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Venâncio Calisto encena primeira peça em Portugal

Venâncio Calisto realiza, esta sexta-feira, um ensaio aberto da performance O alguidar que chora ou as pedras que falam (com público restrito), que vai estrear em Dezembro

 

Nas ruas de Lisboa existe O alguidar que chora ou as pedras que falam. Nesse alguidar com descrição africana vislumbra-se uma mulher que percorre a infinita extensão dos séculos à busca de desenterrar e ou reinventar a história das pedras que falam. A mulher é uma metáfora, o modelo da opressão humana, uma heroína que busca o lugar perdido, de respeito e de celebração das diferenças.

Na verdade, O alguidar que chora ou as pedras que falam é o título da peça que está a ser montada por Venâncio Calisto. Neste novo trabalho, partindo da revisitação da prática de moer o milho no alguidar, uma das principais tarefas domésticas das mulheres moçambicanas, o encenador traz um drama do que considera ao gosto da prosa poética que explora vozes que precisam de romper a muralha secular do silêncio para que possam ser ouvidas.

De modo a dar a conhecer ao público em que está a trabalhar, Venâncio Calisto vai promover um ensaio aberto de O alguidar que chora, às 19h30 de sexta-feira, na Casa Mocambo, em Lisboa. Esta foi a forma encontrada para sublinhar o carácter colaborativo do projecto. Explica o artista: “Trata-se dum work in progress, em que o encontro entre nós e com o público alimenta a dramaturgia do espectáculo. Este ensaio aberto serve de recolha de material dramatúrgico, é um momento de escuta e discussão estética, que julgamos essencial para o enriquecimento do nosso trabalho. Será uma leitura encenada com um público restrito, composto por amigos, académicos, escritores, actores e encenadores de Portugal, Brasil, Espanha e Moçambique”.

A peça de Calisto é resultado de uma residência artística com as actrizes Marina Campanatti (Brasil) e Marisa Bimbo (Portugal-Botswana), que se realiza desde Julho na Casa Mocambo. O que uniu os três artistas no projecto são as mesmas inquietações culturais, sociais, estéticas e políticas e a mesma vontade de enaltecer as potencialidades do encontro humano e/ou artístico. O projecto surgiu da vontade de cada artista aprender e partilhar com o outro as suas visões. Assim, os três esperam contribuir na construção de um mundo sem fronteiras, de inclusão, de escuta e de afecto. “A nível do discurso do espectáculo, o ímpeto que nos levou a criar este projecto foi o de dar a conhecer a nossa voz dentro do panorama do teatro português e contrariar o silenciamento, de que muitos estrangeiros, especialmente os artistas, são vítimas. Eu e as actrizes partilhamos a mesma condição de estrangeiro, uma condição que muitas vezes nos coloca num lugar de subalternidade e constante luta pela aceitação. A Marina Campanatti é Brasileira e minha colega do Mestrado. A Marisa Bimbo, apesar de ter crescido em Portugal, as suas raízes africanas muitas vezes são usadas como pretexto para ser colocada na condição do estrangeiro. E porque ambos somos artistas e conscientes do poder transformador da representatividade, decidimos fazer da nossa arte e deste projecto em particular uma forma de subverter a nossa condição de estrangeiro”.

Depois do ensaio aberto, a peça irá estrear na segunda quinzena de Dezembro, na sala Estúdio do Teatro da Rainha. “Uma oportunidade para a interacção, partilha e construção conjunta de uma dramaturgia polifónica e sensível à dor comum, a de nos sabermos contemporâneos da eterna espiral de injustiças e silenciamentos”, adianta Venâncio Calisto.

 

O processo de encenação e dramaturgia

 

O alguidar que chora ou as pedras que falam está a ser um grande desafio para Venâncio Calisto, com a particularidade de marcar uma nova etapa na sua carreira. Esta será a sua primeira encenação em Portugal, o que torna o projecto especial. “Desde o início deste processo procuro vincar a minha identidade artística, o mais importante para mim é conseguir comunicar as coisas como as sinto e de acordo com o meu universo estético. E isso não é uma tarefa fácil quando nos deparamos com um público e um movimento teatral diferente do nosso. A outra particularidade deste processo é de a produção textual acontecer em simultâneo com a construção do espectáculo. Está integrado no processo de construção da partitura cénica, serve de estímulo e orienta o trabalho das actrizes, e vice-versa. O que para mim é magnífico pois me permite ter acesso a diferentes universos e impulsos criativos, o que enriquece o texto e fortifica o sentido de pertença de todo o elenco”.

 

Neste processo criativo, Venâncio Calisto conta com o apoio da Casa Mocambo, que disponibiliza espaço para ensaiar e para apresentação pública sexta-feira. O trio de actores também conta com o apoio do Teatro da Rainha. Além das duas instituições, O alguidar que chora conta com o apoio à produção de Miguel Luís, moçambicano residente em Portugal.

 

A apresentação restrita ao público, sexta-feira, terá duração de 75 minutos (45 para performance e 30 para conversa).

 

 

A bio dos actores

Venâncio Calisto é actor, encenador e dramaturgo moçambicano. Formou-se em Teatro pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane. Trabalhou como Assistente Estagiário das disciplinas de Encenação e Dramaturgia na mesma instituição e como professor de Teatro no Colégio Educare. Reside em Portugal desde 2019, onde se encontra a frequentar o mestrado em Teatro e Comunidade na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa.

Em Portugal trabalha como dramaturgo e artista pedagogo no projecto Teatro ao Telefone, desenvolvido pelas companhias Teatro Umano e Teatro de Identidades dirigido por Rita Wengorovius. Em 2018, foi distinguido com o Prémio de Artes e Cultura da Mozal na Categoria de Teatro e ficou em primeiro lugar no concurso de Poesia “Ponte que liga vidas” Maputo – Katembe”, promovido pelo Centro Cultural Moçambicano Alemão (CCMA).

 

Marisa Bimbo é uma actriz portuguesa. Nasceu em 1992, no Botswana. É licenciada em Teatro/Interpretação pela Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo do Porto (ESMAE). Entre Novembro de 2015 e Junho de 2018, residiu em Maputo, lugar de encontro e conexão com as suas raízes africanas. Intuitivo e naturalmente cruzou-se com a dança, onde procurou exprimir-se nas danças tradicionais moçambicanas. No entanto, foi no universo da dança contemporânea que se diluiu. Teve a oportunidade de trabalhar com coreógrafos e bailarinos como Horácio Macuácua, Ídio Chichava, Janete Mulapha e a companhia de dança Culturarte Mozambique.

Integrou como bailarina a peça HÈVA, de Didier Boutiana (Ilhas Reunião), da companhia Cia Soul City, fruto de uma colaboração com o Centro Cultural Franco-Moçambicano, Maputo. Participou também como intérprete na peça teatral A crise, do colectivo (in)versos, inserida na programação do 4ºAndar, programação paralela do Festival Internacional de Dança Contemporânea – KINANI 2017.

 

Marina Campanatti é actriz formada pelo Teatro-escola Célia Helena (2013), graduação em cinema pela Universidade Anhembi Morumbi (2013). Tem uma Pós-Graduação em Arte-Educação e Sociedade pela Universidade PUC-SP. É mestranda em Teatro e Comunidade pela Escola Superior de Teatro e Cinema, Instituto Politécnico de Lisboa.

Actuou como professora de teatro no Colégio Beatíssima Virgem Maria (2012-2019) e no CCA Sinhazinha Meirelles (2013-2019). Actualmente, trabalha como artista-pedagoga no projecto Teatro de Identidades e Teatro Humano, coordenado por Rita Wengorovius. Integrante da Cia Novelo com o espectáculo de rua “Sonho de uma noite de verão”, de William Shakespeare, direção Pedro Granato, contemplado pelo Circuito Sesc (2015) e Prêmio Zé Renato de fomento ao teatro (2016). Participou como actriz da peça “Diásporas”, de Marcelo Lazzaratto- Contemplada pela Lei de Fomento ao Teatro (2016) e com temporada no Sesc Pompéia (2017).

 

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