Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite
Resumo: Este artigo sustenta que, passadas três décadas de eleições regulares, o principal nó do sistema moçambicano não reside no acto de votar em si, mas na credibilidade dos processos que produzem o resultado. A confiança pública degrada-se quando o recenseamento cria incentivos para excesso de registos, quando a contagem não deixa rasto documental visível por mesa, quando o apuramento passa por etapas opacas e quando o calendário de anúncio se arrasta a ponto de transformar um procedimento administrativo em disputa de rua. O efeito cumulativo é previsível: percepção de violação, tensão social e erosão da legitimidade das próprias instituições que devem garantir a concorrência política.
Contextualização: Em democracia, eleições fazem duas coisas de natureza distinta: escolhem governantes e produzem prova de que essa escolha ocorreu. Portanto, a primeira dimensão é substantiva (preferências) e a segunda é processual (confiança). Sistemas estáveis tratam o resultado como um produto verificável, não como uma proclamação. Por isso, o valor das eleições depende de três pilares: regras claras, comportamentos previsíveis e evidência auditável. Quando uma destas falhas, o sistema converte-se numa máquina de suspeitas. É ilustrativo comparar: na Alemanha, cada mesa divulga os resultados preliminares no próprio dia, e a totalização nacional é apresentada horas depois, sem espaço para rumores. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral divulga resultados oficiais poucas horas após o encerramento das urnas electrónicas, e, em 2022, mais de 99% das secções estavam apuradas em menos de 24 horas, criando um consenso imediato que neutralizou narrativas de fraude.
Países com trajectórias turbulentas saíram do ciclo de contestação quando trataram o processo como engenharia institucional. O Quénia, por exemplo, após a crise pós-eleitoral de 2007, introduziu mecanismos de publicação de resultados por mesa com actas digitalizadas em portais públicos, reduzindo o espaço de manipulação ao nível provincial. Gana, depois de disputas renhidas em 2012, reforçou o regime de “pink sheets” acessíveis a partidos e cidadãos, tornando possível a conferência independente de cada mesa. Em ambos os casos, a mudança não foi cosmética: reduziram incentivos a manipular a base de eleitores, publicaram documentos primários por mesa, criaram centros de apuramento com painéis públicos e logs de auditoria, encurtaram prazos de contencioso e profissionalizaram os oficiais eleitorais. A regra de ouro é simples: quanto mais o processo for transparente, menor a utilidade da narrativa de teorias de conspiração.
E Moçambique?
Desde 1994, quando se realizaram as primeiras eleições multipartidárias em Moçambique, o voto foi apresentado como a prova mais visível da transição para a paz e a democracia. Esperava-se que as eleições servissem como mecanismo de canalização pacífica da disputa política, substituindo o recurso às armas pelo confronto no boletim de voto. Porém, o percurso histórico revela uma realidade distinta: em praticamente todos os ciclos eleitorais, surgiram acusações de fraude, manipulação dos resultados e parcialidade das instituições de governação eleitorais. Em vez de pacificar, as eleições tornaram-se em ignição de conflitos em todos os períodos de votação.
Ao longo do percurso eleitoralista, numa tentativa de calibrar o sistema, a composição da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) foi revista diversas vezes, sempre com a promessa de maior equilíbrio e independência. Contudo, a percepção pública manteve-se: órgãos capturados pela lógica partidária. Por outro lado, alteraram-se os prazos de litígio, criaram-se novas modalidades de recenseamento, ajustaram-se regras de apuramento, mas cada ciclo trouxe novos episódios de contestação. A lição que se impõe é clara: reformas formais não resolveram o défice de confiança estrutural de um sistema.
Neste contexto, a explicação não pode estar apenas na técnica ou na legislação, mas também na economia política do comportamento. As nossas regras, plasmadas na lei eleitoral vigente, não são neutras; elas próprias induzem estratégias oportunistas. Se o número de mandatos depende dos eleitores recenseados, como é o caso de Moçambique, e não do recenseamento da população ou outros mecanismos viáveis para o efeito, os partidos têm incentivos claros para inflacionar registos nas zonas onde controlam a máquina administrativa. Se a acta da mesa não é publicada de forma sistemática e acessível, a tentação natural é manipular os resultados em fases mais opacas, onde a fiscalização é mínima. E se a proclamação final demora semanas ou meses, cria-se um vazio político que é imediatamente ocupado pelo barulho na rua: quanto maior a mobilização e o barulho durante esse período, maior o peso de um actor na negociação política.
Assim, as eleições em Moçambique ilustram um problema que vai além das leis: é o comportamento racional dos actores diante de regras mal calibradas. A baixa qualidade do controlo amplia o espaço para oportunismo; a ausência de prova documental acessível torna tudo contestável; e a morosidade processual transforma o tempo em campo de batalha. Dito sem enrolação: a falta de credibilidade processual funciona como combustível da conflitualidade. Quando os cidadãos entendem que “a prova não está à vista”, a predisposição para contestar é generalizada. E quando tudo é contestável, nada é legitimador. O impacto extravasa o plano político: investimentos são adiados, prioridades nacionais desviam-se para a gestão de crises e repressão, e instituições corroem-se sob a suspeita permanente.
O processo eleitoral, o que é então?
Antes de avançar com o debate, gostaríamos de dar uma pausa para lembrar que processo eleitoral e sistema eleitoral não são sinónimos. O processo eleitoral é a sequência de actos administrativos, logísticos e jurídicos que transforma as preferências dos cidadãos em votos válidos e depois em resultados proclamados. Já o sistema eleitoral é a regra de conversão desses votos em assentos: pode ser maioritário, proporcional, misto ou híbrido, e determina se cada voto conta para eleger uma pessoa, uma lista ou para calcular percentagens nacionais. Dito de outro modo, o processo é o “como” se organiza uma eleição; o sistema é o “com que regra” os votos são transformados em representação.
Esta distinção é crucial, porque um sistema eleitoral pode ser tecnicamente justo, mas perder legitimidade se o processo que o antecede estiver fragilizado. Em contrapartida, um processo limpo e transparente pode ser insuficiente se as regras de conversão forem vistas como desiguais ou distorcidas. A integridade democrática exige, portanto, que ambos os objectos (processual e sistémico) estejam alinhados. O sistema define o desenho político, moldando incentivos de partidos e candidatos; o processo assegura que esses incentivos são traduzidos em resultados verificáveis e aceites socialmente. Em Moçambique, esta distinção raramente é explorada com profundidade, e isso ajuda a explicar a persistência de crises eleitorais. Reformas do sistema, como forma de distribuir mandatos ou os critérios de representação, pouco adiantam quando o processo permanece vulnerável a disputas no recenseamento, na contagem ou na validação dos resultados.
Quais são as principais falhas no processo eleitoral em Moçambique?
O Recenseamento Eleitoral: o ponto de partida de qualquer processo eleitoral é o recenseamento. A credibilidade de todo o edifício depende, em larga medida, da integridade desta fase inicial, pois é ela que define quem poderá exercer o direito de voto. Em Moçambique, porém, o recenseamento eleitoral tem sido reiteradamente o elo mais frágil, não apenas por falhas administrativas, mas sobretudo pelos incentivos políticos que gera. O problema assume contornos mais graves quando o número de eleitores inscritos ultrapassa de forma desproporcional as projecções demográficas oficiais. O caso da província de Gaza, nas eleições de 2019, é emblemático: o número de eleitores recenseados ultrapassava a projecção populacional para o ano de 2050. Este desfasamento não pode ser explicado por erro técnico ou mobilização cívica extraordinária, mas por um padrão estrutural de inflacionamento deliberado dos registos.
A raiz do problema está inscrita na própria Lei Eleitoral. O modelo moçambicano de distribuição de mandatos utiliza o método de Hondt, aplicando-o à base do número de eleitores recenseados em cada círculo eleitoral. Assim, os 250 assentos da Assembleia da República são repartidos pelos 13 círculos provinciais em função do total de eleitores inscritos. Este mecanismo cria um incentivo perverso: quanto mais eleitores forem registados numa província, maior será o número de deputados a eleger. Em consequência, o recenseamento deixa de ser um exercício técnico e converte-se num campo de disputa política, onde cada aparelho provincial luta para maximizar o seu peso parlamentar. Não surpreende, portanto, que em 2024 todas as províncias tenham ultrapassado em mais de 120% as projecções de eleitores previstas — um indicador claro de manipulação competitiva entre administrações provinciais.
A distorção não é apenas estatística, mas profundamente política. Quando o recenseamento se torna um instrumento de competição, a confiança pública é corroída antes mesmo da abertura das urnas. A percepção de “jogo viciado” mina a aceitação dos resultados futuros e gera um clima de contestação latente. Em vez de uma fase administrativa destinada a garantir a inclusão de cidadãos, o recenseamento converte-se num mecanismo de exclusão e inflacionamento estratégico, ampliando desigualdades de representação e gerando suspeitas estruturais sobre a legitimidade do Parlamento.
A Votação: o acto de votação apresenta desafios de natureza distinta. A sua realização, ainda que frequentemente marcada por falhas logísticas, é menos problemática em termos de contestação política directa, já que se trata de um momento visível, acompanhado por representantes de partidos, observadores e pela própria comunidade. Contudo, a menor gravidade comparativa não deve ser confundida com irrelevância. A qualidade da experiência do eleitorado, o cumprimento dos horários e a eficiência das mesas de voto influenciam de modo decisivo a participação e a confiança pública.
Em Moçambique, os relatórios de observação eleitoral da União Europeia (UE), da União Africana (UA) e de organizações nacionais, como o Observatório Eleitoral, têm identificado padrões recorrentes: abertura tardia das mesas, falhas de materiais (urnas, boletins e tinta indelével), ausência de listas completas ou devidamente afixadas e dificuldades técnicas na organização das filas. Em muitos casos, estes atrasos levaram ao prolongamento do horário de funcionamento ou ao congestionamento de eleitores, criando frustração e potenciais constrangimentos à participação plena. A título de exemplo, no relatório da Missão de Observação Eleitoral da UE para as eleições de 2019, registou-se que mais de 25% das mesas visitadas abriram com atrasos superiores a uma hora, em grande medida, devido à logística deficiente.
No entanto, apesar dessas falhas, a votação em si decorre geralmente de forma pacífica, com episódios de violência reduzidos e níveis relativamente altos de conformidade com os procedimentos básicos. Ainda assim, convém sublinhar que demora, e as falhas na organização podem afectar de modo indirecto a legitimidade democrática, não pela suspeita de manipulação, mas pela redução da participação.
Ainda sobre a abstenção, importa referir que, pela lei, cada caderno eleitoral deve conter, no máximo, 800 eleitores, correspondendo ao número de votantes atribuídos a uma mesa. O problema que se coloca é duplo. Por um lado, a capacidade técnica e a experiência limitada dos membros de mesa, tornando duvidosa a eficiência no processamento de tal volume de eleitores num único dia. Por outro, a morosidade natural do procedimento aumenta o risco de congestionamento, longas filas e, consequentemente, maior abstenção.
O apuramento e proclamação dos resultados: o apuramento é a fase mais crítica de todo o ciclo eleitoral em Moçambique. É neste momento que as preferências individuais, previamente expressas nas urnas, se convertem em resultados formais com valor jurídico e político. A legislação é inequívoca: as actas devem ser assinadas por todos os membros de mesa, entregues às instâncias superiores e publicadas localmente, garantindo, assim, a rastreabilidade e a fiscalização pública. Todavia, a prática revela uma sistemática violação dessa norma, convertendo o apuramento no epicentro da manipulação eleitoral.
O problema central não é apenas técnico, mas estratégico: trata-se da tentativa deliberada de captura dos membros de mesa responsáveis pela contagem. Frequentemente jovens contratados de forma temporária, com frágil preparação e baixos níveis de resiliência institucional, como vimos acima, estes agentes tornam-se alvos fáceis de cooptação através de subornos, intimidação ou redes de clientelismo local. Quando a captura é bem-sucedida, os resultados são ajustados directamente na origem, tornando a fraude praticamente invisível nas fases subsequentes. Quando tal não é possível e os números se mostram desfavoráveis a certos partidos, recorre-se a expedientes alternativos: a recusa em assinar as actas, a sua ocultação ou até a destruição física dos documentos. Em qualquer dos casos, o efeito é o mesmo: a ausência de prova verificável abre espaço a uma narrativa incontornável de manipulação.
Importa sublinhar que a mesa de voto é a unidade mínima de decisão eleitoral. Como demonstra a literatura especializada em eleições competitivas em regimes híbridos, é precisamente ao nível mais micro da administração eleitoral que se jogam as batalhas decisivas de credibilidade. Os órgãos centrais (distritais, provinciais ou nacionais) dificilmente podem alterar resultados sem comprometer a sua consistência documental na base. Logo, se a integridade da mesa falha, todo o edifício subsequente é construído sobre alicerces de areia.
A esta vulnerabilidade soma-se um desenho institucional marcado pela morosidade e redundância. O percurso que os resultados seguem — da mesa para o distrito, do distrito para a província, daí ao nível central e, por fim, ao Conselho Constitucional — multiplica os pontos de opacidade e de contestação. As eleições de 2024 ilustram de forma eloquente esta patologia: realizadas em Outubro, só viram os resultados proclamados a 23 de Dezembro. Durante quase dois meses, o vazio informativo foi preenchido por rumores, protestos e violência, cuja intensidade apenas se dissipou após a validação final. Na África do Sul, quase 90% das mesas são processadas em menos de três dias, permitindo que o consenso social se forme rapidamente.
Por fim, a etapa de validação institucional agrava a desconfiança. A Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) e o próprio Conselho Constitucional são percepcionados como órgãos capturados pela lógica partidária. Em vez de desempenharem a função de árbitros imparciais, limitam-se a homologar resultados, raramente confrontando as irregularidades documentadas. Ao contrário do Malawi (2020) e do Quénia (2017), onde tribunais supremos anularam eleições presidenciais em nome da integridade democrática, Moçambique permanece refém de uma validação meramente ritualista, incapaz de restaurar a confiança pública.
Recomendações
Recenseamento: (i) usar dados censitários e projecções populacionais (não o número de recenseados) para distribuir mandatos, como fazem África do Sul e Namíbia e (ii) reduzir o número máximo de eleitores por mesa para facilitar a votação e reduzir filas, seguindo o exemplo do Brasil.
Apuramento: (i) profissionalizar os membros de mesa com formação contínua, à semelhança da África do Sul; (ii) tornar obrigatória a afixação das actas; se não forem assinadas ou publicadas, a mesa deve ser anulada ou recontada em até 24h, como no Gana; e (iii) eliminar apuramento distrital e provincial; transmitir resultados directamente para um centro nacional, inspirado no modelo do Quénia.
Proclamação: (i) criar um Centro Central de Apuramento independente, sob controlo e supervisão judicial do órgão responsável por validar as eleições; e (ii) rever e fixar prazo máximo de cinco dias úteis para a proclamação final, como no Brasil e na África do Sul.
Em síntese, a credibilidade das eleições em Moçambique não será alcançada por meio de proclamações políticas, mas pela reconfiguração institucional que reduza incentivos à fraude e fortaleça mecanismos de transparência. A adopção de critérios censitários para a distribuição de mandatos, a profissionalização dos membros de mesa, a obrigatoriedade da publicação imediata das actas, a eliminação de etapas redundantes no apuramento e a proclamação célere dos resultados são medidas que já provaram eficácia em várias democracias africanas e latino-americanas. Implementá-las é mais do que uma questão técnica: é condição indispensável para que o voto volte a ser, em Moçambique, um instrumento de legitimidade democrática, e não uma fonte recorrente de contestação e conflito.