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Moçambique e o labirinto das leis: entre reforma e repressão

Nos últimos vinte e cinco anos, Moçambique tem vivido uma verdadeira maratona de reformas constitucionais e legislativas. O país, que saiu de uma guerra civil devastadora em 1992 e se afirmou como democracia multipartidária a partir da Constituição de 1990, parecia determinado a alinhar-se com os padrões internacionais de direitos humanos e Estado de direito. Códigos coloniais centenários foram finalmente substituídos, novas leis sobre violência baseada no género e justiça juvenil foram aprovadas, e princípios de descentralização e pluralismo jurídico foram inscritos na Constituição. No papel, é um avanço notável.

Mas a realidade da sua implementação conta outra história. O relatório mais recente da REFORMAR – Research for Mozambique sobre o impacto das leis criminais, de segurança e excepcionais em Moçambique (2000–2024) revela uma contradição profunda: apesar das reformas, o sistema continua a reproduzir desigualdades, a reforçar privilégios e a servir como instrumento de repressão política. Em vez de um Estado de direito democrático, o que se observa é um quadro de “legalismo seletivo”, onde os pobres, os jovens e os críticos do regime enfrentam a lei com dureza, enquanto os poderosos permanecem blindados pela impunidade.

A reforma do Código Penal em 2014 foi celebrada como uma rutura com o passado colonial. Medidas como a descriminalização da mendicidade, a legalização parcial do aborto e a criação de penas alternativas, como o trabalho socialmente útil apontavam para uma justiça mais humana e proporcional. Porém, na prática, essas inovações beneficiam poucos.

O trabalho socialmente útil, por exemplo, raramente é aplicado de forma equitativa. Jovens pobres continuam a ser enviados para a prisão por delitos menores, enquanto réus com recursos financeiros ou conexões políticas conseguem escapar à detenção preventiva ou até negociar condições privilegiadas de encarceramento. O próprio Código de Execução da Penas legaliza um sistema dual, permitindo que presos com dinheiro paguem por condições melhores, institucionalizando assim uma desigualdade que contraria o princípio constitucional da igualdade perante a lei.

A descriminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo também foi apontada como sinal de modernidade. Contudo, organizações como a LAMBDA continuam sem reconhecimento legal, e a discriminação contra minorias sexuais persiste no acesso ao emprego, à proteção policial e ao respeito institucional. A lei mudou, mas a prática estatal continua a ignorar direitos básicos.

Se há um sector onde a distância entre teoria e prática é gritante, é o das forças de segurança. A Polícia da República de Moçambique, criada em 1992 e reformada em 2013 e 2019, deveria representar uma polícia republicana, voltada para a cidadania. Mas permanece impregnada de uma cultura militarizada e autoritária. O recurso excessivo à força, a corrupção endêmica e a instrumentalização política são recorrentes.

Os números da repressão após as eleições municipais de 2023 e gerais de 2024 são chocantes: mais de 300 manifestantes mortos por forças de segurança, segundo organizações de direitos humanos. Este episódio marca não apenas uma tragédia humana, mas também o uso explícito da lei — e da força policial — como ferramentas de intimidação política.

Nos tribunais, a situação não é muito diferente. A morosidade processual, a falta de magistrados e a desigualdade no acesso à justiça criam um sistema onde ser pobre é praticamente sinônimo de prisão preventiva. Embora a Constituição assegure o direito à defesa e à caução, a realidade é que a liberdade provisória é aplicada de forma restritiva e discriminatória. A justiça em Moçambique não é cega: ela enxerga claramente quem tem recursos e quem não tem.

Outro ponto revelador do relatório é o uso recorrente de leis de emergência, contra terrorismo e normas eleitorais como pretexto para restringir direitos fundamentais. Durante a pandemia da COVID-19, milhares de vendedores informais foram detidos por “desobediência” às regras de confinamento, mesmo quando estas eram impossíveis de cumprir para quem depende do trabalho diário para sobreviver. A repressão recaiu sobretudo sobre mulheres e jovens das periferias urbanas, transformando a precariedade em crime.

Da mesma forma, a legislação contra o terrorismo, aprovada em 2023 e alterada em 2024, é tão vaga que permite enquadrar pequenos comerciantes, mulheres coagidas por redes criminosas ou até crianças em situações de vulnerabilidade como cúmplices de “actos terroristas”. O resultado é a criminalização da pobreza e da marginalidade, em vez de uma resposta eficaz às ameaças reais de Cabo Delgado.

Nas eleições, repete-se o padrão da “excecionalidade permanente”. O período eleitoral torna-se um espaço de suspensão tácita de direitos: jornalistas intimidados, observadores impedidos, ativistas presos e protestos reprimidos. A violência de 2024 mostrou que, em Moçambique, a democracia convive com práticas de exceção que corroem a confiança pública e minam a legitimidade das instituições.

O paradoxo moçambicano é claro: um quadro jurídico progressista, mas aplicado de forma desigual e seletiva. Há um esforço notável de “descolonização legal” no plano normativo, mas este esforço é neutralizado por práticas herdadas do autoritarismo e por um Estado capturado por interesses partidários.

As instituições de fiscalização, como a Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), carecem de independência, recursos e vontade política. As visitas às prisões e as recomendações raramente se traduzem em mudanças concretas. O Provedor de Justiça, embora relevante, permanece limitado pela falta de poderes vinculativos. O resultado é um vazio de responsabilização que perpetua abusos.

Enquanto isso, a sociedade civil, embora vibrante e resiliente, opera sob crescente hostilidade política e restrições administrativas. É ela quem denuncia a superlotação prisional, os abusos policiais e a marginalização de mulheres, jovens e minorias. Mas sem espaço institucional para garantir mudanças, o seu impacto é limitado.

Moçambique vive hoje um dilema: entre o discurso do Estado de direito e a prática do Estado de excepção. As reformas jurídicas, por si só, não bastam se não houver independência judicial, policiamento democrático e fiscalização eficaz. Um país que descriminaliza a pobreza na lei, mas prende vendedores informais nas ruas; que proclama igualdade de género, mas ignora a vulnerabilidade das mulheres em prisões superlotadas; que se compromete com tratados internacionais, mas reprime manifestantes pacíficos — é um país preso no seu próprio labirinto legal.

O futuro dependerá da capacidade de romper com este padrão de legalismo seletivo. Isso exige coragem política para reformar a polícia, independência real para os tribunais, fiscalização efectiva das prisões e respeito pelos direitos fundamentais em tempos normais e excepcionais. Sem isso, Moçambique continuará a viver uma justiça para os poderosos e outra para os pobres — e a democracia permanecerá frágil, refém de uma legalidade que existe apenas no papel.

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