que buscam uma conexão mais directa e imediata.

Com efeito, “O pastor mazione” dialoga com a nova série de notas do metical. Tanto a obra de arte quanto as novas notas do metical buscam explorar e celebrar elementos culturais profundamente enraizados na identidade moçambicana. Enquanto o quadro de Languana capta a essência espiritual e as práticas rituais, as novas notas do metical incorporam motivos e símbolos que reflectem a diversidade cultural e a riqueza histórica de Moçambique, oferecendo uma representação visualmente rica e simbolicamente poderosa da herança cultural do país. Em ambos os casos, destaca-se a importância de preservar e valorizar tradições locais, ao mesmo tempo em que promovem uma apreciação contemporânea e artística dessas práticas e símbolos ancestrais.

O quadro de Languana retrata, também, os preconceitos que os maziones enfrentam durante suas práticas religiosas que se assemelham a dos curandeiros.

A discriminação manifesta-se tanto na esfera social quanto institucional, em que os membros da igreja “Mazione” são vistos com desconfiança e desrespeito, rotulados como supersticiosos. Esta marginalização não só mina a dignidade e os direitos destes indivíduos, mas também dificulta a preservação e a valorização das suas tradições culturais e espirituais.

Ora, na realidade moçambicana, onde muitos enfrentam desafios socioeconómicos, “O Pastor mazione” emerge como uma figura de esperança, em que a transcendência se manifesta como a busca e a conexão com o divino, especialmente diante das adversidades do mundo real. Portanto, a peça ensina que, num mundo em constante mudança, as nossas raízes culturais e espirituais são fundamentais para manter a nossa identidade e encontrar equilíbrio interior, “porque o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim” (NIETZSCHE, 1883, p. 48). Assim, “O pastor mazione” não é apenas uma obra de arte, mas um convite à introspecção e ao reconhecimento da riqueza cultural que nos define.

 

Título – O pastor mazione
Autor: Aldino Languana
Técnica – Aguarela sobre papel
Dimensões – 111 x 103 cm
Ano – 2023

Nota do editor: A exposição “Janelas de sonhos”, de Aldino Languana, é constituida por 22 peças e pode ser visitada na Galeria da Fundação Fernando Leite Couto, na Cidade de Maputo, até 3 de Agosto.

Os inimigos não são só os que pegam em armas.
São também os que nos impedem de sonhar
e de caminhar de cabeça erguida.

(autor desconhecido)

 

Em uma realidade marcada pela opressão colonial, em um contexto de luta pela terra e preservação cultural, surge uma narrativa ressonante na cinematografia moçambicana: “Nhinguitimo”.

Interpretada em português, changanam e ronga, a curta-metragem, carregada de autenticidade e identidade própria, é uma adaptação do conto homónimo do livro “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana, no entanto, dirigida por Licínio Azevedo. O realizador decidiu , com efeito, contar a história de Alexandre Vírgula Oito Massinga, um jovem agricultor moçambicano, cuja luta pela sobrevivência e justiça se desenrola sob o peso da exploração colonial. O filme, através de sua estética visual e detalhamento cuidadoso, transporta o telespectador para um tempo em que a terra e a dignidade dos moçambicanos eram constantemente ameaçadas pela ganância dos colonos portugueses.

O uso de imagens em preto e branco é uma escolha artística que adiciona profundidade e gravidade à narrativa, evocando a austeridade e a dureza da vida sob o colonialismo, mas também acentua a divisão entre o mundo dos colonizadores e dos nativos. As vestimentas de Massinga e as suas caminhadas, descalço, contrastam com a opulência e a arrogância dos colonizadores, simbolizando a dicotomia de poder e resistência.

A trama de “Nhinguitimo” é impregnada de simbolismo e metáforas. O sentido do título (ventos fortes que antecedem o verão) representa as mudanças inevitáveis e tumultuadas que trazem desconforto, mas também a esperança de uma nova estação. A pequena machamba de Massinga, situada estrategicamente para escapar dos ventos destrutivos, evidencia a resiliência e a esperança de um futuro próspero.

A certa altura, Vírgula Oito chega ao Bar de Rodrigues, destacando-se pelo seu carácter forte. Apesar da sua determinação e sonhos de prosperidade, acentuados pelo crescente sucesso da sua produção agrícola, revela uma falta de atenção e respeito pelos outros, particularmente pelas mulheres que não considera essenciais para sua ambição imediata.

Ao entrar no bar, ansioso para compartilhar as novidades com os seus amigos Machumbutana e Maguiguana, Vírgula Oito, acidentalmente, empurra uma mulher sem ao menos notar a sua presença ou se preocupar com seu bem-estar. A mulher, que poderia ter caído e se ferido, é tratada com desdém, em contraste directo com a reverência e admiração que Vírgula Oito reserva para N’teasse, a mulher com qual sonha casar. A cena não apenas sublinha a obsessão de Massinga por seu próprio sucesso e seus desejos românticos, mas também evidencia a forma como desconsidera as necessidades e a dignidade de outras pessoas ao seu redor. A falta de atenção para com a mulher que empurra, entretanto, contrasta fortemente com a dedicação que pretende oferecer à sua futura esposa, revelando uma complexidade e um paradoxo no seu comportamento, o que enriquece a narrativa cinematográfica.

“Nhiguintimo” apresenta uma complexa teia de interacções sociais e culturais, expondo as dificuldades enfrentadas por Massinga, ao tentar navegar entre os seus sonhos de prosperidade e a realidade opressiva que enfrenta.

 

“MULHER NENHUMA SUSPEITA O DESTINO DO FILHO QUE EMBALA NOS SEUS BRAÇOS ” (Chiziane, 2002, P. 350)

Com a ajuda de sua mãe, Vírgula Oito cultiva a sua machamba com sucesso. As cenas de colheita são retratadas com uma beleza serena, capturando a essência da conexão de Massinga com a sua terra e suas raízes culturais. Essas imagens reforçam a importância da preservação das tradições locais e a resiliência da comunidade face às adversidades.

No entanto, Machumbutana e Maguiguana, em uma conversa com Massinga, alertam-no para não expor as suas realizações e perspectivas, mostrando um entendimento pragmático das dinâmicas de poder que governam as suas vidas. A ingenuidade de Massinga, ao falar abertamente sobre os seus planos no bar do comerciante Rodrigues, revela a vulnerabilidade dos marginalizados perante aqueles que detêm o poder. Rodrigues, ouvindo a conversa, aproveita-se dessa informação para corromper o administrador e planear a desapropriação das terras.

O encontro de Massinga com o administrador destaca a injustiça e o desprezo enfrentado pelos que não falam a língua do poder. Incapaz de se comunicar efectivamente em português, Massinga é ridicularizado e subjugado, evidenciando a marginalização linguística e cultural. Este encontro sublinha a desconexão entre os administradores coloniais e a população local, exacerbada pela barreira linguística e pela falta de respeito pela identidade.

O filme de Licínio Azevedo ascende à amargura da realidade. As machambas, rotuladas como “reserva indígena”, simbolizam a segregação e a desigualdade impostas pelos colonizadores. Essa separação entre os que têm boas condições e os que não têm reforça a divisão social e a contínua opressão das comunidades indígenas.
“Nhiguintimo”, assim, oferece um retrato multifacetado da luta de Massinga e sua comunidade, através de belas imagens de trabalho e colheita.

Num cenário subsequente, Vírgula Oito inicia o dia com gratidão e serenidade. Após saudar à mãe, segue para o campo, onde se deita no capim, contemplando o céu. Num momento de introspecção e agradecimento a Deus, pelas bênçãos da vida, Vírgula Oito é interrompido por uma inesperada visita. Uma figura distante, percebendo-o deitado, aproxima-se com cautela.

Ao perceber a presença de alguém, Vírgula Oito levanta-se, reconhecendo imediatamente a mulher com quem sonha casar. O seu sorriso, ao vê-la, reflecte a intensidade dos seus sentimentos e das suas aspirações pessoais. Esse momento de esperança e desejo contrasta categoricamente com o desenrolar dos eventos ao redor.

Enquanto isso, o comerciante Rodrigues, em conluio com o administrador, inspeciona as férteis terras. Rodrigues, movido por ganância, convence o administrador a desapropriar essas terras, subjugando a população indígena e privanda-a dos seus meios de sustento. A injustiça protagonizada pelos dois colonos marca o ponto de virada na vida de Vírgula Oito.

Ao ver a sua terra e o seu futuro em causa, Vírgula Oito é impulsionado a agir. A perda iminente de tudo que ele e a sua comunidade construíram desperta uma profunda revolta. O despertar de resistência se torna o núcleo da narrativa de “Nhiguintimo”, ilustrando a luta contra a opressão e a luta pela preservação de suas tradições e dignidade.

A insistência de Vírgula Oito em incitar os seus companheiros à resistência é recebida com desdém e temor. Os seus apelos a Machumbutana, para que permaneça firme, resultam em fuga e incerteza. Machumbutana, aterrorizado pela perspectiva de confronto, foge, ilustrando a devastação que o medo e a traição podem infligir em uma comunidade.

“Nhiguintimo” é uma curta-metragem de 22 minutos, que consegue contar uma história emocionalmente ressonante. Produzido por Jorge Ferrão e realizado por Licínio Azevedo, o filme é uma co-produção da Ébano Multimédia e Mahla Filmes, com direcção de fotografia de Pipas Forjaz. A trilha sonora, composta por Joni Schwalbach, acompanha as imagens na tela, intensificando a atmosfera e as emoções presentes na história.

O final aberto do filme deixa o telespectador imerso em uma sensação de incerteza e tristeza, reflectindo a brutal realidade das lutas anticoloniais. A falta de resolução final não só ressalta a complexidade da situação, mas também a contínua luta pela justiça e pelos direitos da terra que muitas comunidades moçambicanas enfrentam com a expansão dos grandes projectos económicos.

Nm mundo onde as dinâmicas de poder, opressão e resistência continuam a moldar sociedades, contudo, “Nhinguitimo” emerge como um filme de vital importância para a actualidade. Através da história de Massinga e da sua luta pela justiça, o filme oferece uma reflexão profunda sobre questões que ainda são pertinentes em Moçambique: a desigualdade social, a exploração dos recursos, a preservação cultural e a resiliência diante das adversidades de vária ordem. “Nhinguitimo” não é apenas um espelho do passado colonial, mas também um farol que ilumina as contínuas lutas por dignidade e direitos humanos, inspirando novas gerações a questionar, resistir e lutar por um futuro mais justo e inclusivo.

 

 

 

 

 

Crianças de todas as cores e etnias juntaram-se no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), em Maputo, para, com os seus pais, celebrarem o Dia da Música. A festa começou pelas 10h30, no jardim do CCFM, recebendo vários petizes que se divertiram em várias actividades, como pintura facial, animações e malabarismo.

Os petizes participaram, também, de uma sessão de leitura criativa, com a actriz Sufaida Moyane, na qual jogaram e brincaram com as palavas. Aprenderam a tocar batuques, timbila e outros instrumentos, na oficina “ritmos e melodias africanas”, orientada pelo músico e instrumentista Cheny Wa Gune.

Foi a 12º edição da Festa da Música e decorreu no passado dia 22 de Junho. O espectáculo prometia, e o mestre de cerimónias foi o apresentador de televisão David Bamo.

Quando eram 14h, o som dos tambores da Orquestra da Unidade 7 ecoaram, com a aparição visual das Marionetas Gigantes de Moçambique. Sim, não eram filmes chineses, eram as Marionetas Gigantes de Moçambique, que expandiam a estética visual das crianças e daquele evento, com enormes figuras humanas circulando por aquele recinto, extravasando a curiosidade e o imaginário infantil.

De seguida, David Bamo convidou a Music Crossroads a entrar, abrindo a sessão de concertos musicais na Sala Grande do Franco. Ali, a Music Crossroads aventurou-se pelos ritmos do Norte, do Centro e Sul do país. A sua performace foi estruturada por sons africanos, cânticos corais, que encheram de espiritualidade os presentes na sala. As músicas e as danças tradicionais ecoaram na plateia com vibração.

A diversidade da cultura moçambicana estava exposta na Sala Grande e o público apreciou devidamente.

Então foi a vez dos 4D Band, que foram a segunda banda musical, constituida por cinco elementos. O palco, que estave montado por entre árvores imponentes, com um flyer enorme de festa da música por baixo, fez um casamento entre o verde e o espectáculo. A natureza estava viva naquele palco. Talvez, por isso, além de contemplar o espectáculo, era possivel também contemplar a estética da natureza.

Os 4D Band trouxeram um misto de afrojazz, música tradicional e contemporranêa. As suas composições eram vivas, os instrumentistas tinham tarimba, a banda provou que instrumentos tradicionais como mbira, timbila, harmonizam em uníssono com as guitarras, produzindo um som único e ímpar. A performace dos 4D exaltou a nossa cultura. Alcídio notabilizou-se tanto no canto como no saxofone, abusou da mbira e pariu melodias enloquentes. A timbila içou os cânticos muchopes e contemporrâneos.

Havia um “dilema” na bateria: Não se sabia ao certo se Tony Paco estava no comando da bateria ou se a bateria é que comandava Tony, porém ambos eram um só, e era dali onde saia a energia da banda.

Ana João revelou a sua voz pelos ares do palco, e mostrou que a dança é também um dos seus pontos fortes, a sua performace encantou a multidão. Um dos temas marcantes da actuação da banda foi Salamaleko.

A seguir, o Mc anunciou a entrada da Silke. Acompanhada por uma banda, a cantora iniciou a sua actuação com um bailado de neo soul. As suas composições possuiam um arranjo soul e harmonia de guitarras e piano apaixonantes. A sua voz namorava a melodia como a guitarra baixo cortejava a bateria. Silke tinha um visual afro moderno, o traje geral era preto, acompanhado de um mini vestido com cobertura de várias cores de capulana, o que autenticava a identidade africana no seu visual.

Durante a actuação, o público presente foi conduzido a um momento ímpar de alegria e música memorável aos ouvidos. A sua voz era sua maior arma para causar suspiros ao público. Um dos temas marcantes na sua actuação foi “Yesterday”, música que nos motiva a crescer por dentro, pois cada dia nos tornamos melhores do que ontem. Silke convidou o público a cantar com a sua banda, e o mesmo não se fez de rogado e soltou a voz: “We better than yesterday, we better than yesterday”…

Num segundo momento, Silke deu uma pequena pausa, e voltou transfigurada, com novo visual, saltos enormes. Uma das faixas que, de seguida, interpretou, foi enigmática, na qual a cantora juntou o canto à performace corporal. A artista simulou gestos de tiros ao alvo, deu para perceber a tensão do piano na música, e a revolta na abordagem, provavelmente debruçasse sobre alguma guerra. A cada música tocada, ecoava uma chuva de aplausos sinceros em forma de gratidão pela grandeza do espectáculo testemunhado.

A seguir foi a vez da banda Dickson Uthui, que actuou no Jardim do franco. A banda Uthui trouxe um autêntico momento de clássico Moz Jazz, uma banda jovem inteiramente habilidosa, e bem disciplinada.

Souberam namorar o público, iniciando a sua performace de forma misteriosa, e de tema a tema mostrararm o seu arsenal de qualidade de composição, execução e produção de som. Dickson era claramente o líder, posicionado ao meio do palco, com a cabeleira ao estilo Afro de Moreira Chonguiça e o Saxofone na mão. Se o público estava à procura de talento e uma nova definição de Jazz, encontrou nesta banda. Os Uthui trouxeram composições que tiraram o ar do público e os levaram ao delírio, o potencial de cada um dos membros era enorme.
Um dos momentos marcantes da sua actuação foi a colaboração com a Letícia da banda Mlaio, não só no canto, como também na declamação de um poema intitulado “Negra” ao som do jazz dos Uthui. Esta performace poética buscou ressignificar a expressão “negra”, valorizando tudo a isso relativo, como o amor à pele negra e os cabelos da mulher negra. A alegria do público fez chover aplausos da plateia.

De volta à sala, o MC, num vai e vem, anunciou energicamente a tomada do palco por João Cabral. Cabral fez-se ao palco com um visual simples e descontraido. Iniciou a sua performace serenamente.

João Cabral trouxe uma nova estética de Jazz ao espectáculo, afinou o seu domínio aos acordes, produzindo uma linha premium de Jazz, enquanto Jéssica ornamentava os acordes com seus coros suaves.

Uma das sua faixas de fusão de Jazz e Samba, obrigou o público a entrar em sintonia com a banda, dançando, assobiando e delirando.

O repertório de João Cabral era excelente, as melodias de João Cabral eram profundas, davam a sensação de se estar em um Moçambique com paz, prosperidade e harmonia total. Durante a actuação, Jéssica assumiu o canto e o encanto da sua voz. O saxofonista adolescente provou que talento não tem idade, a banda estava tecnicamente formidável. Armindo Salato e sua guitarra baixo não estavam no espectáculo, o espectáculo é que estava neles. Armindo fez um autêntico show de guitarra, manuseando ao estilo de guitarristas de hard rock como Jim Hendrix.

O show de João só subia os degraus. Entre aplausos e calor humano, João dedilhou a guitarra e mostrou intimidade com o instrumento. Era visivelmente humilde em palco, mas a sua habilidade era arrogante. A plateia entrou em transe quando João tirou da cartola um tema JazzMarrabenta. Ali foi o momento mais alto da apresentação, com o público em êxtase, gritando, invadindo o palco de João para exibir os toques de marrabenta, numa conexão total entre a banda e o público. E dizer mais para que?

Para encerrar as bandas, foi a vez da Banda Tai, no jardim. Tai, em swahili, significa Águia.

O repertório musical da Banda Tai foi diversificado entre estilos africanos, como mutimba, makossa, a variar com o Jazz e o Zouk. Banda Tai revelou alta qualidade técnica e harmónica nos seus arranjos.

Ebenezer Sengo, membro da banda, apresentou-se com um visual exótico, óculos escuros e um lenço sobre a cabeça, com uma guitarra tipo “Fender Precision” e uma performace irirquieta em palco, que fazia recordar o Steve Harris, guitarra baixo dos Iron Maiden.

A performace da banda foi excelente. O tema mais marcante foi precisamente o último, “Malhanhile ma cena”, em portugues, as coisas endoideceram. A faixa é uma critica em relação à subida do custo de vida, o preço da internet, da energia, e etc.

De seguida os Hood Brodz e Dona Saquia, tomaram conta do palco, ofertando ao público música popular. O encerramento do espectáculo coube ao DJ AD, com sons e misturas.

Deus desenhou e estabeleceu de forma perfeita o ciclo da vida, como em tudo o que Ele criou!

Todos sabemos que assim como viemos a este mundo (do pó), um dia dele sairemos. É um ciclo de perfeição. No entanto, o desconforto em não saber quando vamos partir deste mundo me preenche de agonia! 

Vivemos nossas vidas muitas vezes sem considerar a possibilidade de partir a qualquer momento, talvez porque fomos ensinados na biologia que os seres vivos “nascem, crescem, se reproduzem e morrem”, e associamos a ideia de morte a um estágio avançado da vida, quando já estamos velhos. No entanto, a realidade é ainda mais complexa, pois cada um de nós tem um processo único de vida e nunca nos acostumamos à perda dos entes queridos. É importante aproveitar ao máximo o tempo com aqueles que amamos, amar sem reservas e deixar um legado positivo que fale por nós quando já não estivermos mais aqui.

Na vida, todos enfrentamos diferentes tipos de escassez que nos fazem menosprezar o que realmente importa. Alguns sofrem com a falta de dinheiro, o que pode resultar da falta de emprego ou salários baixos, e essa preocupação pode cegá-los a ponto de não dar valor a suas próprias famílias. 

Alguns têm dinheiro, mas enfrentam dificuldades em encontrar paz e genuinidade nas relações devido às incertezas que o dinheiro pode trazer, estes podem enfrentar o desafio de não saber se os que estão a seu redor são movidos por sentimentos verdadeiros de amizade e amor ou se o dinheiro é o que os move. Às vezes, tudo o que falta é alguém em quem confiar. 

E há aqueles que lutam diariamente para obter o básico, como comida e abrigo, pois a vida lhes pesa demais para suportar.

É importante lembrar que enfrentaremos desafios ao longo da vida, fazendo parte do ciclo natural da existência. Contudo, não devemos permitir que essas dificuldades nos sobrecarreguem a ponto de tornar a vida um fardo. Devemos encontrar momentos de alívio e valorizar o que temos ao nosso redor. 

Cada um de nós tem um caminho diferente a percorrer, e devemos aceitar o facto de que fazer comparações constantes ou estabelecer metas muito “altas” pode levar nos a problemas tanto para nós mesmos quanto para nossas famílias.

Durante o processo da vida é natural que algumas pessoas nos magoem por suas atitudes e palavras, as vezes conscientemente e outras sem consciência, ora. Até mesmo nossos familiares com quem convivemos magoam nos, quem dirá no trabalho ou em qualquer outro ambiente em que podemos estar expostos! Entretanto, perdoar, apesar de difícil, é essencial para nossa saúde física e mental. Carregar ressentimentos e magoas só nos prejudica a nós, enquanto aqueles que nos feriram muitas vezes seguem sem esse peso.

 A vida é um presente precioso e devemos ser gratos por ela, valorizando cada dia, pois, não sabemos quando será nossa vez de partir, então devemos refletir sobre o legado que queremos deixar. Em especial valorizar muito nossas famílias.

Temos a oportunidade diária de construir uma nova história, de decidir o tipo de pessoa que queremos ser lembrados.

A vida é como uma tela em branco, onde todos os dias temos a oportunidade de pintar uma nova história com as cores da gratidão, amor e perdão. Cada escolha, cada ação molda não apenas nossa jornada, mas também o legado que deixamos para trás. Que possamos, a cada manhã, renovar nosso compromisso de viver de forma autêntica, valorizando cada momento, cada pessoa e cada experiência como se fossem únicas. Lembremos sempre que, ao final dessa jornada, o que verdadeiramente importa não serão os bens materiais acumulados, mas sim as marcas de amor, gentileza e compaixão que deixamos nos corações daqueles que cruzaram nosso caminho.

“O Beco onde nasci” é uma obra de arte do artista plástico João Paulo Quehá (Maputo, 1975), que está patente na galeria da Fundação Fernando Leite Couto, e pode ser apreciada até 29 de Junho. A peça é aprimorada com recurso à técnica acrílico e óleo sobre tela, com as dimensões 109x99cm, criada em 2022.

O título “O beco onde nasci” dá-nos a ideia de que o autor pretende fazer um flashback (regresso no tempo) das suas memórias prescritas, levando à obra traços e vislumbres do lugar onde existe, isto é, o beco onde nasceu, com as obscenidades ou excentricidades da sua comunidade. Assim, com efeito, estabelece um resgate da criança dentro de si através da arte.

Num primeiro olhar, o quadro de Quehá apresenta figuras animalescas. No entanto, com mais concentração, notam se vestigios de humanidade que parecem abrir interrogações profundas ao espectador.

As figuras tecidas por linhas finas, com formas ovais e curvadas, parecem co-habitar pacificamente nesse “beco”, ao mesmo tempo que buscam algo em comum, que, pelo diálogo visual, ainda não encontraram. Seria essa busca a liberdade? A solidariedade? A compaixão pelo próximo? O autor pode, aqui, estar a sugerir à sociedade para uma busca em comum. A harmonia das formas e a metamorfose das imagens revelam o seu talento refinado em projectar a sua imaginação.

Em “O Beco onde nasci”, cada figura parece estar ciente do seu espaço e a ser protagonista nas vivências de outras figuras, reforçando a ideia duma possível descoberta.

As cores da obra de Quehá são vivas, simulam uma marrabenta harmónica e exótica, onde o talento do autor também vibra na exploração de várias tonalidades de verde e azul, variando entre tons suaves de vermelho e outras pinceladas, o que causa um equilíbrio sensual de formas.

A harmonia de cores primárias e a beleza da sua execução é uma marca da obra. Ainda assim, a combinação multicolor não deixa de ter um tom misterioso e questionador no ar.

A tela de Quehá projecta, sobretudo, uma sobreposição de objectos, que recebem profundidades parciais acentuadas pelo sentido enigmático. Os objectos enfatizam a sensação de mistério, e descoberta, vão ganhando múltiplos significados em diferentes prespectivas de observação, ora lidando com meio-homens, ora com meio-animais, não excluindo o sussurro das aves à volta dessa interacção.

Na apreciação de “O Beco onde nasci”, olho do espectador é atraído, primeiro, para o canto esquerdo, devido a maior intensidade de luz e à forma figurante mais humana, constratando com outras formas mais enigmáticas. A sensação que se tem é que as figuras estão em assembleia, em torno dum propósito comum. O contorno mais ousado do mistério parece ser contemplado num braço aparentemente humano, com um olho vermelho, que pode ser a cabeça duma ave nocturna, ou do que a imaginação puder oferecer ao espectador.

“O beco onde nasci” é uma peça misteriosa tanto quanto sedutora, recheada por uma execução ímpar de cores, formas e talento. A obra parece apresentar um paradigma social, com questões profundas como esta: O que temos buscado como sociedade e o que devíamos buscar?

 

Nota do editor: A tela “O beco onde nasci” pode ser apreciada até 29 de Junho, na galeria da Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, onde está patente a colectiva de artes plásticas de Quehá e Santos Mabunda.

O texto de António Magaia foi escrito no contexto da Oficina de escrita: crítica de arte, organizada pela Fundação Fernando Leite Couto, com a pretensão de estimular a crítica artística no país.

 

 

O sorriso do Sol de Chocas Mar, visto do olho humano a partir do buraco onde papá mete a chave para abrir a porta, abraça com raios de luz as águas cristalinas deste Índico, visto desse ponto do planeta. As características únicas desse mar anunciam a surpresa do fim da madrugada e o começo da manhã, que sussurra esperança nos corações cheios de paixão pela vida.

O sentimento de paixão pelo sol laranja do Índico, que anuncia a alegria do amanhecer, irradia feixes de raios que mostram cores semelhantes às que maquiam os lábios do arco-íris depois da chuva miúda que beija suavemente a terra. A beleza do Índico se revela de forma solene, como uma orquestra que embala as ondas calmas, espreitando timidamente o rosto da areia branca como dentes de leite, e abre o dia com um som de esperança.

Este Índico, que de longe não revela o segredo do mundo marinho, oferece uma brisa que acaricia a pele da “Cabaceira”, isolada entre mangais que fazem companhia a Chocas Mar, e sorri ao contemplar o rosto da “Carrusca”, onde corações de amigos se reúnem em assembleia para discutir o prazer da vida com gestos que articulam o sabor da 2M.

A metáfora do Índico embriaga de felicidade a ansiedade de viver sem receios, pois as baleias que marcham em fila indiana ao largo da ilha dos 7 Paus revelam os segredos das maravilhas desse mar e alimentam os corações dos que as observam com o gingar das suas caudas robustas. Neste Índico, a mente esquece por um momento a única verdade certa: que a vida tem um fim, independentemente do status ou importância.

Passear com olhos atentos por este Índico mobiliza a lucidez da vida e a essência de amar a mãe natureza com consciência. Apaixonar-se pela biodiversidade do Índico é desenvolver um carinho profundo pelo planeta, nossa única casa.

O sentimento despertado por este Índico une paixões e ajuda a celebrar a vida com um sorriso, num mundo onde as consciências frequentemente se chocam com a natureza e esquecem de preservar as maravilhas deste mar. A vida ganha mais beleza quando vivida em harmonia com as leis da natureza, e o espetáculo do Índico deve ser apreciado com o máximo carinho. É verdade que o filósofo Albert Schweitzer vê o Homem passando por uma época perigosa, porque tem maior domínio sobre a natureza antes de aprender a dominar a si mesmo.

A satisfação verdadeira que o espetáculo desse Índico oferece confirma a afirmação de Sócrates: “É mais rico aquele que se contenta com o pouco, pois a satisfação é a riqueza da natureza.”

Este Índico, que na classificação dos oceanos por tamanho ou extensão ocupa o terceiro lugar, depois do Pacífico e Atlântico, revela-se com atributos únicos em suas águas mornas, que massageiam e deixam a pele macia em todas as estações do ano. O sorriso de suas águas transparentes revela conchas que o adornam, apaixonando qualquer coração sem promover ciúmes. Se houvesse uma classificação dos oceanos baseada nas maravilhas que oferecem, talvez este Índico de Chocas Mar receberia a nota máxima.

As maravilhas do Índico, que repousa no berço do horizonte de Chocas Mar, reúnem amigos e celebram milagres, apagando a tristeza indelével do passado e criando memórias que marcam a vida com o selo do prazer. Este Índico namora lealmente os que o apreciam com honestidade, e seus olhos tímidos e palavras frescas pronunciadas pela brisa leve embriagam corações de todas as idades. Este Índico me apaixona.

Na actualidade a sociedade moçambicana enfrenta diferentes patologias sociais. Há uma tese quase que partilhada de que a sociedade vive uma crise de valores. Uma crise que afecta às instituições incluindo a família. A bajulação é uma dessas patologias. É a patologia aparentemente menos evasiva, mas cujas consequências têm sido devastadoras para o país.

A bajulação, adulação, lambebotismo ou puxa-saquismo ganha campo e se afirma nos campos político, económico, social e cultural. O campo político é, sem dúvidas, aquele em que é mais facilmente observável o crescimento e afirmação deste fenómeno. Entendemos que a bajulação é como o acto de fazer excessivos e falsos elogios a outrem, normalmente alguém que dispõe de poder e/ou tem capacidade de redistribuir recursos, com o propósito de conquistar algo em troca e colocar-se em posição de vantagem para deles usufruir.

Em Moçambique a bajulação é uma patologia social que se incrustou nas instituições e que deve merecer a atenção dos decisores públicos. Este acto deve, ainda, merecer a atenção daqueles que determinam as políticas de educação e das instituições religiosas que são o pilar da moral, bons costumes e da ética nas sociedades. Só há bajulação onde há bajulados sedentos de ser adulados.

A consolidação da bajulação na esfera pública moçambicana é sintomática de que as lideranças das mais diversas esferas se confortam. Esta prática só se afirma onde as lideranças são narcisistas. Estas lideranças têm facilidade de se relacionar com esse perfil de profissionais, porque preferem o elogio à interpelação crítica, criando bolhas que as levam a viver longe da realidade.

A psicologia explica que a bajulação funciona devido a um fenómeno cerebral conhecido como “comportamento de atraso”. Sempre que um indivíduo recebe um elogio não sincero a primeira reação é de rejeição e desconsideração desse elogio.

Não obstante a rejeição, a bajulação fica registada, cria raízes e se estabelece no cérebro do indivíduo. A partir desse momento, passa a pesar subjectivamente no julgamento do elogiado que tende, com o tempo, a formar uma imagem mais positiva do bajulador. Ora, a suscetibilidade à bajulação nasce do profundo desejo do ser humano de se sentir bem consigo mesmo. Logo, a obviedade e o descaramento do elogio falso, paradoxalmente, conferem-lhe maior força. Esta explicação revela o quão dependentes da bajulação estão os líderes narcisistas. Eles não vivem e não se conseguem afirmar sem os bajuladores.

Argumentamos que os bajuladores são perniciosos para as instituições e organizações, por isso devem ser combatidos. Quaisquer que sejam as organizações, desde partidos políticos às empresas, organizações da sociedade civil, mídia e até as confissões religiosas enfrentam, na nossa sociedade actual, o perigo dos bajuladores. Estes são profissionais oportunistas que querem ganhar a simpatia de outras pessoas, normalmente detentoras de poder ou recursos, através de elogios exagerados e falsos.

Para alcançar o seu propósito, os bajuladores são capazes de distorcer a realidade, criando uma imagem falsa da realidade política, económica e social ou da pessoa. Em situações em que a sociedade não abona uma decisão surgem com narrativas desfasadas da realidade com o fito de agradar as lideranças. Os bajuladores têm falta de autenticidade e honestidade nas críticas, sendo desonestos e manipuladores.

Um bajulador não tem ética e não tem vergonha na cara. Não está preocupado com o sucesso da liderança muito menos com o da organização. Ao agradar a liderança o bajulador espera obter recompensa que pode ser em forma de promoção, ganhos financeiros ou confiança dos líderes podendo através dela manipulá-los para o alcance dos seus propósitos.

Por isso os bajuladores, normalmente, enredam as lideranças não as deixando ter contacto com narrativas diferentes da que eles apresentam. Nesse processo constroem uma tese de que todo o pensamento contrário ao seu visa fazer mal a liderança. São estes profissionais que fazem emergir e afirmar na esfera pública expressões totalitárias que fazem crer que só a uma verdade absoluta. A verdade do CHEFE. Trata-se de expressões como “antipatriotas, “vendidos ao ocidente”, “os críticos”, “doa a quem doer, “alinhamento”entre outras, todas tendentes a diabolizar quem pensa diferente.

Mais do que diabolizar, os bajuladores sedimentam uma cultura política onde sobrevive somente a visão da liderança conduzida pelas aduladores. Os bajuladores são hostis aodebate livre de ideias e fazem de tudo para criar um deserto social de ideias onde somente a narrativa do chefe é certa.

Toda a narrativa que tenta, com factos, mostrar que a visão do Chefe pode levar a organização para o caos é, imediatamente, silenciada. Há um trabalho de assassinato de carácter e de tentativa de desqualificação pública de quem ouse sair da caixa. Esse assassinato de carácter muitas vezes com recurso a devassa da vida privada. Este recurso a devassa da vida privada é porque os bajuladores são fracos no debate argumentativo.

Os bajuladores têm uma técnica e estratégia de comunicação que levam os adulados a acreditar e sentirem-se mais importantes do que realmente são, o que vezes sem conta conduz a comportamentos arrogantes e desrespeitosos.

Uma pessoa equilibrada, que tem amor-próprio, é realista sobre si mesma, aceita-se melhor e é imune à bajulação. As lideranças que se entregam ao oportunismo dos bajuladores não incentivam o trabalho em equipa, dado que procuram, a todo o custo, escamotear a sua insegurança ou incapacidade de liderar pessoas e as suas diferenças. Afirmam-se donos da verdade; fecham-se sobre si. A bajulação é a ruína da autoestima, o prejuízo da competência e a falência do profissionalismo.

Os bajuladores contribuem para o enfraquecimento da democracia. A sua actuação não permite a afirmação e consolidação de uma esfera pública onde é normal o contraditório assente no debate livre de ideias. Não permitem a afirmação da liderança democrática, pelo contrário, sedimentam uma cultura política tóxica. A proeminência dos bajuladores na esfera pública moçambicana, em particular nos partidos políticos, têm contribuído para a emergência da tirania e da intolerância política.

Na conjuntura actual, o debate livre de ideias esmoreceu nos partidos políticos. Os partidos fecharam-se sobre si, os seus debates não são expostos aqueles que no final do dia escrutinam os seus projectos de governação. A narrativa que os partidos apresentam para a sociedade é de um unanimismo Luiscatorziano. Esta forma de actuar contribuiu sobremaneira para que o modelo Luiscatorziano se consolide em todos os campos da sociedade moçambicana.

Os laivos de liderança narcisista apimentada pela bajulação são vividos desde a família, emprego e, de mansinho, se incrustam na esfera religiosa. A forma naive como os decisores políticos têm lidado com a bajulação e contribui para crise estrutural em que vive a sociedade moçambicana. As lideranças, de grosso modo, se recusam a buscar feedback honesto e construtivo para melhorar o trabalho.

Portanto, se a bajulação não contribui para o desenvolvimento de uma sociedade democrática nem para a afirmação de uma liderança democrática não faz sentido a sua promoção. Como referimos, a sua promoção é alimentada por lideranças narcisistas e hostis à crítica.

É fundamental que as lideranças políticas neste país, em particular os governantes e líderes de partidos políticos, estejam comprometidas com uma uma sociedade aberta onde se consolida o debate livre de ideias. Os partidos políticos não precisam de bajuladores.

O governo não precisa de bajuladores. Os partidos políticos e o Governo devem ser interpelados criticamente pela sociedade todos os dias para que consigam aprimorar a qualidade do seu trabalho. Mas, só faz sentido retirar o espaço proeminente aos bajuladores se as lideranças estiverem comprometidas em construir, em Moçambique, uma sociedade ética e meritocrática. Uma sociedade em que se valoriza a competência técnica, o saber local e a experiência profissional.

As sociedades onde há debate livre de ideias, promove-se o contraditório desde tenra idade há inovação, criatividade e instituições fortes. No próximo ciclo de governação as lideranças precisam ousar e criar as condições para afirmação de uma sociedade onde os seus concidadãos tenham debate livre de ideias, a ética, moral e a vergonha na cara sejam modelos a seguir a inovação e a criatividade se afirmem. Uma sociedade que não dependa de one man shows e da sua rede de bajuladores em qualquer que seja o campo.
Os Verdadeiros líderes sabem que deixar cercar-se de bajuladores é um grande risco para o desenvolvimento e fortalecimento das instituições.. Não existe conquista sem superar desafios, portanto pessoas prontas para enfrentá-los e não apenas subestimá-los vendendo imagem de um país ou pessoas ideais. Quem vende mundos ideais pode comprometer a evolução do país e das organizações bem como das suas lideranças.

O filósofo italiano Niccolò di Bernardo dei Machiavelli, na sua obra O príncipe propôs uma excelente solução ao príncipe (neste artigo entenda-se lideranças) para livrar-se dos bajuladores: “um príncipe prudente deve escolher homens sábios e somente a eles deve dar a liberdade de falar-lhe a verdade daquilo que ele pergunte e nada mais. Deve consultá-los sobre todos os assuntos e ouvir as suas opiniões; depois, deliberar por si, a seu modo, e, com estes conselhos e com cada um deles, portar-se de forma que todos compreendam que quanto mais livremente falarem, tanto mais facilmente serão aceitas suas opiniões (Maquiavel, 2008. 5.º Vol).

Para Maquiavel a única forma do príncipe, neste casos dos governantes, se protegerem da adulação é fazer com que os seus subordinados entendam que não ofendem dizendo a verdade. Mas devem dizer a verdade sem faltar a reverência.

Na mesma linha, Barack Obama defendeu que as lideranças devem livrar-se dos bajuladores e manter por perto pessoas que avisam quando erra. O desafio está colocado a todos. Moçambique precisa de líderes não narcisistas e as instituições públicas e privadas deste país precisam livrar-se dos bajuladores.

Eles, os bajuladores, são um perigo na longa marcha para a consolidação de uma sociedade democrática, ética, meritocrática e desenvolvida. Tal só será possível com lideranças comprometidas com resultados e lideranças que visem empreender mudanças na sociedade combatendo a mesmice.

Não é possível ousar gerar mudança na transformação da sociedade sem antes empreender mudanças a nível da esfera micro. Estarão os nossos governantes e lideranças dos partidos políticos preparados e dispostos viver sem os bajuladores? Estarão elas próprias para uma sociedade aberta em que há debate livre de ideias? A escolha que for feita no próximo ciclo de governação determinará o nosso futuro como Nação. Os bajuladores são seres sociais. Empreendida a mudança para uma sociedade de denate licre de ideias eles vão aprender a viver numa sociedade democrática normal.

PS; abraço amigo a todos os profissionais e quadros deste país que no espírito de bem servir a Nação foram vítimas dos bajuladores. Eduardo Chivambo Mondlane desafiou-nos a sempre, Lutar por Moçambique.

Nos últimos anos, a indústria de nova energia da China desenvolveu-se rapidamente. Os veículos elétricos, as baterias de lítio e os produtos fotovoltaicos tornaram-se os “três novos itens” para exportação da China. Além de enriquecer a oferta global e proporcionar aos consumidores opções de consumo diversificadas, deram contribuições importantes para a transformação global verde e de baixo teor de carbono, bem como o desenvolvimento sustentável.

No entanto, alguns políticos e meios de comunicação ocidentais apregoam o chamado dito de “sobrecapacidade da China choca o mercado mundial e ameaça o funcionamento normal da economia global”. Sem base e razão, esta falácia é contrária ao bom senso da economia e às verdades objetivas.

Do ponto de vista da vantagem comparativa, a grande escala das exportações de produtos de nova energia da China não pode ser tratado como o excesso de capacidade de produção. Com o aprofundamento da globalização, diferentes países têm as suas próprias vantagens comparativas na produção de diversos bens ou serviços. A divisão internacional do trabalho e a cooperação entre países com base nessas vantagens, em diferentes indústrias, é fundamental para o surgimento e desenvolvimento do comércio internacional.

Com o investimento incessante em inovação, cadeias de indústrias e de fornecimento completas e recursos humanos abundantes, a indústria da nova energia da China tem posição vantajosa na concorrência internacional, o que cumpre totalmente os princípios económicos e regras de mercado.

Do ponto de vista da procura do mercado global, o rápido crescimento da indústria de nova energia da China não é uma expansão cega, mas se baseia na necessidade urgente de redução das emissões de carbono em todo o mundo. Um relatório da Agência Internacional de Energia mostra que, a procura global de veículos de nova energia atingirá 45 milhões de unidades em 2030, mais de três vezes da cifra registrada em 2023.

De acordo com cálculos da Agência Internacional de Energia Renovável, para alcançar as metas do Acordo de Paris, a capacidade instalada cumulativa de geração de energia fotovoltaica global deve atingir pelo menos 5400 GW em 2030, o que é quase quatro vezes em relação à capacidade instalada total global em 2023. Obviamente, a capacidade de produção da indústria de nova energia da China é uma capacidade de produção avançada e, urgentemente, necessária para promover o desenvolvimento verde, em vez da chamada sobrecapacidade.

Alguns países ocidentais vão contra o bom senso da economia e as realidades dos desenvolvimentos industriais, colocando à China uma etiqueta de “sobrecapacidade”. Por um lado, pregoam a “teoria da sobrecapacidade da China” e manipulam a “teoria da ameaça da China”. Por outro lado, esforçam a proteção da indústria de nova energia dos seus países próprios e usam a sobrecapacidade como desculpa para adoptar medidas de proteção comercial. A essência disso é conter os avanços tecnológicos da China, detendo a tendência de desenvolvimento da economia chinesa.

Este tipo de comportamento não traz benefícios, e ainda prejudica a estabilidade e a fluência das cadeias de indústrias e de abastecimento globais, dificultando o crescimento económico e comercial mundial, e retardando o ritmo da transformação verde e de baixo teor de carbono da economia global. Hoje, à medida que os laços económicos entre países se tornam cada vez mais estreitos, só através do senso de abertura em termos do reforço da colaboração internacional e da promoção da construção de uma economia mundial aberta é que podemos realmente alcançar um desenvolvimento verde, de baixo teor de carbono e sustentável, melhorando o bem-estar comum dos seres humanos.

Moçambique tem uma localização geográfica vantajosa e recursos abundantes. A China e Moçambique honram a confiança política mútua de alto nível e uma grande complementaridade económica. Atualmente, em Moçambique, o desenvolvimento é forte nos domínios tais como modernização agrícola, industrialização e desenvolvimento verde. Isto proporciona novas oportunidades para a cooperação sino-moçambicana, na área de nova energia.

Olhando para o futuro, a China está disposta a seguir continuamente o conceito de verdade, efetividade, afinidade e sinceridade, bem como valores corretos de moralidade e benefício, fortalecer o alinhamento estratégico dos planos de desenvolvimento, impulsionando a cooperação pragmática China-Moçambique para o novo patamar.

Há 19 anos que expomos a nossa maior identidade: ser um jornal que se curva à verdade e faz dela o seu maior valor. Com mais de cinco mil publicações, a nossa história fez-se alicerçada neste compromisso. Mudamos de imagem, de periodicidade de publicação, mas nunca a nossa essência. A verdade está sempre em primeiro lugar.
E porquê? Num mundo inundado de conteúdos, onde navegar pela desinformação é uma possibilidade constante, actuar do lado da verdade é mais do que necessário. É um imperativo existencial para um órgão como O País. É ser uma boia de salvação da sociedade. E escolher o slogan, “a verdade como notícia” não foi estratégia de marketing, mas um compromisso com o profissionalismo. Em tempos de desinformação e fake news, é crucial que mantenhamos a integridade e a credibilidade que nos caracterizam. O nosso objectivo é continuar a ser uma referência no jornalismo moçambicano, contribuindo para uma sociedade mais informada e consciente.

Assinalamos este aniversário realçando este princípio da verdade, porque, nestas quase duas décadas de existência, muitos profissionais passaram pelo jornal e deram o seu contributo fiés a este valor. São eles uma inspiração constante para todos os que continuam a fazer a história do jornal acontecer. Por isso nos lembramos de todos com carinho e gratidão.

Agradecemos a todos os nossos parceiros, anunciantes e colaboradores que têm caminhado ao nosso lado nesta jornada, permitindo que este projecto editorial cresça. O vosso apoio é essencial para o nosso sucesso e para a concretização da nossa missão. Juntos, temos construído um jornalismo forte e independente, capaz de fazer a diferença na vida dos moçambicanos.

Aos nossos leitores, que diariamente escolhem O País como sua fonte de informação, deixamos um especial reconhecimento, pela fidelidade, que nos motiva a continuar a melhorar e inovar, garantindo que recebam sempre o melhor conteúdo jornalístico. As comemorações deste aniversário não ofuscam a nossa responsabilidade de continuar a trabalhar no aprimoramento do produto, para que a nossa oferta vá ao encontro da preferência dos leitores. A nossa razão de ser está intrinsecamente ligada à sua satisfação.

A nossa trajectória foi marcada por muitos desafios e conquistas que nos moldaram e nos fortaleceram. Por isso nos focamos em servir sem alimentar a dor das adversidades que nos procuravam afundar. Firmes, fomos sempre desempenhando um papel crucial na consolidação dos pilares democráticos em Moçambique. Através das nossas páginas, temos proporcionado uma plataforma para o debate público, a liberdade de expressão e a promoção da transparência. Acreditamos que uma imprensa livre e independente é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade democrática e justa. Neste sentido, temos trabalhado incansavelmente para que cada letra que escrevemos seja confiável e imparcial, comprometida com a verdade e a justiça.

Com o avanço da tecnologia, enfrentamos novos desafios e oportunidades. A revolução digital transformou a maneira como consumimos informação, e O País não ficou alheio a essas mudanças. Reconhecemos a importância de nos adaptarmos a esta nova realidade e, por isso, temos investido na transformação digital do nosso jornal. A transição da impressão tradicional para a publicação digital foi um passo crucial, permitindo-nos alcançar um público mais vasto e diversificado.

Estamos orgulhosos de ver o crescimento do consumo de notícias através de plataformas digitais em Moçambique. De acordo com estudos recentes, as plataformas digitais já se posicionaram como a segunda maior fonte de consumo de informação no país. Esta mudança reflecte não só a nossa capacidade de inovação, mas também a tendência global de digitalização da informação. Continuaremos a investir em tecnologia e inovação para garantir que o nosso conteúdo seja acessível, relevante e envolvente para todos os nossos leitores.

No contexto da evolução tecnológica, temos explorado novas formas de interagir com o nosso público. A presença nas redes sociais, o desenvolvimento de uma aplicação móvel e a constante actualização do nosso website são exemplos do nosso compromisso com a modernização. Queremos estar presentes onde quer que os nossos leitores estejam, oferecendo-lhes uma experiência de leitura enriquecedora e interactiva.

O futuro é promissor, e estamos preparados para continuar a inovar e a crescer, honrando a confiança que depositam em nós diariamente. Obrigado a todos por fazerem parte desta história. Juntos, continuaremos a construir um futuro brilhante para o jornal O País e para o jornalismo em Moçambique.

Um País tem heróis e heróis. Os primeiros são aqueles que merecem ruas, avenidas, praças, escolas e aeroportos em seu nome. Celebra-se a sua bravura. Os segundos são aqueles que passam despercebidos e, por isso, não são celebrados. Pertencem a esta segunda categoria todos aqueles que participam na construção do País pela crítica. Esta não se reduz ao simples acto de dizer o que está mal, embora isso seja importante. Tem a ver também com o simples acto de interpelar, isto é perguntar de novo se as coisas são realmente como se pensa que são.

O jornalismo faz isso muito bem. Não o faz sozinho. Fá-lo com todos aqueles que não são apenas moçambicanos, mas sentem que são também cidadãos. Um cidadão reconhece que leva consigo nos ombros o fardo de pensar o País e exigir contas a quem o governa. Esse cidadão tem no jornalismo a oportunidade de que precisa para viver a sua cidadania. É uma situação “Win-Win”. O jornalismo ganha interlocutores e o cidadão ganha um meio que permita ser ouvido. Tudo isto pressupõe, claro, a liberdade de imprensa, mas não só: também a coragem de a exigir!

Exercer a cidadania, contudo, não faz de ninguém melhor do que ninguém. Da mesma forma que não pode haver prémio para o simples facto de se ser pessoa, existindo, também não pode haver prémio para a cidadania. Cidadania é, acima de tudo, responsabilidade. O programa “Noite Informativa”, por exemplo, é um espaço de eleição para o cidadão responsável. Quando tudo está mais ou menos bem – que é quase nunca em Moçambique – o “Noite Informativa” é esse espaço de responsabilidade cívica. Quando as coisas estão mal – como agora é, infelizmente, nos últimos anos – esse espaço não é apenas de responsabilidade cívica. Torna-se um espaço de decência, uma virtude cuja falta faz muito mal ao País.

Uma violência contra o Estado, que começou pequena, ganhou proporções que a colocam acima de qualquer capacidade deste Estado de lidar com ela. E, pior, tudo o que o Estado até agora fez para abordar essa violência transformou-se em problema em si. Os mercenários contratados e que drenaram recursos públicos e as tropas estrangeiras chamadas sem consulta pública são uma faca de dois gumes. Quando têm sucesso, como foi o caso com as tropas ruandeses no início, eles mostram o desastre que nós próprios somos. Quando se vão embora, como as forças da região decidiram fazê-lo, dão-nos a forte impressão de que o problema é bem mais complicado do que temos a coragem de admitir.

Seja qual for a leitura que fizermos, o que se torna claro é que estamos entregues. Estamos entregues à prepotência dos nossos próprios governantes, diga-se. As revelações recentes sobre o envolvimento com criminosos internacionais que nos tempos livres ensaiam golpes de Estado tornam o cenário ainda mais sombrio. E quando queremos desenhar um quadro mais completo e, por isso, olhamos para os raptos, para a crise financeira do Estado aparentemente incapaz, não só de pagar aos seus funcionários, como também de honrar com compromissos financeiros com empresas do sector privado, as greves na educação e na saúde, bem como a ameaça de greve dos juízes, as três refeições por dia que continuam a manter o nosso País nos escalões internacionais mais baixos de nutrição, etc., ficamos tontos.

Mas o que estonteia mesmo até nem é a enormidade dos problemas. É a recusa dos decentes de exercerem a sua cidadania. Não é que oportunidades faltem. Quando jovens foram à rua para chorarem o desaparecimento físico do seu ídolo, o músico Azagaia, e tiveram de enfrentar gás lacrimogénio da polícia que devia proteger o seu direito de se manifestaram – e que estranhamente viu neles uma ameaça de golpe de Estado – os decentes ficaram calados. Não vieram ao socorro dos jovens para dizer que foi também pelo direito de manifestação que se lutou pela independência. Quando as eleições municipais foram marcadas por terríveis irregularidades, os decentes continuaram impávidos e serenos, alguns à espera de ganhar na lotaria da candidatura presidencial para depois se pronunciarem. E quando o maior partido do País, de forma atabalhoada, escolheu o seu candidato sem ouvir de nenhuma deles que ideias tinha para o País, essas mesmas pessoas decentes continuaram a cuidar do seu silêncio, porque, ao contrário de nós, que estamos longe do poder político, eles sabem que dez anos não são nada e, em devido tempo, isto é, em 2035, terão nova oportunidade de tentar mudar as coisas.

Os decentes encontram-se em todo o lado, não só em estruturas partidárias. Estão no aparelho do Estado, rangem os dentes como todos nós, encolhem os ombros, exasperam-se em silêncio, mas, de forma obediente, fingem que está tudo bem e que, se não estiver, vai ficar bem. Um dia. Decência é isso mesmo. Não comprometer o bom nome daquele que garante o pouco pão – que até é muito se comparado com o que o pacato cidadão consegue desenrascar – é uma virtude. Aceitar que outros sofram para não perder o que se tem é também uma virtude. A crise moral dum País revela-se nesta equação simples: quando o vício é virtude e virtude é vício.

Nestas circunstâncias, são heróis aqueles que criam oportunidades para que se discuta o País, mesmo se isso significa perturbar o sono dos decentes. O jornalismo faz isso muito bem, porque, no mundo de avesso que Moçambique se tornou, o vício da indecência pode ser uma virtude. O sono profundo em que os decentes parecem preferir estar impede-os de verem que o País está bem mal, aliás, muito mal.

Em Moçambique, é lugar comum ouvir que o país precisa de um novo rumo – ideia de que se precisa de empreender reformas políticas e económicas que conduzam ao desenvolvimento inclusivo e sustentável. Portanto, a temática em voga é a necessidade de reforma das instituições, mormente do Estado, pela sua incapacidade de interagir numa sociedade cada vez mais complexa.

O Estado moçambicano tem-se mostrado incapaz de responder às demandas cada vez maiores da sociedade. O Estado, em particular as instituições públicas, está totalmente incrustado pelas teias e tentáculos da corrupção. A corrupção põe em causa a boa governação em termos políticos e administrativos, uma vez que a consequência é que o Estado se mostra incapaz de atender aos anseios dos cidadãos. Hoje, em resultado do processo de democratização, temos uma sociedade civil forte, consolidada e organizada que luta incessantemente pelos seus direitos. Como referimos, há em toda a esfera política, económica, social e cultural na posição e na oposição uma tese de que é preciso refundar o Estado. Este clamor em alguns é manifesto e exteriorizado publicamente. Em outros é manifesto somente em grupos privados e restritos.

Um novo rumo não só é necessário como possível. O novo rumo depende da afirmação de uma liderança transformadora – entendendo liderança como habilidade de comandar pessoas e influenciá-las para trabalharem entusiasticamente visando atingir os objectivos identificados como sendo para o bem comum da organização e/ou da Nação. O nosso argumento é que o país precisa de uma liderança política transformadora, uma liderança que se concentre em criar um ambiente político, económico, social e cultural bom para a sua equipa de governação e, por via disso, para a Nação. Uma liderança que não se concentra em dar ordens e exigir que se cumpram as tarefas permanecendo no óbvio e na mesmice (sempre foi assim, por isso devemos continuar a fazer assim). Moçambique precisa de líderes, na posição e na oposição, que não se cinjam à disputa pelo poder. O poder deve ser, para esses líderes, a ferramenta necessária para empreender transformações na gestão da coisa pública. Uma liderança que se engaja, inspira e motiva os seus subordinados e concidadãos  a inovar e a contribuir para que a governação seja bem-sucedida diante dos objectivos que persegue – o desenvolvimento inclusivo e sustentável. O país precisa de uma liderança que entenda e materialize que o acto de liderar exige muito mais que ser bom gestor de pessoas e processos. É fundamental entender que há princípios de liderança que são fundamentais para empreender mudanças e mobilizar a Nação para esse desiderato, tais como propósito estabelecido, perseverança, parcerias estratégicas e inteligência emocional.

O vencedor das eleições de 9 de Outubro próximo deve definir com clareza o destino para onde pretende levar a Nação. Trata-se de apresentar com clareza onde pretende que esteja Moçambique em 2029 quando terminar o primeiro ciclo da sua governação. Quando o propósito está estabelecido com facilidade, engaja a sua equipa governamental e por via de uma liderança que inova mobiliza os moçambicanos. Os desafios estruturais e conjunturais que Moçambique vive exigem perseverança na liderança. Uma liderança que persiste diante das situações difíceis e que não se abale com as contrariedades internas e externas que o seu ciclo de governação vai enfrentar. As contrariedades e situações difíceis podem até ser internas, isto é, dentro dos partidos que se habituaram a práticas que se institucionalizaram. Toda a mudança e inovação vai ser combatida e contrariada a despeito de que sempre se fez de uma forma e essa forma foi sempre bem-sucedida, por isso não se deve alterar. Este discurso é, muitas vezes, alimentado pelas elites clientelistas que vivem das “tetas” do Estado. Essas elites vivem na base de relações sejam familiares, sejam étnicas sejam de amizades, em que a partir daí formam governos e/ou influenciam na constituição dos mesmos. Esta estratégia institucionalizou-se porque essas elites vêem na ocupação de cargos públicos uma fonte rápida para fazer negócios, alguns dos quais ilícitos. Enquanto essa situação continuar, não será possível eliminar a corrupção na gestão da coisa pública. Aquele que sair vencedor das eleições de 9 de Outubro próximo deve ter presente que necessita de competências na gestão da mudança, na resistência à pressão das expectativas e na capacidade de adaptação às novas condições que surgirem. Para isso, deve formar um Governo cuja liderança é transformática e ética. É fundamental recuperar e restaurar a esperança e  a ética na sociedade moçambicana. E não se alcança isso sem fazer parcerias estratégicas. O líder que vai gerar o Estado e a sociedade moçambicana no próximo quinquénio deve ter em si que juntos somos fortes. Trata-se de estabelecer parcerias estratégicas a todos os níveis.

A primeira parceria estratégica deve ser a nível interno do partido que o elegeu como candidato. Agregando junto do projecto de governação para Moçambique aqueles que o apoiaram e também os que estiveram em posição contrária. Trata-se de saber buscar os melhores quadros para materializar o projecto de governação que permita materializar uma independência económica de Moçambique fundamentada no uso das próprias forças e meios. A segunda é com a oposição. É fundamental estabelecer uma parceria estratégica com oposição para convergir nas questões centrais que devem mobilizar os moçambicanos para materializar a melhoria da sua condição de vida.

Este aspecto é fundamental e na sua equipa de governação deve ter experts que procurem estratégias para garantir canais que propiciem acordos com a oposição nas questões estratégicas. Ter presente que o compromisso com Moçambique e com os moçambicanos exige fazer cedências em temáticas que seja razoável fazê-las. O país clama por uma política económica de desenvolvimento séria, ética e boa governação e equidade e justiça social na redistribuição de riqueza.  Uma transformação estrutural e sistémica de Moçambique passa pela construção de uma sociedade mais aberta ao contraditório, mais democrática, mais transparente, mais participativa e mais justa.

Não tenhamos a ilusão de que basta que se afirme uma liderança transformadora na gestão do Estado para que os desafios que Moçambique enfrenta sejam resolvidos com sucesso. É fundamental que as lideranças médias e intermédias tenham o mesmo perfil e a nova cultura política se incruste na gestão da coisa política. Os meios de comunicação social são actores determinantes para a instalação de uma liderança transformadora. No dia em que este jornal celebra os seus 19 anos, auguramos que o compromisso editorial seja com um engajamento para contribuir para a mudança pela qual os moçambicanos anseiam.

Quase 50 anos de independência de Moçambique, a leitura que se pode fazer é de que falhámos a construção de um Estado capaz de perseguir o interesse da maioria. As utopias dos nossos ancestrais, daqueles que deram as suas vidas pela libertação do país ruíram, antes mesmo da sua concretização. As lutas contra os tribalismos, os regionalismos e os racismos, inimigos da unidade e do povo de Samora Machel viraram cacotopias. A maioria dos moçambicanos tornou-se retrotópica. As esperanças pelo futuro melhor goraram-se. As utopias são a nostalgia. Restaram os “se Samora Machel fosse vivo, isto não iria acontecer”, “este não é o país que Mondlane e companhia sonharam”. Um futuro sombrio carcome as mentes de quem um dia sonhou num país diferente de Moçambique de hoje. O futuro é um vudu. Ninguém quer ousar fazer prognósticos, por isso a zona de conforto é a nostalgia. Qual país de “xiconhocas” o país não se tornou!

Como se não bastassem os traumas da guerra dos 16 anos e das “tréguas tensas Governo–Renamo” que caracterizaram os momentos que se seguiram ao Acordo Geral de Paz de 1992, Cabo Delgado “partejou” o terrorismo que dilacera o Norte do país, mas já com sinais inequívocos de que, agora, não se trata apenas de um problema do Norte, mas de um problema com contornos nacionais, como os últimos eventos da República Democrática do Congo parecem querer revelar.

A Administração Pública moçambicana, em greve silenciosa, muitas vezes expressa nas cascas de amendoim fresco ou torrado nas mesas das instituições públicas e na demora no atendimento dos utentes ou ainda na indignação explícita dos professores, médicos, magistrados, profissionais de saúde, nada mais é do que a expressão da frustração de sonhos embebidos na famosa Tabela Salarial Única (TSU). Enquanto não há solução, o sonho nostálgico com a TSA (tabela salarial antiga) é imanente.

Nestes quase 50 anos de Independência Nacional, o país não conseguiu forjar um projecto de Estado sólido, embora o Governo seja do mesmo partido desde lá. Projectos estruturantes como PROAGRI I e II; Tchuma Tchato; GPZ; revolução verde; distrito como pólo de desenvolvimento; 7 milhões; computadores Dzôvo; as montadoras Matchedje; se não foram nados mortos, foram assassinados por projectos sucessores como SUSTENTA, EMPREGA, PROMEZA. Institucionalizaram-se as “boladas” no Estado circunscritas em trocas pecuniárias dúbias. Esta situação não só enferma a Administração Pública, mas também é uma prática reiterada com uma certa convicção de obrigatoriedade na administração privada. Isto tornou o espaço político não como um espaço de debate de ideias sobre que Moçambique a médio e longo prazo se quer, mas espaço de discussão de interesses egoístas (é nisto que os partidos políticos também se transformaram – compra de votos para ser deputado ou cabeça-de-lista).

A sociedade civil que se caracterizou ao longo do tempo, sobretudo com o advento da Constituição de 1990, por agendas claras de desenvolvimento e de pressão sobre os detentores do poder político parece ter-se transformado numa sociedade civil de espectáculo (de busca de likes nas redes sociais), defendendo agendas que se distanciam daquilo que a sociedade espera dela. As Universidades e alguns centros de pesquisa do Estado não têm recebido o apoio necessário para produzirem pesquisas e estudos que possam servir de alicerce para que governantes tomem decisões adequadas. Como corolário, jovens académicos (alguns talentosos), tais como os jovens de Cabo Delgado que se entregam ao grupo que aterroriza aquele ponto do país ou os jovens assassinados nos Parques do Limpopo (Moçambique) e Kurger (África do Sul) caçando furtivamente elefantes e rinocerontes, por causa da precariedade da vida e falta de condições de trabalho adequadas, facilmente são atraídos por grandes corporações ou organizações que oferecem boas condições de trabalhos e salários aliciantes ou se deixam instrumentalizar por quem detém o poder político.

O Sistema Nacional de Educação foi mutilado. Altos dirigentes deste Estado não colocam os seus filhos no ensino público. A dita classe média baixa também recorre ao sistema de educação privado. Porque será? Por sua vez, as instituições religiosas (islâmica ou cristã, etc.), as diferentes ordens, CTA e o próprio judiciário que deveriam ser últimas instituições guardiãs da moral brindam a sociedade, ano após ano, com processos inquinados, muitos deles que acabam por ser judicializados.

Não restam dúvidas: falhámos a construção do Estado moçambicano. Entretanto, existe uma solução: um Great Reset; uma grande reinicialização do país como se reinicia um computador corrompido/vírus. A questão fundamental é: de onde se partir? Há que se questionar o que se fez ou deixou de fazer para que os moçambicanos se alimentem de nostalgia. É necessário pensar-se num projecto nacional no qual todas as políticas se guiam, mesmo que, para tal, seja necessário buscar exemplos de países como Ruanda depois do genocídio ou Etiópia, que hoje são referência em termos de desenvolvimento económico e social.

E, para que se chegue a esse ponto de inflexão, é necessário convocar-se todos os segmentos da sociedade, desde académicos, intelectuais, organizações da sociedade civil, classes profissionais, etc, para que se (re)pense o país que queremos a médio e longo prazos. Um país não se constrói com planos quinquenais. Um país precisa de um projecto social que materializa as utopias de um povo. Um povo sem utopia equipara-se a um cego a andar vagamente no escuro, sem qualquer guia. O guia que se sugere é um projecto político chancelado pela Assembleia da República, que seja de difícil manipulação pelos sucessivos governos que vierem (em caso de necessidade de alteração, que seja através de um referendo com larga participação popular).

O próximo inquilino da Ponta Vermelha tem uma grande missão neste país, que é liderar o Great Reset de Moçambique.

De todos os candidatos até aqui conhecidos, Daniel Chapo tem muitas vantagens para o Great Reset que se convoca. A começar pela idade (47 anos), porque a história mostra que a revolução é feita por jovens. Aliás, “cavalo velho” não vence grandes corridas. A corrida para o Great Reset até encontra algum sentido no seu apelido, que, quando dito duas vezes, (chapo-chapo), no Sul, significa rápido.
O tempo é este, Daniel Chapo!

Em cada esquina dos bairros do meu belo Moçambique, vemos inúmeras igrejas erguendo-se. Além disso, nos últimos tempos, observamos que a predominância dessas igrejas, que atraem multidões e capturam a atenção de seus fieis, se torna cada vez mais evidente. Em alguns casos, chega a ser comum encontrar mais de duas igrejas em uma única rua, todas com seus lugares ocupados por fieis.

Para mim, o que verdadeiramente me intriga não é apenas a quantidade de igrejas, mas sim a percepção de que, à medida que novas igrejas surgem, parece aumentar a presença de maldade, egoísmo, desrespeito e falsidade, entre outros aspectos, em nosso belo Moçambique. Essa situação se apresenta como uma contradição, visto que, de acordo com o que aprendi durante minha infância, o papel das igrejas na sociedade é o de educar tanto os fieis como os cidadãos a viverem em amor e harmonia com os concidadãos, contribuindo para uma sociedade fundamentada em moral e bons costumes.

Essa contradição suscita questões fundamentais: Terá a igreja perdido sua função educativa, transformando-se em um agente distinto na sociedade? Ou será que os fieis frequentam a igreja com objetivos diferentes, alheios à busca por educação e transformação interna? Poderíamos esperar que, com o aumento de igrejas e fieis, também florescesse a bondade e o amor, resultando em uma sociedade permeada por empatia e harmonia. No entanto, o que estaria por trás dessa desconexão? Seria a liderança religiosa, os ensinamentos específicos ou a pressão social responsáveis por influenciar esse afastamento do propósito original das igrejas? 

Minha apreensão se intensifica ao observar jovens que, em vez de buscar não só o crescimento espiritual, mas também o crescimento e conhecimento educacional, decidem abrir mão desses benefícios para se dedicarem exclusivamente à igreja, em detrimento da educação que também poderia contribuir para seu futuro. Isso suscita uma questão crucial: será este o caminho correcto, desistir da educação e focar apenas no desenvolvimento espiritual?

Fico entristecida com a tendência dos jovens de se preocuparem mais em tornar-se pastores e profetas do que em buscar educação formal. A questão que surge é: poderia essa escolha ser considerada acertada, uma vez que parece um caminho mais fácil, que não demanda sacrifícios, como o estudo? Minha consternação ultrapassa o âmbito pessoal e se estende à sociedade como um todo. Surgem preocupações sobre o futuro: daqui a 20 anos, teremos uma sociedade com mais pastores do que doutores? E, nesse cenário, qual seria o benefício real para a sociedade em geral? Além disso, é importante refletir sobre como o equilíbrio entre a busca espiritual e a educação formal pode ser determinante no crescimento e desenvolvimento não apenas dos indivíduos, mas também da coletividade. Portanto, é essencial considerar as consequências a longo prazo desse direcionamento na escolha de carreiras e investimento de tempo dos jovens.

A questão essencial permanece: as igrejas ainda cumprem efetivamente seu papel na promoção de valores fundamentais e na educação moral? Uma reflexão coletiva e um diálogo aberto poderiam ser passos cruciais na busca por respostas e na construção de uma sociedade mais equilibrada e compassiva em Moçambique.

Refletir sobre a presença de milhares de igrejas em nossa sociedade, apesar da ausência de valores morais ou, pior, da propagação de ódio e ressentimento em algumas delas, levanta questões cruciais. O enfoque de abordagens que culpam diretamente indivíduos pelo insucesso de um crente, em vez de abordar o mal de forma espiritual, é altamente questionável e pode incentivar o ódio em detrimento do amor. Se essas igrejas não estão a promover o amor ao próximo, a paz e a caridade, é imperativo repensar o papel delas na sociedade. A finalidade das igrejas deveria ser nutrir valores positivos e fortalecer as relações harmoniosas entre as pessoas, contribuindo para uma sociedade mais empática e compassiva.

É essencial questionar o papel das igrejas que falham em promover esses princípios fundamentais, incentivando a reflexão sobre a necessidade de mudanças positivas em sua abordagem e ensinamentos para que possam verdadeiramente contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e amorosa.

Começo este pequeno rabisco com um trecho da música do renomado grupo moçambicano de HIPHOP – Gpro-Fam. Um clássico com mais de 20 anos, e que permanece actual pela sua forte mensagem de caris socio-político e pela futurologia que estes rapazes emprestaram ao momento.

Com o título (País da Marrabenta), a música diz logo no início: “Passe o tempo que passar, um nome ficará eternamente gravado na história de Moçambique – O Nome de Samora Moisés Machel (…)

O País da Marrabenta vai de mal a pior, mas paciência Moçambicanos tem de melhor”.

A música é uma clara alusão ao Patriotismo de Samora Machel, figura incontornável do nosso Moçambique; e também ao espírito de paciência e optimismo do povo Moçambicano.

Terminado o ciclo governativo liderado pelo Presidente Armando Guebuza, inaugurou-se um novo ciclo; ciclo este sob liderança de Filipe Jacinto Nyusi. Diga-se, um ciclo inaugurado com um tema antigo e candente, que ocupa lugar de destaque dentro e fora do país, e domina a agenda do dia – as dívidas ocultas. Dívidas estas que colocaram o país numa situação degradante e com um descrédito internacional nunca antes visto.

A já difícil vida da população da Pérola do Índico piorou exponencialmente; a retirada do apoio dos principais financiadores do Orçamento Geral do Estado colocou o país numa situação bem mais difícil, com contas por pagar e processos internacionais por gerir; a nova carga fiscal, o agravamento dos preços de produtos básicos começaram a asfixiar o bolso do cidadão ordinário que já vivia em situação contingencial.

A escolha de Filipe Jacinto Nyusi para candidato pelo partido do batuque e da maçaroca, colocou imediatamente a máquina de propaganda a trabalhar dia e noite – era importante garantir que a socialização acontecesse dentro do tempo e que a aceitação popular fosse uma certeza inequívoca.

Gerou-se uma grande expectativa em torno destes dois mandatos. Dez anos em que a popularidade chegou a ser das mais altas no início, muito por conta do seu discurso incisivo e arrebatador da tomada de posse e, pragmatismo promissor na formação do seu primeiro governo. Mas a popularidade foi se enfraquecendo a medida em que sua governação dava marcas de pouca assertividade.

A forte, audaz e inteligente a máquina de campanha do seu partido fez milhões de moçambicanos, do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico cantarem, dançarem e acreditarem que a confiança depositada brotaria em mudanças práticas e visíveis para o país, e que de facto o país tinha tudo para dar certo.

Confesso que para mim, particularmente as duas campanhas destes dois mandatos foram das mais bem conseguidas em termos de envolvimento e cadência – parecia haver uma sintonia inegável entre as músicas e as mensagens de prosperidade e de confiança. Por isso escutamos, cantamos e dançamos todos o “Eu confio em ti Nyusi”.

Nyusi chega ao poder com muita responsabilidade enquanto estadista; carrega um fardo que ele mesmo ajudou a encher enquanto Ministro da Defesa Nacional. Apresenta-se como um Presidente de ruptura com o guebuzismo, e auto proclama-se empregado do povo – para o delírio de milhões de moçambicanos que se sentiram patrões do Presidente.

Vivemos, nos últimos dez anos, dois mandatos de muita sagacidade governativa com muitas experiências para mais tarde lembrar e tirar as devidas ilações.

A meias com um fardo pesadíssimo e super delicado – das ocultas, sua governação foi também marcada pelo recrudescimento da insurgência que grassa Cabo Delgado desde 2017, pela passagem de ciclones altamente destrutivos e mortais, sofisticação do crime organizado, aprimoramento das redes de raptos e pela carestia do nível de vida no seu todo. Estes são apenas alguns dos aspectos que me ressaltam trazer em revista.

Cinco anos mais tarde, a máquina brindou o eleitorado com mais um hit forte e envolvente – “É contigo que dá certo”. É o último mandato e, era preciso corrigir e melhorar o que não correu bem no primeiro mandato. Mas entre a teoria e prática há uma distância considerável.

No ano em que mais um reinado chega ao fim, penso que como sociedade devemos lançar um debate público, sincero e honesto sobre o actual estágio do nosso país; sobre o país que queremos deixar para os nossos filhos e netos. Precisamos de um manifesto social que deve guiar todo e qualquer governante que pretenda governar e promover o desenvolvimento, a justiça social, os direitos humanos e o respeito pela dignidade da pessoa. Este manifesto deve necessariamente conter as demandas, os anseios e sonhos deste povo amordaçado, sofrido, porém resiliente.

Na hora do adeus, podemos dizer que foram dez anos em que aprendemos a adjectivar e a positivar o Estado Geral da Nação; tivemos muita melodia, muita dança e poucos resultados governativos.

No “Eu confio em ti”, o povo até chegou a confiar em ti e no seu governo Senhor Presidente. Mas no “É contigo que dá certo”, parece que deu tudo, menos certo.

A esfera pública em Moçambique viveu momentos de especulação e muita tensão à volta do processo de sucessão na FRELIMO. A história encarregar-se-à de apresentar-nos dados sobre a veracidade ou não da propalada hipótese do terceiro mandato. O tempo passava e a medida que nos aproximavamos do periodo de apresentação de candidaturas a presidente da República na Comissão Nacional de Eleições fortalecia-se a hipótese de que o actual incumbente da ponta vermelha pretendia dirigir o processo de sucessão. Em 2013 o processo também fora dirigido pelo então incumbente da ponta vermelha, mas com contornos diferentes, uma vez que o Comité Central impôs a abertura de mais candidaturas. Foi assim que Aires Ali, Luísa Diogo e Eduardo Mulembwé apresentaram as pré-candidaturas sendo que o último retirou a sua candidatura.

Ora, o processo de transição que culminou com a eleição do Daniel Francisco Chapo como candidato da FRELIMO às eleições presidenciais de 9 de Outubro próximo foi conduzido sob o príncípio “você não tem que se querer. Nós é que temos que querer que você queira”. Há nesta acepção uma idéia muito bem estruturada politicamente de que os processos de eleição interna devem ser conduzidos sob a direcção e vontade de um grupo – a Comissão Política. É este grupo que determina a vontade do membro que é apresentado como candidato e que, paralelamente, a inculca na mente dos mais de 4 milhões de membros. Os membros do partido aparecem somente como simples legitimadores da vontade do grupo. Pode-se concluir que a Comissão Política chamou a si e somente a sí a autoridade para escolher os pré-candidatos.

A alteração feita ao número 2, alínea e) do artigo 72 dos Estatutos da FRELIMO no 12º Congresso é o pilar forte do princípio “você não tem que se querer. Nós é que temos que querer que você queira”. Levanto até a hipótese de ter sido o fio condutor para a alteração feita ao princípio de eleição dos Presidentes dos Conselhos Municipais e Governadores Provinciais.

O processo de apresentação da lista de pré-candidatos foi inteligentemente dirigida pelo Presidente do Partido. Não se lhe pode nem deve retirar o mérito. De forma hábilidosa dirigiu o processo por exclusão daqueles que nunca foram sua opção para (pré) candidato(s). A sua estratégia consistiu na apresentação à Comissão Política dos nomes que nunca foram sua opção qpara que fossem liminarmente recusados por esta.

A opção do Presidente do Partido e consequentemente do Comissão Política foi a Lista apresentada na sexta-feira com três nomes, nomeadamente do Secretário – Geral, Roque Silva Samuel, Damião José e Daniel Fracisco Chapo. Apreciada a lista e todos os actos subsequentes ficou evidente até para o mais incauto cidadão quem era o candidato. E, isso o tempo comprovou quando o Damião José retitou a candidatura para não se confrontar com o seu superior hierárquico.

Durante o processo o Comité Central entendia que havia espaço para a submissão de mais candidaturas. Como referimos, de forma muito hábil e metódica o Presidente não permitiu que “os nomes dos que se queriam” fossem adicionados a lista uma vez que “eles não deviam se querer”. A lista foram adicionados dois Membros da Comissão Política, nomedamente a Presidente da Assembleia da República Esperança Bias e o Conselheiro do Presidente da República, Francisco Mucanheia.

Foi a lista de 4 que foi escrutinada e os membros do Comité Central de forma inteligente e astuta elegeram Daniel Francisco Chapo como candidato da FRELIMO as eleições presidenciais de 9 de Outubro. Fora eleito um candidato oriundo da geração que a FRELIMO revolucionária no encerramento do 3º Congresso, em 1977 cunhou “Continuadores”. Oito anos depois, precisamente a 25 de Outubro de 1985 o Presidente Samora Machel criou a “Continuadores da Revolução” da qual faz parte a geração do Daniel Chapo.

No processo de construção do Estado moçambicano tinha sido definido como determinante para o seu sucesso a criação do Homem Novo. Esta preocupação da FRELIMO foi muito bem colocada no sistema nacional de educação tendo permitido que as crianças e adolescentes da época fossem sujeitos a um processo de educação política, cívica e pátriotica feita na escola primária.

As circuntâncias politicas fizeram com que o Comité Central elege-se um “Continuador da Revulação”. A Eleição de Daniel Chapo ocorre num contexto que o país vive inúmeros desafios e onde a liderança é chamada a restaurar a esperança dos jovens, fortalecer e devolver credibilidade as instituições, consolidar a transparência na gestão da coisa pública e com responsanbilidade ousar na apresentação de políticas e medidas económicas e fiscais que atraiam investimento e investidores para Moçambique. É preciso colocar Moçambique a várias velocidades com zonas francas e/ou económicas especiais integradas que propiciem desenvolvimento endogéno e sustentável.

Um líder tem a capacidade de mobilizar uma nação, mesmo na sua diversidade ideológica, a engajar-se no projecto de restauração da esperança. Esse é sem dúvidas um dos grandes desafios que se colocam ao Daniel Chapo. A ele também se colocam duas escolhas, nomeadamente liderar ou chefiar esta nação. A escolha que tomar determinará o nosso futuro.

Tenho argumentado que nenhum líder ousará gerar transformação numa Nação sem empreender mudanças radicais na sua organização. Tal significa que colocam-se também desafios de transformação na FRELIMO. A conjuntura e a história de processos recentes demonstram que há necessidade de empreender reformas que terão implicações também na forma de gerir o Estado. Há questões sobre as quais se deve reflectir profundamente. Não disssertarei sobre elas neste artigo. Os tempos mudaram! A sociedade mudou imenso! Há um risco enorme de ser forçado a mudar com todas as consequências nefastas para a organização, desse cenário. A FRELIMO deve jazer jus ao seu slogan de Força da Mudança, engendrando mudanças profundas na sua organização e consequentemente na gestão do Estado.

Telvez seja altura de dar a César o que é de César reconhecendo que o Coronel Sérgio Vieira foi sempre razoável propondo um clube dos fundadores da FRELIMO com um estatuto especial no qual as novas lideranças se aconselhariam. Não é altura da tão propalada mas não materializada transição geracional ocorrer? Há gente que acumulou tanta experiência na gestão do Partido e do Estado que devia emprestar essa experiência como conselheiros. A opoprtunidade de reforma esta aí.

No fecho do Comité Central o Presidente Filipe Nyusi afirmou que se encerrava o longo capítulo da especulação sobre o terceiro mandato. Esperamos que se tenha aberto um novo ciclo acompanhado de profundas reformas que mobilize a esperança dos moçambicanos. O filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico de origem florentina do Renascimento Niccolò di Bernardo dei Machiavelli afirmou que o primeiro método para avaliar a inteligência de um governante é observar a qualidade dos homens que ele tem ao seu redor. A conclusão de Machiavelli é forte. No entanto, este não observou que ter homens de qualidade ao redor de um governante não era condição de uma boa governação. A boa governanção e o sucesso da liderança dependem da predisposição do governante e do líder a ouvir e ponderar sobre os conselhos e pareceres que a sua equipa de suporte apresentam bem como outros actores sociais.

Hoje, marcou-se o epílogo da jornada terrena do Mestre Moisés Manjate. Desejamos resgatar as palavras proferidas em seu centenário, como um tributo reverente à sua memória e legado.

O mês da folia, coincidência, chegou e, por arrasto, transportou consigo a celebração de uma das mais preciosas pétalas de Moisés Manjate. As risonhas 100 primaveras e o centenário de uma vida e, de outras dezenas de canções e milhares de emoções. Moisés, esse lendário e originário da família Manjate, com o vigor da sua musicalidade e a graciosidade do seu talento, recriou as geometrias da dança e dos compassos da Marrabenta, esse som urbano-rural que incorporou, sem reticências, as magias e os acordes do Xingombela, Zukuta e da Magica.

Velho Moisés, bem no estilo e no ritmo de quem procura a terra prometida, beijou o sol e o mundo, pela primeira vez, no longínquo ano de 1920. Sua terra natal, Mafalala-xilunguine, cidade que tem alterado de nomenclatura, ao longo das décadas, porém, não deixa de ser o viveiro privilegiado de músicos, artistas e escritores.

Desde cedo, como a grande parte dos músicos moçambicanos, não passou por nenhuma escola de música e, jamais, teve contacto com a partitura. A música nasce, naturalmente, nas veias e nos ouvidos dos executores. Talento puro. Bênção divina.

Decorriam os anos 50/53 e Moisés, nome bíblico, se agigantava no mundo musical. Conjunto Djambu se afirmava e criava seu espaço e pedaço. Tal como o mundo que se refazia dos efeitos da Grande Guerra, os artistas rebuscavam, na música e nas artes, o conforto para os espíritos e a paz para as suas almas. Foi momento cultural sublime e o esplendor de uma epopeia inquestionável.

Moisés Manjate cresceu e bebeu as vivências e vicissitudes de um tempo que, não sendo seu, foi de um passado que só ele sabe descrever. Um passado de pura exaltação e afirmação, um tempo de florescimento da consciência negra, da negação do que não era local e, sobretudo, de rebuscar a liberdade. Manjate não fugiu das sombras e sonhos do Craveirinha, do Samuel Dabula e da firmeza do centro associativo dos negros.

A Marrabenta estourava nos subúrbios da Mafalala, na então, Associação Beneficente Comoriana e no cabaré local, que corporizou o novo género musical e, fez dele um ritmo quente, miscigenado e arrombador. Os dançarinos e frequentadores do cabaré eram, regra geral, tidos como oriundos das Ilhas Comores. Os sons, igualmente, se recriaram na génese e na combinação do movimento migratório de Moçambique para África do Sul e vice-versa. Este foi um dos berços de ouro da nossa e nova musicalidade que, ao longo de décadas, nos orgulha e nos faz moçambicanos.

Moisés Manjate, conhecido por muitos, porém, já desconhecido por milhares, contribuiu, a seu tempo e espaço, para estilizar os ritmos e familiarizar uma nova proposta musical que navegava entre os submundos de tantos ritmos e sons. O grupo Djambu, e tantos outros, foi pilar desta corrente.

Velho Moisés Manjate, faz tempo, não frequenta palcos e nem se multiplica em entrevistas e aparições públicas. Não o faz fisicamente, porém, as letras e os hinos que ajudou a recriar continuam tão presentes e inconfundíveis nos nossos repertórios e imaginários musicais. Tão vivos e presentes, como a natureza e o tempo intermitente e irredutível. Marrabenta é essa obra tão identitária como libertadora, tão suave como fulminante, e a canção “Elisa wê gomara saia”, para citar apenas a mais cantada e recriada, do nosso património musical, elucida essa glória do tempo que insiste não passar.

Na celebração do seu centenário, parece proibido não resgatar o historial da marrabenta e fazer jus ao Mestre que, de forma exímia e majestosa, executou, com perfeição, os ritmos folclóricos que alegraram milhões de moçambicanos de diferentes gerações e raças.

A Marrabenta, mais que um ritmo, significou um movimento libertador e, um símbolo de afirmação e ideniedade. A Marrabenta perpassou a censura e à opressão, a tenacidade do colonial-fascismo e a tenebrosidade da polícia política, para se cristalizar e ganhar seu espaço e dimensão nacional e internacional. Marrabenta e Moisés Manjate, e todos que souberam defender esta proposta musical, possuem, a rigor, a mesma dimensão e estatura.

Moisés Manjate, como água de um rio, flui e move-se por vontade própria; ou será que é movido pelos instintos musicais que sempre o acompanharam. Pelos seus dedos passa a evidência de quem fez da música uma forma de permanecer imortal. Marrabenta e os seus intérpretes ancestrais são, pois, os intérpretes da natureza, aqueles que com a graciosidade de sua alma, remexeram nossos ouvidos e reconfiguraram o sentido de nossas pernas, músculos e do nosso ser.

Olhando para Moisés Manjate, hoje cadeirante e sentindo já os efeitos dessa longevidade, redescobrimos as mãos que criaram a mecânica do sonho e corporizaram esse beleza e harmonia musical. Entendemos o quanto a música preserva a beleza e elegância de quem a criou e essa obra se torna mais honrada e venerada.
Neste aniversário, que por si só merece todas as honras e glórias, não celebraremos apenas o homem e a sua música, mas a longevidade de quem apenas soube fazer bem a este país. Bem-haja Moisés Manjate, imortal e verdadeiro símbolo musical.

A Frelimo propalou na sociedade a ideia de que existe democracia interna no seio do partido. A democracia interna significa que há ambiente favorável ao debate dos assuntos relevantes para o partido e, por inerência, para a sociedade, visto que a Frelimo é que governa desde que Moçambique existe como Estado. A democracia interna consiste, também, em permitir que as decisões mais importantes sejam tomadas de forma transparente e sujeitas ao escrutínio dos membros.

A expressão “falar dentro dos órgãos” faz jus à existência de uma democracia interna funcional. Significa que os membros do partido podem apresentar as suas ideias divergentes dentro dos órgãos internos do partido, pois existe ambiente favorável para tal.

No passado, a democracia interna deu sinais de vida. Em 2013, a Comissão Política do presidente Guebuza divulgou três nomes para a sucessão do presidente. Todos os indicados eram membros do Governo do presidente Guebuza (Alberto Vaquina, José Pacheco e Filipe Nyusi). Internamente, exigiu-se que mais membros da Frelimo fossem propostos para a lista curta da sucessão. Foi assim que surgiu o nome de Luísa Diogo (e Aires Ali), que viria a disputar as eleições internas com Filipe Nyusi até às últimas circunstâncias. A democracia interna funcionou!

Em 2015, depois de sair da Presidência da República, o presidente Guebuza continuou na presidência do partido Frelimo, reduzindo o poder real do presidente Nyusi, sobretudo num contexto de captura do Estado pelo partido no poder. Internamente, exigiu-se que Guebuza cedesse a presidência do partido a Nyusi. A democracia interna funcionou, mais uma vez.

No entanto, acontecimentos recentes no seio Frelimo podem levar a questionar-se se a democracia interna (ainda) existe no seio da Frelimo. Em Setembro de 2022, Castigo Langa, membro do Comité Central da Frelimo, usou da palavra numa sessão extraordinária do órgão para apelar ao presidente Nyusi que, “caso apareça uma proposta no sentido de ser o próximo candidato da Frelimo nas eleições presidenciais, por favor: não aceite!”. O apelo de Langa era, obviamente, muito mais do que um simples apelo. Era a primeira voz interna e com autoridade a denunciar a mobilização em torno de um possível terceiro mandato para o presidente Nyusi.

A intervenção de Castigo Langa foi veementemente repudiada pela Comissão Política do partido Frelimo. Num comunicado datado de 21 de Setembro do mesmo ano, pode-se ler que “Comissão Política lamenta e repudia veementemente a atitude do camarada Castigo Langa, membro do Comité Central, em ter levantado no decurso da II sessão extraordinária do Comité Central um ponto fora da agenda aprovada”.
A intervenção de Castigo Langa foi oportuna. Filipe Nyusi não foi ao terceiro mandato, mas Langa nunca mais foi visto em debates públicos. Desapareceu do mapa político. Desta vez, a democracia interna falhou.

Falhou a democracia interna pois, apesar de Castigo Langa ter falado de um assunto relevante “dentro dos órgãos”, acreditando no funcionamento dos mecanismos da democracia interna, o resultado revelou o contrário. Os factos revelaram que os membros da Frelimo podem “falar dentro dos órgãos”, mas não há garantias de que não serão politicamente assassinados, se do que falarem houver algo que não agrade aos chefes.

No início deste mês de Abril de 2024, numa sessão do Comité Nacional da Associação dos Combatentes de Luta de Libertação Nacional, um membro sénior do órgão, o professor Óscar Monteiro, exigiu que fosse debatida a sucessão de Filipe Nyusi na Presidência da República. O professor Óscar falou “dentro dos órgãos”, acreditando na vitalidade democracia interna. Tal como acontecera com Castigo Landa, a intervenção do Professor Óscar Monteiro foi repudiada. Não houve um comunicado da Comissão Política, no entanto foi o próprio presidente Nyusi que, na ocasião, interrompeu a fala do seu camarada, fazendo perguntas atípicas tais como “Óscar, vá directo! O que está a propor? (…) Tem mais outra coisa importante que interessa?”

A acrescentar à reacção rude do presidente Nyusi, alguém, que se acredita que tenha agido com a anuência do presidente, mandou cortar a gravação televisiva da intervenção do professor Óscar Monteiro. Segundo a imprensa presente no local, foi o adido de imprensa do presidente Nyusi, o jornalista Arsénio Henriques Cossa, que empurrou as câmaras dos jornalistas para as desviarem da gravação do discurso do membro da ACLLN. O presidente Nyusi, que dirigia a sessão, não deu ordens contrárias. Nenhum outro membro da Frelimo saiu em defesa do professor Óscar Monteiro, pelo menos em público. A democracia interna falhou, mais uma vez.

Na sessão do Comité Central para a qual o professor Óscar Monteiro propunha que a sucessão do presidente Nyusi fosse debatida, nada saiu de substancial sobre este tema. Ou seja, até pode ter havido debate sobre a sucessão, mas em nada resultou de concreto, que no mínimo seria a divulgação do(s) nome(s) do(s) (pré-candidato(s), para não pedir mesmo a eleição do candidato da Frelimo.

Uma sessão extraordinária ficou por convocar para a discussão da sucessão. Sabe-se, agora, que essa sessão vai decorrer no dia 3 de Maio próximo. Antes disso, muito provavelmente a Comissão Política do presidente Nyusi irá divulgar o(s) nome(s) do(s) pré-candidato(s). A questão é: irá a democracia interna voltar a funcionar?

Uma democracia interna funcional significaria que os membros do Comité Central debatem abertamente o(s) candidato(s) proposto(s) pela Comissão Política do presidente Nyusi e, se for necessário, tal como sucedera no passado, exigir-se-á a inclusão de mais nomes de pré-candidato(s).

Desde 2015 que o Ministério da Economia e Finanças introduziu a prova de vida aos funcionários públicos a fim de evitar pagar salários a funcionários públicos fantasmas. De igual forma, a democracia interna na Frelimo, que já mostrou a sua existência no passado, é agora chamada a fazer a prova de vida! Ainda se descobre que se está a confiar numa democracia interna fantasma!

Em Junho na Suíça pretende-se realizar uma conferência internacional dita “de paz” sobre a Ucrânia. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ignazio Cassis, afirmou não pensar que seja celebrado já um acordo de paz durante o evento, mas espera que a reunião lance “um processo com base no qual tudo será construído”. O paradoxo, no entanto, é que o ministro, apesar de reconhecer que as negociações para uma solução pacífica da crise ucraniana não podem ter lugar sem a Rússia, declarou que a conferência, entretanto, se realizará sem ela….

É simbólico que no mesmo dia, 20 de Abril, em que os seguidores do nazismo e fãs do sanguinário Hitler celebram o seu aniversário, o Congresso norteamericano aprova pela lei denominada “Paz através da força” um financiamento de 61 mil milhões de dólares para continuar a confrontação armada com a Rússia, que está a lutar contra os seguidores da ideologia nazi na Ucrânia.

O que é que os participantes da Conferência vão então discutir? De acordo com Sr. Cassis, poderiam chegar a acordo “sobre a melhor altura para convidar a Rússia a participar”. É uma declaração muito interessante para um país que ainda tenta posicionar-se como neutro. Aliás, com as suas acções – apoiando abertamente o regime de Kiev, aderindo a todas as sanções anti-russas, adoptando estratégias que excluem a Rússia do sistema de segurança europeu – a Suíça minou a sua reputação de um mediador imparcial de longa data, não deixando dúvidas para quem está a jogar.

Perante os fracassos das forças armadas ucranianas na frente de batalha e o nível de corrupção sem precedentes no país, o Ocidente está a tentar salvar o regime de Kiev com mais uma conferência de “paz”. Washington e Bruxelas, habituados a confiar apenas em força na resolução de problemas, negligenciaram, à sua maneira típica, a situação a tal ponto que agora os seus fantoches de Kiev têm literalmente de ser salvos. Por seu lado, Vladimir Zelensky, estrelando nesta conferência, entre outros, está obviamente a perseguir o objectivo de legitimar o seu poder aos olhos da comunidade internacional após o termo legal da sua presidência, em meados de Maio do ano em curso.

Assim, o objectivo-chave do Ocidente na cimeira da Suíça é atrair o maior número possível de países, especialmente os Estados não-alinhados do Sul global, para a agenda anti-russa. Precisam disso, entre outros, a fim de unir as fileiras dos Estados europeus, atemorizados pela imaginada ameaça russa, e angariar mais dinheiro para apoiar Kiev. A Ucrânia, neste caso, actua mais uma vez como a ponta da lança no confronto geopolítico entre o Ocidente e a Rússia. A conferência assim visa não apaziguar mas exacerbar ainda mais as tensões globais.

As autoridades russas muitas vezes frisaram que mesmo recebendo o convite, Moscovo não participaria no evento suíço. Porquê? – Trata-se mais uma vez da promoção da famigerada “fórmula de paz” de Zelensky, que é absolutamente inaceitável por não ter nada a ver com a realidade.

Esta fórmula desde já não implica quaisquer compromissos, alternativas. De facto, nas circunstâncias de proibição por decreto de Zelensky de manter quaisquer negociações com a Rússia, é um conjunto de ultimatos, que se reduzem ao único objectivo ilusório de castigar militarmente a Rússia. Dificilmente pode-se chamar-lhe um plano de Paz, já que se pressupõe a derrota definitiva de uma parte. Promovendo esta “fórmula” Kiev prova a sua impreparação para resolução e na prática significa escalação, mas não fim do conflicto. Todas as outras iniciativas que foram expressas por representantes da China, da África do Sul, do Brasil e da Liga Árabe não foram tomadas em consideração. 

Promovendo este “ultimato” a todo o custo, os patrocinadores do regime de Kiev recorrem a vários truques. Por exemplo, sugere-se escolher apenas algum ponto que vários países podem aceitar, recomenda-se também que não se elabore um documento final, mas apenas que se realizem debates. O principal é reunir o maior número possível de países para tirar uma fotografia conjunta, dando a impressão de que as ideias de Kiev são apoiadas em todo o mundo. Uma foto comum com tantas pessoas pretende-se servir, por si só, como um enorme incentivo para que a “fórmula” de Zelensky ganhe apoio. A intenção suíça consiste em “puxar” o maior número possível de países para um ultimato à Rússia por todos os meios possíveis.

A única luz de razão nesta cimeira é uma possível presença e contribuição da China, para tornar esta conferência útil para algo. No plano de paz de 12 pontos apresentado por Pequim no ano passado a ideia razoável é lidar primeiro com os problemas sistémicos de segurança no nosso espaço comum. É resolver as causas profundas, internas e internacionais, da actual situação na Ucrânia. Esta na realidade se converteu numa guerra híbrida que o Ocidente tem vindo a preparar contra a Rússia há muito tempo e que foi finalmente desencadeada pelas mãos e corpos dos ucranianos. 

Estas ideias, aliás, são lógicas. Em 2021 a Rússia mesma, na intenção de prevenir o conflicto, apresentou uma proposta semelhante: chegar a um acordo sobre a indivisibilidade da segurança e a forma como a traduzir em medidas práticas para a não expansão da NATO e em garantias necessárias baseadas em princípios justos e iguais para todos. Na altura a iniciativa foi deixada sem resposta pela parte ocidental. 

Assim, a abordagem chinesa está absolutamente no contexto do debate agora intensificado sobre a forma de garantir a segurança euro-asiática em todo o continente: na sua parte europeia, na Ásia Central, no Cáucaso e noutras regiões do continente onde a situação é turbulenta e os conflitos estão a rebentar. Enquanto as “iniciativas” suíças estão apenas a cumprir uma “ordem” dos Estados Unidos e dos seus aliados de maquilhar a cara dos que já várias vezes frustraram as iniciativas reais de paz.

A Rússia nunca rejeitou a ideia de negociações, estando sempre pronta a sentar-se à mesa e discutir. Tudo depende dos princípios em que se baseia o diálogo. Os EUA e os seus aliados, sem vergonha andam a dizer que querem “liquidar” a Rússia. Não lhes convém a própria forma da nossa existência. Com quem vamos negociar? Em 2022 em Istambul com um grupo de representantes de Kiev já foi concordado o projecto de um possível então acordo nos interesses mútuos. Como gesto de boa vontade a Rússia retirou as tropas de Kiev e algumas outras regiões. Em resposta – sob pressão dos países ocidentais a Ucrânia deitou fora aquele documento. E Zelensky proibiu por decreto qualquer negociação de paz.

Mesmo hoje se realizarmos tais chamadas negociações de paz, amanhã a outra parte enganar-nos-á de novo. Para que conversar com os que não mantêm a sua palavra?

O que a Rússia queria ver como resultado? As negociações podem ser productivas, se conduzirem à eliminação das raízes e causas do conflicto e ao acordo sobre as formas aceitáveis da realização de objectivos da Operação – desmilitarização e desnazificação. 

A resolução pacífica só pode ser feita em pé de igualdade, quando todos podem apresentar e garantir os interesses legítimos dos seus povos. Tem de haver uma conversa honesta baseada em novas realidades geopolíticas. A discussão não deve visar ganhos egoístas ou lançar achas na fogueira, mas ter como objectivo reduzir a tensão e restaurar uma paz e segurança duradoura e justa… A conferência de Bürgenstock não tem nada a ver com a paz. Cuidado com ilusões – elas vão enganar novamente. 

 

Por Alexander Surikov,

Embaixador da Rússia em Moçambique

Com os meus 21 anos, trabalhando como rececionista numa empresa e recebendo um salário mensal de 2.500,00 meticais entre os anos de 2000 e 2010, o Presidente do Conselho de Administração (PCA) da empresa, com 55 anos de idade, teve acesso às minhas informações bancárias e começou a enviar-me, no final de cada mês, um valor extra de 21.000,00 meticais. Quando me apercebi desta situação, procurei o PCA para questionar a razão por detrás do recebimento deste montante tão elevado, tendo em consideração o valor do metical naquela altura. Ele afirmou tratar-se de um incentivo, pois via-me como uma das suas filhas. Agradeci sinceramente, uma vez que a minha família necessitava de dinheiro e aquela ajuda não era ilegal. Esta situação repetiu-se durante mais 8 meses, e a cada final de mês ia ao gabinete dele agradecer. Contudo, numa dessas visitas ao seu gabinete, ao tentar expressar gratidão pelo cuidado do “meu pai” para comigo, ao dar-lhe dois beijinhos na bochecha, ele beijou-me nos lábios. Senti-me tão constrangida que saí do trabalho em lágrimas, incapaz de compreender como é que aquele que me via como uma filha agora me via como mulher.

Dias depois, ele procurou-me e confessou seus sentimentos, expressando a intenção de se casar comigo. Receosa de perder o emprego, pedi conselho à minha avó. Ao saber que ele era muito rico, ela aconselhou-me a casar com ele, justificando que a esposa se habitua ao marido, não necessitando de gostar, apenas habituar-se, e garantindo que eu me acostumaria a ele. Enganada, acabei por aceitar e casar com ele. Durante 10 anos, vivi um verdadeiro inferno, não por falta de amor ou cuidado da parte dele, pois tinha tudo o que alguém poderia desejar naquela época, incluindo viagens, carros de luxo e muito mais. Contudo, o facto de ele me tratar como pai durante o dia, protegendo-me e cuidando de mim, e à noite me querer como mulher, causava-me uma enorme confusão. Até certo ponto, devido ao carinho que tinha por mim, aprendi a vê-lo como pai. Quando ele me procurava como mulher, sentia-me violada pelo meu pai. Apesar da vida luxuosa, repleta de carros, viagens e tudo o que uma pessoa comum poderia desejar, a felicidade estava ausente. Entrei em depressão e busquei ajuda médica. Ao informar a minha mãe sobre a minha intenção de me separar, não obteve apoio; pelo contrário, chamou-me ingrata. Ao conversar com o meu marido, ele acolheu e compreendeu a minha decisão. Propôs comprar-me uma casa e sustentar-me, permitindo que me relacionasse com pessoas da minha idade, desde que estivesse sempre disponível quando ele precisasse. Recusei e separei-me.

Ouvir esta história despertou em mim uma revolta interna, pensando em quantas jovens têm a sua inocência roubada por homens com o dobro ou triplo da sua idade na nossa sociedade moçambicana. O caso que descrevi é menos grave pelo facto da jovem já ter atingido a maioridade. Contudo, há outras que são sujeitas a estas vidas antes mesmo dos 15 anos. Privadas da sua infância, são forçadas a casar e cuidar de um lar, mesmo necessitando de cuidados e proteção que deveriam ser providenciados pelos pais, mas são estes mesmos pais que as vendem e destroem o seu futuro em troca de bens e dinheiro. Moçambique, até quando continuarás a condenar as crianças e adolescentes a realidades como estas?

Recentemente ouvi o relato de uma adolescente de 15 anos que foi violada repetidamente por um homem de 47 anos. Apesar da denúncia, o agressor foi libertado, o que levou ao desespero da mãe da vítima. Não consigo ficar indiferente perante os gritos de socorro da mãe ao ver o agressor ser solto. Não pretendo abordar as questões legais deste caso, mas sim refletir sobre o quão difícil é ser jovem do sexo feminino em Moçambique. Aqui, os homens parecem ter carta branca enquanto as mulheres são relegadas a um pequeno espaço, sem direito a manifestar-se, como se, muitas vezes, a culpa da violação recaísse sobre a vítima aos olhos da sociedade. É frequente culpar as mulheres em casos de violação, insinuando que a adolescente provocou a agressão devido às suas roupas ou ao seu corpo. As mulheres vivem sem paz nesta sociedade.

Relatos como estes revelam as profundas feridas que permeiam nossa sociedade, onde o abuso de poder e a exploração destroem vidas inocentes. É tempo de unir vozes, de erguer-nos em solidariedade pela justiça e pela proteção dos vulneráveis. Devemos romper com o silêncio que aprisiona a coragem e silencia os gritos de socorro. Moçambique, o desafio é nosso, de cada um de nós. Que estejamos dispostos a agir, a nos educar e a proteger uns aos outros. Que a luz da verdade dissipe as sombras do medo e da injustiça. Que cada passo em direção à igualdade e ao respeito seja um farol de esperança para as futuras gerações. O tempo de transformação é agora. Façamos juntos história, erguendo-nos como agentes de amor, justiça e mudança.

Para repudiar este comportamento e trabalhar em direção à mudança, é vital promover programas educacionais e de consciencialização e defender a implementação e aplicação de leis mais rigorosas para proteger as vítimas de abuso e punir os agressores. Oferecer suporte psicológico e social às vítimas é crucial, assim como promover a capacitação económica e a autonomia das mulheres. Através destas mudanças e ações, podemos criar um ambiente mais seguro e protetor para aqueles que sofrem de abuso e violência. 

Quando mergulhamos na contemplação do sofrimento das almas eclipsadas pela sinfonia soturna da pólvora, nas teias da sociedade envolvida num eterno lamento de miséria, onde a alma humilde muitas vezes suplica pelo término da produção bélica, consciências despertas tecem pensamentos vigilantes, testemunhando o sofrimento das massas e a devastação do planeta pelas cinzas das forjas bélicas. As ondas fumegantes do conflito escravizam e envelhecem o manto do ozono, embora sejam tecidas para ornamentar o diagrama financeiro e enriquecer os cofres dos fabricantes.

As armas, que forjam rios de chumbo a banhar o peito humano, diluindo as células da alma em cálices de morte, deixam as aldeias desfavorecidas desprovidas de alegria e da vontade de existir. Urge transcender o medo e buscar a coragem que extingue a fábrica de armamentos, conduzindo o mundo à celebração do baptismo no Rio do Amor, da Paz, da Paixão e dos Prazeres Benevolentes. Talvez seja necessário despertar a consciência para a compreensão de que a arma é o reflexo natural do espectro da morte e do sofrimento.

Sim, o olhar perspicaz detecta nas tintas da guerra cores análogas às das indústrias bélicas que movem oceanos em troca de semblantes de dólares. A padronização da produção de instrumentos letais encobre o destino de vidas inocentes, com a dança macabra de projécteis bélicos que acariciam com a morte o peito desprotegido dos menos afortunados.

Os versos da poesia da guerra mesclam-se às nuances do neocolonialismo engendrado pelas nações opulentas, disfarçadas de auxílio sob pretexto, perpetuando a eterna dependência dos países menos favorecidos, minando a inteligência dos seus líderes e, muitas vezes, usurpando o desenvolvimento das sociedades ao pilhar os seus recursos naturais sem retribuir benefícios directos ao povo, ou impondo políticas que limitam a sua exploração e comercialização, obstaculizando, assim, o avanço desses países.

Os versos da poesia da guerra confundem-se com a claridade do segredo que embriaga as consciências, levando-as a proferir “sim” ao que é “não”, em todas as teorias que não se traduzem em benefícios para as nações menos favorecidas. Às vezes, os versos dessa poesia tomam a cor dos que buscam riqueza, sacrificando a alma dos desprotegidos, esquecendo-se de que todas as almas, sejam elas envoltas na penumbra da opulência ou no fulgor da penúria, enfrentarão a mesma experiência derradeira, o mistério oculto além da morte. Sim, a guerra veste-se com as cores da morte, enriquecendo as nações que olvidam que nenhum povo, de qualquer nação, escapará à experiência do transe final.

Os versos da poesia da guerra ecoam nos gritos das crianças que se escondem nas matas [do Leste da RDC, do Norte de Cabo Delgado, na Faixa de Gaza, na Ucrânia, Burkina Faso, Sudão, Iémen, Síria…] sempre que os seus ouvidos se deparam com o estrondo do cano das armas, cuja produção gera mortes e a miséria de almas desprotegidas, enriquecendo, por outro lado, as nações produtoras de armamentos. O processo de fabricação de armas talvez participe, de maneira dissimulada, na degradação e destruição da mãe natureza.

A imagem da guerra está imbuída do egoísmo e da máscara da benevolência, que buscam restringir o progresso dos países menos favorecidos, impondo-lhes o jugo do sofrimento, da pobreza e das limitações. A guerra assume as cores das nações abastadas, que continuam a exportar políticas que impedem o avanço das sociedades carentes, aproveitando-se da falta de discernimento dos líderes destituídos de luz para direccionar os valiosos recursos existentes, incapazes de vislumbrar caminhos que libertem as suas nações do jugo do subdesenvolvimento humano.

A poesia da guerra reflecte-se nas cores das armas que ceifam prematuramente as almas do povo pobre. Reflecte-se nas tintas que não pincelam o mundo com traços de amor e cenários de benevolência, mas glorificam a riqueza das nações desenvolvidas com o clamor da guerra e o gemido das almas pobres, sem que as organizações humanitárias do mundo se interessem em discutir temas que desestimulem a produção bélica. Hoje, discutem-se exaustivamente as energias fósseis, talvez porque o progresso dos países menos favorecidos esteja ligado à exploração e comercialização desses recursos, algo que poderia abalar a arrogância e prepotência das nações que ditam as regras do jogo global.

Os resultados financeiros da indústria bélica tornam-se mais positivos quanto maior for o consumo de vidas ou o número de vidas ceifadas. O marketing da morte embriaga as consciências compradoras de armamentos, semeando o desespero numa existência que deveria ser pautada pela esperança de viver num mundo justo.

Precisamos de uma mobilização social para resgatar o mundo das garras das armas e secar o rio de lágrimas vermelhas que fertiliza a indústria bélica e os seus acessórios. Precisamos de um esforço colectivo para tecer a paz com as letras da poesia, num mundo bom para todos. Os países pobres não devem mais ser forjados como campos de batalha geneticamente ocidentais; eles precisam de desvendar o véu que esconde as armas e o fardo económico das mãos que oferecem ajuda sob uma falsa aparência de generosidade. 

 

Deus livre o pobre do consumo de armas!!!

Eu era muito jovem e um dia chegou-me às mãos o livro “Mangas Verdes com Sal”, do Poeta Rui Knoplfi, que tinha um prefácio, cheio de vinagre, de Eugénio Lisboa. Era um exemplar maltratado, de uma primeira edição da obra e recordo como o li: sôfrego e exultado. O texto de Lisboa era luminoso e cortante, exaltante e exabundante. Era verrinoso. Ali estavam as firmes ideias do ensaísta. Fiquei chocado com a forma como ele zurzia alguns dos meus mitos  –  entre eles, Noémia de Sousa  –, mas fascinou-me logo aquele espírito seu livre e provocatório, aquela sua verdade, aquela sua virulência, sobretudo lexical, aquela escrita saborosa e informada, encantada e encantadora, aquelas inúmeras citações, aquela erudição toda, aquela torrente, tudo aquilo teve um impacto tremendo sobre mim. Li, depois, quase tudo o que encontraria do crítico, especialmente os dois volumes de “Crónica dos Anos da Peste”.

Eugénio Lisboa, que hoje abandona o reino dos vivos, aos 93 anos – nascera em Lourenço Marques a 25 de Maio de 1930  –, tinha uma coisa de que gosto muito: a coragem de procurar e dizer a verdade. A sua verdade. Podemos gostar ou não do que escreve, do seu juízo crítico, muitas vezes acerbo, ou das injustiças que provavelmente cometeu, mas numa coisa temos que lhe fazer justiça: era dono de uma escrita fascinante. Era um ensaísta instigante, um cronista viperino e um memorialista lustrado. Escreveu poesia, quis ser poeta. Os deuses estavam com o prosador e o seu sangue bom. Basta que nos atenhamos às suas vastas memórias: “Acta Est fabula”. A expressão da antiga língua latina era usada quando terminavam as encenações: “A peça está representada”.

Conheci-o na mesma ocasião em que a Noémia de Sousa me levou aos ombros do Rui Knopfli, nos corredores da Gulbenkian, em Fevereiro de 1989, aquando do mítico I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa. Nesse mesmo ano, Eugénio Lisboa revistou “a capital da memória”, como haveria de consignar  Maria de Lourdes Cortez. Recebemo-lo de braços abertos. Anoto parte do seu diário, citado nas memórias (“Acta Est fabula”), uma entrada de 04.06.89: “Ontem, almoço em casa do José Soares Martins, com a presença de alguns moçambicanos: professores, escritores (Raúl Honwana, Nelson Saúte, Baka Cossa (sic), Gilberto Matusse, José Cunha). Conversa animada, franca, surpreendente. Entre Cossa e Honwana estabelece-se um diálogo vivíssimo, revelador das tensões e “bifurcações” existentes actualmente e, ao mesmo tempo, da liberdade de expressão que se conquistou (por quanto tempo?). Conversa com Gilberto Matusse, articulado e informado. Pergunta-me, à queima-roupa, o que penso de Sá de Miranda. Faz-me perguntas, revelando conhecer razoavelmente bem os meus livros. Idem, da parte de Cossa e de Nelson Saúte. Repetem que me consideram a mim e ao Rui Knoplfi escritores moçambicanos – que não abdicam de nós. Depois, querem saber como me sinto: moçambicano ou português? Digo-lhes que me sinto as duas coisas, como sempre me senti: dividido entre um Moçambique que me não sai do sangue e da memória e uma cultura portuguesa (europeia) que me alimentou desde sempre. Quando, em conversa, digo: `a vossa literatura`, corrigem-me, imediatamente: ´a nossa; tu és nosso´. Comovente.”

Noutra entrada do dia 09.06.89: “Perguntei há dias, ao Nelson Saúte – que mostra conhecer as minhas coisas, com algum pormenor – onde as tinha arranjado (ele tinha só 9 anos, quando eu saí de cá). Respondeu-me: “Umas comprei, outras emprestaram-me e outras roubei. “Pas mal. Não deixa de ser lisonjeiro.” Não desminto. Quem sou eu para fazê-lo, embora me tenha surpreendido o “outras roubei”? Creio, a esta distância, que deve ter sido na época em que eu ostentava aquela velha “boutade” de que roubar um livro era um acto de cultura. Mas não recordo que tivesse praticado este tipo de delitos. No mesmo dia, Lisboa anotava: “Daqui a poucos minutos, chega-me aí o Nelson Saúte, para uma entrevista para a revista “Tempo”. Dei duas entrevistas para a Rádio, duas para a Televisão, uma para o “Notícias” e, agora, esta para a “Tempo”. Acho suficiente”.

Nesta longa entrevista falámos de quase tudo: do pai, que fora funcionário dos Correios, da sua infância, da ida para Portugal para cursar Engenharia, de Portalegre, o encontro com José Régio, o regresso, a Escola Industrial onde lecionou Electrotecnia e Mecânica, a colaboração no “Diário de Moçambique”, no “Paralelo 20” e, mais tarde, na “Voz de Moçambique”, publicações de onde iria resgatar textos que fariam parte do seu livro “Crónica dos Anos da Peste”, título sugerido pelo Rui Knopfli, a partir das “Crónicas dos anos da peste” que Eugénio Lisboa publicava então. Falámos do seu tempo na Beira, do “Notícias da Beira”, do Cine-Clube de Lourenço Marques onde se viam filmes marcantes, dos soviéticos Eisenstein ou Pudovkin, do polaco Wadja, entre outros. Falámos de Jorge de Sena. Da Associação dos Naturais de Moçambique. Abordei as polémicas com Alfredo Margarido ou Rodrigues Júnior. Quis saber mais sobre “Caliban”, Knopfli, Grabato Dias. Falámos do Rádio Clube e da memória do poeta Reinaldo Ferreira, que morreu a 30 de Junho de 1959. Nesse ano, Knopfli publicou “O País dos Outros” e começa a amizade entre ambos e do Eugénio com Carlos Adrião Rodrigues, um brilhante e culto advogado, que um dia disse uma das frases mais luminosas: “Craveirinha e Knopfli, o verso e anverso de uma poesia em evolução”. Cito-a de memória. Falámos da sua paixão pelo teatro, ele lembrou Sara Pinto Coelho, a mãe do meu saudoso amigo Carlos Pinto Coelho, que dirigia um programa de teatro no Rádio Clube, onde o Lisboa iria promover Racine, Régio, Montherlant, Ibsen. Falámos das suas empreitadas poéticas e do seu retorno a Moçambique, vastamente cartografado nas suas memórias.

Uma entrevista não dá para tudo, mas aquela é uma primeira arqueologia literária que eu estabelecia com ajuda de um dos protagonistas da cena literária no meu país antes do advento da independência. No volume III da “Acta Est Fabula” iria encontrar pormenores e detalhes que iriam satisfazer a minha gulosice pela nossa história literária. Craveirinha deu-me, nas nossas longas conversas, depoimentos inesquecíveis dessa fase. Knopfli idem. Mesmo com a sua língua, igualmente afiada. Eugénio Lisboa escreveu páginas fascinantes sobre essa época. Sobretudo do seu magistério soberano. Tive o benefício de o ouvir, também, no contacto pessoal, muitas vezes. E sinto-me grato. Como me sinto grato pela sua amizade. Para sempre.

Numa entrada de 17.06.89, já em Londres, Lisboa dava conta: “No dia 11, à noite, depois do regresso da Matola, foi o resto da longa entrevista com o Nelson Saúte. É impressionante o que esta gente nova conhece, com minúcia, daquilo que outrora deixámos disseminado por livros, jornais e revistas. Não é apenas conhecer: é um conhecer tão apaixonado, que quase me aterra.” Com data de 30.05. 96, a seguinte entrada: “Ontem, à noite, jantar em casa do Soares Martins (adido cultural na embaixada de Portugal). Estavam presentes o Nelson Saúte e a mulher (com um bebé de dois meses) e o António Sopa. Foi um convívio simpático e fizemos considerável má-língua. Sem vinagre.” O Irati nascera em Março de 1996.

Convivi com o Eugénio Lisboa, em Londres, em Sevilha, em Lisboa e em Maputo. Uma vez, em sua casa de S. Pedro de Estoril, ele reuniu: Rui Knoplfi, Noémia de Sousa, Fonseca Amaral, Eduardo Pitta e eu próprio. Foi um dia inesquecível. O Fonseca Amaral morreria pouco tempo depois. (Aliás, Lisboa faria, anos mais tarde, o prefácio da obra deste poeta mestre da geração do Knopfli, vergastando-o, o que me pareceu injusto e injustificado). O Knoplfi morreu no Natal de 1997, Noémia em Dezembro de  2002, depois de editarmos o seu “Sangue Negro”. Eduardo Pitta faleceu há meses, a 25 de Julho de 2023. Agora, é o Eugénio Lisboa que desaparece, entre os membros daquela tertúlia.

Quando lancei a antologia “Nunca Mais É Sábado”, pedi ao Eugénio Lisboa que a apresentasse. Não se furtou e cumpriu o mito do seu vinagre milenar, zurzindo-me literalmente. Discordei dele nos critérios, como é óbvio. A poesia moçambicana não poderia apenas ser o escol dos eleitos. Isso não arranhou a minha admiração por ele. Aliás, continuei a lê-lo e admirá-lo. Quando fez 90 anos, em 25 de Maio de 2020, escrevi um texto a saudá-lo. Accolade, diria ele. Na sequência disso mantivemos uma breve comunicação. Ele escreveu-me uma carta que me comoveu.

Nessa homenagem, lembrava-me do facto de ter sido seu hóspede em Londres. Hóspede de Maria Antonieta, a sua mulher, que me acolheu com tanta atenção e carinho. O “Epílogo” da “Acta Est Fabula” é uma pungente evocação de Maria Antonieta, que morreu em 2016. É um livro desolado e desolador. Pungente. Há ainda o livro sobre as viagens e os seus diários. Os seus diários (“Aperto libro”) são dois volumes com uma bizarria que é estranha em toda a obra de Eugénio Lisboa: problemas de revisão. Falta de cuidado na fixação do texto. A despeito, a leitura dos diários é igualmente prazerosa.

Li, depois, os poemas, sobretudo na pandemia, que Eugénio escrevia para esconjurar a morte. Publicara antes uns volumes de poesia, sem a expressão nem dimensão da sua obra ensaísta e crítica. Era imenso na exegese, deslumbrante na hermenêutica. Na poesia não era tão destro. Disse-lhe que os deuses não o tinham protegido nesse quesito. Aceitou a minha opinião, mas foi contumaz na prática, sobretudo de sonetos, que o menorizavam. Os deuses podem ser generosos, mas não o são sempre.

Eugénio Lisboa não só escrevia luminosamente, como falava soberbamente. Era um tribuno exemplar e um conferencista brilhante. A sua conversa, erudita e sedutora, era subjugante e apaixonante. Lisboa  dizia, a propósito de Alberto de Lacerda, que conversar com o Poeta de “Exílio” era melhorar o silêncio: “Conversar com ele era um prazer interminável e inesgotável. Era prodigiosamente culto, assassinamente observador, genialmente parcial, guloso de literatura, de pintura, de música, de escultura e de liberdade. Era um dos poucos génios da arte de conversar, que até hoje conheci. Diz um provérbio qualquer que não se deve falar a não ser que, com isso, se faça melhor do que o silêncio. A conversa do Alberto melhorava extraordinariamente o silêncio.” Lisboa era assim. Eu diria o mesmo dele. Lisboa era um conversador exemplar. Único, jubiloso. Era avassalador.

Num livro de matérias várias (miscelânea de ensaios, estudos e crítica), a que chamou justamente “O Objecto Celebrado”, Eugénio Lisboa cita Marco Aurélio, no frontispício, que afirma: “Tudo passa num dia, o panegírico e o objecto celebrado”. A sua obra imensa é exactamente isso: um “objecto celebrado”. Inteligente, ágil, penetrante. Sedutora. Absolutamente sedutora. Subjugava, era tão bela e iluminada. Uma longa crónica dos intermináveis anos da peste. Obra apolínea, caprichada, admirável. Catita.

Recordo-me de o ouvir falar de gatos, de livros, de música, de pintura, de teatro, de cinema, de Régio, de Sena, de Gide, de Montherlant, da sua velha Lourenço Marques (minha Maputo), da luz do Índico, da “Voz de Moçambique”, do Knopfli, do Craveirinha, de Londres, de Veneza, das cidades, dos escritores e da vaidade de alguns, do génio dos que admirou, ou, simplesmente, da estupidez humana. Sempre culto, felino, sensível. Eugénio Lisboa era sempre fascinante, mesmo quando se discordava dele. Imodesto, ufano, vasto, brilhante, luminoso, espantoso, vibrante, vívido e ofuscante. Ostensivamente inteligente e culto. Tinha o vicio impune da leitura. Fez dos livros o seu magistério. Até ao fim. Acaba de morrer um sábio. Um dos últimos neste tempo sem lustro, génio ou cultura.

 

Acta est fabula.

 

KaMpfumo, 9 de Abril de 2024

A tragédia da embarcação que virou e matou cerca de 100 pessoas na Ilha de Moçambique veio despertar na consciência de muitos moçambicanos que afinal o Estado (Governo) moçambicano não tem a capacidade de nos proteger das tragédias públicas, sejam elas causadas por factores naturais ou humanos, como é o caso em alusão. Diz-se que que tudo na vida tem o seu lado positivo, mas para tragédias como estas da Ilha de Moçambique, é difícil encontrar “um lado positivo”. Principalmente agora que as famílias ainda estão a enterrar os corpos dos seus entes queridos e outras ainda aguardam que os seus familiares regressem, vivos ou mortos. 

O que podemos fazer com esta tragédia é despertar a consciência para reflectir sobre as nossas tragédias colectivas como Estado (povo). Como dizia no Noite Informativa da última segunda-feira, a embarcação da Ilha de Moçambique é o nosso my love marítimo. Se moçambicanos são transportadores de casa para o trabalho e vice-versa, apinhados em camiões de carga (my love), na cidade capital Maputo, não pode haver surpresa que no distrito de Mossuril as pessoas sejam transportadas apinhadas em barcos de pesca. É uma das nossas tragédias colectivas: a tragédia da falta da dignidade da vida humana, principalmente a vida dos pobres.

Não é somente nos my love de Maputo ou nos barcos de pesca de Mossuril em que a vida dos moçambicanos pobres não é valorizada. Por exemplo, nos comboios da Empresa Pública Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), os passageiros são transportadores pendurados do lado de fora dos vagões – devido à falta de espaço dentro dos vagões. Todos vemos isso sempre que nos cruzamos com um comboio na linha férrea, na hora da ponta. Talvez não estejamos conscientes do quão trágico isso é, até acontecer uma fatalidade como a da Ilha de Moçambique. 

A nossa Estrada Nacional Número 1 (EN1), é também uma tragédia. Cheia de covas, sem sinalização e nem serviços públicos para prestar primeiros socorros às vítimas de acidentes de viação (apesar de ter portagens para cobrar dinheiro aos utentes), a nossa EN1 é uma verdadeira tragédia que mata regularmente e vai continuar a matar.

As nossas tragédias colectivas não estão somente no sector de transporte público. E nem podiam estar. Senão seria um problema do sector (dos transportes) e não do Estado (Governo). 

No sector da Saúde, temos, por exemplo, a tragédia da cólera. Uma amiga cientista me explicou com muita simplicidade que a cólera é uma doença causada por ingestão de fezes humanas. “A pessoa infectada pelo vibrião colérico (a pessoa que tem cólera) vai defecar a céu aberto e não tapa as suas vezes. Estas expostas, são ladeadas por moscas que transportam as fezes para os alimentos (vegetais, por exemplo) que são servidos a pessoas saudáveis sem ser bem lavados. Estas pessoas saudáveis podem, assim, adquirir a bactéria e ficar com cólera. Houve, então, duas situações problemáticas de higiene neste cenário: 1) a pessoa que defecou a céu aberto e 2) a falta de higiene alimentar. Podia acontecer, também, a pessoa que defecou no cenário acima, limpar as fezes e não lavar as mãos. De seguida, poderia ter ido saudar com aperto de mão a pessoas saudáveis. Estas comendo sem lavar as mãos, podem ingerir a bactéria”.

A cólera é uma tragédia em Moçambique pois todos os anos milhares de pessoas ficam doentes e outras milhares morrem! Sem conhecimento das causas da cólera, a população se revolta com as mortes, destrói infraestruturas públicas, casas de agentes de saúde e mata líderes locais, acusando-os de ser agentes propagadores da cólera nas comunidades. 

O Estado (Governo) culpa o povo por ingerir fezes humanas, nas quais encontra a bactéria Vibrio cholerae que causa a doença, por isso o foco tem sido insistir nas campanhas para lavar bem as mãos, os alimentos, os utensílios de cozinha (nos quais se acredita que tem as bactérias causadoras da cólera). Mas poderia também ser o Estado a criar condições de habitabilidade dos assentamentos humanos para que as pessoas não andassem a ingerir involuntariamente as fezes humanas. 

Para entender o que estamos a dizer, basta olhar para bairros dos ricos como Sommerschield, Polana (Maputo), Macuti (beira), Parque (Nampula)! Não há (muitos casos de) cólera lá! Não porque o Governo anda a fazer campanha de educação contra cólera, mas porque as pessoas não defecam a céu-aberto, tem água canalizada nas casas para lavar os alimentos e sobretudo as pessoas que vivem nestes bairros têm instrução para saber o que se pode e o que não se pode fazer.

 A insurgência em Cabo Delgado também é uma das nossas tragédias colectivas, a mais recente a emergir. O Governo gosta de dizer que o que em Cabo Delgado temos uma agressão externa por uma organização terrorista, mas na verdade, são as nossas fragilidades que causaram a insurgência. Jovens locais, sem esperança de uma vida digna, foram facilmente aliciados, radicalizados e mobilizados para entrar nas matas, treinar e matar seus irmãos, amigos, pais, vizinhos e destruir propriedades públicas e privadas. O Governo pode negar que a pobreza, a exclusão económica, a falta de emprego, a falta de instrução e sobretudo a falta de esperança de uma vida digna, sejam a causa raiz da insurgência ou do terrorismo – como o Governo gosta de chamar -, mas negar factos não torna os factos inverídicos.

 

Da mesma forma que a cólera é causada pela falta de higiene, a o terrorismo em Cabo Delgado é causado pela falta de esperança de uma vida digna, pela parte da juventude local.  Os insurgentes não recrutaram jovens dos bairros da Polana, Macuti,  pelas mesmas razoes que o vibrião colérico não infecta (muito) os jovens destes mesmos bairros. 

Ter forças armadas que não conseguem combater a insurgência em Cabo Delgado, ao ponto de precisarmos da intervenção das forças Ruanda, também é nossa tragédia colectiva. É  ainda mais trágico acreditamos que sem treinar, equipar e pagar os nossos militares, ainda assim eles terão força e bravura para defender a pátria. É trágico criticamos os nossos militares pela falta de bravura e coragem, que os ruandeses têm, mas sem analisar os meios e condições de trabalho de que as duas forças dispõem!

O nosso sistema de ensino público é também uma das nossas tragédias colectivas. Das grandes! É muito trágico não construir salas de aulas, não pagar salários aos professores, não disponibilizar livro escolar e ainda assim fingir acreditar que os alunos aprendem alguma coisa. À semelhança da tragédia da cólera, da insurgência, a tragédia do ensino público também afecta mais aos mais desfavorecidos. Aos da periferia. As crianças que vivem em Macuti, na Polana e em outros bairros similares, não frequentem (a maioria) o nosso ensino público trágico. Estudam em escolas privadas. 

Contudo, a nossa maior tragédia colectiva, a TRAGÉDIA (com todas as letras maiúsculas), é acreditarmos (nós o povo) que não somos culpados pelas tragédias que ocorrem na nossa sociedade e que Moçambique pode progredir sem a nossa luta para obrigarmos o Estado (Governo) a resolver as nossas tragédias!

I

A vontade de urinar era tão grande que o motorista da camioneta foi freando o seu veículo até esta imobilizar-se completamente a berma da estrada.

Saiu e correu para a mata, largou um jato de urina para a moita, já aliviado, quando fechava a braguilha eis que se depara com alguém que o mirava com olhos esbugalhados.

Assustou-se, deu um recuo com dois passos, mais movido pela curiosidade voltou a posição inicial, trocaram olhares até que mais uma vez o temor tomar conta de si.

O ser desconhecido tinha a cara muito ressequida, com certeza de muitos dias ao relento, o  cabelo crespo estava completamente desgrenhado e pousavam moscas que zuniam imparavelmente, aparentava ter uns vinte e poucos anos. Tinha o rosto oval,  pálpebras descaídas, o olhar vítreo desarmava quem o mirasse.

O olhar estranho continuava impávido a foca-lo, decidiu então, abalar logo dali, voltou a assumir o comando da sua camioneta de quatro toneladas, e afastou-se rapidamente do local.

Só voltou a parar na esquadra policial do bairro “floresta” na periferia da cidade para relatar o estranho caso do homem com olhar ameaçador que o espreitava.

A polícia intrigada com o relato acorreu de imediato para o local explicado pelo motorista, depois da devida perícia recolheram-no e trataram logo de o levar para o hospital central de Quelimane para ter os devidos cuidados que este merecia.

O médico de serviço recebeu o estranho trazido pela polícia e orientou os seus colegas no sentido de o proverem de melhores condições que se adequavam ao seu tratamento.

Os técnicos da FRIZA Lda, empresa que ganhara o concurso público depois de  evidentemente enluvarem os funcionários do UGEA, apareceram na manhã de segunda-feira no sector de manutenção do hospital para procederem a reparação do sistema de frio da morgue.

O pessoal de sector de manutenção haviam garantido aos técnicos da “friza” que as condições estavam criadas para que estes laborassem tranquilamente. Três frigoríficos faziam parte de sistema de conservação de cadáveres dos seres que desencarnavam na cidade e arredores.

Compressores, termóstatos foram trocados nos primeiros dois frigoríficos  e os técnicos avançaram para trabalhar no terceiro. O técnico chefe fazia as devidas afinações aos aparelhos reparados, para flexibilizar o trabalho pediu que os seus dois colegas iniciassem com o desmontagem das peças que iriam ser substituídas no terceiro.

– Ahhhh! – uma dupla gritaria, bastante estridente foi disparada pelos técnicos quando se depararam com algo bizarro dentro da câmara frigorífica.

Os funcionários da morgue que se encontravam nas redondezas a tomar o pequeno almoço acudiram prontamente aos alaridos, chegaram manuseando seus pães e badjias e encontram os técnicos aterrorizados.

 

II

Quando a noite adentrava os moradores dos bairros circunvizinhos do cemitério da cidade eram abalados por um ser, que diziam os visados ser um anómalo desprovido de cabeça, que andava acompanhado pelo seu ajudante de campo, este servia de interlocutor entre as reivindicações do homem sem cabeça e os moradores visitados.

“Ele quer a cabeça dele” – dizia o seu ajudante de campo.

O anómalo falava por gestos furibundos deixando os visados mortos de susto.

A empreitado nocturna do estranho ser e o seu ajudante acontecia amiúde logo que escurecesse, o primeiro acto do evento era um assobio emanado em decibéis hipnotizadores, depois ouvia-se um bater na porta do morador que iria receber a visita.

O pânico já havia capturado a cidade, e para o cúmulo havia uma crise na rede de distribuição eléctrica da cidade.

A recessão económica agredia as contas dos comerciantes da cidade e arredores, os mais prejudicados eram os “barraqueiros”, os seus clientes recolhiam cedo para as suas casas, por conta do terror protagonizado pelo homem sem cabeça e seu ajudante.

Uma assembleia geral dos anciãos dos bairros atacados foi realizada numa sala disponibilizada pela autarquia da cidade, um “nyanga” vindo de Inhassunge auxilio-os para averiguações inerentes à solução para o questão que os assombrava.

Um decreto para afastamento das incursões malignas do estranho ser foi aprovado por unanimidade, sob comando do “nyanga” devia-se sacrificar uma galinha cafreal e colocar a cabeça do animal na parte interna da porta principal e no chão do principal acesso a casa devia-se fazer um círculo com um “X” no interior.

III

Depois de recuperam o fôlego os técnicos iam tendo focos de lucidez que lhes permitia usufruir da sua racionalidade. Os funcionários da morgue depois de gargalharem até não puderem mais, recobram a serenidade.

Então um dos técnicos que vivia no bairro da periferia do cemitério afirmou:

– O dono dessa cabeça está à sua procura! – afirmou aliviado.

Nos dias que se seguiram foram de procedimentos para encerrar o inédito caso que engolia a periferia e já se arrastava para a cidade.

A burocracia para exumação  foi prontamente atendida, a vereação dos cemitérios da autarquia, sabia da porção de terra que guardava o corpo.

Numa tarde lúgubre de sábado, procedeu-se a reconstituição do corpo e o reenterro.

 

 

“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”

Nely Nyaka (in “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”)

 

Amadou Hampâté Bâ disse um dia uma daquelas máximas que nos perseguem sempre que há óbitos que devem constar no livro de assentos da nossa memória colectiva: “Quando um ancião morre, é uma biblioteca que queima”.  Quis a fortuna que hoje, 6 de Abril de 2024, a Vovó Nely registasse o seu epílogo aos 103 anos. Em 2018, Nely Nyaka, no entanto, desmentiu o fatalismo que encerra o anátema do historiador maliano e legou-nos uma obra decisiva e exemplar: “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”). Nela está o testemunho e testamento da sua soberba vida e obra.

A Vovó Nely foi toda a vida uma activista social. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.

No seu livro “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade” está inscrita a sua longa experiência de vida. O livro é um testamento. Um manancial de valores. Nesta obra ela cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade, a começar pelos seus pais, Jinita e Jeremia, na KaTembe, passando pela então Lourenço Marques (KaMpfumo), fala-nos da vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), da casa e os rituais (o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento).

A Moamba e a vida adulta lá nas terras do Sabié. Casara aos 19 anos com Raúl Bernardo Honwana. Raúl, que militou no Grémio Africano nos tempos de Karel Pott, escreveu, em 1984, um livro de memórias. Inspirada pelo exemplo do seu marido, que faleceu em 1994, Nely decidiu também deixar por escrito o seu legado. Nele fala do nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.

O livro relata-nos os alvores da Independência, do 7 de Setembro, o Governo de Transição, fala-nos do entusiasmo e da euforia desses tempos, de Samora Machel, dos erros e dos excessos da revolução, como a nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos. Nessas lengalengas, preferidas pelos netos e bisnetos, cada frase contém uma pergunta (“U ma?” –  Quem és tu?), e uma resposta (“Ni Nwamatxola-Txolana” – Sou o Nwamatxola-Txolana”) e o jogo prossegue entre perguntas e respostas do mesmo género.

Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. A sua maior obra é o exemplo e o repositório desses valores que nos deixa como dádiva. Esse foi o grande dom da sua vida. O seu génio. O seu grande mérito. Uma vida árdua, laboriosa, dura. Mas ela, sempre obstinada. Perseverante, tenaz.

Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.

Aqui está o espólio de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona, neste livro, sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar.  O seu acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação” uma expressão felicíssima.

O extraordinário livro de contos “Nós Matámos o Cão Tinhoso” (1964), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis “Memórias” (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra “O Algodão e o Ouro” (1995), cruzam-se com este “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade” (de Nely Nyaka), e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum: uma mesma ética. O supremo valor da ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética. Aliás, num intrépido discurso que fez aquando do lançamento da sua obra, em 2018, a Vovó Nely foi cortante quanto às anomias sociais e aos desvios éticos que abundam e minam a nossa sociedade. Um discurso memorável e exemplar.

Vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência de valores em que nos atolamos. Ao ouvi-la, com a autoridade da sua idade, rodeada de filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores, pronunciar-se sobre a sua vida e experiência e sagacidade, foi um momento profundo, uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.

A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:

 

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

…os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.

Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.

Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.

Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.

No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.

Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.

E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.

Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.

Quero orar pela nossa terra.

A nossa terra vive tempos muito atribulados.”

 

Volto a essas palavras hoje no dia do seu declínio. Recordo-a aqui, nesta breve memoração, como uma das mais notáveis personagens do devir moçambicano e um dos grandes vultos da nossa sociedade, história e cultura. Uma figura assombrosa, personagem forte, matriarca exemplar, inspiradora, mulher de uma lucidez implacável e dona de uma memória prodigiosamente lendária.

Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e nesta obra está a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Talvez ela quisesse desmentir o aforismo do historiador maliano. A sua experiência não se incinera. Permanece naquelas belas e luminosas páginas. Viveu 103 anos e 115 dias! Uma vida jubilosa. Deus deu-lhe o tempo e a força que fez da sua vida uma lição. Provavelmente ainda não chegaram as suas prédicas, as palavras de consolo ou o lenitivo que nos falta quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.

 

Cidade do Cabo, 6 de Abril de 2024

Recebi, há dias, uma chamada de Lino Mukurruza. Entre uma cavaqueira e outra, veio o desafio: “estamos a organizar um colóquio de letras e, desta vez, homenageamos António Carneiro Gonçalves. Gostaríamos que fosse um dos oradores acerca d’A Escrita de Anton”. Daí para frente a conversa tornou-se numa partilha de memórias de textos que compuseram o imaginário de muitos moçambicanos nascidos entre a década 80 e a primeira metade da década 90 do século passado.

Quem, desta geração, não se recorda dos textos “A Gruta de Cantaia; Malidza; e A Mulher do Escritor”? São textos que compõem manuais de Língua Portuguesa que eram usados para o ensino naquela época e ficaram na memória: eram dias e mais dias de leitura e interpretação textual. Este último (A Mulher do Escritor) encantou-me imensamente. Sempre li este texto encarnando o personagem em causa e sonhava com esta coisa de tentar ser escritor. Talvez num dia desses, bem distante, me torne num.

Em benefício da dúvida, podia ater-me numa abordagem isolada dos textos mencionados acima, porque conheço-os já lá vai algum tempo; só muito recentemente recebi a segunda edição do livro “A Escrita de Anton” que é composta por boa parte da sua produção literária e jornalística. Movido pela vontade e entusiamo com que li parte deste volume, vejo-me tentado a tecer alguns comentários:

  1. Neste volume de textos, está muito clara a capacidade de Anton (nome pelo qual Carneiro Gonçalves era chamado pelos seus irmãos em razão de o seu o primeiro contista predileto ter sido Anton Tchekov) nutrir as características dos géneros textuais que produziu e conseguir equilibrar-se na coerência genérica do início ao fim. Ninguém, em sã consciência, dirá que é o jornalista que escreveu lendas e contos; ou é o contista que escreveu artigos de opinião, reportagens e crónicas. Neste tempo em que a pureza dos géneros textuais é uma falácia comprovada e em seu lugar entra o tom agudo do hibridismo de géneros, reina uma autêntica confusão no que diz respeito ao plano de texto característico de um género em comparação com o outro. Estamos numa altura em que o se apelida conto está mais para crónica e o que recebe o nome deste último é, na verdade, o primeiro. Quantos romances chegam-nos à mesa que, no fundo, são mais novelas que romances propriamente ditos? Anton, na sua escrita, separa muito bem o limite destas águas.
  2. Nos últimos dias, tenho estado a desenvolver um crescente interesse pela Linguística Textual, um campo de saber que, dentre tantas coisas, preocupa-se com a explicação dos diferentes modos de composição e sequencialização textual. Jean-Michel Adam, um dos mais renomados teóricos desta área propôs uma classificação de textos que incidisse não sobre a totalidade de extensão, mas, igualmente, em termos de complexidade composicional: as chamadas sequências textuais. Esta reflexão veio-me à memória quando detive-me a reler “A Mulher do Escritor” (p. 38): um texto que me desconcerta pela forma e pelo conteúdo. Na sua estrutura profunda, é um texto narrativo do género conto, por excelência. Contudo, o mesmo é composto por sequências textuais maioritariamente dialogais, havendo, naturalmente, “entradas” descritivas e narrativas que tradicionalmente caracterizam o conto. O uso desta técnica, certamente propositado em “A Mulher do Escritor”, gera uma narrativa única e envolvente, permitindo que o leitor interprete o enredo através do diálogo entre as personagens e não necessariamente através das pistas deixadas pelo narrador.
  3. Na escrita de Anton encontramos a concretização de uma das mais primorosas funções da arte: a catarse; não só do leitor em contacto com o texto, mas do próprio autor, tal como se pode ler nas entrelinhas de “A Galinha dos Ovos de Oiro” (p. 290). O retrato que Anton faz de Gabriel, o gigante de Manjacaze, da coisificação de que foi alvo na Europa e em outros cantos do mundo, reaviva uma empatia entre o leitor e o texto: característica muito comum em textos surgidos da pena de um bom prosador. Pode-se dizer, com razão, que neste caso se trata de uma entidade histórica e, por isso, há uma associação involuntária entre o mundo textual e o plano da realidade, mas não procede. Tomando este desvio do plano da realidade sobre o texto, numa visita que fiz a Nywadjahani, em 2022, soubera pela voz do guia da casa-museu que Gabriel era, afinal, primo de Eduardo Mondlane.
  4. É típico dos grandes génios da escrita jornalística com sensibilidade para a arte, fazer interpelações críticas sobre a arte num exercício pleno de crítica literária. Nesse quesito, desfazem lugares-comuns e descortinam visões que, em princípio, nos pareciam impensáveis. Tiro esta ilação através da leitura de “Pablo Neruda _ perspectiva política de um prémio literário” (p. 405). A leitura deste texto foi-me cheia de afinais, não pela já conhecida subjectividade da Academia Sueca nesta coisa de prémios, mas por ter percebido que tal vício data de muito antes da existência de Moçambique como nação independente. O recorte histórico-biográfico que Anton traça em torno da figura de Pablo Neruda fundamenta a sua colocação a respeito do prémio e se afasta do achismo muito em voga nestes tempos em que soam alaridos sobre os prémios mas ninguém se digna a trazer fundamentos rigorosamente objectivos.

Para mim, a partida de Anton foi bastante prematura. Aliás, parece ser esta a sina dos grandes génios. Foi-se mas fica um legado importantíssimo através da sua escrita. Este volume que reúne a sua produção literária e jornalística é, na verdade, um tutorial sobre o ser escritor. Há janelas que nos transportam para a necessidade de (1) nos apropriarmos dos géneros nos quais queremos produzir os nossos textos. Querendo fazer inovações, que tal parta de um exercício consciente e não numa mera fruição da alma em nome da tão propalada liberdade de criação; (2) termos uma visão holística sobre os fenómenos que nos rodeiam e ver muito além do que nos é mostrado. Nesta coisa de escrever livros e mexer com emoções alheias, damos por nós mesmos a servir de farol de um não sei quanto de pessoas em meio ao caos que o mundo vive. Assim, se tal tiver de ser, que seja um farol verde para que o mundo avance: já temos muitas interdições e pausas neste curso; (3) ainda sobre esta coisa de visão holística e domínio de ferramentas para a escrita, Anton situa-se muito à frente do seu tempo, de tal forma que a abordagem de Jean-Michel Adam com que alicerçamos o comentário sobre sequências textuais em “A Mulher do Escritor” são muito posteriores à sua produção literária.

 

PS: comentário feito no Colóquio de Letras em homenagem a António Carneiro Gonçalves, organizado pelo Clube de Leitura de Quelimane.

Estamos todos, literalmente todos, nós os não empresários, levianamente impávidos perante o tétrico fenómeno dos raptos. Apenas lamentamos e, inacreditavelmente, também os que têm poder de pôr um ponto final a toda essa brutalidade também se lamentam. Inacreditável!

Não quero aqui levantar as mesmas velhas perguntas, tais como: quem são os sequestradores, que na baila da luz do dia fazem e desfazem? Nem mesmo questionar quem lucra com a indústria do sequestro; e, muito menos, querer saber onde está a polícia quando estes distribuidores do medo talham a lufada de ar fresco que restou da nossa tranquilidade. Não!

Quero apenas chamar atenção a nós os outros, nós os não empresários, o cidadão comum, sim, tu mesmo, funcionário público, tu professor, tu médico, tu enfermeiro, tu marceneiro, tu carpinteiro, tu que vives nos constantes apertos diários, com dívida bancária cuja letra anda há muito atrasada, sim, assim como o salário, tu a tentar construir uma humilde casa já há anos, tu pacato cidadão, jornalista, nhoguista do povo, mergulhado desde a matina na labuta do metical.

Sim, tu que somos todos nós: eu e tu, eu o povo, como em outros tempos dizia Mutimati Bernabé João; nós que achamos que os sequestros são coisa de gente rica, de empresários, de monhés, dos endinheirados. O que todos nós achamos disso tudo?

Não achamos que, quando os empresários, os monhés, os endinheirados estarem debelados, os sequestradores vão chegar a nós? Já imaginaste… receber uma chamada de uma quadrilha a exigir uns trinta e tal mil para soltar teu filho que foi levado a caminho da escola?

Já imaginaste tua futura aflição, tu ensopado de suor, com os poros libertos, a ligar para os “bradas” a pedir emprestado dez mil para resgatar o “puto?” Ou então, a recorrer a um agiota para levar uns vinte paus para recuperar a esposa? Vamos lá imaginar todos nós! Todos precisamos de fazer algo. A polícia já mostrou que não tem solução, ou por outras, não faz parte da solução, e de que parte faz, isso eu também não sei! Apenas sei que precisamos de resgatar a nossa colectiva indignação!

De algumas semanas prévias até aquela, estranhos eventos têm ocorrido na povoação de Nguileni, aglomerado comunal que se destaca pela produção agrícola e de criação de manadas de gado bovino e caprino.

Na residência do velho Mugueni as noites têm sido de agitação nos estábulos. O berreiro dos cabritos despertava os residentes. Dir-se-ia que no local algum predador lá penetrara – que os havia em abundância –, alguma serpente inoportuna, algum felino tresmalhado lá das serras ou, porque não?, algum meliante em alguma tentativa de um assalto. Estes, todavia, e como é da experiência de todos, não ocorrem nos estábulos, mas sim durante as pastagens. E para comprovar e eliminar a hipótese de furto não existem testemunhos de faltas de animais entre os efectivos dos criadores.

O velho Mugueni faz vigília aos seus estábulos, acoitado na escuridão de uma sebe crescida nas traseiras do pavilhão principal da casa. A noite decorre tranquila. Os animais ruminam as reservas de alimento, outros sonecam preguiças no conforto do alpendre que os abriga.

Eis senão quando, alguns dos animais erguem-se sobre as patas e agitam-se no terreno do pavilhão. Um vulto movimenta-se com vagares entre aqueles. É de estatura alta, de uma silhueta que se assemelha à de um homem.  Num gesto que parecia automatisado pelo hábito ou por algum instinto particular, alcançou um dos animais e imobilizou-o entre os braços. Arriou os calções  e fez o que para ali o trouxera.

O velho Mugueni presenciou aquele evento de bestialidade do intruso numa   das suas cabras com um misto de perplexidades. Poderia facilmente imobilizar o criminoso e executá-lo no local ou ministrar-lhe um correctivo à medida da violação.  “Para cada crime, a devida punição”, assim pensou.

Com uma agilidade felina saltou sobre o vulto daquele homem. Tamanho pandemónio nunca se vira naquele lugar. O homem a tentar libertar-se dos apertos do Mugueni e este a asfixiá-lo com a tenaz dos braços. Os da casa acorreram munidos de mocas e de varapaus. Cada um contundiu o invasor o “melhor” que pôde. Com os calções ao redor dos tornozelos, ele foi imobilizado com cordas húmidas e encaminhado para a penumbra do recinto do quintal. Aturdido pela sova contínua gemia de dores e balbuciava arrependimentos aos quais os da casa faziam  ouvidos de mercador. O correctivo prolongou-se até ao seu desfalecimento. Dele sobrava apenas um corpo imóvel, coberto de hematomas e lacerações.

“Oh-oh-oh! Afinal é o Muthiasse! Inacreditável!… Afinal é ele que anda a violar as nossas cabras?!…”, espanto geral na comoção da noite.

“Quem diria, este rapaz que parecia tão sossegado e comedido, respeitador e tudo, a fazer isto nos nossos currais?!..”, e uma bofetada com a força de uma tempestade estalou na face do aludido.

Estava distante da imaginação dos habitantes daquele povoado que a série de eventos que ocorriam poderia ter alguma relação com os actos de bestialidade tão correntes. Em certos currais algumas cabras manifestaram sinais de infecções nos respectivos traseiros. Apresentavam feridas que não cediam às terapias  ministradas pelos conhecedores do ofício. Outros registaram mortes de alguns animais com semelhantes afecções. Era, isso sim, um mistério que nem os mais sagazes adivinhos conseguiam esclarecer.

“A verdade”, tal como diz o adágio “é como um furúnculo; qualquer dia acaba por rebentar”. Estava encontrada a resposta às dúvidas sobre as causas dos tumultos nos currais de  Nguileni.

A madrugada chegou com novidades. Uma multidão de vizinhos aglomerou-se no recinto do quintal do velho Mugueni. As bocas não fecham de espanto, os olhos não pestanejam diante da figura do Muthiasse manietado e acocorado ao lado do tronco de uma mangueira. Cada qual, cada vítima das incursões daquele, acha-se no legítimo direito de dar a sua quota parte de desforço pelos danos nos seus estábulos.

A razão prevalesceu. Convocou-se uma banja (1) de emergência na qual compareceram os graúdos do lugar. Alguns adiaram compromissos com as machambas e com o pastoreio. Como perder aquela oportunidade de presenciar o julgamento público daquele transgressor da ordem e moral públicas. Como perdoar aquele acto de invasão a propriedades alheias e molestamento de animais?

Os ânimos exaltaram-se. Não havia consenso sobre as penas a aplicar ao prevaricador.

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  • banja: reunião popular

O chefe de terras, o mulumuzana (2) Zunguene, revestido da autoridade e da sabedoria secular com que os deuses lhe prouveram, proferiu a seguinte alocução:

“Nestas terras de Nguileni os ancestrais concederam-nos a graça da paz e do entendimento mútuo. O sentido de entre-ajuda é um principio que todos cultivamos. O problema de um é aflição doutro. Compartilhamos das nossas alegrias e tristezas. O respeito pelo bem alheio é uma doutrina que sempre nos guiou, é o farol das nossas existências. A sombra de um é sombra doutro, se aquele o permitir. Não vacilamos nesse princípio de respeito pelos bens alheios. É por isso que nesta comunidade não existem crimes. Somos vigilantes dos nossos valores e bens, materiais e espirituais. Somos defensores da nossa moral, a mesma que nos foi legada pelos antepassados”.

O mulumuzana Zunguene fez uma pausa e volveu um olhar feroz ao Muthiasse.

“Este criminoso que temos aqui à nossa frente ousou desafiar os nossos usos e costumes. Como é já do conhecimento de todos violou as regras que orientam a nossa vida. Isso é imperdoável e merece a devida punição”. E sentenciou:

“Já que é da sua preferência violar cabras, deve fazê-lo de um  modo por todos aceitável. Como todos os homens dignos praticam aqui no nosso seio, e em geral, ele deve lobolar (3) a cabra que violou. E não só: deve preparar-se para se casar com ela, em nossa presença, sob o testemunho de toda a comunidade de Nguileni”.

Ululações e uma prolongada ovação de aprovação encheram a manhã de alegria. Era um acto de justiça para com as famílias lesadas, uma lição de que a bestialidade não tinha espaço naquele lugar, um crime hediondo que feria a moral pública e transgredia as normas de bem-estar nas comunidades.

O Muthiasse beneficiou de uma liberdade condicional. Era-lhe facultado o direito de se preparar para os eventos que precederiam os rituais do lobolo (4) da  já cabra-noiva. Esta ficou sob guarda do proprietário, não se vá dar o caso de o criminoso abatê-la e pretextar razões de variada índole para justificar a morte do animal.

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(3)lobolar: pagar um dote de compromisso aos parentes da futura noiva.

(4)lobolo: dote em dinheiro e bens.

Duas semanas transcorreram depois daquele julgamento.

O Muthiasse compareceu à cerimónia do lobolo da cabra-noiva acompanhado por dois cavalheiros e respectivas esposas, todos de ar compungido, em representação dos pais do “noivo”. Transportavam consigo todo aquele rol de encomendas que se presumem que devem ser ofertados aos “sogros”, entre capulanas, lenços de cabeça, um garrafão de vinho tinto, um casaco e uma bengala para o velho, um anel simbólico para a “noiva” e, como é mandatório, uma quantia avultada em dinheiro, chave essencial que franqueava as portas daquela que doravante seria “a casa dos sogros”.

O ritual decorreu no meio de uma algaraviada de vozes e hilaridade, concorrida e presenciada por uma multidão de curiosos. As expectativas eram enormes, pelo ineditismo e pelo alcance da medida justa e histórica.

Ao lado do Muthiasse, a cabra,  açaimada a uma corda decorada de serpentinas e chocalhos ao pescoço, pousava tranquilamente, a ruminar a refeição da manhã.

Durante aquela cerimónia foram aprazadas datas para formalizar detalhes sobre o matrimónio do “casal”.

O Muthiasse era um ser humano que de vida possuía apenas a capacidade de falar. Noites inglórias de insónias, de pesadelos e profusas transpirações constituíam a sua jornada de expiação. Durante os dias ia ao pastoreio exonerado das rotinas e distante dos companheiros, um sonâmbulo que percorria as jornadas da vida sem meta nem fenda onde ancorar-se e esconder a vergonha pelo escândalo. Considera um plano de fuga para lugares distantes, onde ningém o conhecesse ou do seu passado tenha ouvido falar. Mas para onde e como? Plano latente, imposível de realizar, porém.

As cerimónias do matrimónio do Muthiasse com a cabra realizaram-se um mês depois das do lobolo, na residência do velho Mugheni. Oficiou o evento o chefe de terras, o mulumuzana Zungueni, que possuía esses poderes civis e oficiais. Naquelas participou toda a comunidade de Nguileni com cantigas de teor educativo, danças de makwayela (5), de nghalangha (6) e de chigubo (7), manifestações tradicionais e obrigatórias naquele tipo de eventos. As prendas aos “noivos” choveram, provenientes de todas as famílias da comunidade. Um fotógrafo ambulante viajou da vila de Mandhlakaze para registar o acontecimento como testemunho para a posteridade.

Ao fim da tarde as cerimónias atingiram o rubro de regozijo. Foi anunciado o xiguiana, o acompanhamento festivo dos nubentes ao seu lar, a entrega formal da “noiva” à sua nova família: o agregado Mathe, partilhado com o seu “esposo”, o Muthiasse Mangue. Este segura uma ponta da corda nupcial, a outra rodeia o pescoço da cabra-noiva decorada de véu e grinalda. Tranquilamente, ela mastiga confeitos confeccionados com palha seleccionada. Ambos caminham com o passo cerimonial da ocasião, no ambiente festivo de ululações, de cantos e danças.

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Dos eventos pós-nupciais não reza a História. Ficou, porém, na memória de toda a comunidade, a lição de que a violação e o usufruto de bens alheios pode, um dia, trazer amargos de boca inesperados e definitivos.

 

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5) makwayela: dança popular

(6) nghalangha: dança popular

(7) chigubo: dança popular

 

 

 

Pretória, Fevereiro 2024

 

No passado dia 20 de Março de 2024, como Jornalista voltei a narrar mais uma terrível e avassaladora história de um jovem cheio de vida, enérgico, saudável, com tudo para correr rumo ao desenvolvimento do país em vários domínios. Tem simplesmente 27 anos de idade e estará condenado para o resto da vida de um dia poder voltar a ver o sol, por conta da conjuntivite hemorrágica, uma doença cruel que nunca imaginaria que chegasse a fazer remover os olhos do jovem. 

Não imaginam para mim o que foi contar esta história, para o vasto público da nossa Stv e do Jornal o País. Vocês não fazem ideia como isso dói. Ver alguém que até por razões das actividades que o próprio exercia na cidade de Quelimane, cruzávamos algumas vezes, ele como vendedor e eu como cliente. 

Estou a falar de Babu Aiuba que ficou cego por conta da terrível, cruel, maldosa conjuntivite hemorrágica. Foi duro ouvir ele contar que os seus olhos do nada começaram a libertar líquidos que consumiam a sua visão. Na abordagem, e a quanto calmamente explicava detalhes a mim, enquanto jornalista, via seus olhos carregados de ramelas e completamente bloqueados. 

Parei a entrevista e puxei para o lado alguém do sector da saúde por sinal médica e porta-voz do Hospital Central de Quelimane, na esperança de ouvir que a situação do moço teria cura e voltaria a ver, a andar sozinho sem impedimento. Mas as minhas tentativas foram em vão, pois nada do que eu pretendia ouvir com os meus ouvidos apurados consegui ouvir. “ Fizemos de tudo pra tratar o moço, os médicos oftalmologistas do hospital deram o seu saber, mas infelizmente não voltará” disse a médica também chocada.

Na medida em que ela ia avançando mais informações sobre a situação no corredor do hospital, bem ao lado da sala onde estava internado o jovem Aiuba, virei a minha cabeça e vi no fundo a irmã deste inconsolável, “derramando lágrimas” nas suas mais profundezas. Não me contive a tamanha situação. Indaguei-me: meu Deus por que isso?  

Aproximei-me da irmã e disse bem do fundo de mim com olhar tristonho: terão que aguentar e serem fortes para “ajudar o vosso irmão”. Na ocasião fiquei sabendo que afinal Babu Aiuba tem um filho e esposa para sustentar e nas condições em que passará a readaptar uma nova forma de estar, como será a vida da sua família. Suspirei…e por mim disse no interior sem que a irmã ouvisse e ninguém mais: Conjuntivite hemorrágica cruel. 

Voltei a sala de tratamento, continuei a conversar com Babu Aiuba para ouvir sobre como foi que tudo começou até chegar aquele estágio. Com voz calma ele explicou o seguinte: “Eu contrai a conjuntivite hemorrágica, lavei os olhos com sabão e xixi. Sucede que é uma prática de pessoas lá no bairro, que ao contrair conjuntivite utilizam urina para tratar os olhos. Segui o mesmo tratamento e daí começou meu problema. Depois fui ao hospital e deram-me tetraciclina por duas vezes. A terceira vez foi uma pomada que não cheguei a ver porque a minha visão já não existia” disse Babu Aiuba para quem a sua vida está comprometida e terá que se adaptar à nova realidade. 

Olhei atentamente ao Babu, procurei entrar no seu pensamento, imaginei que devia estar arrependido do porquê ter utilizado urina para tratar de forma caseira os seus olhos. Talvez se o tempo recuasse, Babu não voltaria a fazer. Aliás, a médica contou que a urina foi a principal causa da situação ter agravado naquele estágio. Ademais, sobre urina, ouvi muita gente nos bairros que utilizavam aquele método para tratar seus olhos mas que não chegaram ao estágio de Babu Aiuba por muita sorte.  

Enfim, conjuntivite hemorrágica cruel, não quero julgar Babu Aiuba por nada, pois é avassalador ver a sua situação. 

Na abordagem, tal como explica anteriormente, a equipa médica revelou que a cegueira de Aiuba é definitiva. Eugénia Cavele explicou que Aiuba estava inicialmente com uma conjuntivite hemorrágica, mas devido a uso de medicamentos tradicionais e outras substâncias não comprovadas cientificamente, complicou com uma conjuntivite bacteriana e está por si, evoluiu para uma cegueira. 

Em seguida, terminou a sua intervenção deixando um alerta para toda a sociedade, informando que todo aquele que tiver sintomas ou sinais de qualquer que seja o tipo de conjuntivite, para não utilizar substâncias não comprovadas cientificamente e não pautar para automedicação, porque pode complicar para estágios de cegueira. 

A lavagem abundante das mãos sempre que se tocar qualquer superfície, pode ser uma das vias de prevenção da conjuntivite. 

Fica o alerta.

Conjuntivite hemorrágica cruel!

Não é todos os dias que se apresenta um livro com estas características. Este livro inicia criativamente de forma inusitada com uma declaração publica de amor Moçambiquero-te!  Neste sentido, resgata textos que a autora publicou e discutiu em diferentes lugares, no Brasil, em Portugal e em Moçambique aglutinando-os neste livro porque não os tinha partilhado com os estudiosos e diferentes públicos em Moçambique. Uma vez que foi movida por afectos a autora intitulou o livro de “Moçambiquero-te”, expressão tirada, com a devida vénia, do livro Moçambicanto, da autoria de Gulamo Khan, o poeta que foi também, invocado no Projecto “Moçambiquero-te”, uma peça teatral (criação colectiva sob a direcção de Henning Mankell e a produção de Manuela Soeiro), intitulada “Vestir a terra”, representada pelo Grupo Teatral Mutumbela Gogo, em 1994, a seguir ao “Acordo Geral de Paz”.

Não é de espantar porque em toda a escrita de autora Sara Laisse nos ideais de vida que a perseguem perpassa esse amor pela terra e seus habitantes, um inconformismo um desejo de transformação. Transformação é uma daquelas palavras avulsas, corriqueiras e transversal, mas profundamente necessária à nossa humanidade, hoje mais do que nunca.

A escrita comprometida com causas. Neste sentido, por via das suas actividades de cidadania, e acima de tudo pela escrita, através da pertinência dos temas que aborda, convoca a uma mudança, mas não de superfície. Motiva a uma viragem, mas não apenas de modas ou de ventos. Cada escrito constitui um apelo em prol de transformação da forma total de ver, a maneira de nos vermos a nós próprios, a maneira de percepcionarmos o mundo, de interpretarmos a justa relação com o real, de destrinçarmos o que pode ser portador de sentido e aquilo que, em vez disso, o anula. É uma viragem, certamente. Mas para o efeito ela provoca, através dos seus textos aquela adesão de coração que nos coloca por inteiro a viver — na verdade, a experimentar e a ousar viver — por uma forma de ser e estar diferente, sensível às singularidades. Esta transformação que subentende um nível de consciência que insufle a coragem de olhar para o estado das coisas e redirecionar os trilhos como pessoas, como nação, como mundo, assumindo que a única verdadeira forma de transformar é transformar-se.

Neste sentido, este Moçambiquero-te tem como pano de fundo – em muitos dos textos que o compõem – a questão premente da interculturalidade.  Há a premência de se promover um diálogo intercultural, contínuo e reiterado não deixando que a lógica do medo ou do lucro ponham em causa as práticas múltiplas de hospitalidade, presentes na essência da nossa convivialidade sociocultural.  Moçambiquero-te é um exercício literário que nos remete à necessária experiência do encontro, ao exercício solidário da inclusão.  Ela, aliando ciência e consciência, na vida e na escrita, acredita na igualdade associada ao respeito às diferenças de classe, etnia, sexo, gênero, nacionalidade, língua e religião existentes entre as pessoas.

Logo no texto inicial Interculturalidade como um desafio – Poderá a lusofonia constituir um espaço de compreensão entre povos? kutxula vitu, kutsivela, kuyandla, kubieketa e baptismo católico como rituais para diálogo, onde demonstra a existência de equivalência de funções e de significados entre os rituais de passagem da cultura ronga (kutxula vitu, kutsivela, Kuyandla, Kubieketa) e o baptismo da Tradição Católica Portuguesa, faz- nos perceber que tudo quanto humanamente associamos ao sagrado, na diversidade das suas ritualidades e  morfologia, conserva  entre si flagrantes equivalências.

Que é como quem diz: as experiências religiosas, tal como afiança  Tolentino Mendonça, um dos autores citados no livro  são instrumentos para observar o enigma do mundo; são modos de habitar não apenas a pergunta radical que nós humanos transportamos, mas aquela interrogação ardentemente irremovível que somos; são estratégias de perfuração do visível; são a consideração de que aquilo que tateamos não é o fim, mas o princípio apenas; são laboratórios para o interminável e doloroso espanto que viver significa; são epifania, relance, vislumbre, deslumbre, revelação.

Neste sentido, por derivarem do espanto comum diante do mistério da existência essas espiritualidades diversas tanto derivado das religiões cristãs como das religiões africanas mantêm uma relação íntima com a literatura, numa conexão tão inesperada, tão criativa, tão verdadeira. Assim, porque a Literatura e espiritualidade encontram-se aí: na busca e na tradução de um sentido para a vida, para além desses rituais factuais entra para o reino da ficção literária para complementar a interpretação dos rituais acima mencionados com a análise dos poemas Quengueleuqeze de Rui de Noronha, moçambicano e o Baptsmo de Rubem Alves, autor brasileiro.

Mergulhando em Nyembête ou as cores da lágrima, romance de Calane da Silva, Sara reflecte sobre novos modelos de construção do romance africano ressaltando neles a  presença da  polifonia (diversidade de narradores e vozes, poesia cantada e da morte com possibilidade de retorno, situando-o como um romance auto-ficcional, portador de marcas biográficas do seu autor e ressaltando a presença  da espiritualidade, centrada nos seus estudos sobre Antropologia espiritual. Sara Laisse demonstra como neste romance NCL, o autor hoje  mergulhado em outras dimensões da existência, como ele o diria,   emprega a sua própria vivência da espiritualidade  como uma lente por detrás da qual  se contempla  o assombroso enigma da  existência, onde o crer  se constitui como uma condição necessária para viver e acima de tudo  definir  o caminho que se trilha na vida.

Os temas abordados proporcionam-nos um profundo mergulho em nossas realidades culturais – “minha e dos outras”, onde perpassa a persistente questão  “quem somos nós e quem são os outros”? Pela nossa autoconsciência e valorização precisamos assumir um processo transformador. Mas para isso acontecer é preciso “indignar-se” com a realidade, como pede também o Papa Francisco.

Por via destas leituras múltiplas, que a autora nos apresenta, sentimos como a sabedoria entra pela via do olhar, pelas estradas do sentir, pelas encostas rolantes das  lágrimas, pelos sorrisos de esperança, pela seriedade com que encaramos a vivência da cultura de cada povo.  Da forma como ela mergulha fundo na pesquisa e oferece a alma a esta causa, há como que um apelo, para que por esta via da literatura, da cultura da leitura, possamos perceber que uma coisa é saber, outra coisa é vivenciar na realidade; ultrapassar o saber racional, passando-o para o sentir emocional. É importante sempre criar pontes, mesmo sabendo que elas não são feitas de um dia para o outro, mas que vão se construindo desde a base, começando pelo respeito às diferenças.

          Em Moçambiquero-te, Sara Laisse   demonstra o quão essencial é voltarmo-nos para dentro de nós e analisar em que medida estamos a vivenciar as nossas práticas culturais em nosso modo de ser; se assumimos a nossa identidade, a nossa história, ou se precisamos de voltar ao processo de busca de nossas raízes. Desafia-nos a dar passos, despertar, acolher, aceitar e valorizar a nossa história sem camuflar o que somos; voltar sempre às nossas origens, buscando aprender com nossos avós e pais; continuar a transmitir os valores que herdamos de nossa cultura, seja oralmente, ou através da escrita, dos meios de comunicação social e através de nossa convivência, para que não os percamos, mantendo nossas relações interculturais. E  ela o faz na primeira pessoa, pesquisando e colhendo das fontes viva orais, para além da bibliografia.

Nestes artigos, a autora demonstra que o encontro entre as culturas constitui hoje, mais do que nunca “uma oportunidade de enriquecimento e de desenvolvimento humano integral de todos”.  Parte-se do principio de que se está perante uma “oferta recíproca” entre as culturas, como diria o Papa Francisco.  Para o efeito, por via destes e de outros livros, das tertúlias itinerantes que promove e outros projectos, Sara  Laisse  busca  comunicar, descobrir as riquezas  singulares da nossa diversidade, valorizar aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no respeito por todos.

Nessa perspectiva não há escolha senão a fraternidade, pensada não só a nível individual ou grupal, mas também à escala mundial. Se hoje é visível a olho nu que os pilares mundo vem sofrendo um desmoronamento, por falta de fraternidade, e continuarmos a defender posições de superioridade que impedem a fraternidade; é preciso nos decidirmos a dar passos concretos, reais, possíveis, que estão ao nosso alcance, de modo que o mundo se torne mais fraterno! Este livro, pelo conteúdo e pelo testemunho de vida da autora, se enquadra dentro destas premissas.

Leitor como protagonista

No fundo o grande protagonista de Moçambiquero-te  é o leitor, próximo ou distante,  convidado a mergulhar no grande oceano das culturas, da literatura,  através desta carta de navegação, onde a autora o remete para várias outras leituras, dialogando com os mais diversos  autores clássicos e contemporâneos das áreas da literatura, da cultura da filosofia, num estilo límpido que concilia erudição e simplicidade  conjugando o rigor  académico com uma brandura poética,  revestindo cada artigo de uma metodologia clara e transparente.

A interpretação antes focalizada no autor, depois no texto e agora também o advento do leitor – ao ler os comentários interpretativos da autora, o leitor é despertado no sentido de ir ou voltar com uma apetência mais desejosa aos livros alvos de abordagem, a fim de ruminar as palavras e redescobrir as infinitas possibilidades interpretativas, livros que nunca acabam de dizer o que tem a dizer.

Os textos literários apresentados são vividos como lugares de encontro, lugar de cumplicidade entre autor e leitor e ao mesmo tempo chave indispensável para a interpretação do real.  Uma autora hospitaleira que nos convida à tomarmos também o nosso lugar na cozinha da cultura e da literatura, para fazer da leitura uma experiência devorante.

Transdisciplinaridade

Outra dimensão presente no livro é a da transdisciplinaridade, um outro modo de pensar e produzir conhecimento, que recusa a separação rígida entre dos saberes, que se esquiva dos especialismos cegos, que não participa da rígida cisão entre subjetividade e objectividade, que se abstém de tomar parte na separação entre inteligência e sensibilidade, o abismo entre as ciências e entre elas e a filosofia, a arte, a poesia e a experiência vivida no quotidiano, como diria Severino António.  Convido-vos a ler com amorosa atenção este Moçambiquero-te, a captura inteligente da escolha dos muitos textos de autores que ela semeia em cada capítulo, o modo como entrelaça no mesmo fio de conversa autores aparentemente distantes.

Criadora dessa ponte feliz entre saberes, acima aludida, Sara Laisse coloca no mesmo livro questões relacionadas com a Sociologia da Leitura, a Antropologia Cultural, a Literatura, a Teologia da Inculturação, entre outros.

Num texto há um olhar sobre algumas obras de Eduardo White, e a poesia lírica como um estímulo para o despertar de  uma consciência nacionalista e democrática, noutro amparada na Sociologia da Leitura e na História (artigo Literatura moçambicana: rastos e rostos da última década – 2010/2020) a autora arrola autores e obras de escritores moçambicanos, publicados em Moçambique e no estrangeiro, referenciando o género literário dos livros e de algumas das editoras que os publicaram,  críticos literários que abordaram alguns dos textos do período em análise, alguns dos quais  trouxeram inovações do ponto de vista de abordagem a subgéneros literários pouco escritos em Moçambique.

Em  “A Nossa história é a nossa bússola”: desafios para a interculturalidade de Afonso Vassoa aborda questões da interculturalidade e  num  relance a toda a  obra deste autor; em Espelhos e Mapas: a poesia em itinerância aborda o que denomina de  enigmas, dado o uso de  máscaras, imagens ou fantasia para passar a sua mensagem, a existência de muitos trânsitos, tanto temporais quanto histórico-geográficos e culturais com recurso  aos códigos culturais e históricos ligados ao nyau, num estudo antropológico em torno desta obra de Ana Mafalda Leite.

Movida pela necessidade de contribuir para o debate sobre o tema “vidas/narrativas em trânsito: movimentos migratórios nas literaturas contemporâneas de língua portuguesa”, analisa a obra literária Apocalipse dos Predadores (AP), do escritor moçambicano Adelino Timóteo, numa perspectiva que cruza a literatura e outros saberes de cariz etnográfico, com características básicas do Romance Histórico. Em Ver e sentir: voz(es) feminina(s) com saudades do futuro Sara Laisse   aborda a poesia de Noémia de Sousa e como a(s) voz(es) por ela criada(s) literariamente apreendem a época histórica colonial, vozes e mensagens que conforme argumenta, poderiam, no contexto socioeconómico actual em Moçambique, ser relidas e recontextualizadas, pois mantêm uma tremenda actualidade.

Em Lapidar a Palavra em Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio, de Japone Arijuane, exaltada a preocupação deste autor em fazer da palavra a sua matéria-prima, lapidando-a ou esculpindo-a a fim de obter poesia comprometida com a dimensão de um eu lírico solitário que se faz porta-voz de um nós solidário. Com Énia Lipanga reflecte sobre a abordagem da condição humana pela   poesia lírica, onde a escrita se revela trabalho de transformação de uma matéria para sobreviver, a autora apresenta reflexões sobre a produção literária africana e seu contributo para o desenvolvimento, fazendo   a apologia redentora do amor, advogando que: a cultura abre mundos, abre corações e liberta-os para o amor. É de amor que o mundo carece, de amor-próprio e amor para com o outro. É de capacidade de sermos cultos e cidadãos de plenos direitos de o ser que as sociedades precisam. É de renovação de modos de fazer que precisamos para a evolução da nossa espécie.

Com optimismo, a autora augura que a Literatura tanto na perspectiva universalizante, como localista, será chamada a reeducar o mundo; reescrevendo temáticas que estimulem uma maior solidariedade em prol da preservação da espécie humana; um maior intercâmbio na solução de problemas, visto serem os mesmos, ocorrendo algumas excepções derivadas de cada contexto político, económico, cultural e geográfico.

No artigo Da Inculturação ao Diálogo Intercultural e Ecuménico: vida e obra de Monsenhor Joaquim Mabuiangue, baseando-se na biografia deste eminente prelado, de autoria de Maria Carlos Ramos, pode ler-se esse apelo à interculturalidade e ao humanismo, assentes numa diversidade de depoimentos vários, daí ter o título: uma vida a várias vozes.

Em Ohana: fora de casa, com a casa às costas, a autora apresenta o percurso musical e a interpretação de algumas das obras do autor e compositor moçambicano Cândido Xerinda, interpretando três poemas ou letras escolhidas, nomeadamente: Xigubo, Ximeliyana e Ngoma Leyi perscrutando temas de índole socio-cultural, com fundamentos na cultura bantu. Cândido Xerinda demonstra que, afinal, a globalização pode caminhar, festivamente, em dois sentidos, ao levar a língua Cironga a Paris, com plenos direitos de cidadania cultural.

Resumidamente cada assunto deste diálogo escrito com o leitor constitui um desafio tão antigo quanto a própria humanidade, tão actual quanto os dilemas que enfrentamos aqui e agora.  A todos os navegantes deste oceano, em cujas ondas navegamos sob a regência de Sara Laisse, pelos trilhos deste Moçambiquero-te, convocamos como diria Carlos Rodrigues Brandão, a   uma boa leitura, uma boa aventura, uma boa viagem.

Maputo, Fevereiro de 2024.

 

 

 

O País está a 195 dias da realização das Eleições Presidenciais, Legislativas e das Assembleias Provinciais. Em todos os espaços públicos e privados, a conversa converge em torno do mesmo: quem serão os candidatos a Presidente da República dos três partidos, nomeadamente Frelimo, Renamo e MDM? Mais do que conhecer os rostos das figuras que se pretendem apresentar como candidatos à liderança dos destinos desta Nação, o cerne é saber qual o seu pensamento e projecto político para Moçambique. É lugar comum que este silêncio ensurdecedor dos principais partidos políticos não é normal numa democracia multipartidária com três décadas de existência.

Ora, em todas as esferas da nossa sociedade, nomeadamente política, económica, social e cultural, a preocupação maior é conhecer o candidato da Frelimo, o que radica do facto de a opinião pública assumir que este será o próximo Presidente da República, salvo alguma hecatombe política. Pelo poderio político da Frelimo, hoje manifestamente diminuído, em razão de uma diversidade de factores que não são, para já, objecto desta reflexão, não creio que tal suceda e argumento que o próximo inquilino da Ponta Vermelha será aquele que for apresentado como candidato da Frelimo.

O facto de a Frelimo não ter apresentado o seu candidato tem estado a suscitar o surgimento de inúmeras teorias de conspiração para o explicar. De todos os quadrantes sociais, ouvem-se narrativas diferentes sobre a matéria. Muitas destas teorias são infundadas, mas preenchem um vazio e dão respostas às questões que são colocadas pelos diferentes actores. Elas surgem porque os factos sociais precisam sempre de uma explicação. As pessoas procuram, com base nas ferramentas e nos dados disponíveis, avançar razões explicativas para a situação. É preciso ter presente que o homem é um ser racional e precisa de dar explicação a tudo o que lhe ocorre no quotidiano.

Seja qual for a tendência e a narrativa, o facto é que a sociedade anseia por conhecer as ideias políticas daqueles que têm a pretensão de se apresentar como pré-candidatos a candidato na Frelimo. Arrisco em afirmar que deixou de ser uma preocupação apenas da Frelimo.  A preocupação da sociedade moçambicana é legítima, uma vez que, do leque de pré-candidatos que se apresentarem, sairá aquele que, com muita probabilidade, vai dirigir Moçambique. A Frelimo não vai escolher um candidato que agrade apenas a si e aos seus milhões de membros. É expectável que a escolha responda aos desafios que o País enfrenta e traga as respostas que se lhes devem dar a curto, médio e longo prazo. Até porque a maioria do eleitorado não é militante da Frelimo.

O exposto acima significa que as suas vitórias eleitorais são garantidas por simpatizantes que têm toda a legitimidade de conhecer, com a devida antecedência, as ideias políticas, daquele(s) a quem vão depositar confiança para liderar os destinos de Moçambique no quinquénio 2025-2029 e, quiçá, no seguinte: 2030-2034. Isso deve merecer atenção particular da Frelimo. Na verdade, é aos moçambicanos que o partido governa e não somente aos seus militantes e/ou simpatizantes. Mais uma vez, daqui resulta a necessidade de responder às preocupações desta esmagadora maioria dos moçambicanos. É, sim, legítimo que conheçam os pré-candidatos a candidato da Frelimo.

É tendo presente que a escolha que vai ser feita, quiçá em Maio, como se propala, que nos dirigimos aos (des)conhecidos pré-candidatos a candidatos da Frelimo. Tratamo-los por desconhecidos porque não sabemos quem são e muitos menos conhecemos as suas ideias sobre a governação e sobre o rumo que o País deve trilhar. Concomitantemente, tratamo-los por conhecidos, porque quando apresentarem os nomes (ou o nome) não será nenhuma novidade, visto que já teremos alguma vez ouvido falar nessa figura como dirigente de algo.

Portanto, independentemente de serem ou não conhecidas, temos questões que merecem a reflexão destas figuras, dado não haver tempo razoável para a apresentação de projecto de governação, de modo a que o escrutínio seja feito interna e externamente, isto é, pelos militantes da Frelimo e pela sociedade, no geral. Além disso, há também, no País, diversos desafios que afectam o desenvolvimento e a qualidade de vida da população, tais como:

  1. A qualidade do ensino público nos diferentes subsistemas de ensino;
  2. A segurança nacional, particularmente no que toca aos raptos e à presença de grupos armados em alguns distritos de Cabo Delgado;
  3. A corrupção impregnada na função pública e até no sector privado;
  4. O modelo de descentralização;
  5. Desastres Naturais: Moçambique é vulnerável a ciclones, inundações e secas, com impacto directo na agricultura, recursos hídricos e na segurança alimentar;
  6. O impacto das mudanças climáticas;
  7. O peso da dívida externa;
  8. A desobstrução do espaço cívico em Moçambique;
  9. O modelo de desenvolvimento de Moçambique;
  10. O emprego e a habitação para a juventude;
  11. O lugar da agricultura e do turismo no desenvolvimento de Moçambique; e
  12. A estratégia de combate às assimetrias regionais, levando Moçambique a caminhar a diferentes velocidades.

 

A situação de Moçambique e os seus desafios mais estruturais – da produtividade e crescimento económico aos rendimentos e desigualdade, assimetrias regionais, da pobreza, das qualificações dos moçambicanos à sustentabilidade dos serviços públicos essenciais, entre muitos outros – exigem respostas políticas e reformas que a sociedade está expectante por ouvir daqueles que se pretendem apresentar como candidatos. Como não haverá tempo suficientemente razoável para os pré-candidatos apresentarem a sua visão de governação e serem interpelados pelos diferentes sectores da sociedade, ousamos colocar algumas questões que devem merecer o pronunciamento público de quem pretende governar este País, a saber:

  • Em primeiro lugar, preocupa-nos que a qualidade da democracia possa sair fortalecida. Que propostas políticas nos serão apresentadas para fortalecer a gestão democrática e transparente dos processos políticos? Como propõe melhorar o escrutínio público dos dirigentes?
  • Que propostas pretende levar a cabo para elevar a qualidade do ensino público nos subsistemas do ensino primário e secundário? E o ensino técnico profissional? Como elevar a qualidade de formação dos professores?
  • Que solução apresenta para a insegurança em Cabo Delgado? O Ruanda é um parceiro para manter ou a viragem para a SADC é inevitável? Como gerir a situação das populações que vivem deslocadas?
  • A terra é propriedade do Estado. Não será altura de nacionalizar as concessões mineiras e estruturar um modelo no qual o Estado é parceiro na gestão de todos os recursos naturais com maioria do sector privado?
  • Quais são os caminhos para tornar a agricultura na base para o desenvolvimento de Moçambique? 
  • Como tornar o turismo num dos pilares de desenvolvimento de Moçambique? Que projectos com as pérolas de turismo, que são Inhambane e Cabo Delgado?
  1. Que modelo de descentralização propõe para Moçambique? Como garantir que os presidentes dos municípios e governadores provinciais sejam eleitos seguindo o modelo de eleição do Presidente da República?
  2. Que reformas serão feitas no partido?

Quem ousa liderar e reformar o Estado não o pode fazer sem reformar a sua organização, uma vez que parte de intelligentsia que empreenderá tais reformas vem da sua organização. Ansiamos por conhecer os pré-candidatos e a sua visão de governação para Moçambique. Quem vai governar deve, obrigatoriamente, ser escrutinado pela sociedade. O escrutínio não é feito no boletim de voto. O processo de votação é o epílogo do escrutínio. Este  é, pois, um contributo cívico, construtivo e guiado pelo interesse nacional quanto sabemos ser o critério que exclusivamente enforma a decisão. 

Boa Páscoa a todos os cristãos!

A região Sul do país, com destaque para a nossa capital moçambicana, Maputo, está a ser fustigada por chuvas intensas, desde a madrugada de domingo, 24 de Março. Este facto está a condicionar negativamente a vida de centenas de famílias. De facto, a chuva não está para menos, com 100 milímetros por mais de 24 horas, como é o caso, poucas cidades no mundo conseguem garantir o escoamento com a flexibilidade desejável.

A situação torna-se mais calamitosa para as nossas cidades, onde os níveis de construções desordenadas correm a uma velocidade tal, muitas vezes com o olhar impávido de quem devia intervir para evitar cenários de fraco escoamento. As cidades moçambicanas, com destaque para a capital, observaram, ao longo dos tempos, construções em locais por onde passam os canais de escoamento das águas pluviais.

Como sabemos, as bacias de retenção têm sido, muitas vezes, utilizadas como armazenamento de água para diversos fins, com destaque para a agricultura e drenagem, reduzindo, assim, a retenção das águas das chuvas no interior dos bairros e garantindo a vida normal das famílias.

No entanto, como disse anteriormente, muitas construções de casas em várias cidades do país, nos últimos anos, foram feitas justamente por onde passam os canais de escoamento, obstruindo o caminho da água da chuva. Como consequência deste fenómeno, ouvimos gritos de socorro de muitos compatriotas nos últimos dois dias. As redes sociais, os órgãos de informação e diversas outras plataformas provam isso, veiculando imagens tristes, chocantes, avassaladoras de homens, mulheres e crianças com bagagens à cabeça, à procura de locais seguros para buscar abrigo.

É, certamente, uma situação extremamente complicada e que retira a dignidade da vida humana. Mas não há alternativa senão buscar por locais seguros para evitar a perda de vidas humanas.

Afinal, por onde andam as nossas autoridades da administração do Estado, que deixam ter lugar construções de casas em locais proibidos? Que políticas têm sido desenhadas ao nível do Ministério das Obras Públicas Habitação e Recursos Hídricos para evitar ou minimizar impactos severos nas famílias sempre que chove?

Estas e outras perguntas, obviamente, não encontram respostas plausíveis, mas o certo é que urge a necessidade de se repensarem políticas que visam assegurar a requalificação dos bairros, fazendo com que os canais de escoamento não sejam obstruídos pelas famílias e que se obedeça a construções de casas nos padrões recomendados pela administração do Estado, enquanto entidade que assegura tal facto.

O certo é que, sempre que chove, em qualquer cidade do país, cenários de casas inundadas e famílias em desespero ocorrem a cada momento, como apontam Vasco Catanda e Joaquim Notice, num artigo lançado em 2022, que retrata as construções desordenadas em Moçambique como acção que impacta negativamente o meio ambiente. Na mesma senda, Amorim e Cordeiro (2008) referem que a ocupação antrópica inadequada gera uma cadeia de impactos ambientais, tais como impermeabilização do solo, alterações na topografia, erosão do solo, perda das matas nativas, diminuição da biodiversidade e aumento do escoamento superficial.

Partindo deste pressuposto, nota-se que o homem é o principal responsável por aquilo que tem vindo a acontecer nas cidades moçambicanas. O ser humano provoca mudanças estruturantes no clima, com consequências nefastas a curto e longo prazos.

A chuva acima do normal, que tem caído, coloca à prova a nossa real situação, de fraca capacidade de escoamento das águas, daí a necessidade de repensarmos as nossas acções sobre o meio em que vivemos, que tipo de cidades queremos e, quiçá, uma elaboração de políticas públicas neste sentido, para que se reverta o cenário.

Ademais, face ao actual fenómeno, precisamos de avançar para o monitoramento da construção de novas habitações nos centros urbanos e não só, para que não se observe o processo de degradação, não só ambiental, mas do sistema de escoamento e das bacias de retenção de água. Isso poderá permitir um grande vazamento, do contrário iremos assistir a uma situação cada vez mais complicada para as famílias sempre que chover.

Silêncio total. Nenhum partido dá um passo à frente. A sociedade ansiosa colapsa de tensão, enquanto os partidos brincam aos joguinhos infantis. Tratam-nos como metidos e curiosos, quando estamos no pleno exercício da responsabilidade cívica. Queremos conhecer as propostas dos partidos para que, com antecedência, façamos a pré-avaliação de merecimento da nossa confiança. E, neste capítulo, chamem-nos o que quiserem, a pressão sobre vós continuará intensa, enquanto entendermos que disso depende o nosso futuro, enquanto as nossas escolhas forem o nível mais importante de decisão. Às cegas, não queremos continuar rumo às eleições.

A Frelimo, a Renamo e o MDM são, nesta matéria, indistinguíveis. Estão no mesmo saco e com a mesma aparência inconsequente, destacando-se a Frelimo, para quem recai o ónus da disciplina: prega organização e prática o oposto. Exalta um sentimento de importância e adia a indicação do candidato, como se de uma eleição relâmpago se tratasse. Quatro anos passaram e não foram suficientes para que o partido fizesse juz à sua tese “a vitória prepara-se, a vitória organiza-se”.

Tudo isto nos faz esculpir o sentido que a democracia tem para o partido e, sem surpresas, perceber que é falseada, maquilhada, mas sem disfarce convincente. Ora vejamos: se os candidatos são eleitos, em princípio, deveria haver manifestação de interesse, aprovação das candidaturas, pré-campanha e eleição. Mas o que agora acontece é repressão de candidaturas voluntárias e indicação de candidatos com base em critérios inacessíveis à maioria dos militantes com importância favorável para a decisão. No fim, reina a disciplina do silêncio e ovação do escolhido, o impingido. E assim vamos nós, registando e aplaudindo a democracia do faz de contas.

É inaceitável que, num momento político crucial em que se desenha o futuro de um país, o cenário político ainda esteja suspenso. Adensa-se o ar e esta falta de transparência e inacção dos partidos políticos propiciam uma já palpável tensão social, com especulações de um terceiro mandato forçado à mistura.

Este silêncio prolongado não apenas mina a confiança do eleitorado, como alimenta especulações e incertezas que afectam o ambiente económico. Ouvir vozes de proa do partido a dizerem que o tema “candidato da Frelimo às presidenciais” não está na agenda da sessão do Comité Central marcado para Abril próximo agita ainda mais as águas. Este adiamento deliberado que denuncia falta de prioridade ou ausência de consenso interno faz subir o clima de incerteza que paira sobre a Nação e ignora que o impacto transpassa as fronteiras políticas: desencoraja investimentos e atrasa projectos de desenvolvimento, prejudicando o crescimento económico do país. Um ambiente político estável é salutar para a tomada de decisões informadas e planificação do futuro com confiança, mas ninguém se rala com isso.

Entretanto, enquanto prevalecer o silêncio, o descontentamento emerge e ninguém se garante contra a inimizade do povo. O tempo que se perde fragiliza o candidato que já deveria estar a criar empatia para elevar as suas possibilidades de vitória. Será sobre a lama que estes vão correr em nossa direcção em busca do voto. Nossa importância, hoje diminuta, vai em breve exponenciar por 45 dias, mas rapidamente desvanecer quando às urnas voltarmos as costas.

Preocupa-me esta racionalidade ingénua dos partidos ou prudência imprudente, ao ignorarem o poder de reacção do povo, só porque este se reveste de receios e se esconde no silêncio. Porém, esta dose elevada de silêncio já vai de remédio para veneno, e a insistência na aplicação pode ser fatal.

O país não goza de uma boa saúde política e não temos exclusividade no problema. Na região, também há turbulências, com a África do Sul em destaque, porque se aproximam eleições intranquilas para o partido no poder. Todavia, deste panorama, nada aprendemos e esforçamo-nos em escrever uma história que produz resultados previsíveis. Quando há sintomas de mal-estar, o melhor é trabalhar mais no diagnóstico para ser fácil chegar à cura, porque, de contrário, quando for evidente o mal-estar, a cura fica mais difícil. Este jogo de antecipação não devia ser preterido pelos partidos, que se despedaçam a olhos vistos.

É hora de fortalecer os alicerces da democracia. É urgente e necessário desencalhar o país. De responsabilidade e transparência se precisa. Afinal, quem é o senhor que se segue?

Uma conhecida telefonou-me numa manhã qualquer, relatando que tinha sido agredida fisicamente pelo marido. Esta notícia chocou-me profundamente, pois tratava-se de uma jovem de 21 anos que se casara recentemente. O relato dos desafios que ela enfrenta no casamento fez-me refletir sobre a forma como a sociedade trata as mulheres, desde o nascimento até à morte, com desconsideração.

Como referi anteriormente no meu texto “Desafiando estereótipos de género: em busca de uma sociedade inclusiva”, as famílias moçambicanas, tendem a incentivar as raparigas a procurar o sucesso apenas no âmbito conjugal, sem apresentar outras possibilidades que elas possam ter de igualmente serem relevantes em outras esferas.

A título de exemplo, conheço uma jovem em Maputo que se casou logo depois de concluir o ensino secundário e já trabalhava na época. No entanto, após o casamento, o marido exigiu que ela parasse de trabalhar para cuidar da casa, especialmente por estar grávida. Com medo de desagradar ao marido, ela deixou o emprego para se dedicar exclusivamente às tarefas domésticas e à criação dos filhos.

Com o tempo, ela percebeu que estava a abdicar da sua educação e conversou com o marido, que a questionou:
– Por que é que queres estudar, estudar para quê se eu não quero uma mulher que trabalha!

Essa situação reflete não apenas a mentalidade desse homem, mas também como a sociedade moçambicana e africana, em geral, incutiu a ideia de que as mulheres não precisam estudar nem trabalhar, pois o seu papel é cuidar da casa e da família.

Deveria ser natural que as raparigas procurassem educação e crescimento profissional, no entanto, muitas acabam por se casar cedo (antes dos 21 anos, por exemplo) por acreditar que o casamento é a realização máxima das suas vidas. A sociedade ensina-as a competir entre si, não pela excelência académica e pelo conhecimento, mas por quem se casa mais cedo, quem mantém o lar por mais tempo e ainda quem tem o corpo mais aceitável que a outra… Este enfoque precoce no casamento leva as raparigas a desperdiçar a juventude e oportunidades, resultando em gravidezes precoces e diminuição das chances de sucesso na vida, incluído a possibilidade de desenvolvimento de uma carreira profissional promissora.

Um outro exemplo, diz respeito a uma mulher que foi proibida pelo marido de frequentar a escola, e ela concordou, pois não queria desagradá-lo. Contudo, anos mais tarde, o mesmo marido começou a evidenciar o desrespeito por ela, alegadamente porque o envergonhava por ser analfabeta e ele não a podia apresentar aos amigos e colegas por tal facto, sendo-lhe ordenado que se mantivesse escondida em casa.

Situações similares as acima expostas, entristecem-me! pois mulheres submetidas as diferentes formas de abusos acabam tendo o seu futuro comprometido. Elas tornam-se não só incapazes de desenvolver habilidades técnicas e profissionais que as permitiriam competir em igualdade com os homens no mercado de trabalho, como também podem potenciar os meios de perpetuação da dominação masculina na sociedade.

Por que é que as mulheres têm de suportar esse fardo?

Ainda sobre a violência doméstica, lembro-me de uma situação que presenciei num salão de beleza, onde a proprietária, enquanto me atendia, foi brutalmente agredida fisica e verbalmente pelo marido, que claramente estava ébrio. Mesmo perante a violência, ela manteve a calma e pediu que conversassem em casa, visto que estava a trabalhar. Sem hesitar, procurei ajuda, visto que sozinha não seria capaz de conter a força brutal daquele homem. A violência do episódio permanece indelevelmente gravada na minha memória, pois nunca tinha presenciado uma situação de violência doméstica tão de perto.

Estes acontecimentos levam-me a refletir sobre como as mulheres lidam com situações de abusos em silêncio, muitas vezes ignorando os sinais para preservar os seus lares. Ninguém merece passar por isso! E não podemos permitir que tais comportamentos se perpetuem impunemente. É responsabilidade da sociedade encorajar as mulheres a denunciar os agressores sem medo de retaliação, em vez de associar a denúncia à separação ou a quaisquer outros tipos de julgamentos sociais que levam as mulheres a temer mais a solidão do que a morte nas garras da violência doméstica. É imprescindível que as mulheres valorizem-se, empoderem-se e busquem ajuda, rompendo com os padrões sociais que as oprimem. Sem isso, a luta pela valorização e reconhecimento do papel da mulher na sociedade poderá desembocar em fracasso.

Concluo com um grito de alerta urgente para um despertar coletivo: é imperativo rompermos com padrões ultrapassados e nocivos que subjulgam e oprimem as mulheres! Chegou o momento de uma revolução silenciosa, mas poderosa, onde o amor-próprio, a autovalorização e a autonomia das mulheres ergam-se como pilares inabaláveis.

Dirijo-me, com fervor, às jovens e mulheres: que a chama da educação seja a luz que guia os vossos passos, que a busca pela independência financeira e emocional seja o alicerce das vossas escolhas e que relacionamentos saudáveis, baseados no respeito mútuo, floresçam como jardins de igualdade e dignidade.

Transformemos a lamentação em ação, a revolta em determinação e o silêncio em voz. Juntas, erguemos uma nova narrativa, onde os casamentos são belos não pela simples união de corpos, mas pela fusão de mentes, corações e almas que se fortalecem mutuamente.

Que este apelo ecoe não apenas nas palavras, mas nas ações diárias, moldando um futuro onde as mulheres não apenas sobrevivam, mas floresçam em plenitude, como seres dignos de respeito e amor incondicional.

A mudança começa em cada uma de nós e propaga-se como ondas de liberdade e justiça num mar de transformação.

“¿Por qué no te callas?”

Tenho estado a acompanhar o desenrolar da fita dos eventos que marcam a actualidade sociopolítica do país. Nela, sobressai nitidamente o papel da imprensa nacional,

O amantismo à pátria*

Patriotismo, patriota, seja lá como for, ambos são termos tratados de uma forma muito estranha no seio da sociedade em que vivemos. Na escola ensinam

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