Mélio Tinga é o grande vencedor do Prémio Literário Imprensa Nacional/ Eugénio Lisboa. Com a distinção, o escritor encaixa 5 mil euros, cerca de 430 mil meticais.
Sentado numa cadeira branca, com a perna cruzada, na biblioteca da Fundação Fernando Leite Couto, na cidade de Maputo, Mélio Tinga conteve a emoção, mas não a satisfação. Naturalmente, o escritor ficou feliz com o prémio e sente que alguma coisa agradável, de facto, aconteceu-lhe num ano muito conturbado. Para o autor de O voo dos fantasmas e d’a engenharia da morte, 2020 está a terminar de feição, afinal, o Prémio Literário Imprensa Nacional/ Eugénio Lisboa por si conquistado é sempre um reconhecimento de um trabalho.
Nas suas primeiras palavras, depois de consumada a distinção literária da sua obra, Mélio Tinga referiu que um prémio como Eugénio Lisboa funciona como oxigénio, que o ajuda a respirar. A propósito de respirar, o escritor quase ficou sem ar, quando recebeu a boa nova do Camões. Uma chamada: tri, tri, tri; tri, tri, tri. Mélio Tinga levou a mão ao bolso e, como é óbvio, lá viu no ecrã do telemóvel um número que não deve ser escrito aqui. “Alô”. E lá foi a conversa… o escritor ficou a saber que era o quarto autor a vencer o Prémio Literário Imprensa Nacional/ Eugénio Lisboa, depois Sérgio Raimundo, Aurélio Furdela e Pedro Pereira Lopes. Logo a seguir, o ficcionista parou. A boa nova do Camões foi impactante. De repente, nem para onde ia soube. Os ponteiros do relógio marcavam 14h48. Localização? Perto do Hospital Central de Maputo. A caminhar. Ao lado do autor, as velhas árvores com cheiro à urina. “Fiquei parado. Acho que não estou treinado para saber reagir assim de imediato a um prémio que, além do valor monetário, tem um valor muito significativo para mim, como autor. Acho que os prémios ajudam-nos a medir para onde é que nós vamos. Funcionam como faróis. Ajudam-nos a medir e a dar-nos um retorno sobre a nossa caminhada. Tenho a sorte de perceber que o caminho é esse… O importante, agora, é dar continuidade…”
Nesta edição do Prémio Literário Imprensa Nacional/ Eugénio Lisboa, Mélio Tinga distinguiu-se com o romance Marizza, na história, nome de uma jovem poeta que tem uma relação com um escritor. A história toda acontece nos tempos actuais, em que o telemóvel, o computador, a internet e a cidade estão presentes. Na narrativa, também está presente a vida desse escritor, a sua participação em colóquios e a sua actividade como presidente do júri de um concurso literário. Estes são cenários recriados, em que Tinga tentou ir à busca do quotidiano de um escritor, retratando as suas dificuldades, os seus relacionamentos e os desafios que a vida impõe.
Mélio Tinga começou a escrever o seu romance em Março, na altura de Estado de Emergência em Moçambique. Nesse mesmo período, o escritor lançou-se ao desafio de escrever dois livros: um romance e uma novela. Marriza precisou de seis semanas para ficar pronto. Claro, depois seguiu-se o trabalho de revisão e coisas dos género.
Mélio Tinga já publicou dois livros de contos e promete continuar a escrevê-los. E esclarece. “Eu sempre escrevi textos longos, que não serviam para nada. Acho que o conto é importante para os autores que pretendem fazer textos mais longos, como espécie de uma escola para treinar a técnica narrativa. Por isso, para mim, o conto continuará a ser importante. O facto de ter vencido este prémio, com um romance, não significa que vou abandonar o conto, que, para mim, é mais exigente em termos técnicos, de gestão do tempo, do espaço limitado e das personagens reduzidas. Isso exige que o autor tenha essa capacidade de gestão. Quando conseguimos manipular todos esses elementos no conto, de alguma forma, torna-se mais fácil a transição para o romance. Depois disso, o que se exige na escrita do romance é fôlego, e não inspiração que termina em um parágrafo”.
A terminar a conversa com o jornalista, ainda com a perna cruzada, e com o semblante sisudo, Mélio Tinga sublinhou que o reconhecimento público do seu exercício literário pode permitir que as pessoas conheçam o seu trabalho. “Esse é o grande ganho dos prémios. Abrem portas e janelas para que as pessoas, por curiosidade ou interesse, procurem os nossos trabalhos”
A voz do júri
Nesta edição, o júri do Prémio Literário Imprensa Nacional/ Eugénio Lisboa foi constituído por Mbate Pedro (presidente), Sara Jona Laisse e Paula Mendes. O trio decidiu por Marizza, de Mélio Tinga, não por ela ter olhos bonitos ou ancas sedutoras. O que é que é isso, caro leitor? O júri, de acordo com informação oficial, reconheceu Tinga por causa da “criatividade com que o autor aborda um assunto do quotidiano e à qualidade e inovação estética da obra, numa narrativa coesa e coerente, na qual a forma se sobrepõe ao conteúdo. Destaca-se nesta obra, a qualidade literária de uma escrita permeada por notáveis registos poéticos. Marizza ajuda-nos a reflectir sobre o lugar da literatura e da cultura nos tempos modernos”.
Num universo de 42 trabalhos submetidos ao concurso literário, houve menção honrosa para o texto Eva, de Léo Cote.
Um excerto do romance laureado de Mélio Tinga
“Senti emergir do fundo das vísceras algo doloroso e túrgido. Uma sensação de focas a chapinhar no centro do lago. Estava pálido, como neve. Tremia com exageros. Ouvir aquela voz aguda, partia-me os ossos de modo indolente. Tinha a mão suada, o celular ao ouvido parecia em brasa, como se fosse causar uma inesperada explosão. A partir desse dia passei a crer na força do azar e a desconfiar do canto dos pardais”.