Um vídeo está a circular nas redes sociais em Moçambique. Dois académicos, Régio Conrado, Professor de Ciência Política, e Osvaldo das Neves, Docente de Estudos Literários, ambos da Universidade Eduardo Mondlane, envolvem-se num aceso debate.
Em plena discussão, os egos inflamam-se. O tema inicial, centrado na política, transforma-se num confronto sobre qual dos dois possui maior refinamento cultural. O Professor Conrado cita clássicos das artes plásticas e da música, que considera esteticamente relevantes, e lamenta que muitas pessoas, como o seu opositor, tenham ouvidos apenas para captar a sonoridade de Zena Bacar ou para géneros musicais dos guetos sul-africanos, como o amapiano. Questiona se quem aprecia amapiano é capaz de compreender a Nona Sinfonia de Beethoven.
O vídeo, agora viral na internet, reacendeu a memória e trouxe de volta ao imaginário colectivo aquela que é conhecida como “The Golden Voice of Mozambique”. Mas quem é Zena Bacar? Abaixo, apresento uma breve exposição sobre a trajectória da artista, cuja obra tem sido objecto do meu trabalho de pesquisa. Alguns resultados deste trabalho foram publicados como capítulo do livro Cadernos de Música Moçambicana e apresentados no seminário sobre “Movimentos Sociais Transnacionais, Risco e Espaço Público”, no âmbito do Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global em Coimbra.
Zena Bacar Ali – mais conhecida como Zena Bacar – nasceu a 25 de Agosto de 1949, no Lumbo, Ilha de Moçambique, e faleceu a 24 de Dezembro de 2017, na cidade de Nampula. Foi vocalista e compositora do grupo musical Eyuphuro. Para além de vocalista principal, chegou a liderar o grupo, sendo a única mulher na banda.
Ao longo de uma carreira de cerca de 30 anos, Zena cantou sobre as injustiças sociais enfrentadas pelas mulheres em Moçambique. Simultaneamente, a sua voz celebrou a valorização da identidade, da liberdade e do papel da mulher na sociedade. Defendeu, igualmente, o acesso das mulheres à educação.
Quando Moçambique alcançou a independência do jugo colonial português, Zena tinha 26 anos. Naquela altura, muitas mulheres makhuwas não tinham acesso à educação, o que as impedia de comunicar em língua portuguesa, a língua oficial do país. Entretanto, conforme descreveu o músico Gimo Mendes, fundador do grupo Eyuphuro, Zena era uma mulher diferente: vestia-se bem, era desinibida e comunicativa.
Estas características levaram a que fosse convidada a participar, entre Dezembro de 1980 e Janeiro de 1981, no Festival Nacional da Canção e Música Tradicional de
Moçambique. Durante a formação da delegação da província de Nampula para o festival, reuniram-se vários músicos, entre os quais Salvador Maurício, Gimo Mendes, Omar Issá e Zena Bacar.
No festival, os participantes representavam delegações provinciais, com cada província a dispor de um tempo de actuação. Algumas delegações formaram grupos musicais ad hoc. Durante uma entrevista que realizei com David Abílio, então director da Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, este explicou-me que o festival era “uma oportunidade para promover a colaboração entre artistas de diferentes pontos do país, muitos dos quais nem sequer se conheciam antes, assim como nunca tinham estado nas respectivas capitais provinciais”.
Em Maputo, Salvador Maurício, Gimo Mendes, Zena Bacar, Mussa Abdala e Omar Issá formaram um grupo ad hoc e chegaram a gravar duas músicas na Rádio Moçambique, com a assistência de Américo Xavier. As músicas, cantadas em Emakhuwa (variante Nahara), foram: Amwara a N’rakhe (“A esposa do senhor N’rakhe”), interpretada por Salvador Maurício, e Orera Kurrera (“Vaidade sem juízo”), cantada por Zena Bacar.
Ao regressarem a Nampula, os artistas decidiram aprofundar o trabalho do grupo ad hoc e transformá-lo numa banda. Em 1981, formou-se o Eyuphuro, que significa “furacão” em Emakhuwa. No entanto, duas semanas depois, Salvador Maurício foi convidado a gravar um disco na Rádio Moçambique, em Maputo, afastando-se do grupo. Assim, Gimo Mendes, Zena Bacar, Mussa Abdala e Omar Issá continuaram com o Eyuphuro.
Em 1986, o Eyuphuro realizou a sua primeira digressão europeia, actuando na Holanda, Bélgica, Suécia e Dinamarca. Quando entrevistei Gimo Mendes, este explicou-me que a viagem à Europa motivou o grupo, que teve a sua música apreciada pela fusão entre a percussão tradicional da costa oriental de África e as guitarras acústicas.
As composições do Eyuphuro têm uma forte influência das danças do litoral da Província de Nampula, como o Tufo, Nsope, Namahanja, Xacaxa, Morro, Djarimane e Massepwa. Estes ritmos ecoaram em festivais de música em vários países europeus.
Entre 1986 e 1992, o Eyuphuro actuou em 18 países, incluindo Escócia, Inglaterra, Itália, Canadá, Alemanha, Finlândia, Holanda, Irlanda, Suécia, Bélgica, Dinamarca, Noruega e Estados Unidos. Em 1989, o grupo foi convidado pelo músico inglês Peter Gabriel para participar em festivais europeus de grande notoriedade, como o WOMAD Festival, em Carlyon Bay.
O momento de maior destaque do Eyuphuro foi a gravação do seu primeiro álbum, Mama-Mosambiki, nos estúdios da Real World Records, em Londres, em 1989. A ficha técnica do álbum inclui Zena Bacar (voz), Gimo Mendes (voz e guitarra), Chico
Ventura (guitarra), Mário Fernandes (baixo), Mussa Abdala (percussão) e Belarmino
Rita Godeiros (percussão rítmica).
Em 2001, a banda gravou o segundo álbum em Maputo. Produzido e dirigido por Roland Hohberg, da Mozambique Recording, o disco, intitulado Yellela (expressão em Emakhuwa que significa “é isto mesmo”), contou com Zena Bacar (voz), Issufo Manuel (voz), Mussa Abdala (voz e percussão), Belarmino Rita Godeiros (percussão rítmica), Jorge Cossa (percussão), Firmino Luís Hunguana (baixo), Mahamudo Selimane (guitarra), Mariamo Mussa Hohberg (voz), Orlando da Conceição (saxofone) e Benedito Mazbuko (teclados).
Zena Bacar é lembrada como “The Golden Voice of Mozambique” (um título atribuído pela Real World Records, em Londres). A sua música concentra-se em dois grandes temas: o amor e a intervenção social, com um foco especial na mulher. A artista defendeu a liberdade de expressão das mulheres e o seu direito à educação e a cultura.