Eis-me aqui para fazer uma segunda leitura de um livro autêntico. Um segundo procedimento, em Maputo, depois do primeiro, na Galiza (Espanha). Uma segunda leitura – que se apresenta como um posfácio – pois sou prefaciador do livro. Creio – aceito retificar-me pelo erro – estou a alimentar-me de um caso inédito: apresentar um livro onde o prefácio foi cunhado pela minha mão direita. Expor Mãos de Medo é aceitar «bordar o tempo» (Rosário, 2005, p. 41). Negar tal acto seria «como um anti-poema» (Rosário, 2005, p. 45) que se mostra como uma pedra que assume ter temor de tudo. [As citações feitas ao longo do texto são do livro: Mãos de Medo (autor, Nick do Rosário; edição, Gala-Gala Edições)].
Antes de tudo irei expor a sentença: este livro é sobre amor. É, também, sobre memória. Sobre as pessoas que Nick decidiu amar e que estão expostas na dedicatória (Rosário, 2005, p. 7). Sobre outras pessoas – incluindo amores da vida do poeta – que souberam vencer o medo. Mas, por causa desse amor ele é preso e deve provar que sabe bem-querer os seus e nós os outros. Por isso, vamos nos colocar no lugar do poeta. Imaginemos um pouco o protótipo de construção dos poemas que fazem este livro. Será uma idealização injusta. Todavia, necessária. Consideremos, estou a ser amável ao dizer «consideremos» – pois, gostava de dizer «maldizer» – que Nick se encontra preso por uma semana porque decidiu amar. Decidiu nos amar. [O lugar da prisão deixo ao vosso critério]. Como castigo, durante seis dias – pois será liberto no sétimo dia para descansar na paz celestial –, deve fazer uma refeição para um «sublime-autocrata». [Uso «sublime-autocrata» entre aspas para não dizer «ditador»]. Na segunda-feira, deve fazer galinha-cafreal com almôndegas, para Omar Bongo. Na terça-feira, pão-ricipe com molho ao sugo, para Hastings Banda. Na quarta-feira, matapa de siri-siri com molho velouté, para Samuel Doe. Na quinta-feira, xiguinha de cacana com molho pesto, para Mobuto Sese Seko. Na sexta-feira, tepwe com xima com molho chutney, para Francisco Nguema. E, no sábado, para fechar e conquistar a sua alforria, sugere repolho com quiabo regado de molho béchamel, que é saboreado por Idi Amin Dada. Como acompanhante, os «sublimes-autocratas» só tem direito a um copo de xivhotxongua, uma taça de vinho de palma, uma lata de pepsi-cola ou um duplo de Macallan 1926. [Tendencialmente, todos preferem bebidas do ocidente pois só assim se nutrem da civilização ideal]. Contudo, de Nick, para além de anuírem as refeições, recebem versos. Ele disfarça sua deficiência culinária com dotes poéticos. Nick, com as suas Mãos de Medo, tece poemas para ganhar alforria. É aqui onde o «medo» – parte do título do livro que temos nas nossas «mãos» – começa a ser o azimute para a emancipação do poeta. Ele, em tom de epigrama versificada, oferece um poema para cada «sublime-autocrata». Por amor fazemos tudo que estiver ao nosso alcance. Daí que, para cada dia de refeição Nick, em nome doa amor, predispõe-se a ler um poema. Óbvio que os poemas não enchem estômago de ninguém. Também, os poemas nunca terão esse propósito.
Partindo deste desenho culinário, convida-vos para a segundo parte da nossa concepção. Vamos cogitar que para Omar Bongo Nick oferece «o calor das húmidas [verdades]/ […] / como uvas fermentadas» (Rosário, 2005, p. 70). Mimoseia Hastings Banda com «a eternidade / [que] trincou o fruto dos ramos» (Rosário, 2005, p. 33). Presenteia Samuel Doe com «mágoas / forcas / de forças» (Rosário, 2005, p. 81). Para além da xiguinha de cacana Mobuto Sese Seko ouve o poema Dedicatória (Rosário, 2005, p. 31): «a noite cabe em ti / o ritual da alvorada / com o estímulo das emoções // Cabe a ti todo o astro / o acorde das estelas / a música mística da noite / o flautim do poema / numa inacabada casa». Francisco Nguema, se deleita com o poema Composição (Rosário, 2005, p. 30): «a árvore dos ossos / ou o fruto dentro das raízes como sinuosas mãos / a embalar o berço / a semente / e o corpo». E, no sábado, todos os «sublimes-autocratas», sob comando do auto-intitulado «o último rei da Escócia», Idi Amin Dada, ouvem o poema Desabafo (Rosário, 2005, p. 41): «a tua lua vermelha / arde de sol tarde / um desabafo arde / de saudade teu sol tarde / e não tarda».
Ao convocar a culinária para a apresentação do livro de Niclk quero evidenciar o poder de ultrapassar fronteiras, por meio da gastronomia poética. Assumo, que estou a coagir, quiçá constranger os apaixonados, com uma comparação desdenhável para falar de amor que liberta. Quiçá, a constranger os chefes de cozinha. Mas, saber preparar um bom poema que atrai e adquire leveza mediada pelo manuseio criativo das mãos do poeta, ao ponto de até os mais incessíveis e insaciáveis se deslocarem e se deleitarem para outros lugares verbais, tal como é o anseio dos poetas e da própria literatura, é saber ultrapassar fronteiras, é saber experimentar outros portos, pois saber reanimar uma linguagem criando novas imagens, novos sabores é a função da literatura e da poesia. É neste pedestal, de doçura poética, de iguaria do verbo, que coloco o livro Mãos de Medo de Nick de Rosário. Não estou a dizer é o melhor. Estou a dizer, ele sabe falar de amor para ganhar alforria. Dirão: os prefácios, os posfácios e as apresentações nunca apontam erros? Nunca encontram defeitos na poesia do autor apresentado. Para responder estas e outras questões irei me socorrer num ditado chope que, sempre, oiço da minha mãe, Clara Jango, quando estou desanimado e a perder o controle das coisas. O ditado diz: «ka mandza ya inthu kuka milu mwassi» (numa tradução contextual ficaria, «nas mãos de alguém não nasce capim». É nesta mísula que coloco a poesia que se encontra em nossas mãos. Uma poesia que sabe falar de amor e usa as mãos para nos libertar. Repito, não estou a dizer «melhor poesia de Moçambique». Não estou a declarar poesia para Nobel. Quiçá, um dia! Estou, apenas, a afirmar: uma poesia que sabe ser doce perante tanta ditadura literária e tanta falta de doçura poética.
Permitam-me, para terminar, dizer que o trabalho poético de Nick é feito numa linguagem assinalada nos paladares que nos ultrapassam o medo. Portanto, com estes versos ficamos conscientes que a criação literária deve ter por base um trabalho exigente de selecionar os melhores ingredientes, de lapidar e de dar forma às inúmeras possibilidades que as iguarias oferecem até o mais ignóbil cidadão, o mais tirano indivíduo e quem sabe rodear-se da pólvora para ser amado. Ou quem encarcera os outros por saberem amar e expressar afecto. Nick tem mãos com autonomia própria. Tem mãos que, apesar do medo, não teme a ditadura de quem não sabe amar. Por isso nos oferece – e faz-me ter vontade de amar – versos frescos e com sabores de amor como grafa no poema Desabafo (Rosário, 2005, p. 40): «apenas o amor é justo / cúmplice da palavra». Só quem é cúmplice da palavra sabe usar do medo, das mãos para fazer a melhor refeição poética, o melhor amor.
Kanimambo Gala-Gala pela ousadia editorial. Nimbonguile Nick do Rosário por oferecer-nos uma das melhores refeições num mundo cheio de pólvora e despotismo.
Literatura Moçambicana! Bayete!
P.S.: Que prática é essa de roubar o brilho aos escritores advindos depois de 1980 para dar à geração-Charrua a consagração como prova, inequívoca, de que a áurea da literatura moçambicana continua ancorada, particularmente, nesse movimento literário!