“Viver é essa revolta.
Fazer o que pode ser feito dentro dos limites,
viver mesmo que pareça não haver razão para viver.”
(Carlos Eduardo Bernardo)
Mingas, autora de “Nzumba”, “A lirandzu”, “Elisa Gomara Saia”, “Mamana” (música em pauta neste ensaio), entre outras faixas musicais é considerada a Diva da Marrabenta, não só pela angelical voz com que poetisa o modus vivendi de Moçambique, mas, também, pela qualidade da sua caneta, de tal forma que quem a escuta se vê como que diante de um espelho.
Assim, no presente ensaio, dedicar-nos-emos, após um ping-pong tremendo para a escolha da faixa musical, à análise de “Mamana”, um título que, essencialmente, representa uma jovem mulher que se dirige à mãe, reivindicando a hipoteca do seu amor (ou relacionamento?) e se vê impedida de seguir os caminhos do seu coração.
Note-se, por exemplo, pela forma com que a faixa musical se inicia, quando assevera: “Nhambe nhovona wakundrinyoxisa,/ timbilo tobanana loku nidrimuka weni, mamana (…)” (Mingas, s/d), o sujeito poético (jovem mulher) deixa claro: [‘Mesmo que eu veja alguém (homem) que me agrade,/ o coração palpita assim que me recordo de si, mãe (…)’].
A princípio, este trecho, pode ser interpretado em dois vieses: por um lado, que o sujeito poético se sente impedido pela mãe de namorar e, por outro, que não está na idade de namorar. Mas, afinal, o que estará, deveras, por detrás deste palpitar do coração do sujeito poético?
Na sequência, este continua: “Lava hinkwavo valangiwike hi mbilu yanga,/ akwaku ava lunganga, mamana (…)”, (Mingas, s/d), i.e., [‘Todos os que foram escolhidos pelo meu coração,/ para si, não são perfeitos/ideais, mãe (…)’].
Estamos, afinal, perante prova de que o impedimento do namoro não é a idade do sujeito poético, mas, sim, a interferência da mãe com relação à pessoa com quem a filha se deve relacionar. Pelo que, desta ilação, surge a seguinte indagação: deverão, as mães, escolher para as filhas a pessoa com quem se devam relacionar?
Decerto que a mãe, mais do que ninguém, é quem sente a dor de dar à luz um bebé, é quem carrega consigo o bebé no ventre desde o primeiro mês até que dê à luz o bebé, veja crescer, etc., de tal sorte que nunca a vai querer ver em péssimas mãos. Mas, a pergunta que não se cala é: deverão, as mães, escolher para as filhas a pessoa com quem se devam relacionar?
Estamos, portanto, perante o absurdo de Camus. Em Camus, o absurdo, de acordo com Prado (2023), corresponde à relação que o ser humano estabelece com o mundo. Para o autor franco-argelino, as pessoas são encaradas como entes de consciência, que olham para a realidade e exigem a sua ordenação. Contudo, no confronto com o humano, o mundo recusa essa racionalização. Por essa razão, Noa (1998) cognomina-o (o absurdo de Camus) por revolta.
Ora, na continuidade, o sujeito poético chora, quando entoa: “Oh… hiyo… yo-yo-yo-yo-yo…” (Mingas, s/d). Este choro é, para nós, mais uma prova de que o sujeito poético vê os seus sonhos e vontades hipotecados; e a liberdade? Aprisionada!
Para vincar esta nossa asserção, o sujeito poético entoa seguidamente: “(…) niza nitrama la(ni) nisuka la(ni) niyatrama le… nhaninavela kurhulisa moya wanga, mamana (…)” (Mingas, s/d), traduzindo, [‘(…) sento-me aqui, saio para ali e sento-me acolá… procurando aquietar o meu estado de espírito, mãe (…)’].
O sujeito poético traduz, nesta estrofe, mais uma prova do retro exposto. Não sossega diante do perpetrado pela sua ascendente, pelo que vagueia de um lado para o outro, feito louca. Isto reforça o retro aludido absurdo, que Noa (1998) prefere cognominá-lo revolta (do Homem) (parênteses nossos).
Conforme Bernardo (s/d), apud Prado (2023), por mais que seja possível traduzir os fenómenos a partir de fórmulas, da lógica e através da Matemática, de modo geral, a natureza recusa ao humano a ordenação que a racionalidade exige.
Ademais, para Prado (2023), as suas expectativas, projectos e tentativas de entendimento estão sempre se chocando com um mundo que resiste à compreensão, desvia projectos e frustra expectativas. É, portanto, esse embate entre a consciência humana e a recusa do mundo que Camus vai chamar de absurdo.
“O absurdo não está nem na natureza nem no ser humano, mas nesse confronto. O absurdo é o sentimento dessa condição entre consciência e natureza.” (Bernardo, s/d) (destaque nosso) Dito de outro modo, o absurdo é a constatação de que a natureza não se submete aos nossos planos e que não é possível mudar a realidade conforme todos os nossos desejos.
Na sequência, mesmo que sem resposta desta, o sujeito poético dirige-se à mãe nos seguintes moldes: “Kasi ujula niku yini, mamana? (…)/ svakuyenca hikuni sasatela svange nhova mbyana/ swakuyenca hikuni posita, swange nhova papela/ swakuyenca hikuni xavisa svange nhova mpahla, mamana (?!)” (Mingas, s/d), traduzindo, [‘Que quer que eu faça, mãe? (…)/ enxotar-me como que um cão/ enviar-me como que uma carta/ vender-me como que roupa, mãe (?!)’]
Pode-se dizer, a partir da estrofe retro traduzida, que o sujeito poético, metaforicamente, não só se representa a si, mas, igualmente, a uma série de mulheres que, na altura em que esta música foi lançada e, inclusive, nos dias de hoje, quiçá, são enviadas de uma província para a outra, ao encontro de seus futuros maridos, sem que os tenham previamente visto e/ou conhecido e contra sua vontade.
Então, o cão, a carta e a roupa são metáfora da forma com que esta(s) mulher(es) é/são tratada(s) pela(s) sua(s) mãe(s), com relação à sua constituição de relacionamento. Isto vinca a nossa convicção sobre a representação do absurdo em “Mamana”, de Mingas, pois que, conforme atesta Noa (1998), para o absurdo, não há saída possível, trata-se da impossibilidade de explicação da vida e a proclamação da impotência dos actos humanos.
Na sequência, o sujeito poético chama a sua progenitora à razão, quando diz: “Nili vona hiwene/ nili vona hiwene/ nili vona hiwene, mamana (…)” (Mingas, s/d), traduzindo, [‘Veja por si/ tome-se como exemplo/ veja por si, mãe (…)’], i.e., será que mãe passou por isso que me faz passar? E se passou, será que vale a pena que eu passe por isso também?
Ora, conforme assevera Bernardo (s/d), apud Prado (2023), “Viver é essa revolta. Fazer o que pode ser feito dentro dos limites, viver mesmo que pareça não haver razão para viver (…) na medida em que [sic] a pessoa toma consciência do absurdo e se revolta, ela pode ter a felicidade possível. Vivamos, apesar do absurdo.”
À guisa de conclusão
Portanto, “Mamana”, de Mingas, representa uma jovem mulher que vê a sua felicidade hipotecada pela mãe, impedindo-a, assim, de seguir os caminhos do seu coração, porque a mãe já tinha, possivelmente, reservado um marido para si. Talvez seguindo uma prática social por que outrora passou ou não.
BIBLIOGRAFIA
ACTIVA:
- (s/d). “Mamana”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rvx-3ljoG7c
PASSIVA:
- NOA, F.(1998). A Escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária – UEM.
- PRADO, L. “Em Camus, revolta é resposta para absurdo da condição humana”.SP: Jornal da USP – Universidade de São Paulo. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/em-camus-revolta-e-resposta-para-absurdo-da-condicao-humana/#:~:text=%E2%80%9CO%20absurdo%20%C3%A9%20o%20sentimento,conforme%20todos%20os%20nossos%20desejos.