Tudo começou como um filme: com momentos de avanço, pausa e tragédia aludida. O auditório do Centro Cultural Franco-Moçambicano, claro está, em Maputo, foi bem concorrido para ver a estreia de “Entre eu e Deus” e, logo de seguida, para acompanhar o debate sobre o documentário da realizadora Yara Costa.
Mas, durante as discussões, na noite de terça-feira, a situação dos ataques em Cabo Delgado pesou mais do que a arte, mesmo porque, de acordo com Mia Couto, Saíde Habib e João Pareira, a maior parte dos afectados pelos ataques que ceifam vidas no norte do país são muçulmanos.
Assim, com efeito, analisando o quadro que explodiu em Mocímboa da Praia há algumas vezes, o Sheik Saíde Habib, primeiro interveniente no debate, tratou imediatamente de esclarecer que o islão está no país há muito tempo e sempre teve uma convivência pacífica com outras religiões, tanto que nas famílias moçambicanas é comum encontrar-se muçulmanos, católicis e crentes de outras seitas, cada um respeitando o espaço do outro. “Agora, o que há é um radicalismo contra a religião islâmica, uma certa intolerância. Por exemplo, no documentário, se olharmos para a forma como a Karen se veste, notamos que há certo medo e esquecemos que as freiras se vestem mais ou menos da mesma maneira, mas isso não traz nenhum radicalismo às pessoas”, lembrou o Sheik.
Na diversidade dos oradores que constituiu o painel de debate, esteve João Pereira. Segundo entende o académico, é urgente produzir-se estudos sobre o fenómeno Cabo Delgado, pois há dinâmicas locais que os moçambicanos ainda não conseguem compreender, por exemplo, situações no terreno em que nem todas as pessoas são assassinadas.
“Então, a questão que se coloca é: por que certas pessoas são assassinadas, certas casas queimadas e outras não? Isto só pode ser compreendido a partir da análise às próprias dinâmicas locais, porque o radicalismo de Cabo Delgado também existe em Nampula”.
Bem dito, Pereira acredita que o que se passa em Mocímboa da Praia é uma mistura de várias coisas. A questão religiosa, já que grande parte das pessoas envolvidas são muçulmanas. Então, muito rapidamente, conota-se e faze-se ligação directa dos ataques ao islão. Segundo, defendeu o académico, outro factor determinante são os conflitos existentes entre os crentes da nova geração e da velha. Os mais novos, formados na Tanzânia ou no Quénia, têm dificuldade de se enquadrar nas mesquitas de Cabo Delgado, devido às formas divergentes de se interpretar o alcorão ou a sharia. “Isto tem criado tensões fortes!”, afirmou Pereira, frisando que os promotores dos ataques têm redes com outros grupos que controlam negócios ilícitos na região dos Grandes Lagos, os quais alimentam grandes elites da Tanzânia como em Moçambique, com domínio sobre o território nacional. “E como não existe um poder muito forte do Estado, as pessoas daquelas regiões ficam bastante vulneráveis”.
Sobre as divergências entre muçulmanos de gerações diferentes apontadas por João Pereira, o Sheik Saíde Habib vê nisso um falso problema, até porque as “querelas” entre os defensores de um islão mais sistematizado ou enraizado e os que defendem o islão mais assente na africanidade é normal e não é algo novo.
Daí essa divergência de pensamento nunca antes ter criado um radicalismo a nível nacional.
Na qualidade de moderador esteve Mia Couto, que não se inibiu de partilhar a sua sensibilidade sobre o fenómeno em discussão. Na óptica do escritor, num cenário em que se acredita que o terrorismo no mundo é fomentado pela religião muçulmana, todos devem unir-se em defesa da verdade, que não é essa. Ainda assim, o escritor destaca: “acho que os muçulmanos, em particular, devem ter um papel mais proactivo nessa defesa, afinal, nesses ataques pelo mundo, protagonizados em nome do islão, a maior parte das vítimas são muçulmanos, que estão na frente de batalha contra aqueles que fazem manipulação da religião por razões políticas ou de negócio, que, muito provavelmente, é o que está a acontecer aqui no país”.