Resumo: Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o conceito de patriotismo no contexto moçambicano contemporâneo, traçando a sua evolução desde as origens históricas globais até às suas interpretações actuais no país. Parte de um diálogo informal para problematizar o uso crescente e, muitas vezes, instrumentalizado da palavra “patriotismo” em discursos políticos e sociais recentes, sobretudo após as manifestações populares de 2024. O texto argumenta que, enquanto no passado o patriotismo foi associado à lealdade aos reis, à luta de libertação ou ao partido no poder, nos dias de hoje, deve ser reconfigurado como um compromisso com a justiça, a responsabilização e a cidadania activa. Sustenta-se que o verdadeiro patriota não é o que aplaude incondicionalmente o governo, mas aquele que pensa criticamente, denuncia injustiças e participa activamente na construção de um Moçambique mais justo, democrático e inclusivo.
Contexto: Foi numa troca de ideias informal, ao telefone com o professor e investigador PHD Egídio Chaimite, com quem tenho colaborado em diversos trabalhos académicos. No decurso da conversa, que versava sobre a actual situação política do país, sobressaiu um questionamento: o que significa, afinal, ser patriota nos dias que correm? O tema surgiu de forma espontânea, mas com tal densidade, que acabou por dar origem a este artigo, como extensão daquela conversa telefónica.
A pertinência da reflexão funda-se no facto de, nos últimos tempos, o termo “patriotismo” ter ressurgido com força no debate público moçambicano. Invocado amplamente em discursos políticos, artigos de opinião e publicações nas redes sociais, tornou-se uma espécie de carimbo moral: ou se é patriota, ou se está contra o país. A palavra deixou de ser um sentimento partilhado para se tornar numa arma discursiva, usada para separar os “bons moçambicanos” (aqueles que são os obedientes), dos “antipatriotas”, aparentemente os críticos. Esta polarização, longe de enriquecer o debate democrático, empobrece-o.
Do lado político, em particular, a palavra “patriotismo” passou a ecoar em discursos políticos como instrumento inovador para recuperar a estabilidade social e política, mas o uso indiscriminado deste termo levanta suspeitas. Muitos dos que mais o invocam são os mesmos que fazem da bajulação um modo de vida. Em nome do patriotismo, confunde-se lealdade com silêncio, crítica com traição. Será patriota apenas quem aplaude o governo? Será que amar a pátria é obedecer, sem pensar, à lógica do poder? Estas são as perguntas que este artigo propõe discutir.
O Conceito: Patriotismo é um sentimento de amor, orgulho e dedicação à pátria, esta que é entendida, no sentido lato, como espaço simbólico (não meramente geográfico) de memória colectiva, cultura, história e de lutas comuns. No entanto, este sentido variou ao longo da história e em diversos quadrantes.
Na Europa, por exemplo, no século XVIII, ser patriota era sinónimo de defender a monarquia ou combater nas suas guerras. No entanto, a partir do século XIX, com a Revolução Francesa e a Revolução Americana, o patriotismo passou a ser associado à lealdade dos cidadãos, não aos reis, mas sim a ideais comuns de liberdade, igualdade e soberania nacional.
No século XX, esta transformação aprofundou-se. Durante a Segunda Guerra Mundial, o patriotismo em países como o Reino Unido ou os Estados Unidos manifestava-se através do sacrifício colectivo em prol da sobrevivência das democracias. No entanto, a partir da década de 1960, com os movimentos pelos direitos civis e os protestos contra a guerra, emergiu uma nova forma de patriotismo, aquela que questionava se os governos estariam realmente a cumprir os seus próprios princípios. Criticar a injustiça, começaram muitos a defender, também podia ser uma expressão de amor à pátria.
No continente africano, o patriotismo seguiu uma trajectória própria, mas não menos poderosa. A partir da metade do século XX, o conceito foi moldado pela resistência ao colonialismo europeu. Em países como o Gana, Quénia, Argélia ou Angola, ser patriota significava lutar pela independência das potências europeias. Figuras como Kwame Nkrumah e Jomo Kenyatta tornaram-se símbolos nacionais de um patriotismo enraizado na libertação, unidade e dignidade africanas.
Com a conquista das independências, o conceito voltou a transformar-se. Em vários países, a lealdade ao partido no poder passou a ser considerada critério de patriotismo, mesmo quando os governos não correspondiam às expectativas geradas durante a luta. Na África do Sul, por exemplo, o patriotismo adquiriu novos contornos, com o fim do apartheid, fundindo a lealdade ao novo Estado democrático com um compromisso profundo com a reconciliação nacional.
Em Moçambique, o patriotismo teve, em tempos, um significado claro e mobilizador, sobretudo durante a luta de libertação, nos anos 60 e 70. A batalha pela independência de Portugal, liderada pela FRELIMO, foi uma causa nacional unificadora. Milhares de moçambicanos arriscaram (e muitos perderam) as suas vidas, movidos pela convicção de que a liberdade traria justiça, desenvolvimento e dignidade ao povo. Ser patriota, então, significava aderir à luta, apoiar a revolução e participar na construção de uma nova nação.
Com a independência alcançada em 1975, o patriotismo assumiu uma nova feição, apoiar o Estado, proteger a soberania e defender as conquistas duramente alcançadas. Durante a guerra civil que se seguiu, o discurso patriótico foi apropriado por ambos os lados, cada qual reivindicando a defesa do verdadeiro futuro da nação. Nas décadas seguintes, o patriotismo manteve-se presente, mas frequentemente associado à lealdade política, à identidade partidária ou então à força e quistas de um movimento nacional (FRELIMO), que outrora serviu de base de mobilização nacional, e que se transformou numa entidade de direito privado (partido político). Hoje, o conceito de patriotismo em Moçambique continua em mutação — mas a pergunta mantém-se: como devemos, afinal, defini-lo nos nossos tempos?
Em defesa do “patriota”: no Moçambique pós-independência, o patriotismo tem sido, durante muito tempo, entendido através da lente da lealdade — lealdade à nação, ao movimento de libertação e, muitas vezes, ao partido no poder. Esta interpretação fazia sentido nos primeiros anos de construção do Estado. O país emergia do colonialismo e entrava num período profundo de reconstrução nacional. A linguagem da unidade e do apoio era vital para manter de pé um Estado ainda frágil.
Porém, passadas quase cinco décadas, o panorama político, económico e social transformou-se. Moçambique já não é um Estado recém-liberto; é uma democracia em fase de maturação, com uma população cada vez mais diversa nos seus pensamentos, aspirações e experiências de vida. No entanto, a ideia dominante de patriotismo permanece, em larga medida, inalterada, ainda centrada na obediência, no silêncio e no elogio, ou ainda no tão famigerado lambe-botismo.
É aqui que reside um dos equívocos mais perigosos. Ser patriota não é fingir que tudo está bem. Não é calar-se perante o sofrimento, a injustiça ou o fracasso. Na verdade, os cidadãos mais patriotas, em qualquer sociedade, são frequentemente aqueles que falam mais alto, não para destruir o país, mas para o empurrar na direcção do seu maior potencial.
Pelo mundo fora, multiplicam-se os exemplos deste tipo de patriotismo crítico. Nos Estados Unidos, líderes pelos direitos civis como Martin Luther King Jr. foram, no seu tempo, rotulados como antipatriotas, mas hoje a História recorda-os como heróis que amaram o seu país o suficiente para exigir que fosse melhor. Na África do Sul, Steve Biko denunciou as injustiças socais durante o período do Apartheid, e Desmond Tutu não hesitou em denunciar a corrupção governamental, mesmo depois do fim do apartheid, insistindo que a lealdade aos valores democráticos deve estar acima da lealdade ao poder, nesse caso do seu partido ANC. Os líderes do movimento contra a colonização portuguesa foram perseguidos, mortos e rotulados terroristas, mas hoje tanto Eduardo Mondandle bem como Samora Machael são considerados heróis nacionais.
No país enfrentamos hoje desafios graves, captura do Estado e do poder judiciário, escândalos de corrupção tais como dívidas ocultas e Sustenta, má gestão de recursos (isenções à indústria extractiva e compra de tractores para transportes passageiros no lugar de construir estradas), instabilidade em Cabo Delgado, altas taxas de desemprego juvenil e um fosso crescente entre as elites urbanas e as comunidades suburbanas e rurais. Neste contexto, patriota não é quem diz “sim” a tudo o que o governo faz, mas, sobretudo, quem interpela e questiona: “Isto está mesmo a servir o povo?”
Continuar a defender o indefensável não só mostra um tipo de problema cognitivo, mas uma cumplicidade na manutenção do status quo e com o socialmente errado, e sobretudo não ajuda o progresso desta nação. Criticar um chefe não pode ser um problema. Aliás, por outro lado, o chefe deve ser o primeiro a desejar implementar a política anti-lambibotismo, anti-fofoca e assassinato de carácter na instituição que dirige.
O verdadeiro patriotismo exige que se denuncie o que está mal e que se proponham caminhos melhores. É proteger a Constituição, defender a liberdade de imprensa, promover a transparência e exigir responsabilização dos que exercem o poder. É apoiar a polícia quando esta defende a lei, mas condená-la quando viola os direitos humanos. É celebrar os avanços alcançados através de políticas governamentais, mas também lamentar os fracassos e apresentar as suas críticas sendo justo na análise. Numa democracia, o silêncio não é sinal de lealdade, é sinal de medo, e Moçambique não pode continuar a confundir medo com patriotismo. Onde há medo não há expressão de ideias, e onde elas não florescem não há inovação e muito menos progresso.
Por um Novo Tipo de Patriotismo: Moçambique encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. A crise que hoje enfrentamos não é apenas económica ou institucional, é, sobretudo, uma crise de valores cívicos e de entendimento do que significa servir a pátria. Continuar a evocar o patriotismo como mero sinónimo de obediência e silêncio é, não apenas anacrónico, mas perigoso para qualquer sociedade que se pretenda democrática.
Com isto, precisamos urgentemente de redefinir o patriotismo à luz dos desafios do presente. Um patriotismo que não se rende ao medo, nem se acomoda ao conforto dos bajuladores. Um patriotismo que se expressa na crítica construtiva, na defesa intransigente da justiça, na coragem de romper com o conformismo. Ser patriota hoje não é aplaudir o poder, mas sim confrontá-lo quando trai os compromissos constitucionais, sociais e éticos assumidos com o povo.
Moçambique não carece de amor à pátria, carece de espaço para que esse amor se manifeste em liberdade, inclusão, integridade e acção transformadora. O verdadeiro patriota é aquele que defende o bem comum, mesmo contra a corrente. É aquele que diz “não” à corrupção danosa ao desenvolvimento, à injustiça e ao medo, porque acredita que este país pode ser mais do que tem sido. É precisamente desse patriotismo crítico, corajoso e comprometido que o futuro de Moçambique depende.
Precisamos de um novo tipo de patriotismo; um que reflicta as realidades do presente e as esperanças do futuro. Um patriotismo que não se baseia no silêncio, no medo ou na lealdade imposta, mas sim na coragem, na responsabilidade e num cuidado genuíno pelo destino de todos os moçambicanos.
Esse patriotismo é, assim propomos: (i) o estudante que questiona políticas educativas ultrapassadas; (ii) o jornalista que denuncia a corrupção, mesmo quando isso representa risco pessoal; (iii) o profissional de saúde que exige melhores condições para as clínicas rurais; (iv) o cidadão que participa num protesto pacífico, não para destruir infra-estrutura ou matar polícia, mas para melhorar o país; (iv) o dirigente que ouve críticas e responde com humildade, não com hostilidade; (v) o juiz que toma decisões, não com base em orientações políticas e subornos, mas usando a sua capacidade e bom senso; (vi) aquele que não nos deixa entrar em agendas externas a troco de patrocínios ou doações; (vii) é o membro do partido que diz: isto não.
Este é o patriotismo de que Moçambique precisa. Um que protege o povo, e não apenas o Estado. Um que valoriza a verdade mais do que o conforto. Um que recusa conformar-se com o mínimo quando sabemos que o nosso país é capaz de muito mais.
Sejamos claros: criticar o governo não significa odiar o país. Significa, antes de tudo, acreditar que Moçambique pode e deve cumprir as promessas consagradas na sua Constituição e aquelas que, durante o período de luta de libertação e civil, os nossos pais e irmãos lutaram defendendo. Significa também querer que a justiça chegue, não só às cidades, mas também às províncias. Significa desejar que cada criança cresça num país que a valorize, não apenas nos discursos, mas também nas políticas e nas acções concretas.
Moçambique sempre foi terra de pessoas resilientes, brilhantes e corajosas. O nosso futuro dependerá da capacidade de permitirmos que essas vozes se façam ouvir, não apenas quando dizem “sim”, mas sobretudo quando ousam dizer “não”. Por isso, ensinemos nas escolas e em casa às nossas crianças um sentido mais profundo de patriotismo. Um que vá para além de agitar a bandeira ou entoar o Hino Nacional. Um patriotismo que lhes ensine a questionar, a pensar, a agir, a cuidar do seu próximo (no one is left behind). Porque o verdadeiro patriota não é aquele que diz: “O governo tem sempre razão.” É aquele que afirma: “Moçambique merece melhor — e eu vou ajudar a torná-lo possível sem violência.”