Por definição, a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) considera refugiado “qualquer pessoa, que (…) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade (…) e não quer voltar a ele”. Se prestarmos atenção, a definição não incorpora a dimensão das alterações climáticas, ou seja, os “refugiados climáticos” não têm o direito de pedir asilo à luz do Direito Humanitário Internacional. Talvez seja razoável interpretar que outrora a questão não estivesse em voga. Dessa forma, gostaríamos que ficasse patente, à priori, que o conceito de “refugiado” é diferente do “deslocado interno”, dado que às vezes se utilizam os termos como sinónimos. Nesta reflexão, cingimo-nos sobre os refugiados.
A partir dos anos 80 o assunto ganhou novo rumo, cujo precursor foi o Professor El-Hinnawi (1985) tendo cunhado o termo “refugiados ambientais” como sendo “aquelas pessoas que foram forçadas a abandonar o seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, devido a uma perturbação ambiental acentuada (natural e/ou desencadeada pelas pessoas) que pôs em perigo a sua existência e/ou afetou gravemente a qualidade de sua vida”. Nos dias que correm, o debate sobre as alterações climáticas tornou-se bastante mediático. Boeno and Ferrão (2016), chegaram a ponto de considerar que as alterações climáticas são um risco sistémico mais crítico do que os outros socialmente muito reconhecidos, tais como os ataques terroristas, as pandemias ou crises financeiras.
Se nos basearmos nos Relatórios da World Meteorological Organization (WMO, 2022), constatamos que, em relação ao período pré-industrial, a temperatura média global aumentou cerca de 1°C. As emissões de CO2, em resultado do uso de combustíveis fósseis, aumentaram 1% globalmente em 2022 em comparação com 2021. Os últimos oito anos, 2015 a 2022, foram os mais quentes já registados e a chance de pelo menos um ano exceder o ano mais quente já registado nos próximos cinco anos é de 98% (WMO, 2023). O nível médio global do mar atingiu um novo recorde em 2021, aumentando 4,5 mm por ano durante o período entre 2013-2021 (WMO, 2022). Em termos de danos, 50% de todos os desastres, 45% das mortes e 74% das perdas económicas à escala global nos últimos 50 anos foram relacionados aos eventos atmosféricos, clima e ao risco hídrico (WMO, 2021), sendo que mais de 90% das mortes e 60% das perdas económicas ocorreram em países em desenvolvimento (WMO, 2021, 2023).
Por sua vez, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC, 2022) reporta que, entre 2010 e 2020, a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis, em comparação com regiões de baixa vulnerabilidade. A região do Corno de África, por exemplo, está mergulhada na seca mais longa e severa já registada e contabilizam-se mais de 180 000 refugiados da Somália e do Sudão do Sul para países como Quénia e Etiópia, também fustigados pelo mesmo fenómeno (ACNUR, 2023). Em 2022, cerca de 2500 moçambicanos refugiaram-se para o distrito de Nsanje, em Malawi, vítimas das inundações, em resultado da ocorrência da Tempestade Tropical Ana (VOA, 2022). Estes, em emergência, infelizmente não puderam ter assistência humanitária internacional, pelo facto de não terem, na época, protecção legal.
Dados do IPCC (2022) indicam que até 2030 o número de pessoas que vivem em extrema pobreza aumentará em 122 milhões dos actuais cerca de 700 milhões. Ademais, cerca de 10% da superfície terrestre está sob condições de seca severa ou extrema (WMO, 2023) e o aumento na frequência, intensidade e gravidade de secas, inundações e ondas de calor e o aumento contínuo do nível do mar aumentarão os riscos à segurança alimentar em regiões vulneráveis. No mesmo diapasão, as Nações Unidas (2018) admitem que embora não sejam em si as causas dos movimentos de refugiados, o clima, a degradação ambiental e os desastres de origem natural interagem cada vez mais como motores dos movimentos de refugiados no período contemporâneo. No geral, exorta-se que o mundo reduza pela metade, anualmente, as emissões de Gases com Efeito de Estufa nos próximos oito anos, para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais (United Nations Environment Programme [UNEP], 2021).
Chegados aqui, podemos admitir que os efeitos das alterações climáticas são hoje uma questão de Direitos Humanos, de crise humanitária global, que requerem uma resposta imediata, em função das circunstâncias e contextos sociais. Busquemos o exemplo crítico de Kiribati, onde as projecções indicam que nos próximos 15 anos o país, composto por mais de 30 ilhas, corre o risco de desaparecer, devido ao aumento do nível médio das águas do mar em consequência das alterações climáticas. Aliás, face à realidade, em 2020 o Comité de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas reconheceu o cidadão Ioane Teitiota como um “Refugiado Climático”, depois de uma longa batalha que travou, a pedir asilo na Nova Zelândia, onde havia se refugiado. Provavelmente seja o primeiro na história a se beneficiar deste tratamento. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR, 2020) congratulou o acto e insta para que “pessoas fugindo de efeitos adversos das mudanças climáticas e o impacto de desastres repentinos e de início lento (como secas) podem ter reivindicações válidas para obterem status da condição de refugiado sob a Convenção de 1951 ou acordos regionais sobre refugiados”.
Para além do exemplo acima mencionado, é notório que a ocorrência dos desastres tende a aumentar em termos de frequência e intensidade. À excepção das secas, acompanhamos recentemente as cheias ou inundações que se abateram sobre alguns países, como por exemplo, Moçambique, Burundi, Tanzânia, Quénia, Brasil, Dubai, etc, a atingirem novos recordes, com impactos significativos na economia, ambiente e sociedade. Ora, face ao exposto, não seria urgente e producente que as Nações Unidas revissem os Estatutos do Refugiado, incorporando a categoria das alterações climáticas? O fenómeno cria efeitos múltiplos. O aumento do nível médio das águas do mar pode forçar a população das regiões costeiras a abandonar o seu local habitual, procurando regiões seguras. As cheias e as secas severas destroem culturas, o que pode igualmente obrigar as comunidades rurais, dedicadas à agricultura e à pecuária, a abandonarem para sempre as suas áreas tradicionais de produção e recorrendo a outros pontos alternativos, em busca de abrigo e sobrevivência. A população dos países pobres, que pouco contribui com a emissão de Gases com Efeito de Estufa, é a principal vítima desta crise global.
Por exemplo, o ciclone tropical Idai, que atingiu a cidade da Beira (Moçambique) em 2019, e a seca de 1990 na África do Sul são, conjuntamente, os dois eventos mais caros (ambos estimados em US$ 1,96 biliões) em África nos últimos 50 anos (WMO, 2021). Enquanto os países são desafiados a pautarem por um “Desenvolvimento Sustentável”, em várias dimensões, o Relatório da Agenda 2030 (Objectivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS], 2023), indica que é hora de soar o alarme, pois o progresso de mais de 50% das metas foi fraco e insuficiente; 30% estagnou ou retrocedeu, cujas metas importantes tem que ver com a pobreza, fome e alterações climáticas.
Assim, entendemos que travar os desastres climáticos constitui um quesito que se pode considerar problema de resolução complexa, dependente de múltiplos factores, mas há um conjunto de acções individuais e colectivas que podem ser tomadas em conta, que não caberiam mencionadas nesta reflexão. Tal como escreveu Spencer (2009), especialista da NASA, o clima vai alterar, com ou sem a intervenção antrópica (utilização de combustíveis fósseis, por exemplo, o carvão, o petróleo e o gás; o desflorestamento, a prática de agricultura, a industrialização, etc). Assim, a melhor forma de isolar os pobres dos riscos ou perigos ambientais é ajudá-los a suplantar a pobreza. Ou seja, se os pobres vivem numa zona costeira, que é ameaçada por ciclones, a resposta não é apenas aprovar leis sobre as alterações climáticas, pois estas não poderão reduzir as velocidades médias dos ciclones, mas sim oferecer meios ou condições para que as vítimas consigam fugir e ter acolhimento assim que o perigo for a chegar. É assim que se poderá impedir os maiores desastres, salvando vidas e aliviar o sofrimento das pessoas nos países pobres.
A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra) de 1951 foi proposta e aprovada num contexto pós II Guerra Mundial, visando salvaguardar os direitos dos refugiados vítimas de perseguições (que apenas ocorreram antes de 1 de Janeiro de 1951). Sucede, porém, que a conjuntura geradora de crises humanitárias hoje ganhou novas dimensões, já não são apenas as guerras que estão em causa. Facto positivo é que o próprio dispositivo legal fornece mecanismo para uma proposta de revisão. Assim, havendo interesse e fazendo-se o uso da prerrogativa dos números 1 e 2, respetivamente, do artigo 45 da Convenção, “Qualquer Estado Contratante poderá, a qualquer tempo, por uma notificação dirigida ao secretário-geral das Nações Unidas, pedir a revisão desta Convenção. A Assembleia Geral das Nações Unidas recomendará as medidas a serem tomadas, se for o caso, a propósito de tal pedido.”
Ora, perante vários cenários críticos acima expostos, apresentamos as seguintes indagações: será que nenhum Estado, até ao momento, terá manifestado tal vontade? Se a resposta for negativa, porque não fazê-lo, é inoportuno? Será que o silêncio reflecte a falta de interesse por parte do secretariado-geral das Nações Unidas em discutir sobre esta matéria? Enquanto as respostas às perguntas colocadas ficam ao critério de cada um, em última análise, no nosso entender, é fulcral que as Academias, Juristas, Organizações da Sociedade Civil e outras partes interessadas, mormente os países em desenvolvimento, que se configuram como as principais vítimas das alterações climáticas, se mobilizem a nível internacional, criem lobby e reflictam sobre a necessidade premente da revisão do Tratado; com intuito de que os “Refugiados Climáticos” sejam reconhecidos e protegidos à luz do Direito Humanitário Internacional, à semelhança das perseguições raciais, políticas ou religiosas.