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“Sangue da vovó”: violência psicológica ou ser e não ser?

Sangue da vovó: entre a palavra e a imagem

  “Sangue da Vovó”, uma produção da EKSPI e da MOZENTRETEM, é título de uma longa metragem moçambicana, dirigida por Gabriel Mondlane. O roteiro e a realização são co-criação desse director, com o escritor Mia Couto. Trata-se de uma adaptação literária do conto intitulado “Sangue da avó manchando a alcatifa”, do livro Cronicando, da autoria do mencionado escritor, para filme. O contexto representado é Moçambique.

O conto, escrito na língua portuguesa e num estilo literário, à la Mia Couto, começa por abordar, de modo desconstruído, provérbios, através do processo de composição de contrários e ironia, que lhe é típico. Resumidamente, aborda a fragmentação de relações sociais, sobretudo da família, como consequência, sugestivamente, do colonialismo, da guerra civil e do consumismo desenfreado, nas cidades.

Identidade e memória, a serem construídos a partir da família e disseminados pela e numa sociedade, são as temáticas afloradas, tanto na história escrita, quanto na adaptada. No filme, a “Vovó”, uma personagem, desloca-se do campo, sua suposta “terra natal”, para a cidade, onde passa a viver, com a sua família, na sequência “da guerra civil”. Faz um percurso, para a nova morada, enfrentando, através de um familiar que a transporta, desafios culturais derivados de conflitos desencadeados pelos seus diferentes modos de estar. Esses conflitos agudizam-se na sua nova vida da cidade, deixando-a revoltada. Como solução do problema, a “Vovó” regressa à sua terra de origem, após um episódio que deixa a alcatifa (branca) da sala de visitas da casa manchada de sangue.

No filme, os actores falam em português e em changana. Há representação de famílias moçambicanas durante a guerra civil dos dezasseis anos. Há rituais tradicionais que ficam por cumprir, no seio dos agregados familiares urbanos. Em consequência desse défice, um dos membros vive infeliz, apesar de ter acumulado riqueza. Diante de formas peculiares de se estar na cidade, determinadas personagens são obrigadas a adoptar novos padrões de vida. Este facto leva-as a ignorar, por completo, que na convivência com outros, culturalmente diferentes, deve prevalecer a atenção e o cuidado mútuos, em benefício de um intercâmbio que pode ser enriquecedor.

 

 Da adaptação do texto literário ao filme

 Trata-se de um filme adequado para a idade, a partir dos 12 anos.

Estão na base do processo de construção desse texto multimídia substractos da História de Moçambique: guerra colonial e “guerra civil”; fundamentos da cultura e da identidade moçambicanas: rituais de passagem, assim como a cultura da reunião familiar para a transmissão de conhecimento. Estas questões estão expostas nas duas linguagens, a do texto original e a do texto final, o filme.

Na adaptação, a obra original foi respeitada, capturam-se os seus elementos essenciais, reinterpretando-os, sempre. A escolha da temática foi feliz, por remeter a debate o contexto de fragmentação do tecido social moçambicano, a perda de valores identitários, bem como o consumismo exacerbado, que reduz qualquer possibilidade de alcance de desenvolvimento económico que seja sustentável. É, também, um filme que faz apelo à preservação da memória. Toda essa temática, aliada à escolha de personagens-intérpretes da obra, mais os cenários (som, luz, cor, entre outros), incluindo o figurino escolhido, dão movimento e prendem o espectador ao texto.

Há cortes ao original. Entretanto, os guionistas, na sua veia criativa, souberam gerar mecanismos de encontro entre o texto escrito e os códigos que suportam a imagem, o som e o movimento, o que é adequado, uma vez que um filme não deve ser uma simples transcrição do texto original.

Em “Sangue da vovó” há muitos momentos de sugestão, que permitirão que quem não tenha lido o texto original preencha os lugares vazios e quem o tenha lido, desfrute de um novo processo de construção, porque, ver um filme não nos deve fazer dispensar o texto. A título de exemplo, o texto original é iniciado por um conjunto de provérbios, tal como tinha referido. Estes acabam propiciando uma reflexão profunda sobre o que se diz no texto escrito. Além disso, permitem melhor compreensão do texto, ao mesmo tempo que dão lugar à associação dos universos oral e escrito – que se complementam através da palavra e do exercício de representação.

Não tendo colocado os provérbios que constam do texto escrito, o filme socorre-se de outros códigos para cativar a atenção, reinterpretando os provérbios. É envolvente, repito. O som, a imagem e o movimento desencadeiam o sentido apelativo. Gostava, ainda a propósito do corte na passagem do texto literário para o filme, de destacar, por exemplo, a recontextualização da importância de realização de um ritual de passagem, reservado a um casal que passaria a viver na mesma casa (escuso-me, propositadamente, de o referir, ao pormenor). O ritual, não referido no texto, mas sinalizado no filme, ajusta-se à cultura representada no texto cinematográfico. A caracterização dos lugares onde as acções são passadas faz jus ao conhecimento que se tem do espaço representado e, até, apelam, ao espectador a realizar uma (re)visita ao local.

Fundamentalmente, texto escrito e filme recorrem a linguagens diferentes, cada um a seu modo, com as suas ferramentas. Não devem ser cópias um do outro, tal como o refere Linda Hutcheon (2011) no seu livro Uma Teoria da Adaptação. Basicamente, a adaptação de um texto literário para filme pressupõe:  a transformação de elementos literários para cinematográficos, criatividade, escolha de um narrador que cative (a narração é opcional), a recontextualização de determinado evento, entre outros, e nisso, o roteiro do filme e a sua realização seguem pressupostos fundamentais desse processo.

 

Fragmentação e violência psicológica: ser ou não ser?

Na essência, os dois textos o literário escrito e o fílmico convidam para a reflexão sobre a memória e sobre a identidade, de modo criativo.

No caso de “Sangue da vovó”, o filme sugere-nos a (re)interpretação dos conceitos: aculturação, violência epistémica, violência simbólica e hibridismo, que têm efeitos psicológicos nas pessoas.

Narrando o pós-guerra colonial, num contexto de representação da “guerra civil” em Moçambique, o filme pode ser inserido no âmbito dos estudos da pós-colonialidade, lembrando o debate sugerido no livro Os Condenados da Terra, de Franz Fanon (1961), que convida a uma reflexão sobre os efeitos mentais resultantes da Guerra Colonial, isto porque, os grandes eventos retratados, remontam à guerra colonial em Moçambique. Há, no geral, reminiscências disso e não uma alusão concreta.

A aculturação consistiu na assimilação da cultura ocidental. Esta pode ser aferida através do conhecimento Histórico, que os espectadores devem ter. Do que se sabe acerca desse processo, houve uma imposição, dos colonos, para que os povos dominados acreditassem serem inferiores àqueles e aceitarem tal dominação cultural, sem questionar.

Essa aceitação propiciou que o grupo subordinado se comportasse e continuasse como um imitador, o mimicry, acepção de Homi Bhabha em The Location of Culture (1994). O mimicry é o imitador que dificilmente será igual a quem imita, o que o faz viver uma cultura ambivalente que o situa entre a sua e a cultura do outro; é um ser desajustado.

O colonialismo deixou marcas de violência epistémica em quem pôde aculturar. Esse conceito foi desenvolvido por diferentes autores, incluindo Gayatri Spivak, em “Pode o subalterno falar”? (2010). Em “Sangue da vovó”, há representação de pessoas cuja cultura e conhecimento foram silenciados para integrar a cultura europeia. Trata-se de silenciamento do conhecimento. E esta violência é depois reproduzida na imposição que esse grupo de pessoas (da cidade, por exemplo), realiza, relativamente à vovó (que vem do campo), cujo conhecimento e identidade são marginalizados. Esta é domesticada na cultura citadina, em detrimento da sua, assumida como inferior; um epistemicídio, como diria Boaventura S. Santos.

Há, em ambos contextos de silenciamento e de marginalização, um ciclo de injustiça cultural que se reproduz. E que, tendo sido ou não, em contexto real, questionado na época colonial e nas que se seguiram, ainda subsiste; daí a importância de filmes como “Sangue da vovó”, para trazer à memória o que se deve transformar ou descolonizar.

Sucede que, para além dessa violência ligada ao conhecimento referido no filme, e característico da família citadina da vovó, alude-se a um outro tipo de violência, a simbólica (termo de Pierre Bordieu). Esta é manifesta, por exemplo, quando o familiar da vovó que a transporta para a cidade, julga que esta não pode comer a sua merenda, colocada numa panela metálica, já queimada e muito desgastada, dentro do mercedes. Ou, quando este julga, utilizando uma linguagem que descrimina, que a vovó deverá abdicar da bengala especial, que utilizava na sua aldeia e utilizar uma outra mais adequada ao contexto da cidade. Chamo-lhe especial, não apenas para evitar colocar pormenores que façam spoiler do filme, mas, porque se tratava, também de uma bengala ligada à identidade e ao sustento da vovó. O mesmo tipo de violência sucede, ainda, quando à vovó se impõe que calce sapatos altos.

Quanto ao calçar os seus pés, por exemplo, hoje, a partir de diferentes contactos com as culturas orientais e com o espiritismo, ficamos a saber o quão importante é andar-se descalço, dentro de casa. Deixando as impurezas fora desta. E, voltando ao caso da vovó, na rua, poderia calçar os seus chinelos, coisa a que estava habituada no seu contexto cultural.  Por vezes, importamo-nos com pormenores que “não movem moinhos”, dada a falta de questionamento de que somos e o que se nos foi imposto.

O filme sugere que temos que aprender a conviver com a diferença e sempre com a possibilidade de transformarmos positivamente as vivências e o conhecimento que daí advém. Há, sobretudo, necessidade de se preservar a espécie humana, na base de valores culturais, em cada contexto.

Os meus parabéns ao elenco todo: director, guionistas, autor do texto que origina o filme e produção, acima mencionados; bem como os actores princiapais:  Janet Cossa (Vovó Carolina), Cristina Ngome (Madalena), Horácio Giamba (Johane), entre outros profissionais, a saber tradutores de língua, figurinistas, músicos, directores artísticos, fotógrafos, montadores de som e de luz, continuístas, maquiadores, o pessoal dos efeitos visuais, em fim, a todos!

 

Sara Jona Laisse. Comentários adaptados a partir da intervenção da autora na estreia do filme “Sangue da vovó”, em Maputo. Agosto de 2025. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

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