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Que descentralização em Moçambique?

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

Na última década, a descentralização voltou ao centro do debate político em Moçambique, ocupando espaço em diferentes fóruns nacionais, universidades e movimentos cívicos. Recentemente, ganhou um novo fôlego, após a intervenção do Presidente da República no Dia Africano da Descentralização e do Desenvolvimento Local, a 10 de Agosto de 2025, quando defendeu uma governação participativa e o reforço do papel das comunidades no desenvolvimento local sustentável.

Este artigo insere-se nesse contexto, como uma contribuição para um debate que ultrapassa a esfera técnica. Trata-se, acima de tudo, de discutir o modelo de desenvolvimento e a arquitectura política de Moçambique, num momento em que o Compromisso Nacional de Diálogo Inclusivo 2025 coloca a descentralização como peça-chave da reconciliação e da estabilidade nacional. A urgência deste debate é o próprio Acordo Político de 2025, que exige repensar o desenho actual da descentralização e construir um sistema que combine participação, inclusão e eficiência. 

A pergunta central, por isso, já não é apenas como descentralizar, mas para quê, para quem e, urgente no país, que modelo? O modelo vigente, embora inclua medidas que sugerem maior autonomia local, continua amarrado a mecanismos de controlo central, sobreposição de competências e limitações orçamentais que reduzem o seu alcance. O verdadeiro desafio é desenhar um sistema capaz de converter a descentralização de promessa (e/ou retórica) política em acções concretas, aproximando o Estado das comunidades, devolvendo-lhes poder real, e tornando-o mais ágil e sensível às diversas realidades territoriais.

 

Descentralização: o que é?

A descentralização é comummente entendida como a transferência de poderes, responsabilidades e recursos do governo central para níveis inferiores de governação, como regionais, provinciais, distritais ou municipais. O conceito per si assenta na premissa de que governos mais próximos dos cidadãos estão em melhores condições para identificar necessidades, formular respostas eficazes e reforçar a legitimidade democrática e a comunidade em melhores condições de se fazer ouvir e fiscalizar os seus líderes. A literatura distingue, também, três dimensões fundamentais: (i) descentralização política, quando o poder decisório é confiado a órgãos eleitos localmente; (ii) descentralização administrativa, que delega funções e gestão a serviços desconcentrados; e (iii) descentralização fiscal, que atribui receitas próprias e capacidade orçamental aos governos subnacionais ou simplesmente locais.

Entre estas, a última (componente fiscal) é crítica, ou seja, sem autonomia financeira qualquer forma de descentralização política ou administrativa se torna incompleta e, muitas vezes, ineficaz. A ausência de recursos próprios deixa os governos locais dependentes de transferências condicionadas, reduzindo a sua margem de manobra para responder a prioridades locais e comprometendo a capacidade de planear a médio e longo prazo.

A experiência internacional confirma este aspecto. Casos relativamente bem-sucedidos – como os da Suíça, Canadá e Alemanha – mostram que a descentralização só produz ganhos reais quando combinada com três condições essenciais: clareza nas competências, evitando sobreposição de funções e conflitos institucionais; autonomia fiscal sólida, assegurando receitas adequadas e previsíveis; e mecanismos robustos de responsabilização, que garantem que o poder transferido se traduza em melhor governação, maior transparência e confiança social acrescida.

Em África, experiências como as do Quénia e da África do Sul mostram que, quando bem concebida, a descentralização pode ser um motor de inclusão, eficiência e coesão nacional – no caso do Quénia, a criação de cerca de 47 condados, cada um com governo próprio eleito (governador, assembleia local e órgãos administrativos). Eles são próximos a províncias, no caso moçambicano, mas com competências claras e orçamentos próprios, o que trouxe avanços na prestação de serviços e na redução de disparidades locais. Na África do Sul, o sistema de transferências fiscais (Provincial Equitable Share-PES), um mecanismo que distribui automaticamente uma porção das receitas nacionais entre as províncias com base em critérios objectivos (população, alunos em idade escolar, despesas com educação e saúde, necessidades institucionais, nível de pobreza e actividade económica) ajudou a equilibrar recursos entre municípios, permitindo políticas mais adaptadas às necessidades de cada comunidade.

Porém, o continente também oferece exemplos de descentralizações falhadas ou incompletas. No Mali, a transferência de responsabilidades não foi acompanhada de recursos adequados, deixando governos locais dependentes do centro e enfraquecendo a confiança pública. Na Nigéria, estruturas descentralizadas foram capturadas por elites partidárias, transformando autoridades locais em extensões do poder central e mantendo desigualdades regionais profundas.

Perante este cenário de sucessos e insucessos, Moçambique encontra-se numa zona cinzenta. Apesar de avanços institucionais, como a eleição de governadores provinciais, persistem desafios: dependência fiscal excessiva, sobreposição de competências e fraca responsabilização. O momento exige aprender com as lições internacionais, e africanas em particular, para construir um modelo de descentralização que una autonomia efectiva, gestão responsável e participação pública, garantindo desenvolvimento equilibrado e estabilidade política.

 

A prática em Moçambique

Em Moçambique, a descentralização não nasceu de um impulso democrático genuíno, mas sim como subproduto de sucessivos acordos de paz entre elites políticas rivais. Embora o discurso oficial a apresente como um instrumento para estimular o desenvolvimento local e ampliar a participação cidadã, na prática, ela tem servido como moeda de troca em negociações de cessar-fogo e partilha de poder. A narrativa tem sido apelativa e de grande valor para o marketing político, sobretudo para os doadores internacionais que, há décadas, defendem e financiam agendas de governação inclusiva. No entanto, a realidade é bem mais complexa. No terreno, o processo tem servido, sobretudo, para acomodar os interesses das lideranças da Frelimo e da Renamo, que procuram preservar as suas zonas de domínio no campo político moçambicano, ou seja, mudam-se as regras do jogo enquanto se mantêm as posições no tabuleiro. Tudo isto decorre num contexto marcado por profunda desconfiança política e pela exclusão sistemática de actores independentes.

Este padrão repete-se desde o Acordo de Roma, em 1992, passando por Maputo, em 2014 e 2019. A cada ciclo, reformas anunciadas como marcos históricos acabam por se revelar essencialmente cosméticas ou meramente administrativas, com impacto limitado, ou nulo, na efectiva redistribuição do poder. Quando posta à prova, a vontade popular enfrenta barreiras estruturais: processos eleitorais pouco transparentes, controlo centralizado das instituições e, mais recentemente, as eleições autárquicas de 2023, marcadas por denúncias generalizadas de fraude. Estes episódios, não só alimentam protestos e instabilidade, como corroem progressivamente a confiança dos cidadãos nas regras do jogo democrático e nas instituições públicas.

O Acordo de Paz e Reconciliação de 2019 ilustra de forma paradigmática esta tendência. Assinado por Filipe Nyusi e Ossufo Momade, prometia reforçar a governação local através da eleição de governadores provinciais e, no futuro, de administradores distritais. No entanto, o quadro legislativo do novo “paradigma de descentralização” que se seguiu incorporou dispositivos de controlo central que diluíram o alcance antes pretendido da reforma. O caso mais emblemático é a criação do cargo de secretário de Estado na província, nomeado pelo Presidente da República e dotado de poderes executivos paralelos aos do governador eleito, instaurando uma estrutura bicéfala que gera sobreposição de funções, conflitos institucionais e esvaziamento silencioso da autoridade de representantes legitimados pelo voto popular. Assim, a descentralização proclamada no papel converteu-se, na prática, num arranjo institucional que preserva a lógica centralista do poder, adiando, mais uma vez, a construção de uma governação local autónoma e capaz de reforçar a coesão nacional.

 

Desafios actuais da descentralização em Moçambique

O quadro actual de governação local em Moçambique é marcado por um arranjo institucional híbrido e de elevada complexidade. As províncias operam sob um sistema bicéfalo, como referimos antes, de um lado, governadores eleitos, e, de outro, secretários de Estado nomeados pelo Presidente, ambos com estruturas administrativas próprias e competências que frequentemente se cruzam. Nos distritos, mantém-se a administração desconcentrada, sob forte tutela do poder central, e a promessa constitucional de eleições locais dos administradores foi adiada sem horizonte temporal definido.

Estes mecanismos, inscritos na legislação aprovada após o Acordo de Paz e Reconciliação de 2019, foram concebidos para equilibrar a distribuição de poder entre o governo central e a oposição. No entanto, na prática, funcionam como barreiras à autonomia dos órgãos eleitos. A figura do secretário de Estado na província, com acesso directo ao Conselho de Ministros e poder de supervisão administrativa e financeira, subordina, de facto, a agenda provincial à aprovação central. No plano fiscal, a dependência de transferências discricionárias – sem fórmula legal implementada para distribuição de recursos – torna as prioridades locais vulneráveis a decisões políticas tomadas em Maputo.

As consequências são visíveis na gestão quotidiana. No sector da saúde, a duplicação de estruturas provinciais gera atrasos na execução orçamental e dispersão de responsabilidades; no abastecimento de água e saneamento, disputas por meios humanos e materiais reduzem a eficácia dos serviços, sobretudo em zonas rurais. Estas ineficiências não resultam apenas de limitações de capacidade técnica, mas de um desenho institucional que privilegia o controlo central e enfraquece a coordenação territorial.

A descentralização, concebida para aproximar o poder dos cidadãos e integrar politicamente as regiões historicamente contestadas, acabou por reforçar a centralização por outros meios. Ao limitar a margem de decisão e os recursos dos governos subnacionais, o modelo compromete, não só o potencial de desenvolvimento local, mas também a credibilidade da descentralização como ferramenta de reconciliação e coesão social. Uma descentralização de faz de conta não congela apenas o desenvolvimento; pode reabrir feridas políticas e sociais que o país acreditava já ter cicatrizado.

 

Que saídas? Alguns pontos para reflexão

Corrigir a trajectória da descentralização moçambicana requer reformas profundas, que vão além de ajustes administrativos. É preciso enfrentar as distorções estruturais que a transformaram num mecanismo de gestão de conflitos entre elites e devolvê-la ao seu propósito original: aproximar o poder das comunidades e promover o desenvolvimento territorial equilibrado. A experiência internacional oferece lições claras sobre como fazê-lo.

  1. Clarificar e unificar competências: a coexistência de governadores eleitos e secretários de Estado nas províncias (SEP) gera redundâncias, conflitos de autoridade e dilui a responsabilização perante o eleitorado. O ideal é consolidar as funções executivas numa única autoridade legitimada pelo voto popular, garantindo que as decisões provinciais reflictam prioridades locais. Alternativamente, seria imperioso redefinir as funções dos SEP, circunscrevendo-as a actividades de coordenação, sem poderes executivos, focada em articulação interministerial e representação protocolar do Estado central. Países como Cabo Verde demonstram que a coordenação central pode existir sem subordinar a autoridade local.
  2. Reduzir estruturas paralelas desconcentradas: além da figura do SEP, há, no terreno, múltiplas estruturas desconcentradas – desde direcções provinciais a delegações sectoriais – que respondem directamente a Maputo, ignorando a cadeia de comando local. Isso cria feudos administrativos e dificulta a integração de políticas. A reforma deve estabelecer que todas as unidades técnicas a nível provincial estejam sob supervisão do governo provincial eleito, mantendo apenas representações centrais (SEP) para funções estratégicas (defesa, segurança, política externa).
  3. Instituir uma fórmula obrigatória de repartição de receitas: a descentralização sem recursos previsíveis é uma ficção. É urgente aprovar, por lei, uma fórmula transparente de transferências intergovernamentais baseada em critérios objectivos – população, indicadores de pobreza, extensão territorial, necessidades de investimento – e blindada contra manipulação política. O exemplo do Quénia, onde a Constituição fixa 15% da receita nacional para os condados, mostra que a previsibilidade orçamental permite planeamento de longo prazo e atrai investimento local.
  4. Estabelecer calendário vinculativo para eleições distritais: o adiamento indefinido das eleições distritais mina a confiança nos acordos de paz e perpetua a exclusão política a nível local. É fundamental aprovar um calendário fixo e um quadro legal que assegure as condições técnicas, logísticas e de segurança para a sua realização, de forma a consolidar o princípio de que o poder local deve emanar do voto popular.

Portanto, sem reformas profundas e compromissos reais, que permitam maior inclusão e, quiçá, partilha de poder, a descentralização em Moçambique pode ser incapaz de reduzir desigualdades, fortalecer a governação local ou consolidar a paz. Pior: pode alimentar novas frustrações, fragilizar a confiança nas instituições e reabrir divisões que o país tentou superar ao longo de décadas. O momento de agir é agora. Cabe ao governo, aos partidos políticos, aos parceiros internacionais e à sociedade civil unir esforços para garantir que este processo cumpra o seu propósito original e se torne um verdadeiro instrumento de desenvolvimento, coesão social e estabilidade duradoura.

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