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ARTIGOS DE OPINIÃO

“Sangue em flecha” é um romance que se desdobra entre Maputo, Magude, África do Sul e China, e, mais para o fim, Niassa. É-nos revelado por um narrador autodiegético, talvez por isso com mais propriedade o caro leitor se mergulhe e perca na história, confundindo as suas peripécias com a sua história de vida, pela naturalidade com que é narrada a vida de Salomão, jovem que não se entende com o pai e, por isso, é muito apegado à mãe.

Salomão é um jovem oriundo de uma família com posses, que vive no centro da cidade de Maputo. Economista de formação, entretanto, nunca chegou a exercer a sua profissão, pois não gosta de trabalhar e depende dos pais, pelo que se dedica a gerir namoros efémeros com distintas mulheres que, apesar do amor não correspondido, morrem de amores.

Por conta das desavenças frontais com o pai, decide abandonar os pais e ir a Magude, terra natal do pai, à procura de reestruturação da sua vida. Por ser apaixonado pela fotografia, leva consigo uma máquina fotográfica, para registar todos os momentos e lugares pelos quais passaria. Em Magude, é convidado por um português, Mulungo, a trabalhar como motorista e este aceita. Todavia, o seu espírito de “rabo de saia” possuía-o, pelo que se apaixona pela esposa mais nova do seu polígamo tio, Arão. Por conta do possível incesto que fosse cometer, porque já tinha fotografias suficientes para uma possível exposição, Salomão decide abandonar o emprego e o tio, alegando que já tinha recolhido imagens suficientes.

Nesse interlúdio, Romão, seu primo, convida-o a um projecto supostamente financiado pelos EUA. Salomão entrava, involuntariamente, num grupo de caça-furtiva, sediado na África do Sul, dentro do qual, com as idas e voltas a Maputo, África do Sul e Magude, vivia um triângulo amoroso mal construído com Elisa e Jane, até que lhe é apresentada a Luísa, que se torna sua esposa e ajuda a concentrar-se.

Nesse ínterim, Salomão consegue sair do xadrez criado pelo primo, até que fizesse parte do grupo de caça-furtiva e mergulha-se não no ramo da Economia, mas de Educação Ambiental, tendo criado o projecto Casa da Natureza, com o objectivo de ensinar às comunidades, principalmente crianças, lições de protecção ao ambiente, com especial enfoque para recursos faunísticos.

Salomão metia-se, afinal, num outro problema, pois o seu passado o perseguia. Romão, que outrora estava morto, ressurge para atormentar a sua vida; Lídia já não aguentava as ausências de Salomão e via o seu relacionamento esfriar, banhado de mentiras e incongruências. Salomão vê a Casa da Natureza em chamas e, consequentemente, os seus sonhos tornando-se em cinza.

Nisto, Salomão, de em quando em vez, recompunha-se na Rua Araújo, com a prostituta Rosa que, mais do que uma prostituta, se servia de conselheira; chegando, em algumas vezes, a não se envolverem sexualmente.

Ora, em “Sangue em flecha”, há uma representação clara do realismo social moçambicano, nomeadamente a dicotomia campo-cidade, a poligamia, a traição, etc., apresentando uma intertextualidade com as obras “Niketche”, de Paulina Chiziane, e “Ilusão à Primeira Vista”, de Almeida Cumbane.

O realismo foi um movimento artístico-literário que surgiu nas últimas décadas do século XIX, na França, no qual os escritores retratavam o Homem e a sociedade tal como eram. Tal como se pode aferir em diversas fontes, ele surge na Europa, especificamente na França, e vai sendo desenvolvido noutros continentes, porém, é manifesto em textos em prosa. 

Para Reis e Lopes (2002), a representação pode ser abordada em termos dialécticos e não dicotómicos, o que significa que, entre o representante e o representado, existe uma relação de interdependência activa, de tal modo que o primeiro constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que, entretanto, continua ausente.

Esta abordagem conduz-nos à noção de pseudoreferencialidade que, de acordo com Silva (1984), se configura não por referencialidade imediata, mas mediata, pois que, embora haja uma relação de interdependência activa entre o representante e o representado, o discurso artístico afirma-se relativamente autónomo.

Veja-se, por exemplo, quando o narrador descreve a vida do campo e, igualmente, a poligamia, quando diz:

“Tinha dito que não voltaria para o almoço, mas, pelo caminho, arrependi-me. Devia era ter dito ao tio Arão. Ele é que fazia a gestão de tudo em casa, desde as quantidades do que comíamos todos os dias até à hora das refeições. Na hora das “manjas”, o meu tio vigiava as panelas. Os olhos acompanhavam cada pedaço de galinha que ia aos nossos pratos. Ele ficava sempre com a melhor parte. A Elisa preparava uma galinha inteira só para ele.

Quando se comesse peixe, os maiores peixes eram para o meu tio. Eu achava tudo aquilo repelente. Tive que me habituar. Ele era o oposto do meu pai. A única semelhança que havia entre eles era idade, o mesmo rosto e muita altura. Altura que herdei. Meu tio parecia mais velho que o meu pai. Talvez seja por gerir muitas mulheres e muitos filhos, isso também envelhece muito rápido a qualquer um.” (Espada, 2025:43) (destaque nosso) No que concerne à traição que, aliás, Espada soube muito bem encaixá-la, através da analepse (recuo), um recurso estilístico muito usado para arrefecer a narração e, através do encaixe que o caracteriza, esclarecer algumas nuances da narrativa, o narrador revela que foi naquela circunstância em que ficou a saber que o pai, Jerónimo, se envolvera com a esposa do irmão, mãe do Romão, quando assevera:

“(…) Meu pai baixou a cabeça. Eu acompanhei tudo. Foi nesse mesmo

dia em que fiquei a saber que os dois partilhavam apenas o mesmo quarto.

Durante muitos anos, o meu pai dormia num colchão. Nunca pensei que aquele

colchão que tantas vezes vi era onde o meu pai se deitava todas as noites.”

(Espada, 2025:47)

Como que em vaticínio à máxima segundo a qual “filho de peixe peixinho é”, o narrador expõe em claro o facto de ter sido um bom aprendiz, quando diz:

“Pela primeira vez, olhei para a minha tia. Nunca tinha reparado que

ela era uma mulher linda e com a parte traseira avantajada. Tomei banho e

decidi descansar. Eu estava cansado. Dormi só cinco minutos ou dez minutos.

Acordei e, ainda deitado, lembrei-me da Elisa. O seu corpo de menina

passeava pelos meus olhos. Levantei-me e saí para contemplá-la apenas.

Ninguém me podia proibir de sonhar um pouco e alimentar a minha vista. Nem

mesmo Deus. Ocorreu-me que eu estivesse a ficar maluco. (Espada,

2025:50) (destaques nossos)

Portanto, “Sangue em flecha” trata-se de um romance que retracta, numa linguagem simples e moçambicanamente trinchada, coadjuvada por suspenses e surpresas, o realismo social moçambicano, pincelado por poligamia, a vida do campo vs. cidade, traições e, acima de tudo, feridas abertas por flechas humanas. Estamos perante um romance que conjuga o

amor e o ódio, a perseguição e o amor à natureza e, por que não ao próximo?

Vale, por isso, lembrar o leitor que “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” (Aristóteles, 2003) Não é o nosso objectivo esgotar as nuances sugeridas pelo romance “Sangue em flecha”, mas, sim, espevitá-lo a que o adquire e navegue neste sangue que, por causa das flechas que a vida nos prega, jorra em nossas

vidas; pelo que deverá descobrir:

(i) Como terminou o relacionamento entre Salomão e Jane?

(ii) Como terminou o amor doentio entre Salomão e Elisa, sua tia mais nova?

(iii) Como terminou a Rosa, a prostituta conselheira? e

(iv) Que desfecho Salomão deu à sua vida?

Por fim, parafraseando Cumbane, após a leitura, se o livro for bom, recomende-o aos seus amigos; se for mau, aos seus inimigos. Só não deixe de o recomendar.

 

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. (2003). Poética, 7ªed., Lisboa. Volume VIII.

ESPADA, S. (2025). Sangue em flecha, Maputo: Ethale Publishing.

REIS, C. e Lopes, A. (2002). Dicionário de Narratologia, 7ª.ed., Coimbra: Almedina.

SILVA, V. (1984). Teoria da literatura. 6ªed., Coimbra: Livraria Almedina.

 

carlosdagraca18@gmail.com

Assim como a mistura entre as cores azul e amarelo dá origem ao verde, eu insisti em acreditar que a fusão da minha vontade de ser alguém com o meu esforço incessante poderia também resultar numa tonalidade vibrante de esperança. O verde, dizem, é a cor da esperança. Mas, que ironia amarga, para mim, esse verde não floresce. Porque, na realidade, sinto-me afogada numa palete de cinzentos nebulosos, banhada por uma profunda melancolia que não se dissipa.

Como posso eu julgar que existe qualquer resquício de esperança quando os pilares da minha existência — a minha família — me atribuem um preço? Oiço as palavras atormentadas que ecoam na minha mente, questionando: quanto vale uma vida? Tinha eu a crença ingénua de que a minha vida era inestimável, mas segundo os meus próprios progenitores, sacrifícios e valores monetários tornaram-se o preço cobrado pelo meu futuro, pelo meu bem-estar e pelos meus sonhos mais queridos.

Fui ferida duas vezes, e cada ferida carrega um peso insuportável que me acompanha a cada passo que dou. A primeira vez, pela ferocidade de um homem que deveria ser portador de amor e proteção, com idade para ser meu avô, que, na visão de muitos, deveria oferecer mimos e carinho incondicional, mas no meu caso se revelava como o estuprador que despojou minha infância e a inocência que ainda me restava. Em um único momento, ele se tornou o arauto da dor, obliterando a luz que emitia em meu ser e transformando aquele que deveria ser um refúgio seguro num labirinto de terror.

A segunda ferida, mais insidiosa, veio do silêncio cúmplice dos meus próprios pais, que, ao invés de se levantarem em minha defesa, optaram por um acto de traição. Trocaram a dor da minha alma por algumas migalhas, como se o meu sofrimento pudesse ser apagado por uma mesquinha oferta de alimentos e um valor monetário, aceitando essas sobras como se fossem uma desculpa válida. Com isso, negaram não só a gravidade do que havia ocorrido, mas também a chance de eu me sentir válida e protegida. Cada uma dessas feridas tornou-se uma tatuagem invisível em minha alma, um lembrete constante das promessas quebradas e da inocência que nunca mais retornará. 

A dor não se apaga, e a luta para encontrar novos significados em meio a tanto sofrimento é um caminho tortuoso, onde cada dia é uma batalha entre a vontade de renascer e as lembranças que insistem em me manter presa ao passado. Se os avós deveriam ser sinônimo de amor, por que na minha história eles se transformaram em algo tão oposto? Essa dualidade persiste, e sigo à procura de um futuro onde a dor que me foi infligida não defina minha identidade, mas sim a força que sou capaz de reunir para superar.Que esperança pode ainda existir em mim, quando a confiança se desfez nas sombras da traição? O meu coração anseia por uma luz que não chega, enquanto o peso da tristeza me sufoca, como uma neblina densa, impedindo-me de ver o caminho à frente. A vida tornou-se uma tela manchada pelas dores do passado, e só deliro ao imaginar um futuro onde a cor verde da esperança possa, finalmente, renascer.

Este é o relato de uma criança cujos olhos, outrora brilhantes e cheios de esperança, se viram envoltos na escuridão de um pesadelo inimaginável. Nos braços de um homem que deveria ser um protetor, a sua inocência foi despedaçada, deixando uma cicatriz indelével na sua alma ainda delicada. Aquele momento cruel não foi apenas um ataque à sua integridade; foi uma violação da própria essência do ser infantil, um roubo que ecoaria por toda a sua vida.

E quando a criança olhou em busca de amparo, de conforto e de amor nos braços dos seus pais, encontrou-se em vez disso, com a frieza de uma traição que não esperava. O segundo golpe, mais devastador que o primeiro, desferido por aqueles que deviam ser os seus maiores defensores, que deveriam proteger e cuidar, mas que, em vez disso, se tornaram cúmplices silenciosos do acto mais odioso que a vida poderia infligir.

O fardo que estas crianças carregam é insuportável, e é impossível não sentir um profundo desejo de que todos aqueles que destroem os sonhos inocentes, assim como os que olham para o lado e permitem que essas atrocidades aconteçam, fossem eliminados do tecido da sociedade. A injustiça que se perpetrava sob a tutela de quem devia cuidar grita por mudança, pede por justiça, clama por um mundo onde nenhuma criança tenha de sofrer a dor que traz consigo. Que cada um de nós encontre o valor e a coragem para agir, para proteger, e, assim, garantir que a inocência das crianças não seja mais uma vítima das sombras que se escondem entre sorrisos e promessas quebradas.

Muitos podem assumir que a violação sexual se limita ao acto físico, mas, na verdade, essa dor se estende além da mera carne, permeando atitudes e acções que invadem a intimidade de uma forma devastadora. Vejamos o relato de uma jovem maior de idade, cuja vida se tornaria marcada por um trauma inesperado em um dia que deveria ser de celebração.

Era uma tarde radiante de sol, onde as risadas ecoavam e o amor pairava no ar durante a celebração de um matrimônio. Todos estavam felizes, imersos na alegria daquela união, e a jovem, como testemunha do amor, também tentava se deixar levar pela energia contagiante do momento. No entanto, ela nunca imaginou que aquele dia lhe traria uma das experiências mais sombrias e profundas de sua vida.

Durante a sessão de fotografias, enquanto todos posavam com sorrisos luminosos, um senhor, que era parte daquele evento, decidiu cruzar uma linha que não deveria ser ultrapassada. Enquanto se preparavam para capturar aquele instante, ele, de forma intencional e cruel, apalpou as nádegas da jovem. A sua mente levou um momento para processar a invasão, até que, ao se voltar, se deparou com o sorriso insidioso daquele homem, que, mesmo acompanhado da esposa, parecia se regozijar na sua própria impunidade. Ele piscou um olho para ela, como se a sua acção fosse um jogo.

Neste instante, a jovem sentiu-se a pessoa mais suja e envergonhada do mundo. Todo aquele brilho e alegria do casamento se desfizeram como areia entre os dedos. O único desejo que a consumia era o de encontrar um buraco onde pudesse enfiar-se, longe daquela realidade cruel que lhe havia sido imposta. Desde aquele momento até o final da celebração, a jovem que ostentava um sorriso para os outros mergulhou num profundo poço de tristeza, um luto pela sua inocência e segurança. 

Embora ocupasse um papel relevante na cerimônia, a sua única vontade era ir para casa, para se afastar daquele homem que a ferira de tão perto, que transformara um dia de amor em um pesadelo silencioso. Hoje, passados cinco anos, o eco daquilo ainda ressoa dentro dela; as memórias não se apagam, e o impacto daquela acção tão desumana continua a marcar sua vida, refletindo que a violação vai além do corpo, petrificando-se na alma e nos sentimentos. É um lembrete doloroso de que o respeito pelo outro deve ser inegociável, e que cada sorriso escondido pode ocultar cicatrizes que nunca se fecham.

Que essa história chegue aos corações dos que a leem, que desperte a compaixão por aqueles que sofrem em silêncio, e que nos faça a todos mais atentos, mais protetores. Que possamos ser a mudança que queremos ver, lutando para proteger a inocência das crianças e garantir que ninguém tenha que enfrentar a dor que destrói sonhos e arroba a vida. É preciso aprender a ouvir, a acolher e a agir, para que possamos, juntos, construir um mundo onde cada ser possa prosperar em dignidade e amor…!

Estamos em 1992. Sob o sol quente de um dia que parecia carregar em si os ventos da história, eu e a minha mãe empreendemos uma jornada singela, mas carregada de significado. Acompanhávamos o meu primo, um jovem de coração aberto e olhar sorridente, até a vila do Caniçado, em Guijá, na província de Gaza. Era o dia da sua apresentação formal na casa dos pais da namorada, um ritual cultural que tecia os fios da tradição com os da esperança. O caminho, poeirento e sinuoso, parecia sussurrar promessas de união, enquanto o horizonte se desenhava em tons de terra e céu. 

Chegamos, enfim, àquele lar simples, mas erguido com a dignidade de quem sabe acolher. A hospitalidade moçambicana, essa chama que nunca se apaga, envolveu-nos como um abraço. Os cumprimentos dançaram no ar, palavras gentis trocadas como presentes, e as apresentações, feitas com o devido respeito, abriram as portas para o que estava por vir.

O meu primo, em seu momento de solenidade, foi apresentado como o namorado da filha da casa. Tudo transcorreu em harmonia, como se o próprio tempo, em reverência às regras culturais, tivesse pausado para abençoar aquele instante.

Após a cerimónia, o aroma de um almoço generoso invadiu o ambiente. Os pratos fumegantes, os risos que ecoavam como música, e as conversas que se entrelaçavam como rios em busca do mar. Foi então, entre garfadas e memórias partilhadas, que o pai da namorada, um homem de semblante simpático mas olhos curiosos, voltou-se para a minha mãe com uma pergunta simples, quase casual: “E vocês, que língua nacional falam?” A minha mãe, com a serenidade de quem carrega a sua identidade como um tesouro, respondeu: “Somos lomwés da Zambézia, e por isso falamos a língua Lomwé.” O que se seguiu foi um instante de pura magia, um daqueles momentos em que o destino parece rir de contentamento.

Para o nosso espanto, o homem, com um sorriso que desvendava segredos, começou a falar Lomwé com uma fluência que nos deixou boquiabertos. As palavras saíam da sua boca como pássaros livres, voando em direcção à minha mãe, que, surpresa, respondeu na mesma língua. De repente, o quintal daquela casa em Caniçado transformou-se num palco de reencontro improvável. A conversa entre os dois ganhou vida, um diálogo animado que dançava ao som de uma melodia ancestral, enquanto nós, os mais jovens, observávamos, atónitos, o florescer daquela conexão inesperada.

Curiosos, pedimos que ele contasse como viera a dominar tão bem a nossa língua. E ele, com a calma de quem já viveu muitas vidas, abriu as portas do passado. Contou-nos que aprendera o Lomwé em São Tomé e Príncipe, para onde fora levado como deportado, numa época de sombras e exílio. Lá, entre moçambicanos, a saudade da terra natal os unira. Foi nesse chão distante que ele encontrou um amigo moçambicano, um companheiro de alma, com quem fez um pacto simples, mas profundo: ensinar um ao outro as suas línguas maternas. E assim, dia após dia, entre risos e silêncios, trocaram palavras, sons e pedaços das suas raízes. Ele aprendeu o Lomwé, e o amigo, por sua vez, abraçou a língua dele, o Shangana. Um acto de resistência, de amor, de humanidade.

Aquele encontro no Caniçado, que começara como uma formalidade, tornou-se algo maior. A apresentação do meu primo, agora, repousava sobre um alicerce mais forte, banhado pela familiaridade de duas etnias que, por um capricho do destino, partilhavam o mesmo idioma. O que era apenas um namoro ganhou contornos de promessa, de laços que transcendiam o tempo e o espaço. E ali, sob o céu de Gaza, enquanto o sol se despedia lentamente, eu não pude deixar de pensar: o mundo, sim, é redondo. Redondo como as histórias que nos encontram, como os caminhos que se cruzam, como as línguas que, mesmo separadas por rios, montanhas ou mares, acabam por se abraçar.

 

Era uma daquelas tardes abrasadoras que só o interior de Moçambique sabe oferecer. A terra em Funhalouro estava seca, cansada e sedenta, como se o calor fosse eterno. Mas ali, onde o silêncio reina e o horizonte parece intocável, havia mais do que uma vila à espera de água. Havia uma história à espera de ser contada.

Foi neste pequeno canto da província de Inhambane que uma lição de liderança brotou do chão, não pelas mãos da tecnologia, mas pela sabedoria do povo. Tudo começou com uma missão aparentemente simples: abrir furos para trazer água às comunidades locais. A equipa chegou munida de máquinas e convicções, mas esqueceram o essencial – o diálogo.

Cinco tentativas frustradas depois, o responsável pela obra viu-se encurralado entre a terra que se recusava a ceder e a pressão de entregar resultados. Num momento de desespero, o líder da equipe decidiu ligar ao então Governador de Inhambane, Daniel Chapo, talvez na esperança de ouvir uma solução técnica ou, quem sabe, uma autorização para desistir. Mas Chapo, com a calma de quem já enfrentou outras secas – físicas e metafóricas –, ofereceu uma resposta que ninguém esperava.

“Já falaram com a comunidade? Já ouviram o que eles têm a dizer?”

A resposta foi um desconcertante “não”. Afinal, na cabeça de quem está habituado a operar máquinas e consultar mapas, a terra deveria ser dominada pela ciência, e não pela história oral. Chapo insistiu: “Voltem. Sentem-se com as pessoas. Escutem. A sabedoria delas vale mais do que qualquer equipamento.”

E assim foi. Numa roda simples, cercados pela humildade de quem conhece a terra como a palma da mão, a equipa ouviu as vozes que antes ignoraram. Um régulo, com um sorriso que parecia misturar paciência e ironia, resumiu tudo numa frase: “Pensámos que sabiam o que estavam a fazer. Mas já que perguntam, podemos ajudar.”

Guiados pelos conselhos da comunidade, os engenheiros começaram a perfurar onde a população indicava. E, como se a terra quisesse premiar a escuta e a colaboração, cada furo trouxe à superfície a água tão aguardada. A alegria que brotou do chão era apenas igualada pelo alívio de quem, finalmente, foi ouvido.

Mas esta história não é apenas sobre água. É sobre liderança. Sobre o tipo de líder que não se esconde atrás de estatísticas ou teorias, mas que entende que a força de Moçambique está no seu povo.

Daniel Chapo, que hoje preside o país, mostrou, naquele dia em Funhalouro, que a verdadeira liderança não nasce de decisões solitárias, mas da humildade de saber ouvir. E, agora, ao olhar para ele como Presidente, a pergunta que ecoa é: será que manterá essa proximidade? Será que continuará a acreditar que o futuro de Moçambique só pode ser construído de mãos dadas com o povo?

Os moçambicanos querem um presidente que saiba que as máquinas sozinhas não constroem o progresso e que o desenvolvimento só acontece quando se trabalha com as pessoas, e não para elas. Queremos um país onde cada voz conta, onde o agricultor, o pescador e o estudante têm tanto a ensinar quanto o economista ou o engenheiro.

Talvez a maior lição de Funhalouro seja esta: não importa quão avançada seja a tecnologia ou quão bem-intencionadas sejam as políticas. Se o povo não for ouvido, os furos continuarão secos.

Hoje, Daniel Chapo carrega o peso de um país cheio de sonhos e desafios. Mas, como Funhalouro mostrou, a solução não está apenas nas suas mãos. Está nas vozes dos moçambicanos, nas comunidades que, tal como a terra, esperam apenas ser tocadas com respeito e atenção.

Moçambique é uma terra de potencial, mas esse potencial só será realizado quando todos forem incluídos no processo. Como em Funhalouro, o sucesso de Chapo como Presidente não será medido pelo número de projetos concluídos, mas pelo impacto real na vida das pessoas.

A água de Funhalouro não foi apenas um recurso encontrado; foi uma lição aprendida. E que esta lição seja a bússola que guie Moçambique para um futuro mais justo, mais inclusivo e mais humano.

Pois, no final, a verdadeira força de um líder não está em impor soluções, mas em construir pontes para que o povo possa, ele próprio, encontrar as respostas que sempre teve.

Tal como foi em Inhambane, acredito num Daniel Chapo, agora Presidente, mostrando que o verdadeiro sucesso da liderança está em ouvir, em aprender, e em trabalhar lado a lado com o povo. Pois, no final, como ele bem sabe, a verdadeira força de Moçambique não vem das sondas ou dos furos, mas da sabedoria coletiva e da colaboração constante entre governo e cidadãos. 

Esse é o Moçambique que queremos ver crescer.

A precariedade da educação leva-nos a afirmar, muitas vezes de forma simplista, que “há jovens que não falam as suas línguas nativas. Eles são uma vergonha!”. Mas será essa uma análise justa?

Fiz parte de uma geração que cresceu num período em que falar línguas moçambicanas na escola era não apenas desencorajado, mas expressamente proibido e até motivo de insulto e castigos. Para aqueles cuja língua materna era o cinyungwe, aprender qualquer matéria se tornava um desafio gigantesco, pois o ensino era exclusivamente em português. Eu, por outro lado, tive o privilégio de ter o português como língua materna e, por isso, nunca enfrentei barreiras linguísticas na escola. Se não compreendia algo, sabia que a dificuldade não era linguística.

Até há pouco tempo, essa realidade era considerada normal. Afinal, há pessoas que chegaram aos 50 anos sem jamais serem fluentes nas suas línguas nativas.

Poderemos considerá-las neofalantes? Não sei. Para o serem, seria necessário que tivessem abandonado voluntariamente a sua língua materna em prol de outra, atingindo, nessa nova língua, um domínio oral e escrito considerável. Contudo, o que se verifica é que muitos moçambicanos não chegam a ser fluentes nem em português nem nas suas línguas nativas, resultado directo de uma realidade que, por décadas, fragilizou e marginalizou as línguas africanas, retardando sua aceitação, padronização e valorização.

O cenário actual é ainda mais crítico quando compreendemos que essa supressão linguística foi reforçada pela infame “lei do assimilado” do regime colonial português. Esta legislação promovia a ideia de que as línguas africanas eram destituídas de valor e que apenas a proficiência em português permitiria aos moçambicanos alguma vantagem. Ser fluente em português tornava-se um passaporte para determinadas funções no Estado, para a participação em cerimónias oficiais e para a ascensão a uma elite que, muitas vezes sem se dar conta, operava a favor do regime colonial. Até à queda desse regime, as nossas línguas já eram amplamente marginalizadas, consideradas indignas, apelidadas de “línguas de cão”. Essa barreira ideológica demorou a ser quebrada, e apenas nas últimas duas décadas começaram a surgir políticas linguísticas voltadas para a sua valorização.

A necessidade de introduzir as línguas moçambicanas no sistema de ensino tornou-se evidente, mas a forma como esse processo foi conduzido gerou estranheza e resistência. Recordo-me de 2007, quando uma brigada visitou a escola primária onde eu estudava para recrutar alunos interessados em aprender cinyungwe. A adesão foi mínima. Para a maioria, parecia ilógico aprender formalmente uma língua que já falava e, para mim, que só dominava o português, parecia inútil estudar uma língua que a sociedade ainda estigmatizava. Em qualquer dos casos, não se viam vantagens. A falta de uma explicação clara sobre a importância dessa mudança fez com que o projecto fosse recebido com desinteresse e desconfiança. Esse preconceito linguístico persiste até hoje.

O reflexo desse histórico de marginalização é evidente: durante muito tempo, as elevadas taxas de reprovação escolar coincidiram com a alta percentagem de alunos não fluentes em português. Esse factor levou professores a adoptarem estratégias para equilibrar as notas no final do ano, mascarando uma realidade preocupante. Contrastando com essa situação, no período imediatamente após a independência, o saber era valorizado acima da origem ou da idade. Muitos moçambicanos foram nomeados para cargos e funções importantes, pelo conhecimento e experiência que possuíam e, acredito, só depois pelo domínio do português.

A reflexão impõe-se: estaremos, agora, a tentar reverter um processo que não começou connosco? Ou estaremos apenas a tentar sobreviver às cicatrizes de um passado linguístico imposto?

Neofalantismo e a importância do cinyungwe 

Quando cheguei à oitava classe (2008), a restrição de falar as nossas línguas na escola já não era tão rígida. Muitos colegas meus eram fluentes em cinyungwe, e foi então que, por iniciativa própria, decidi começar a falar a minha língua. Esse momento marcou uma mudança significativa na minha relação com o idioma e com a minha identidade cultural.

Durante muito tempo, a escola representou um espaço onde a língua portuguesa era a norma, enquanto as línguas locais eram desincentivadas. Esse fenómeno não é exclusivo de Moçambique; ocorre em diversos contextos onde uma língua oficial, muitas vezes herdada do colonialismo, ocupa uma posição de prestígio em detrimento das línguas indígenas. No entanto, ao ver os meus colegas expressando-se naturalmente em cinyungwe, percebi que havia um espaço para retomar minha língua de herança. 

Não me interessa muito se esse processo de reapropriação da língua pode ser descrito como um caso de neofalantismo, um termo usado para designar aqueles que, apesar de não terem aprendido uma língua desde a infância ou não a terem usado activamente por algum período, passam a adoptá-la como meio de comunicação no dia-a-dia. Para mim, essa transição foi tanto um desafio quanto um acto de resistência. No início, enfrentei dificuldades para encontrar as palavras certas e formular frases com fluidez, mas, com o tempo, fui ganhando confiança e desenvolvendo um sentimento de pertencimento mais profundo.

Falar cinyungwe não era apenas uma questão linguística, mas também uma forma de me reconectar com a minha cultura e com a minha comunidade. Era um reencontro com as histórias, expressões e sabedorias que fazem parte do meu povo. A língua carrega em si a memória colectiva, os valores e a cosmovisão de um grupo, e resgatá-la é um passo essencial para fortalecer a identidade cultural.

Actualmente, as línguas moçambicanas ainda enfrentam desafios no reconhecimento e valorização dentro da sociedade. Embora haja políticas linguísticas que busquem promover o ensino e o uso das línguas locais, ainda há um longo caminho a percorrer para que o cinyungwe e outras línguas moçambicanas tenham o espaço que merecem. Ser um neofalante, nesse contexto, não é apenas uma escolha pessoal, mas um acto político e social. 

Acredito que a valorização das línguas locais deve ser uma missão colectiva. O cinyungwe, assim como o changana, o macua, o sena e tantas outras línguas faladas em Moçambique, são parte fundamental do nosso património cultural. 

Cada vez que escolhemos falar, aprender e ensinar as nossas línguas, estamos contribuindo para a sua preservação e continuidade para as futuras gerações.

O meu percurso como neofalante da minha própria língua foi uma jornada de descoberta e empoderamento. Espero que mais jovens sintam-se encorajados a abraçar as suas línguas maternas e perceber que nelas há uma riqueza inestimável.

A língua não é apenas um meio de comunicação, mas também uma afirmação de quem somos e de onde viemos.

Aura é um conceito com vários significados, considerando os distintos contextos de inserção do termo. Segundo o dicionário Prebiram da internet, a Aura é descrita como um ambiente psicológico que parece envolver ou influenciar algo ou alguém.

A AI inteligência artificial possui uma definição similar, aura é um suposto círculo de luz ou energia que envolve o corpo.

Se a exposição de Maria Chale, patente na Fundação Fernando Leite Couto, denominada “Agente da passiva”, que foi inaugurada no dia 12 de Março de 2025, também for entendida como um “corpo”, podemos, seguramente, dizer que esta exposição também possui uma aura, cabe a cada espectador desvendar a aura da exposição.

O título “Agente da passiva” remete-nos a uma dupla fragilidade humana, a incapacidade de sermos protagonistas de todos os eventos que nos ocorrem, e a dificuldade que temos em admitir que somos criaturas frágeis.

Os rostos da exposição, se metamorfoseiam em rostos vividos no nosso quotidiano, são rostos do mercado, da nossa vizinhança, são rostos do nosso prédio, do nosso bairro, são figuras moçambicanizadas visualmente pelos seus rostos e pelas suas vivências.

Se Maria Chale, durante um plebiscito com as telas e aguarelas, foi passada para “agente da passiva”, com certeza uma aura lhe foi entregue para recriar o quotidiano social em que vivemos em quadros como: o preço do saco subiu, a nova cunhada, a patrulha.

Enfeitiçada pela aura do ofício visual, Maria recriou visualmente as diversas auras que tomam posse de si enquanto uma “agente da passiva” que não pode parar o imprevisto de dar vida às telas.

O quadro Aura X feito com recurso a técnica Aguarela sobre papel, com a dimensão de 20x30cm, criado em 2025, é parte da exposição, Maria Chale com o seu talento, convida o espectador a interpretar as emoções visuais do quadro.

Aura X é um quadro que caracteriza o mistério, o desconhecido, com um fundo branco, apresenta linhas e formas indefinidas, as cores ganham vida sobrepondo-se umas por cima das outras, numa tonalidade ora esverdeada ora enegrecida, a tonalidade escura transmite a ideia de algo errado.

O quadro é intrigante, as cores estão em desarmonia, o espectador é transportado para um lugar de desconforto e meditação, a sensação mais patente do quadro é o inconformismo. Chale provavelmente quis espelhar o estado de um cidadão, ou uma aura rebelde, que segue o seu próprio curso, e pelo caminho encontra vários obstáculos, mas inconformada, vai criando, novos caminhos, novas estradas, representadas através das várias curvas de aguarela na tela, essas curvas são saídas, são processos complexos e trabalhosos até este cidadão ou aura chegar ao topo do quadro, o seu destino final.

Para espectadores com menos sensibilidade visual, o facto de não haverem formas convencionais no quadro, e o único recurso de imaginação ser a palavra aura, que por sinal foi tida em vários quadros, pode originar uma limitação na interpretação do quadro.

Aura X pode ser a personificação do clima de tensão e instabilidade que vivemos em Moçambique, deixando cada cidadão em estado de lamúrias e inconformismo.

Aliás, inconformismo é o que todos precisamos para buscar uma mudança e a paz.

Maria Chale é licenciada em Arquitectura e Planeamento Físico pela Universidade Eduardo Mondlane, segue uma carreira apaixonada, e está actualmente na sua terceira exposição individual.

 

Quando se constituiu o artigo 51 que garante à população o direito ao ajuntamento e

manifestação foi com base na fé racional de que, num Estado Democrático, a opinião e participação do povo são essenciais para que haja uma boa governação no país.

Neste sentido, o direito à manifestação devia ser tido como um veículo democrático concebido para transportar a opinião, o clamor, as inquietações das maiorias ou minorias sobre um determinado fenômeno social até a uma autoridade governamental com objectivo de esta criar um espaço de discussão ou negociação em busca de uma solução eficaz ao problema.

Por isso, não era suposto que as manifestações fossem vistas como um empecilho para a realização e consolidação do Estado Democrático em Moçambique. Pelo contrário, o seu exercício deveria ser tido como um meio fidedigno de captar-se a  real vontade, a sensibilidade e a opinião do povo sobre assuntos importantes para

estabilidade, união e progresso duma nação.

E, quando avaliado o grito dos manifestantes e notar-se a sua pertinência, o governo deveria estar apto a criar um espaço de diálogo com os próprios manifestantes, buscando esclarecer mal-entendidos ou corrigir-se dos seus erros cometidos. Todo e qualquer governo que se põe a ouvir a inquietação do povo e se predispõe a dialogar com ele, consegue claramente encontrar soluções pacíficas e eficazes à altura dos problemas apresentados. A comunicação pode salvar uma nação.

Todavia, uma ideia errônea sobre a importância do direito à manifestação tem norteado mal o regime do dia. De forma prática, o governo moçambicano continua com a perniciosa concepção de que aquele que se manifesta nas ruas assume uma posição inimiga contra o Estado ou mesmo serve de boicote à governação do partido no poder.

Sendo assim, todos os grupos que se fizerem à rua com alguma objecção sócio-política amiúde têm sofrido repreensão violenta da Polícia, uma força legal sob o comando do executivo. Em Moçambique, as manifestações que não registam ocorrências de casos de violência policial são aquelas que normalmente louvam algum feito do governo. E, curiosamente, têm sido manifestações lideradas pelos grupos pró-governo como OJM, OMM, CNJ e outras filiações do partido no poder.

Esta clara descriminação reforça a impressão duma postura antidemocrática do governo quando se trata de respeitar as práticas civis previstas na constituição. Deste modo, servindo-se da política de violência policial contra as manifestações pacíficas, o governo fecha a esfera pública, proibindo assim o exercício da liberdade de expressão colectiva tanto às maiorias como às minorias na nossa sociedade.

 

Não havendo aceitação política de os grupos sociais participarem, ainda que de forma pacífica, na esfera pública, automaticamente, o governo impede-lhes o direito de serem ouvidos e a possibilidade de terem os seus problemas ou inquietações resolvidos por ele próprio. Esta postura de ignorar as reivindicações daqueles que marcham, protestam traduz fielmente uma política do silêncio de um regime ditatorial.

Ante este comportamento antidemocrático de uso excessivo da força policial e indiferença do governo às reais inquietações dos protestantes, que alternativas restam a este povo oprimido e ignorado?

Não resta outra alternativa conveniente às massas senão responder à ditadura com as versões da mesma moeda: violência, vandalismo, desobediência, insurreição. O líder socialista venezuelano, Hugo Chávez, já havia constatado essa eventual reacção de um povo farto de ditadura, quando sentenciou:

“Los que le cierram el camino a la revolución pacífica, le abren al miesmo tiempo el camino a la revolución violenta” (Trad.: aqueles que impedem o caminho para revolução (manifestação) pacífica, abrem, ao mesmo tempo, o caminho à revolução violenta.)

Em Moçambique, tal caminho para acções populares violentas ficou aberto, como consequência de um longo período de repreensão violenta a manifestações pacíficas que reivindicavam a verdade eleitoral, salários atrasados, raptos dos empregadores, má governação e alto custo de vida.

Quando se proíbe que um povo manifeste a sua indignação na rua, de forma pacífica e ordeira, o mesmo povo acaba vendo-se obrigado a recorrer à destruição como uma forma legítima de obter atenção suprema ou criar a pressão sobre o seu governo no desespero de que os seus problemas não sejam mais ignorados. Sendo assim, barricar as vias públicas, queimar pneus, pilhar e destruir as instituições públicas, incluindo propriedades privadas, passa a ser o seu novo modus operandi acompanhado de desobediência civil e, às vezes, de assassinatos dos supostos apoiantes ou defensores do regime.

Este comportamento popular, embora bárbaro e censurável, é de fácil compreensão,

pois é um comportamento que até se observa em relações interpessoais. Quando, por exemplo, um credor lhe é devido o seu dinheiro pelo caloteiro, e ele usa meios pacíficos para reaver o seu valor, mas é ignorado, evitado e, às vezes, humilhado, o que acontece é que este credor se acaba vendo na obrigação de mudar de método de cobrança da sua dívida. E, muitas vezes, o meio de pressão que ele encontra acaba envolvendo ultimatos, pancadarias e apreensão de bens. Reitero: a violência é um meio que se deve censurar e desencorajar, entretanto, a melhor maneira de dissuadi-la é abrir canais de diálogo e liberdade de expressão. Sem essas condições, as massas tenderão sempre a recorrer ao caos para impor a sua vontade ou obrigar que a sua reclamação seja ouvida e acautelada pelas autoridades, a qualquer custo.

Em suma, é a falta de abertura a um diálogo responsável e o uso excessivo da força

policial que obrigou o povo a recorrer a manifestações violentas e desobediência civil como meio de expressão. Se o povo chega a desobedecer ou violentar um polícia, é que predominou nele a sensação de que esta autoridade não está mais a servir os interesses do Estado para os quais foi consagrada, mas os interesses particulares do regime. Se o povo chega a queimar tribunais e sedes do partido, é porque provavelmente teve a percepção que estas instituições são lhe corruptas e manipuladoras.

Para os males presentes de vandalismo e desobediência que se ameaçam deteriorar em anarquia absoluta ou guerra civil, não há outro remédio mais eficaz que abertura a um diálogo comprometido com mudanças necessárias capazes de tornar as instituições públicas autônomas e credíveis. As sementes da insurreição popular, em Moçambique, já foram lançadas, desde as eleições turbulentas de 2024, e não há que as impedir de germinar com uso de mais violência estatal, isso seria mesmo que as regar e adubar.

Em tempos de ódio, apenas o diálogo e compromisso com a mudança podem impedir a derrocada de uma nação. Delongar o processo de reconciliação nacional assemelha-se a deixar a tuberculose propagar-se por mais tempo no nosso organismo. Quanto mais tarde a doença for tratada, mais penosa e difícil será a sua cura, como disse Nicolau Maquiavel.

O caminho para paz não passa por perseguir aqueles que  estão no lado oposto ou contrário do regime, mas corrigir as razões que os levaram a passar para o outro lado, tal como apelou o artista moçambicano, Azagaia, “mude a causa para mudar a consequência” (in Povo no Poder).

 

A história de um país não se escreve apenas com factos, mas também com silêncios. Há episódios que são meticulosamente arquivados, distorcidos ou simplesmente apagados. Em Moçambique, a memória colectiva ergue-se nesse equilíbrio frágil entre o que se revela e o que se omite. Chave de Areia, de Bento Baloi, inscreve-se nesse território instável, onde a busca pela verdade se choca com relatos dispersos e identidades voláteis.

O romance não apenas revisita um dos episódios mais enigmáticos da história moçambicana — o desastre de Mbuzini —, como também entrelaça essa tragédia nacional aos estilhaços de uma família consumida por traições, segredos e revelações inesperadas.

A obra opera em múltiplos níveis: há uma investigação sobre a morte de Samora Machel, onde política e conspiração se entrecruzam; um drama íntimo, tecido pelo triângulo amoroso entre Márcia, Roberto e Chirindza; e uma jornada identitária, conduzida por Dambu, um jovem que se vê confrontado com a instabilidade de suas origens.

Essas camadas não são independentes — o pessoal e o político se fundem a tal ponto que a pergunta que se impõe não é apenas “o que realmente aconteceu?” mas também, “o que significa ser moçambicano quando a própria memória do país é uma disputa?”.

A morte de Samora Machel, em Mbuzini, permanece como um mistério envolto em versões contraditórias. Bento Baloi não busca fornecer respostas definitivas, mas insere essa tragédia no centro da narrativa, transformando-a em um espelho para reflectir outras formas de silenciamento e distorção da verdade.

O romance não se limita a reconstruir os acontecimentos históricos. Ele os coloca em tensão com personagens que também vivem cercados por verdades provisórias e lembranças que se desmancham ao toque. O autor conduz o leitor por documentos, relatos e investigações, tornando a obra um exercício de memória colectiva.

No entanto, essa sobrecarga informativa, por vezes, atrasa a fluidez da história, exigindo um leitor atento. Ainda assim, essa escolha estilística reforça a ideia de que compreender o passado — seja nacional ou pessoal — exige esforço, paciência e persistência.

 

No plano íntimo, o romance desvela relações corroídas pelo tempo e pelas circunstâncias.

 

Márcia, investigadora do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, não carrega apenas documentos e pesquisas — traz consigo os escombros de uma vida permeada por escolhas difíceis. Chirindza, seu antigo amor, partiu para estudar no exterior e, ao regressar, encontrou-a casada com Roberto, seu grande amigo. Esse reencontro não só é um choque emocional, como também uma metáfora para um país onde as ausências nunca deixam o espaço vazio por muito tempo, ou seja, “nós sempre deixamos alguma coisa para trás. Não podemos evitar. Isso é o que nos define” ( In: A Insustentável leveza do ser, de Milan Kundera).

O conflito entre Chirindza e Roberto não se limita à disputa amorosa. É um embate onde ninguém sai ileso.

Para Dambu, que sempre acreditou pertencer àquela história, a revelação de que não é filho biológico de Márcia desmorona as suas certezas. Sua identidade, que parecia tão bem definida, revela-se frágil, quase ilusória. O que resta quando tudo aquilo que nos definia se dissolve?

O título da obra não é um detalhe arbitrário. Chave de Areia sugere uma metáfora: a chave, símbolo de acesso ao conhecimento, à verdade e à identidade, se desfaz antes mesmo de cumprir a sua função. Como a areia que escapa entre os dedos, a História de Moçambique, as memórias familiares e as certezas de Dambu se fragmentam à medida que ele avança em sua busca.

Bento Baloi constrói um romance que desafia o leitor a questionar para além do passado oficial do país, também as narrativas que sustentam nossas próprias existências. Há momentos em que a densidade da trama exige esforço, mas esse é o preço de uma obra que se recusa a oferecer respostas simplistas.

E, no fim, o livro nos deixa uma inquietação: é possível construir uma identidade sobre alicerces movediços? Se a história de um país se faz tanto do que se conta quanto do que se cala, onde está, afinal, a verdade?

Talvez ela resida menos nas respostas e mais nas perguntas que ousamos fazer, nas memórias que recusamos enterrar. Porque compreender Moçambique – e a nós mesmos – exige encarar o que se dissolve, se distorce e se reconstrói. E, acima de tudo, exige a consciência de que a luta não termina na última página. Como dizia Samora Machel, “a luta continua!”.

 

Ancorando novas coordenadas, traçando novos planos, as duas sessões anuais (Assembleia Popular Nacional e Conferência Consultiva Política do Povo Chinês) da China, que acabaram de ter lugar em Beijing, semeam a confiança na modernização ao estilo chinês e iluminam uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade.

Navio económico gigantesco navega pelas ondas e ventos.

Em 2024, o Produto Interno Bruto da China alcançou 134,9 trilhões de yuans, com um crescimento de 5% em relação ao ano anterior. A produção de cereais atingiu pela primeira vez 700 mil milhões de quilogramas. Foram criados 12,56 milhões de novos postos de trabalho urbanos. A produção anual de veículos de nova energia superou as 13 milhões de unidades. Os dados encorajadores apresentados no relatório do governo central mostrou ao mundo a força e vitalidade extraordinária da

economia chinesa. O desenvolvimento económico da China é sólido e repleto de vantagens. A China é o único país com todas as categorias industriais definidas pela ONU e os valores agregados da manufatura chinesa têm ocupado o primeiro lugar

do mundo por 14 anos consecutivos. A resiliência e o potencial do desenvolvimento económico da China são fortes. A taxa de contribuição chinesa para o crescimento económico global mantém-se em torno de 30%. O vasto mercado continua a oferecer dividendos de desenvolvimento para o mundo.

O ano corrente marca o final do 14º plano quinquenal da China e o início do planeamento do 15º plano quinquenal. A China continuará a impulsionar um maior aprofundamento integral da reforma, promovendo a construção de um grande país e o empreendimento da revitalização nacional por meio da modernização chinesa. Ao mesmo tempo, continuará a trazer mais oportunidades para a recuperação e crescimento da economia mundial.

Diplomacia de grande potência é vanguarda beneficiando o mundo.

Atualmente, a situação internacional está cheia de mudanças e desafios, com conflitos geopolíticos escalados. Os fenômenos do “desacoplamento e fragmentação das cadeias industriais e de abastecimento”, “pequenos pátios com vedações altas” e “cortinas de ferro tarifárias”; tornam-se cada vez mais evidentes.

Diante de desafios globais constantemente emergentes, a China adere a um verdadeiro multilateralismo e defende o conceito de governação global baseado na consulta, construção e partilha conjuntas. Honramos os compromissos do Acordo de Paris e construímos o maior sistema de produção de energia limpa do mundo. A China é o primeiro país do mundo a classificar oficialmente as substâncias relacionadas com o fentanil como uma classe, dando um contributo notável para a causa internacional da luta contra a droga. Insistimos numa cooperação económica e comercial mutuamente benéfica, opomo-nos às guerras tarifárias e comerciais que prejudicam os outros e a si próprio, e rejeitamos a politização e a instrumentalização das questões económicas e comerciais. A China propôs e implementou três iniciativas globais, e atualmente 82 países fazem parte do “Grupo de Amigos da Iniciativa Global de Desenvolvimento”, enquanto 119 países e organizações internacionais apoiam a Iniciativa Global de Segurança. A 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU aprovou por unânime a resolução sobre o Estabelecimento do Dia Internacional para o Diálogo entre Civilizações, proposta pela China.

O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e a vitória da Guerra Antifascista Mundial. A China é um dos fundadores e beneficiários da ordem internacional pós-WW II e também é um dos principais defensores e construtores dessa ordem. A China vai ficar firmemente ao lado correto da história e do progresso humano, defender a autoridade e o estatuto da ONU e opor-se ao hegemonismo, à política de poder, a todas as formas de unilateralismo e protecionismo, salvaguardando a justiça e a equidade internacionais e oferecendo mais fatores de certeza para um mundo incerto com a estabilidade da China.

Cooperação China-África atravessa montanhas e mares para abrir uma nova viagem. 

A China e a África são amigas, parceiras e irmãos verdadeiros que compartilham o mesmo futuro. Sob a liderança do presidente Xi Jinping e dos líderes africanos, as relações China-África abraça o melhor período na sua história, elevadas para uma comunidade com futuro compartilhado China-África de todos os tempos na nova era. A Ferrovia Tanzânia–Zâmbia, a Ferrovia Mombasa-Nairobi e a Ferrovia Addis Abeba–Djibuti, são exemplos da amizade China-África que liga o caminho da felicidade. O cultivo de arroz, a tecnologia de fungos e o atelier Lu Ban, são exemplo da cooperação China-África que entoa a canção da prosperidade.

O ano corrente marca o 25º aniversário da fundação do FOCAC e o 50º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas China-Moçambique. A China está disposta a trabalhar em conjunto com Moçambique para impulsionar a implementação das seis principais propostas de modernização e das dez ações de parceria, de forma a promover a modernização conjunta China-África. A China está disposta a fortalecer os intercâmbios de experiências da governança, implementar o tratamento de taxas alfandegárias zero a 100 por cento dos produtos de Moçambique e outras medidas preferenciais, expandir as oportunidades de cooperação nas áreas tais como economia digital e desenvolvimento verde, a fim de criar mais benefícios tangíveis para os povos dos dois países, escrevendo um novo

capítulo da amizade tradicional sino-moçambicana e injetando uma nova força para o desenvolvimento acelerado do Sul Global.

O labirinto de estradas em Massinga, pontuada por poeira e o cheiro da terra quente, levou-me ao Centro de Apoio a Idosos, um espaço simples, mas impregnado de histórias que, muitas vezes, preferíamos não ouvir. Foi lá que conheci Joaquina, uma mulher de 72 anos, pele enrugada pelo tempo e olhar vazio, mas com uma história tão pesada que me sufocou enquanto ela falava.

Sentada numa cadeira de madeira, com um lenço amarrado na cabeça, Joaquina contou-me sobre os dias mais sombrios da sua vida. “O meu filho tentou matar-me, senhor jornalista. Ele dizia que eu era uma feiticeira, que eu tinha amaldiçoado a sua vida. Mas eu sou apenas uma mãe…” A voz dela tremia, e os olhos, húmidos, carregavam uma mistura de dor e vergonha.

Joaquina teve quatro filhos, mas apenas um sobrevivia. Esse filho, que em tempos foi o centro do seu mundo, trabalhava na África do Sul, onde procurava o sustento que nunca chegou. Segundo ele, as suas constantes desgraças eram culpa da mãe. “Dizia que eu era a razão pela qual ele não prosperava, que eu o tinha enfeitiçado para não ter sorte no trabalho nem em nada.”

No princípio, as palavras eram cortantes, mas ainda suportáveis. “Chamava-me coisas feias… dizia que eu era má, que devia morrer. Eu fingia que não ouvia, mas, por dentro, doía tanto.” A violência psicológica deu lugar à física. Joaquina relatou que, quando o filho voltava de madrugada, embriagado, obrigava-a a ficar de pé durante horas enquanto ele a insultava. “Uma vez, ele atirou-me um prato cheio de comida à cara e disse: ‘Não precisas disto, feiticeira!’ Depois disso, parou de me dar de comer.”

O ponto mais baixo chegou numa noite fria. Após uma consulta com um curandeiro, o filho voltou com um olhar de ódio que Joaquina nunca tinha visto antes. “Disse-me que o curandeiro tinha-lhe explicado tudo: que eu tinha lançado feitiços para ele não arranjar mulher, para ele ter disfunção sexual e não sair de casa. Disse que eu queria controlá-lo para sempre.”

Foi nessa noite que ele tentou matá-la. “Agarrou numa faca e veio para cima de mim. Se não fosse o vizinho que ouviu os meus gritos, eu não estaria aqui para contar esta história.” Joaquina foi levada para o centro por esses vizinhos, mas o trauma ficou para sempre. Ela chora à noite, perguntando a Deus onde errou como mãe.

Enquanto ouvia Joaquina, sentia-me esmagado por uma questão: como pode alguém tentar matar a mulher que lhe deu a vida? Não é apenas a história de Joaquina. A província de Inhambane está repleta de casos semelhantes. Muitos idosos são acusados de feitiçaria pelos próprios filhos, netos ou vizinhos, com base em crenças alimentadas por curandeiros que agem como juízes e carrascos.

Esses curandeiros, que deveriam ser guardiões das nossas tradições, muitas vezes são catalisadores de tragédias. Como é possível que, em pleno século XXI, pessoas recorram a tais práticas para justificar fracassos pessoais? Por que é mais fácil culpar os pais do que assumir responsabilidades? Joaquina não é uma feiticeira. É uma mãe que amamentou, criou, chorou e lutou pelo filho. Mas, no final, tornou-se vítima dele.

Enquanto deixava o centro, a pergunta ecoava na minha mente: quando perdemos a nossa humanidade? Os filhos, que deveriam proteger os pais, agora são os algozes. A tradição, que deveria ser um pilar de união e respeito, tornou-se uma arma letal nas mãos de quem não entende o seu verdadeiro valor.

E quanto aos curandeiros? Não têm responsabilidade alguma neste ciclo de violência? Até que ponto eles contribuem para a construção de uma sociedade mais justa? Não deveriam ser educadores do amor e do respeito ao próximo, em vez de perpetuarem o ódio e a destruição de laços familiares?

Joaquina é apenas uma entre milhares. A violência contra os idosos é uma ferida aberta que denuncia o nosso fracasso enquanto sociedade. Somos um povo que canta o amor, mas que o mata em silêncio nas casas de Massinga, Vilankulo ou Morrumbene.

Ao regressar, as palavras de Joaquina ecoavam na minha mente: “Eu só queria que ele me chamasse de mãe outra vez.” E eu pergunto a cada um de nós: onde está o amor que juramos às nossas mães e pais quando eles nos carregavam no colo? Quando perdemos a capacidade de os ver como os seres que mais nos amaram?

Talvez ainda haja tempo para nos reencontrarmos com a humanidade perdida. Porque, no fim, o que resta é a pergunta que Joaquina nunca deixou de se fazer: “Mãe, não me mates mais.” Mas quem, realmente, matou quem?

Já é sobejamente conhecida a ideia de que a crítica literária pode ser tomada de determinada forma em função do espaço em que circula, dos objectivos que condicionam a sua produção, bem como dos mecanismos discursivos que a sustentam.

Vem daí a ideia de se distinguir a crítica literária jornalística da académica. Há, actualmente, uma crescente tendência de se prestar certa atenção à crítica literária que é feita em meios “contra-hegemónicos” (blogs, vlogs, redes de chat, etc.), mas, de uma ou de outra forma, esses
são, para mim, espaços de divulgação. Não vejo outra característica particular de textos que surgem nesses meios. Casos há em que um texto crítico publicado em tais meios é eminentemente jornalístico e, noutros casos, não poucos, é um texto académico.

Há, contudo, uma crescente apropriação do género crónica argumentativa/de opinião no domínio da crítica literária feita nesses meios. Tal apropriação não se resume a criadores de conteúdos de crítica literária, mas a vários intelectuais de diversas áreas que, pelo meio em que pretendem fazer circular o texto, despem-se das suas amarras académicas e dão ao texto um ar mais leve.

Mais agradável. Engraçado, porém profundo. Já agora, foi com esse propósito que surgiu a coluna “tasaver”.

Ainda que neste último caso e no da crítica jornalística haja um interesse de tornar o texto leve e menos “picante”, há sempre reacções crispadas. Defensivas. Agressivas, às vezes. É interessante quando tais reacções culminam em troca de cartas nos jornais ou em notas de esclarecimentos nos mesmos meios em que a crítica circulou. É até um exercício elegante.

Não penso que isto ocorra por acaso. Nem por causa de quem criticou ou por causa do criticado.

O facto é simples e claro: a crítica dói, meus senhores. Mas, muitas vezes, representa o choque de realidade de que precisamos. É essa consciência que faz com que doa menos e fiquemos gratos quando nos é dirigida nos meios jornalísticos tradicionais ou nos digitais (contra-
hegemónicos).

Curiosamente, esta é a crítica a que os autores têm acesso, porque circula. Gera debate. Promove a obra, mas também pode desacreditá-la.

Enquanto isso, a crítica académica anda ali como a dama intocável da zona. Que deseja alguns rapazes mas não se quer dirigir a eles. Vive fazendo comentários em surdina e quando um dos jovens (por si admirado ou não) se aproxima, finge que “não está nem aí”. É assim a academia. É assim a indústria cultural. É assim a sociedade. Todas essas são instâncias de poder. Onde há poder, há hipocrisia.

Comparando o que se produz, do ponto de vista crítico, no jornalismo, nos meios digitais e na academia, seria interessante que os escritores lessem géneros académicos produzidos sobre os seus livros. Na sua maioria, são textos ancorados a uma crítica de fundamentação. Uma crítica que “produz” uma teoria e procura fundamentá-la com base em excertos da obra ou na sua macro/micro-estrutura.

Mas nisso não há, apesar de me parecer um exercício um tanto quanto gasto pela perspectiva em que é tomado. Muitas vezes é feito de fora para dentro e não de dentro para fora, o que, quanto a mim, seria um pouco mais interessante.

Nesse exercício feito de fora para dentro. Dito de outra forma, da teoria para a fundamentação no texto, há um processo contínuo e cansativo de sacralização do texto e, outro pecado maior, o de endeusamento do autor empírico como se este e o autor textual fossem a mesma instância.

Seria interessante que os escritores lessem géneros académicos produzidos sobre os seus livros.

São textos muito elogiosos. Capazes de dizer o que nem o autor pensou quando escreveu tal texto. Nada vejo contra tal exercício: afinal a leitura interactiva dá espaço para esse mágico acontecimento: o texto terá diversas interpretações cada vez que passa pela igual diversidade de
leitores. É justo. Mas, cá entre nós, há exageros. Fazemos interpretações forçadas. Nesse movimento “de fora para dentro” há teorias que não encontram, na obra, um terreno fértil para ganhar vida, mas nós damos sempre um “empurrãozinho”. Um adubo acrescido. Uma rega aqui e
acolá, e zás, surge o título da crítica académica: “a manifestação de [FENÓMENO] em [TÍTULO DO LIVRO] de [AUTOR]” com argumentos totalmente “martelados”.

São estes “martelanços” que me fazem pensar no quão interessante seria se os autores tivessem acesso aos textos produzidos no meio académico sobre a sua produção literária à semelhança dos que são produzidos noutros meios e que geram reacções crispadas, pelo que surgem algumas perguntas de base:

1. Haveria igual reacção, mesmo não concordando com o que é dito?
2. Haveria interesse em interagir com o autor do texto crítico para entender melhor a sua
perspectiva?
3. Haveria um retorno ao exercício oficinal para aprimorar certos aspectos que possam ter
gerado a eventual “desorientação” do leitor crítico?
4. Haveria uma carta ao júri de defesa, se tiver sido um trabalho de culminação de curso?
5. Haveria uma carta ao editor da revista, se tiver sido um artigo publicado numa revista
científica?

Enfim! São muitas perguntas, para uma só resposta: seria interessante!

A graça disso não estaria no prazer de ver uma potencial “guerra de titãs” mas na movimentação do “sistema literário” que isso iria representar. Não seria novidade: há casos relatados em outras latitudes em que certos autores fizeram a carreira inteira de costas viradas
com um certo crítico ou um conjunto deles e as partes seguiram tranquilamente as suas vidas e continuaram a exercer o seu papel com consciência do que estavam a fazer…afinal, nem o autor nem o crítico são semideuses avessos ao contraditório. O fim máximo dessa divergência de perspectivas/opiniões/escolhas estéticas não foi sobre quem ganhou e quem perdeu, mas sobre a importância que isso teve para a manutenção do sistema literário que se estava a construir.

Em síntese, se quisermos um sistema sério e estivermos comprometidos com isso, precisamos de ultrapassar as “guerras das comadres”, “as lutas de almofadas”, “as doxas de bar e dos grupos de chat” e assumirmos um compromisso sério com a “sarna” que escolhemos para nos coçar: a escrita e publicação de livros.

A melodia fez-se ouvir como um suspense. Durante três, quatro, cinco minutos, os batimentos cardíacos do público aceleraram, ora acompanhando o ritmo da música que se anunciava, ora confrontando a razão e a emoção.

Na Sala Grande do Franco, os ponteiros do relógio marcavam 20h09. Mas, sem que ninguém se importasse pela hora, jovens e adultos de todas as idades adivinhavam, em surdina, o momento exacto em que a banda subiria ao palco.  Em quatro actos, tudo aconteceu ao seu ritmo. Rui Soeiro (baixista), Paulo Chibanga (bateria), Tiago Correia-Paulo (guitarra) e Pedro da Silva Pinto (vocalista)… Todos recebidos com efusivas salvas de palmas. Quer dos que já tinham visto o quarteto actuar há milhões de anos, quer dos que, pela primeira vez, tinham pela frente algo aparentemente improvável ou inusitado.

Como se se preparassem para a luta, os 340ml tocaram “Shotgun”, um tema de há duas décadas, mas que ainda soa novo neste mundo que inventa espingardas de todos os feitios. Essa foi uma introdução mesmo curta para o que vinha; como se o tempo nunca tivesse passado, afinal a última actuação oficial da banda foi numa digressão na África do Sul, eSwatini e Moçambique, em Agosto de 2012, os quatro rapazes concretizaram velhas sintonias num palco que teve a honra de os receber no primeiro de dois concertos agendados. Como se ainda tivessem alguma coisa a provar, interpretaram “Hang on to yourself (Rachel)”, numa espécie de invocação da saudade. Talvez, por isso, o público andou breves minutos perdido na busca de um lugar na história da banda. Nesses 7 ou 10 minutos, apesar de raros ataques de excitação, na Sala Grande ainda se podia manter a compostura. No entanto, mal soou “Midnight”, o mais clássico som dos 340, o Franco quase entrou em ebulição. Sol de pouca dura. A intro tinha sido programada para justamente aquecer os ânimos e (re)alimentar uma expectativa que já era alta.

Todos de pé ouviram os acordes de “Michelle”, mas não a Obama, entre sorrisos de uma expectativa propositadamente adiada. Foi nesse momento que, entre o público, se ouviu o editor da Kulera perguntar:

– Assim já começaste a escrever?

À pergunta de Emílio Cossa, instantes depois reforçada pelo artista visual João Roxo, o jornalista não respondeu. Até porque não se escreve na exacta proporção o que se sente em determinados concertos. Todavia, alguém queria porque queria que o jornalista registasse algumas linhas no bloco de notas. Então, de forma providencial, um câmara man foi usado pelo destino sem que se desse conta disso. Ingénuo, apareceu mesmo rente ao palco para fazer a melhor filmagem do mundo, e, como se dissesse: “Já que não queres escrever, então leia…”, virou as costas ao público e as palavras tornaram-se inteligíveis: back to the future.

Não fosse aquele um tão esperado concerto dos 340, aquela conjugação de letras inglesas passariam despercebidas. Mas o back to the future, com letras garrafais, pareciam prenunciar a ligação de um hiato que, finalmente, levaria a banda a uma dimensão ulterior. Por isso, quando, ao fim de meia hora, Pedro da Silva Pinto referiu que o concerto estava inserido nas celebrações dos 30 anos do Centro Cultural Franco-Moçambicano, de facto, no instante a seguir, pareceu que o sentido de futuro, entre os elementos da banda, estava garantido. Sobretudo quando Tiago Correia-Paulo fez o seguinte convite:

– Vamos tentar tocar uma música nova?

– Não sei. – Gracejou o Pedro.

Nesse curto diálogo, a ideia que pairou no ar foi a de que os 340ml estavam de “regresso” a uma nova era, na qual, seguramente, iriam gravar o tão adiado terceiro álbum. Entretanto, logo a seguir, compreendeu-se que a questão sobre música nova era apenas retórica. Baixando a linguagem, era papo furado, uma vez mais, para a banda manipular a expectativa do público. Portanto, tocaram “Regents park” na profundidade experimental de quem compõe cada nota musical no palco, e como se a existência e a música fossem sinónimos. Aí o público sentou-se um pouco. Recarregou as energias para o que vinha e ainda deu-se ao gosto de pensar em voz alta:

– Esse Pedro canta muito!

A afirmação daquela jovem mulher soou mais do que um sussurro no ouvido, foi qualquer coisa como abrir um botão da blusa de linho, branca e fresca, com os lábios por humedecer e os olhos esbugalhados de fervor. Mas o namorado da formosa mulher, qual Taylor Swift moçambicana, também embalado na sonoridade de sons como “Make it happen”, não compreendeu o alcance da repetida afirmação, “Esse Pedro canta muito!”, e ainda bem! De outro modo, nem mesmo o jornalista saberia como teria sido o “welanço” entre ele e o artista. 

Ainda sentados, muitos entre abraços e goles de cerveja, ouviu-se “The untitled song”, numa espécie de antídoto para todos os problemas que afectam o corpo e alma. Alguns puderam cantar e levitar, sem se interessarem com o relógio, inclusivamente, quando o quarteto interpretou “21:40”. Os mais atentos, apreciaram ainda os bons momentos de improvisação da banda, unindo uma sintonia espontânea e agradável a uma oportuna interacção com o auditório.   

De repente, “Friday night and I’m all alone”. Pura mentira! A noite não era de sexta-feira e os 340ml não estavam sozinhos. Ainda assim, o público, bando de distraídos, levantou-se aos saltos como se fosse a única coisa sensata a fazer, como se fosse “Meia-noite”, como se despertasse da realidade para um sonho, como se desse um grito de liberdade, como se celebrasse o passado e o por vir. Excitação absoluta, sincera e selvagem. 

A banda que iniciou o seu percurso musical em Maio de 2000, que lançou o álbum Moving, em 2003, e Sorry for the delay, em 2008, experimentou a paixão de se doar para os outros. 

– Pedro, entrega! – Tiago Correia-Paulo disse isso um par de vezes. Porém, a entrega foi de todos. Cada um do seu jeito, pôs o seu instrumento a vibrar mais forte do que podia, dando à guitarra, ao baixo e à bateria particularidades que pareciam inalcançáveis. 

– “Midnight” é a cena! – Disse Emílio Cossa, o editor. 

E quando, a certa altura da interpretação, Pedro da Silva Pinto cantou:

– You’re the one I’m adoring at the midnight drive-in. Ttraduzindo para português, qualquer coisa como “Você é quem eu estou adorando…”, aquela bela mulher concluiu que os versos eram para ela. Sem prestar muita atenção ao que sobrava do verso, abriu todos os botões da blusa, marca Zara, e pareceu estar a preparar-se para o que nunca ficou claro. Então tirou os óculos cor de rosa, afinal sem lentes, e conservou-os numa pequena Louis Vuitton castanha. Já com um teor de álcool amais no sangue, o namorado, qual Dr. Teodoro Madureira de Dona Flor e seus dois maridos, continuou entregue à sua sorte, feliz por ver a sua flor realizada aos abraços imaginados com um certo rapaz no palco.  

“Midnight” foi necessariamente a cena! Quando o tema acabou, houve quem pensou que o concerto tinha chegado ao fim. Percebeu-se logo que “Radio 75” era imprescindível. Há uns anos, a banda poderia ter interpretado o tema com a mesma amabilidade num perspectivado concerto de celebração dos 20 anos do álbum de estreia, Moving. A COVID-19 tramou a pretensão e a coisa ficou na vontade. 

Felizmente, a pandemia passou e uma empresa sul-africana, há séculos fã da banda, contactou os rapazes para realizarem concertos na Djoni. Porque os fãs moçambicanos há muito pediam um concerto em Maputo, os 340ml perceberam que não fazia sentido ignorar os seus conterrâneos. Com o Franco, encontraram uma data: 14 de Março de 2025. As vendas dos acessos ao show, entretanto, esgotaram (online), antes mesmo de o Franco receber os bilhetes impressos. Conclusão? Muita gente queria os ver. Solução? Uma nova data. Assim, como brincou a comunicação do Franco, “os últimos foram os primeiros”, uma vez que a data encontrada para o “concerto extra” foi 13 de Março. Assim, os 340ml agendaram quatro dias consecutivos de concertos: quinta e sexta-feira, em Maputo, e sábado e Domingo, em Joanesburgo e Cape Town, respectivamente. 

“Moodswing” e “Australopithecus” foram outros temas tocados. “Fairy tales” ficou para o fim. Entre uma e outra música, já em jeito de despedida, Paulo Chibanga foi o grande protagonista de uma “improvisação” muito engraçada. Imagine-se, o baterista com boas cordas vocais, enquanto tocava vivamente  o seu instrumento, “brincou de cantar” uns versos de “Empoderada errada”. A malta ouviu “txilar com cota” e sorriu divertido. 

O concerto de hora e meia estava evidentemente a chegar ao fim, mas Paulo Chibanga ainda deixou a bateria por instantes para abraçar a filha Imani, que, aos 10 anos de idade, mesmo a condizer com o significado do seu nome swahili, tem Fé de que será uma cantora. Foi a primeira vez que viu o pai actuar. Sentiu-se orgulhosa e garante que vai guardar a experiência como uma luz que sempre se acende à meia-noite.  

Por: Wang Hejun, Embaixador da China em Moçambique

Ancorando novas coordenadas, traçando novos planos, as duas sessões anuais (Assembleia Popular Nacional e Conferência Consultiva Política do Povo Chinês) da China, que acabaram de ter lugar em Beijing, semeam a confiança na modernização ao estilo chinês e iluminam uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade.

Navio económico gigantesco navega pelas ondas e ventos.

Em 2024, o Produto Interno Bruto da China alcançou 134,9 trilhões de yuans, com um crescimento de 5% em relação ao ano anterior. A produção de cereais atingiu pela primeira vez 700 mil milhões de quilogramas. Foram criados 12,56 milhões de novos postos de trabalho urbanos. A produção anual de veículos de nova energia superou as 13 milhões de unidades. Os dados encorajadores apresentados no relatório do governo central mostrou ao mundo a força e vitalidade extraordinária da economia chinesa. O desenvolvimento económico da China é sólido e repleto de vantagens. A China é o único país com todas as categorias industriais definidas pela ONU e os valores agregados da manufatura chinesa têm ocupado o primeiro lugar do mundo por 14 anos consecutivos. A resiliência e o potencial do desenvolvimento económico da China são fortes. A taxa de contribuição chinesa para o crescimento económico global mantém-se em torno de 30%. O vasto mercado continua a oferecer dividendos de desenvolvimento para o mundo.

O ano corrente marca o final do 14º plano quinquenal da China e o início do planeamento do 15º plano quinquenal. A China continuará a impulsionar um maior aprofundamento integral da reforma, promovendo a construção de um grande país e o empreendimento da revitalização nacional por meio da modernização chinesa. Ao mesmo tempo, continuará a trazer mais oportunidades para a recuperação e crescimento da economia mundial.

Diplomacia de grande potência é vanguarda beneficiando o mundo.

Atualmente, a situação internacional está cheia de mudanças e desafios, com conflitos geopolíticos escalados. Os fenômenos do “desacoplamento e fragmentação das cadeias industriais e de abastecimento”, “pequenos pátios com vedações altas” e “cortinas de ferro tarifárias” tornam-se cada vez mais evidentes. Diante de desafios globais constantemente emergentes, a China adere a um verdadeiro multilateralismo e defende o conceito de governação global baseado na consulta, construção e partilha conjuntas. Honramos os compromisssos do Acordo de Paris e construímos o maior sistema de produção de energia limpa do mundo. A China é o primeiro país do mundo a classificar oficialmente as substâncias relacionadas com o fentanil como uma classe, dando um contributo notável para a causa internacional da luta contra a droga. Insistimos numa cooperação económica e comercial mutuamente benéfica, opomo-nos às guerras tarifárias e comerciais que prejudicam os outros e a si próprio, e rejeitamos a politização e a instrumentalização das questões económicas e comerciais. A China propôs e implementou três iniciativas globais, e atualmente 82 países fazem parte do “Grupo de Amigos da Iniciativa Global de Desenvolvimento”, enquanto 119 países e organizações internacionais apoiam a Iniciativa Global de Segurança. A 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU aprovou por unânime a resolução sobre o Estabelecimento do Dia Internacional para o Diálogo entre Civilizações, proposta pela China.

O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e a vitória da Guerra Antifascista Mundial. A China é um dos fundadores e beneficiários da ordem internacional pós-WWII e também é um dos principais defensores e construtores dessa ordem. A China vai ficar firmemente ao lado correto da história e do progresso humano, defender a autoridade e o estatuto da ONU e opor-se ao hegemonismo, à política de poder, a todas as formas de unilateralismo e protecionismo, salvaguardando a justiça e a equidade internacionais e oferecendo mais fatores de certeza para um mundo incerto com a estabilidade da China.

Cooperação China-África atravessa montanhas e mares para abrir uma nova viagem.

A China e a África são amigas, parceiras e irmãos verdadeiros que compartilham o mesmo futuro. Sob a liderança do presidente Xi Jinping e dos líderes africanos, as relações China-África abraça o melhor período na sua história, elevadas para uma comunidade com futuro compartilhado China-África de todos os tempos na nova era. A Ferrovia Tanzânia–Zâmbia, a Ferrovia Mombasa-Nairobi e a Ferrovia Addis Abeba–Djibuti, são exemplos da amizade China-África que liga o caminho da felicidade. O cultivo de arroz, a tecnologia de fungos e o atelier Lu Ban, são exemplo da cooperação China-África que entoa a canção da prosperidade.

O ano corrente marca o 25º aniversário da fundação do FOCAC e o 50º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas China-Moçambique. A China está disposta a trabalhar em conjunto com Moçambique para impulsionar a implementação das seis principais propostas de modernização e das dez ações de parceria, de forma a promover a modernização conjunta China-África. A China está disposta a fortalecer os intercâmbios de experiências da governança, implementar o tratamento de taxas alfandegárias zero a 100 por cento dos produtos de Moçambique e outras medidas preferenciais, expandir as oportunidades de cooperação nas áreas tais como economia digital e desenvolvimento verde, a fim de criar mais benefícios tangíveis para os povos dos dois países, escrevendo um novo capítulo da amizade tradicional sino-moçambicana e injetando uma nova força para o desenvolvimento acelerado do Sul Global.

A realidade é que o tempo passa tão rápido que, por vezes, esquecemos de olhar para nós mesmos. E, ao dizer isso, refiro-me ao exercício cotidiano, frequentemente negligenciado, de observar aquilo que nos rodeia — tudo ou parte disso — pois somos feitos e definidos pelo meio no qual estamos inseridos e existimos. Ou seja, essa nossa realidade nos leva, em certos momentos, a esquecer de olhar para a própria realidade ou a fazê-lo de maneira superficial, com olhares fugazes sobre algo que exige nossa atenção e sensibilidade. É nesse entremeio, entre o esquecimento e o descurar, que a exposição “Agente da Passiva” emerge como um souvenir (em francês, uma lembrança), tecido por aquarelas e acrílico sobre papel, dessa nossa realidade.

A denominação da exposição sugere reflexões. Como se estivéssemos todos submetidos a leis e regras — da vida ou da existência — “Agente da Passiva” surge como um espelho da realidade, evidenciando que a vida é, de facto, regida por estruturas visíveis e invisíveis, que não apenas traçam caminhos ou impõem limites, mas também nos fazem vergar perante essas mesmas regras. Esse acto de vergar amplia o significado da exposição: o agente da passiva subordina-se à (lei da) vida. A questão se impõe: a que leis da vida? Talvez à forma, quase inconsciente, com que vivemos, onde, para os mais dramáticos, trata-se de uma marcha cega para um fim abismal. A resposta possível não esclarece, mas reflecte as normas que nos governam. Se perguntamos por que a vida é assim, a famosa resposta surge, irónica e resignada: “porque é”, ou, de outras formas, “as coisas são assim mesmo”. Diante disso, resta-nos apenas uma possibilidade: viver as coisas como são (ou não). 

O quadro “Disponível por “é uma mostra, amostra e montra desse cotidiano que, mesmo sendo visível e útil em um mundo acelerado como o nosso, ainda esconde algo sob a superfície: uma possível submissão às regras do mundo e da vida.

Em uma análise superficial, o 55 x 75 cm de Chale retrata fielmente a realidade, sem deformá-la interpretativamente, trazendo traços de puro realismo. Não apenas a exposição apresenta retratos realistas, mas também há espaço para a abstração, como nas sequências Aura I, II, III, entre outras. Voltando ao quadro “Disponível por Encomenda”, ele retrata o que observamos no dia a dia, sem necessidade de escavações profundas — basta a superfície da tez: pessoas ganhando a vida ou tentando ganhá-la por meio de encomendas de produtos, nhonga e etc. É um tema corriqueiro, nosso e actual, que Chale propõe. Afinal, quem nunca encomendou algo? Vivemos assim; no fim do dia, estamos todos envolvidos nessa dinâmica — encomendamos ou entregamos encomendas. Especialmente nas grandes cidades, essa engrenagem rege a rotina.

Essa alternância não nos caracteriza apenas como moçambicanos, mas reflecte uma grande parte do mundo. No entanto, entre nós, essa prática parece ganhar uma expressão singular: todos conhecem alguém que entrega encomendas ou já fez uma. Mas é preciso notar que essa actividade não é recente; o que mudou é que hoje ela já constitui uma economia consolidada.

Essa alternância justifica, portanto, a subordinação à (lei da) vida, onde as opções giram em torno das encomendas: uma vida mercantil, em que todos são vendedores em potencial e outros, compradores prováveis. De uma forma ou de outra, estamos todos submetidos à economia e ao mercado.

Actualmente, parece que tudo gira em torno de encomendas. No entanto, surge uma questão incómoda: o que, de facto, está disponível por encomenda? As coisas ou as pessoas? Torna-se difícil discernir se estamos falando de alguém disponível para entregar encomendas ou de alguém que só está disponível quando encomendado. Será que, no fim das contas, as pessoas também se tornam produtos, disponíveis sob demanda para os outros, para a vida e até para si mesmas? Esses são alguns dos efeitos do capitalismo que, em parte, nos sequestra o tempo ao nos fazer acreditar que tempo é dinheiro, obrigando-nos a correr sempre. Nessa pressa diária, só nos permitimos parar, conversar e trocar risos mediante uma “encomenda”, esquecendo-nos de que o tempo é, na verdade, a própria vida.

No quadro, uma mulher de lado, com uma expressão de resignação, segura uma paperbag, normalmente usada para encomendas, especialmente entre a África do Sul e Moçambique, trazendo uma sensação de monção e movimento. Essa mulher retrata o nosso cotidiano, repleto de correrias por encomendas: encomenda-se tudo menos nada. Mas a questão ainda me parece válida, pela forma como nos subordinamos à vida, nós, os agentes passivos: o que está disponível por encomenda? Os produtos ou as pessoas?

À guisa de um introito

Maria Lamas escreveu o livro As Mulheres do meu país, nos anos 50, demonstrando que as mulheres portuguesas eram mais do que a caracterização de “domésticas” que lhes cabia. Revelou que eram pessoas de trabalho, contrariamente às ideias pejorativas que havia, a seu respeito, no seu contributo para a vida de famílias ou de um país. Foi no título do seu livro que me inspirei para celebrar as escritoras do meu país, em comemoração do “dia da mulher”.

A par de outras duas colegas de profissão, tenho andado a recensear a literatura de ficção da lavra de mulheres moçambicanas. Constato que têm sido empreendedoras, mais do que, preconceituosamente, se afirma e muito mais do que o silenciamento as relega.

No que à produção em livro diz respeito, em “Mulheres em trânsito”, no Congresso Alda Lara, em Lisboa, em 2019, Ana Mafalda Leite e eu, destacamos a existência de 35 mulheres. No mesmo ano, no seu livro intitulado Cartografias em construção: algumas escritoras moçambicanas, Ana Rita Santiago, pesquisadora brasileira, revelou existir esse mesmo número de escritoras. Numa pesquisa para apresentar uma palestra designada “Literatura Moçambicana: rastos e rostos da última década – 2010/2020”, na Associação de Escritores Moçambicanos, em 2020, consegui recencear 44 escritoras. E, numa outra recolha que realizei em 2023, a fim de apresentar uma comunicação no SINALLIP- 2023, um evento literário brasileiro, anotei 71 nomes de escritoras. Esse trabalho ainda está em actualização; até porque, me consta a edição de mais obras de lavra feminina. Devo referir que cada um desses levantamentos vai adicionando à lista existente, novas entradas.

É na sequência da ampliação dessa lista, reitero, ainda em actualização, que abordo, neste texto, o trabalho realizado na antologia Blasfêmeas: sangue e poesia (Blasfêmeas), organizada pela Gala-gala edições; que colige trabalhos de dezoito mulheres, das quais, três já têm livro publicado. Abordarei ainda a obra intitulada Recortes de mim desse tal de amor, publicada pela Chiado Books, ambas tiveram a sua apresentação pública no presente ano.

Levantam-se, andam e suplicam que não lhes tirem a arte

Blasfêmeas: sangue e poesia é a sexta antologia publicada pela Gala-gala Edições e organizada por Pedro Pereira Lopes; sendo a segunda exclusivamente dedicada a disseminar trabalhos de mulheres. A primeira obra, nesse sentido de exclusividade, foi editada em 2020 e leva o título de Carta para os filhos de Adão um e-book. Depois da independência, essa foi a primeira editora a publicar uma antologia de autoria apenas feminina. Destaco o género das mãos que escrevem os textos, porque, realizar um exclusivo desses revela-se importante e urgente, não só em Moçambique, como em muitos lugares do mundo.

A antologia acabada de referir foi editada em função de uma chamada para publicações para autoras sem livro publicado. Os trabalhos coligidos, nessa obra, foram aferidos do ponto de vista da sua qualidade e escolhidos, dentre outros que não estavam em condições para publicação, obviamente. Constam dela, mulheres que são publicadas pela primeira vez: Adelina Afonso, Camila Chilaúle, Cecília Mabjaia, Yanissa Khan ou Drofth Suhura, Ester Chiziane, Ivânia Paquete, Lasmim Caminho, Marlen dombo, N’wantsukunyani Khanyisani, Nívia Massango, Regina Nhamuchua, Samira Longamane, Saquina Pancrácio, Tatiana Muianga, Tulipa Negra e Hera de Jesus, vastamente antologiada noutros contextos. Nesse mesmo livro há textos de Merciana Uamba e Kaya M, autoras com livro publicado.

Segundo Pedro Lopes, na sua nota de apresentação deste livro afirma tratar-se de “um manifesto poético, um convite à celebração da mulher que, por meio da poesia, desafia regras, rompe silêncios e revela a sua presença num mundo dominado pelo patriarcado”. O título é sugestivo, porque, sendo um trocadilho, marca e grito de mulheres, essas “blasfemas”, que ousam desafiar um mundo real e de escrita literária dominado por homens. Além disso, trata-se de um título revelador da obra dessas mulheres – as fêmeas.

A Obra e suas temáticas

Essas mulheres são inspiradas pela obra de Noémia de Sousa, a mãe de todos os poetas moçambicanos, mulher, também irreverente na sua escrita e no alerta para que o mundo seja um bom lugar para se viver. É, também, claramente, esse o posicionamento de Maria Lamas, acima mencionada. É possível verificar-se sugestões disso nos textos das nossas antologiadas que, não tendo realizado um trabalho com uma mesma temática, têm o denominador comum de sugerir um grito contra as amarras da exclusão ou da dominação do mundo pelo género masculino ou masculinizado.

Digo masculinizado, porque, do que se sabe ou pode aprender sobre as lutas pelos feminismos é que há algumas pessoas que incentivam o afloramento da feminilidade, num mundo em que as mulheres sejam isso mesmo que a biologia lhes permitiu ser, mas que tenham direitos tão humanos quanto os homens. Explico esta aproximação remetendo o leitor à leitura do poema “estamos entregues” de Regina Nhamuchua, no livro Blasfêmeas: sangue e poesia que afirma:

 

Não sou Barbie das tuas expectativas/Sou a mulher das minhas realidades/ E
chama-me Shaka Zulu/pois quebrei todas as correntes/e vou construir o meu
próprio império de padrões/porque no meu corpo, sou o meu próprio padrão! … E
conduzo o meu Mercedes Benz/ Ao lado de quem conduz um Freightliner de
mente! Blasfêmeas, p. 75. [o sublinhado é meu].

O sujeito poético no excerto acabado de mencionar quer a sua afirmação enquanto pessoa e ser respeitado por tal. O mesmo o faz o sujeito no poema “caminhos” de Saquina Pancrácio que afirma “suplico em silencio que me abram/para sair e voltar a voar/… Não sei andar com os pequeninos pezinhos que tenho/mas posso voar com as grandes asas que, só as criei/ para poder voar quando não mais pudesse andar” […]. Blasfêmeas, p. 87. [o sublinhado é meu].

Existem, entretanto, outras mulheres que não usam esse direito. Aceitam a subjugação, mesmo sabendo que podem ter um destino melhor ou por outra, actuam de modo masculinizado ou o comumente chamado de dominação patriarcal.

As antologiadas de que tenho vindo a falar agem, tal como o sugeriu Noémia de Sousa: “levantaram-se e andaram”, sujeitaram-se à uma chamada de textos, para poderem publicar. E colocam o mesmo tipo de pensamento nos sujeitos ou sujeitas de enunciação dos seus textos, ie, sujeitos/as contestatários/as.

Passo, nessa sequência, a revelar, em linhas muito breves, o que suplicam. A ordem de enunciação dos textos foi feita por agrupamentos de significação. Esses grupos não fazem paredes estanques uns com os outros, dialogam no sentido de similaridade de temáticas.

Do trabalho de Ivânia Paquete, cuja poesia é rente ao labor da poetisa que inspira a antologia, num dos seus poemas intitulado “procura-me”, a autora, como que a desejar dizer: “Se me quiseres conhecer”, tal como Noémia de Sousa, afirma: “Procura-me”, sugerindo, se te aproximares, irás conhecer-me na minha perfeição e na minha imperfeição. Sou humana. Blasfêmeas, p.37.

Segue-se, após esse aviso um grupo de autoras que trabalharam a temática do grito, para que se dê voz e lugar à mulher e, passo a mencionar:

Adelina Afonso, em “Costa do sol” sugere o pedido de liberdade para seguir a vida. Junta -se esta autora Hera de Jesus, quando no seu poema intitulado “queremos, apenas, ser mulheres” revela: “Era uma vez…/mulheres/ que apenas/queriam ser mulheres/num mundo/cruel para mulheres. Blasfêmeas, p.43.

Por outro lado, e porque, provavelmente, a educação da rapariga devesse ter componentes mais complexas, Lasmim Caminho adverte, através do seu poema com o título “meu período, meu corpo, meu futuro”, que ao iniciar o seu período, é dito à rapariga que ela “cresceu”, nada mais sobre outras questões inerentes ao seu futuro de mulher. Daí ela alertar: “pois, eu sentia-me exposta, presa sem portas/ num mundo de padrões […]. Blasfêmeas, p.51.

Marlen Dombo dá voz aos excluídos: mudos, sonâmbulos, os que choram e às mulheres, convidando-os “a serem fortes o bastante, para gritar num ambiente no qual ninguém os ouve num lugar para deitar a gravata” […]. Blasfêmeas, p. 57. Quem também grita, com recurso ao seu sujeito poético e rejeita o lugar do silêncio da mulher é Merciana Uamba, que em “memórias de um não parto” coloca um sujeito poético que suplica por um colo para falar sobre os seus desejos, não se anulando. O que sugere, esta autora é que as mulheres não têm que viver como se fossem de aço. Têm sentimentos, tal como qualquer humano. Blasfêmeas, p. 63.

Outras mulheres, neste livro, se preocupam com um país que é sugestão de Moçambique:
Adelina Afonso, diz em “síndrome de Pemba”: “[…] “Onde pés tenebrosos perscrutam o Wimbe/Em busca de um novo porto/ “Sou persuadida todos os dias/a cá permanecer por mais um dia/ ou quando em “sono dos deuses chora a partida para a morte”. Blasfêmeas, p. 15. Esta temática constitui preocupação, também para Yanissa Khan, nos poemas “verão africano e “wayemba”. O primeiro que nos revela o choro derivado de uma guerra e o segundo que é um convite por uma luta pela vida.

Essa guerra em Cabo Delgado é também reclamada por Lasmim no seu poema “vim confessar-nos”, no qual o sujeito poético reza por dias melhores nesse espaço geográfico. A poesia de Tulipa Negra também se cinge a esse lugar de dor. Há uma descrição sobre o desperdício de vidas humanas e das riquezas ambientais de Cabo Delgado, que a autora descreve no seu poema com o título “diário do refugiado”.

Hera de Jesus demonstra-se atenta a diferentes problemas de Moçambique e aí temos a certeza de se tratar desse país, porque parte do seu Hino Nacional vem mencionado no poema intitulado “convulsão”, através do qual a autora reivindica o lugar de subalternidade relegada à mulher e ao país malcuidado. E desgovernado, recorda-nos Regina Nhamuchua que, através do seu poema “estamos entregues”, sugere que cada moçambicano deve 7 milhões à China.

Em “desencanto”, Dombo descreve Moçambique, o lugar onde os karinganas sobre os velhos tempos deixaram de ter lugar, entretanto, segundo ela, convém manter-se a esperança em dias melhores.

Há alusão à esperança e ao amor, nesta obra. A esperança em novos futuros, derivados da procriação, enaltecida por Kaya M. e esperança, em sermos nós “se a soberania o permitir”, diz-nos a autora, em “últimos delírios”. Já o amor é cantado em Camila Chilaúle que o liga à paixão, nos seus poemas “infinito é o vermelho poema e “frangipani”. Ester Chiziane faz-nos um convite ao cuidado pelo outro, em “meu amor” e “dançaremos, certamente”.

Nesta mesma tónica de amor e de cuidado, enaltecendo a arte, Samira Longamane refere: “neste papel passo a escrever acerca da minha família,/ dos momentos mágicos/enredos de afecto, ternura e convívio/… Descobri que escrever neste papel é mais seguro/porque ninguém falsificará a minha história”. […]. Blasfêmeas, p.p. 82-83.

A Violência doméstica é aflorada por Cecília Mabjaia nos poemas “a (in)felizarda e “ela é forte. Neles, a autora nos recorda que a mulher africana é ensinada a pacientar a vida e a dor que daí advenha. A par disso, Cecília Mabjaia vai longe, recorda-nos sobre os perigos do HIV, derivada da violência social na profissão da prostituição.

A temática da violência doméstica é, ainda, aflorada por Nívia Massango que pergunta quem é o homem, como que a questionar os direitos que se atribui para encher a mulher de pancada, silenciando a sua voz que, entretanto, grita. Tatiana Muianga é outra mulher que coloca o seu sujeito poético a reivindicar contra o silencio quanto à violência doméstica. Diz o seu poema “mulher de aço”: […] ”O canto do galo já é audível e o sono não chegou/ A angústia e a raiva consomem o meu corpo/ mas não posso denunciar/ As pancadas que recebo nas madrugadas”. […]. Blasfêmeas, p. 91. Esta poeta, no seu texto “despertei” alude um grande mal social, as violações sexuais a mulheres. Blasfêmeas, p. 92.

Há poesia erótica, neste livro. Ela é trazida pelo sujeito líricocriado por N’wantsukunyani Khanyisani, autora que se apresenta na obra, na qualidade de quem escreve “arte pela arte”, arte para deleite e fruição. E é em nome da revitalização da arte que termino convidando à leitura de Ivânea Paquete, no poema, de título “quando me for”. Nele, esta escritora enaltece o amor por esse fenómeno. Ainda na mesma senda, com o título “artes” Saquina Pancrácio, celebra este acontecimento, questionando: “E o que seria arte sem o amor/ Um corpo sem vida, talvez/ou uma fonte sem água/. […]. Blasfêmeas, p. 89.

Como se pôde constatar, esta é uma obra que, para além do grito de mulheres por um lugar diferente do subalterno é um grito e uma exaltação da arte, à semelhança do que se diz no excerto do poema “Súplica”, que é epigrafe do Blasfêmeas: sangue e poesia, no qual se diz, citando Noémia de Sousa: “ – Por isso pedimos,/de joelhos pedimos:/ tirem-nos tudo../mas não nos tirem a vida,/não nos tirem a música”.

Prometera, mais acima, abordar a antologia Blasfêmeas: sangue e poesia, para depois me ater à obra Recortes de mim desse tal de amor, título do primeiro livro de Sheila Miquidade. Reitero a importância de se celebrar trabalhos da lavra de mulheres.

Recortes de mim desse tal de amor
Trata-se de um livro composto por 78 páginas, incluindo os para-textos. Tem 47 poemas (graficamente, não se trata, pois de um poema para cada página). Há poemas curtos e outros longos, que se caracterizam em versos ou em prosa poética. Mas todos sabemos que o diálogo literário se estabelece através do conteúdo e não da quantidade de versos ou de palavras que uma obra contenha. Mais do que os textos, vale recordar que caracterizam a obra delicadas ilustrações em colagens de Inês Flor.

O título da obra remete a uma biografia. Entretanto, a forma estética a partir da qual o texto está escrito, os versos, fez-me acreditar que não se trate de uma obra desse género pois, do pondo de vista estético, o mais comum é a biografia ser escrita em prosa. Mesmo considerando a prosa poética, no livro, também, constata-se que o livro não é uma biografia. Em ambos casos, a julgar pela idade da autora do livro, mais o seu percurso, deduzível através dos dados biográficos que se encontram na contra-capa do livro, seria necessário mais espaço para narrar a sua trajectória de vida ou seja; lendo a obra não ficamos a conhecer a Sheila Miquidade, mas a sua escrita. Quero afirmar com isso que, um livro biográfico relata o curso de vida do seu autor.

Este livro pertence ao género a que se designa autoficção; escrita na qual a ficção e partes da identidade do autor convivem. Um exemplo do que acabei de afirmar pode ser encontrado no primeiro poema do livro, intitulado “Quem inventou o amor”. Este poema sugere o questionamento da nossa existência e da existência do amor. Há nele uma reflexão sobre a matéria e a origem do amor, que aludem a biografia da autora.

A autoficção subdivide-se escrita confeccional, que é o caso do livro de Sheila Miquidade e em ficção autobiográfica, quando se trate de narrativa que integre a identidade do seu autor. Recordo, entretanto, que para aferir os traços biográficos de um autor que escreva nessas vertentes é importante conhecê-lo pessoalmente ou entrevistá-lo, para não se incorrer em assupções sobre a sua identidade e as identidades  ficcionadas.

As aferições que fiz sobre a identidade da autora são baseadas no que é mencionado nas orelhas do livro, na qual se refere que “Sheila capturou momentos íntimos, transformando as suas experiências em versos que reflectem a sua jornada pessoal e a sua observação sobre o mundo”. Isto explica, claramente, a utilização de partes da biografia, mas não será a partir delas que se pode reconstituir o curso e o percurso de vida da autora empírica.

Em Teoria Literária, chama-se poesia lírica, a que fala sobre o amor (aquela através da qual se pode manifestar a subjectividade: o que se sente e o que pensa sobre o mundo ou sobre a vida). Na Bíblia Sagrada, mais precisamente no “Cânticos dos cânticos” ou “cânticos de Salomão encontramos as definições ou caracterizações sublimes e filosóficas sobre o amor; nomeadamente: amor fraternal (entre irmão, família e amigos); amor romântico (amor idealizado, desejo); amor de amizade ou philia (afeição); amor incondicional, ágape (cuidado com o bem-estar da pessoa) e, por fim, o amor sexual (desejo de prazer que um amado e uma amada sentem um pelo outro).

A propósito de escrever sobre o amor, devo, entretanto, recordar que, em Moçambique, até antes de 1984 a poesia sobre essa temática era proibida. A poesia lírica foi se construindo, ao longo do tempo. Somos um país jovem que, nos anos 60 escrevia apenas poesia de combate, através da qual se desejava que cada palavra em cada poema tivesse o efeito didáctico de luta contra o jugo colonial e “nada de poemas de amor”, dizia-se. (cfr. Brochura sobre o 1º Seminário Cultural [da Frelimo], decorrido entre 30 de Dezembro de 1971 e 21 de Janeiro de 1972, na rubrica resoluções sobre literatura).

Esse desiderato foi, timidamente, desconstruído por Luís Carlos Patraquim, através do seu livro Monção (1980), bem como a obra Raiz do Orvalho (1983) de Mia Couto. Foi mais tarde, em 1984, com a poesia de Eduardo White que ficou marcada a rutura total ao publicar a obra Amar sobre o Índico. Depois disso, escrever sobre o amor, em Moçambique, tornou-se corriqueiro. E hoje temos muitos autores que se dedicam a essa estética. Recortes de mim desse tal de amor da autoria de Sheila Miquidade é um desses exemplos.

Essa obra é classificável na estética de si, preconizada por Foucault, que fala, no âmbito dessa escrita, sobre (cuidados de si e cuidados do outro). Lendo Recortes de mim desse tal de amor, aliando ao que se diz na orelha do livro, pode se perceber que o livro resulta de um processo de ressignificação da vida do seu autor ou dito de outra forma: tratou-se de um processo no qual a arte cura a vida, como é o caso do poema, “Ai mãe, brotei”. Pg. 36.

Há ainda, no livro, repetições de expressões que nos remetem a reflexões sobre a condição e existência humana. Dou dois exemplos: Poema “Nós” – nós no vazio e na imensidão; “Do salto de bico alto” – o vazio da tua existência. Supostamente, as pessoas são o resultado de um acto de amor (um acto físico que se deseja prazeroso, mais do que romântico) e, por isso, deduzir-se que amar seja bom e que o amor faça bem (no sentido de plenitude), entretanto, o que a vida prova ou o que o livro ilustra é que as convenções sobre o amor são falhas. Há vazios na nossa existência. Há respostas no poema já aludido e no poema intitulado “Um café por favor”, no qual se fala de presença que é ausência, pg. 34. E tem mais, o último poema do livro brinda-nos com outras definições sobre o amor, o tal conceito difuso.

Termino como comecei. Vou recordar a importância de se não silenciar a escrita da lavra de mulheres, disseminando a sua obra, estimulando-as a escreverem, a publicarem ou mesmo analisando os seus trabalhos.

Recordo ainda que este texto ainda se encontra em construção, daí deixar o meu endereço electrónico, para quem deseje colaborar no recenseamento ora iniciado. Ainda há trabalhos de mulheres por registar, prova-o, por exemplo o facto de que, ainda a fechar este texto, para o enviar ao jornal, sou agradavelmente surpreendida pela notícia de que acaba de ser editada a obra No Dorso da Sombra, de Hera de Jesus, mencionada no grupo de mulheres antologiadas no livro Blasfêmeas: sangue e poesia.

Março de 2025

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

Na periferia esquecida do bairro Salela, nos subúrbios de Inhambane, vive Raci. Aos 73 anos, o peso da vida já lhe vergou as costas, mas não a vontade de lutar. O que resta de força no seu corpo magro sustenta uma rotina impensável para alguém da sua idade. Raci vive sozinha numa casa de zinco corroído, onde o vento atravessa as paredes como que a lembrar-lhe que está exposta, tal como a sua vida.

Até dois anos atrás, Raci recebia o que o Estado chamava de “subsídio social”. Pequeno, quase insignificante, mas suficiente para que ela comprasse farinha e sal e, com sorte, um punhado de feijão. Era pouco, mas representava um fio de dignidade. Até que, sem aviso, esse fio foi cortado.

Com o desaparecimento do subsídio, Raci foi obrigada a encontrar força onde já não existia. Trabalhar tornou-se uma questão de sobrevivência. Com as mãos calejadas e os joelhos castigados pela idade, ela começou a cultivar terrenos alheios em troca de algumas moedas ou de um punhado de milho. Acorda antes do nascer do sol e caminha pelos becos poeirentos à procura de quem precise de mão-de-obra. A fome não lhe dá outra escolha.

“Eu só queria descansar”, confessa, com lágrimas a correr pelas rugas do rosto. “Mas, se não trabalho, não como. E quem mais se importa comigo?”

O eco da sua pergunta é uma acusação directa ao Estado, que deveria protegê-la. O silêncio em resposta é ensurdecedor.

Raci não é um caso isolado. Nos subúrbios e nas aldeias esquecidas de Moçambique, milhares de idosos, crianças órfãs e pessoas com deficiência vivem situações semelhantes. Quando o subsídio social desapareceu, não foi apenas o dinheiro que se perdeu. Perdeu-se a dignidade, a esperança e a confiança num sistema que prometia não deixar ninguém para trás.

No bairro Salela, as histórias de sofrimento são compartilhadas como lamentos em coro. “Já não somos gente para eles”, diz uma vizinha de Raci, também vítima do corte no subsídio. As palavras simples carregam uma verdade cruel: o Estado abandonou os seus mais frágeis.

O Instituto Nacional de Acção Social (INAS) justificou-se com questões administrativas, mas que explicação administrativa pode aliviar a fome? Que burocracia justifica a morte lenta de quem não tem forças para lutar contra o abandono?

A Constituição de Moçambique proclama o direito de todos a uma vida digna. No papel, somos uma nação de solidariedade, porém a realidade é feita de vazios. O vazio no prato de Raci, no olhar de quem perdeu tudo, e no compromisso de um Governo que se esqueceu da sua gente.

É impossível não reflectir sobre o que nos tornámos. Como sociedade, aceitamos o sofrimento dos outros como um cenário de fundo, uma normalidade cruel que já não nos comove, mas histórias como a de Raci não podem ser apenas um ponto final. Elas exigem acção.

Ao cair da noite, Raci recolhe-se na sua casa. Uma lamparina ilumina o espaço precário enquanto mastiga o pouco que conseguiu juntar no dia. A fome ainda a acompanha, mas é o abandono que lhe pesa mais. E amanhã, quando o sol nascer, ela voltará à procura de trabalho, com um corpo que clama por descanso e um coração que já não sabe se vale a pena esperar por dias melhores.

Esta é a história de Raci, mas também é a história de um país que precisa urgentemente de olhar para dentro e ouvir o eco do abandono que grita nos subúrbios e nas aldeias. Até quando seremos surdos a este clamor? Quantas vidas mais terão de ser sacrificadas no altar da indiferença antes que façamos algo?

Raci sobrevive, mas o custo da sua resistência é uma acusação directa a todos nós, porque o abandono de Raci não é apenas dela – é nosso. E, enquanto ignorarmos isso, continuaremos a falhar como nação.

A felicidade, essa quimera que todos perseguimos incessantemente, raramente é alcançada de forma plena. A vida apresenta-se como um campo onde a satisfação plena é uma ilusão, um horizonte que recua, à medida que nos aproximamos. Este paradoxo reflecte-se tanto em situações de carência material, quanto em contextos de aparente abundância. Ao longo deste texto, iremos explorar as razões pelas quais a felicidade permanece um bem intangível e como o desejo insaciável e as pressões sociais perpetuam esse ciclo de insatisfação.

O Paradoxo da Satisfação e o Papel da Filosofia

A filosofia, há muito, sustenta que a felicidade é, por natureza, inalcançável. O conceito remonta a ideias de pensadores como Arthur Schopenhauer, que descrevia a vida como um pêndulo entre a dor e o tédio, e Immanuel Kant, que afirmava que a felicidade plena está fora do alcance humano, sendo a nossa existência pautada por um constante desejo de mais. Cada conquista alimenta novos desejos, criando uma espiral de expectativas que cresce indefinidamente. Assim, a realização é temporária e seguida pela sensação de vazio que se instala quando os novos anseios não são satisfeitos.

A questão central é que a própria natureza humana é contraditória. Queremos a estabilidade e o contentamento, mas somos biologicamente programados para buscar novos desafios e enfrentar novos obstáculos. Isto torna a felicidade um objectivo efémero e mutável. Quando atingimos o que julgávamos ser o auge da realização, novas metas e padrões emergem, ampliando o fosso entre a realidade e a satisfação esperada.

A Percepção Social e a Autoimagem

Outro factor que contribui para a infelicidade é a nossa necessidade de aceitação social.

O ser humano, como ser social, procura constantemente alinhar a sua autoimagem com os padrões ditados pela sociedade. Estes padrões, muitas vezes inatingíveis e construídos sobre idealizações, geram um ciclo de comparações e frustrações. A pressão para corresponder às expectativas externas faz com que muitos vivam a sua vida sob o peso do julgamento alheio, em vez de buscar autenticidade.

O fenómeno das redes sociais intensificou ainda mais esta tendência. Os “momentos de felicidade” partilhados são frequentemente curados e editados, criando uma ilusão de perfeição que poucos conseguem igualar na vida real. Esta distorção gera ansiedade e um constante sentimento de insuficiência, pois a felicidade que aparentamos não reflecte necessariamente a felicidade que sentimos.

A Influência das Crenças e as Dúvidas Existenciais 

Muitas pessoas encontram consolo em sistemas de crenças que prometem respostas para as grandes questões da vida e uma justificação para as dificuldades enfrentadas. Porém, mesmo as convicções mais sólidas podem ser abaladas por circunstâncias inesperadas.

A dúvida é um componente intrínseco da condição humana, e todos, em algum momento, deparam-se com a incerteza sobre o significado da sua existência. A interacção entre a espiritualidade e a racionalidade moderna é frequentemente relegada à esfera do psicológico, como se os nossos sentimentos e intuições não tivessem legitimidade.

Ainda assim, há momentos em que as experiências pessoais desafiam esta visão. A

A sensação de que forças além do nosso entendimento influenciam o nosso destino persiste, apesar das explicações científicas e racionalizações sociais. Acreditar ou duvidar torna-se uma luta constante entre o desejo de transcendência e a imposição de uma realidade concreta que parece conspirar contra a serenidade.

O Papel da Pobreza e das Desigualdades

A vida, para aqueles que enfrentam a pobreza, coloca uma perspectiva ainda mais sombria sobre a busca pela felicidade. A escassez de recursos básicos não apenas dificulta o acesso a oportunidades, mas também amplifica as preocupações quotidianas, reduzindo a capacidade de sonhar com algo mais. Quando a sobrevivência se sobrepõe a todas as outras ambições, o conceito de felicidade transforma-se em algo secundário e quase irreal.

Por outro lado, aqueles que já ultrapassaram as barreiras da carência material descobrem que a abundância não é garantia de felicidade. Como defendido por muitos pensadores contemporâneos, a abundância pode alimentar uma sensação de vazio existencial, quando os objectivos deixam de ser substanciais e passam a ser metas superficiais, alimentadas por uma cultura de consumismo e comparação.

Uma Nova Perspectiva: A Simplicidade e o Contentamento

Se, por um lado, as pessoas com ambições maiores enfrentam uma jornada mais tortuosa em direcção à felicidade, por outro, há lições a ser retiradas da simplicidade e da moderação. As filosofias orientais e as práticas de mindfulness ensinam que a felicidade pode residir na aceitação do presente, na gratidão pelo que se tem e na capacidade de viver com menos desejos. Quando se vive com intenções mais focadas e se valoriza o essencial, os pequenos prazeres da vida ganham nova relevância.

Uma pessoa com menos expectativas concentra-se em atingir as poucas metas que considera essenciais, reduzindo assim a discrepância entre o desejo e a realização. Essa abordagem permite um maior estado de contentamento e uma existência menos marcada pela frustração.

Conclusão

A busca pela felicidade é um tema tão antigo quanto a própria humanidade, e a sua complexidade reside na natureza multifacetada da nossa existência. O que se observa é que a felicidade não é um ponto fixo a ser alcançado, mas sim um estado fluido que varia de acordo com os desejos, as circunstâncias e a capacidade individual de encontrar significado e aceitação no percurso. Enquanto as sociedades modernas continuarem a fomentar uma cultura de consumo e de constantes comparações, a insatisfação será uma presença constante. A resposta pode estar em redireccionar o foco para o interior, para os pequenos momentos de alegria, e redefinir o que significa verdadeiramente ser feliz.

Este texto convida à reflexão sobre as armadilhas da vida contemporânea e relembra que, para alguns, a felicidade encontra-se na moderação e no cultivo de uma mente tranquila, longe dos excessos e das expectativas irrealistas.

 

Aqui é mister, prior a qualquer seguimento argumentativo, uma explanação que possa trazer luz no título que dá caminho a esse ensaio. Entende-se ‘o africano’ não como uma individualidade com origens de um lugar físico chamado África, nem se trata de uma colectividade de indivíduos conscientes de si mesmo oriundos ou viventes de um lugar físico chamado África, mas, pelo contrário disso, trata-se ‘o africano’, como ‘o cristão’, como cultura, onde, por dentro, residem as crenças, a religião, hábitos, e outros saberes que moldam e caracterizam um determinado povo. Essa justificação corrobora com o facto de haver africanos cristãos, individualidades de origem africana mas que professam a religião cristã. Essa mescla, por mais que possa parecer inconcebível, ela é justificável porque cristianismo é uma religião, e, o que assusta a muitos doutores de religiões e, em particular, a africanistas, é que uma religião é, acima de tudo, uma expressão cultural porque, diz-se, ela vem para responder os anseios de um determinado povo, só que, cada povo tem seus próprios anseios devido às condições materiais e espirituais em que estão submetidos.

A transmutação, sem auscultação, de certas religiões para outras regiões parece, em primeiro lugar, algo agressivo, digno de povos imperialistas, como o Ocidente na era de cristianização do mundo, mas essa historicidade sobre a expansão do cristianismo pelo mundo e, em particular, em África, não é aqui o ponto focal. O que interessa é que a imposição do cristianismo em África e, em especial, Moçambique criou focos de litígios, descontinuidade e, muito pouco, de convergência. Um exemplo de convergência é a inexistência de um ser imaterial cujos poderes são absolutos, nesse caso Deus cristão. Essa convergência vê-se claramente quando curandeiros falam em nome de Deus, e dizendo que trabalham pela sua graça.

Contudo, há também, óbvio, vários pontos de descontinuidade entre o africano e o cristão, porque esse cristianismo como religião carrega uma cultura de onde ela se desenvolveu como tal. Então há, aqui, um conflito entre a cultura africana e a cultura alheia que vê embarcada, de modo oculto, no cristianismo. E, nesse cristianismo, há muito de cultura europeia.

Também, apraz referir que o mesmo cristianismo saindo de Europa para África, acabou ganhando muito de África, com um exemplo claro e objectivo dos Maziones, que apesar de rezar a Deus cristão, acabam incorporando aspectos africanos, como o respeito pelos espíritos, antepassados em que, no lugar de os combater, fazem-lhes alguma reverência caso seja necessário.

Um exemplo de descontinuidade entre o africano e o cristão é levantado pela música de João Bata, intitulada “Buza Ka Yehova”, cujo significado é “Pergunte a Jeová (partindo do pressuposto que, em alguns casos, Jeová e Deus são sinónimos, em Moçambique,)”. Em geral, a música é uma série de questionamentos, lamentações pelo que de mal existe no mundo, mesmo havendo um ser mais do que ser infinitamente poderoso que pode acabar com o sofrimento do mundo. Essas questões são sumarizadas num dos últimos versos da mesma composição, em que, em desespero, questiona: “Kassi Ukwini Tlelu lakona” (Afinal, de que lado estás/ onde estás?). Uma indagação com alargada veemência dentro do seu peito sobre a localização desse ser mais que ser, e, assim sendo, deixa-nos uma ideia clara da sua inoperância ou suposta inoperância. 

A música, em si, é repleta de informação interessante, e uma das perguntas é o cerne desse ensaio, que levanta e demonstra esse dito ponto de descontinuidade, onde, partindo da questão levantada na música, se fica sem uma resposta fácil sem se desfazer de um dos lados, ou se desfaz do africano ou do cristão. 

“A matsalwa mali lweyi angafa ata pfuka, se, a lweyi angatxinga vassati va vanu vataku yini ka mafa-vuka” “As escrituras dizem que quem morreu irá ressuscitar, e esse que praticou levirato o que irá dizer ao morto-acordado (ressuscitado)” Em Moçambique, levirato (ainda há sororato “quando é um homem que casa com duas irmãs” (Batalha, 2004:134)) é uma prática que carrega o nome “Ku txinga”, não apenas a nomenclatura que é diferente, mas a própria prática em si difere da prática dos israelitas. 

Em Israel, o homem era obrigado a casar a mulher do seu falecido irmão, o que difere subtilmente da prática em Moçambique, onde o homem é obrigado a ter relações sexuais com a mulher do seu falecido irmão, como um acto de purificação, não que signifique que esse se torne, necessariamente, a sua mulher. A perspectiva que se nutre, nos meios da nova sociedade moçambicana, sobre a prática do levirato é enviesada, ou, no mínimo, rechaçada, contudo, Batalha (Antropologia: perspectiva holística, 2024), relembra as razões de carácter social que levaram à prática desse tipo de casamento porquanto “num sistema de troca entre linhagens, isto é uma forma de garantir a protecção das trocas: quando um marido ou uma mulher morrem são imediatamente substituídos por um irmão ou irmã, respectivamente, garantindo a continuidade das trocas entre as duas linhagens” (p. 134), como também, tanto no sororato como levirato os filhos não crescem numa família (com um pai ou mãe) estranha. 

A condição da dúvida se dispõe: o que faz com que, mesmo não sendo uma prática estranha no mundo, e que é até referido no antigo/velho testamento, essa prática é diabolizada? A única resposta, para esse facto, está centralizada no eurocentrismo, e que tudo começa na Roma de Constantino quando se converteu para o cristianismo. Devido aos estudos do antropólogo Jack Goody sobre a família e o casamento na Europa, sabe-se que houve várias reformas e profundas.

Por exemplo, ele refere que a adoção, o casamento de viúvas, o casamento entre primos, o

divórcio, o concubinato e o levirato foram proibidas. Essas proibições contradiziam, em certa medida, o velho testamento e até o próprio direito romano. Isso revela que esse cristianismo professado em África é, profundamente, europeu. Pois, entre europeus, culturalmente, essa prática é profundamente difícil de aceitar, como explica batalha, “levirato, embora mais fácil de compreender pelos europeus, uma vez que se trata de um tipo de casamento descrito na bíblia, não deixa de ser estranho” (p. 134).

O que sucede é que a mesma igreja ocidental que “estranha” o levirato, fala de ressuscitação dos mortos com a vinda de Cristo. No confessionário, revelo que ainda me é difícil compreender essa ideia de ressurreição, contudo, faz parte da crença cristã: “Quem morreu vai ressuscitar”. Como natural, essa crença foi levada para África, e acontece a colisão entre as duas realidades. “Se o morto acordar, o que é que esse txingou vai dizer ao ressuscitado?”, questiona João Bata, porque, refresque-se a memória, parte-se de um pressuposto em que há aqui uma cisão entre os africanos e cristãos, onde, nos olhos dos segundos, a prática de levirato é estranha, mas mesmo assim é uma prática social, na realidade do africano.

Essa questão de João Bata na canção “Buza Ka Yehova” denuncia um pouco de “contraproducência” que existe entre o africano e o cristão. Se o africano vê o levirato como uma prática vantajosa, e o cristão proíbe a mesma, então qual solução se descobre para esse litígio?

Conforme anteriormente descrito, não é de uma solução fácil, a não ser, no final, abolir essa prática ou esquecer, por momentos, que se trata de um pecado. Isso significa deixar de lado um dos lados. No fundo, essa música também traz um pouco disso, a fusão de duas culturas completamente distintas, e suas consequências, onde, em casos como esses, não se sabe onde recorrer. Debates não cessam sobre várias temáticas, e uma delas é a do levirato, mas não há convergência, outros olham como tradicional e outros como uma aberração: essa confusão visceral é um resultado prático dessa fusão.

 

Irei voltar…,
Irei voltar para vos oferecer palavras amigas que o tempo trouxe na melodia imaginária do meu silêncio.
Irei voltar para contar a metáfora do "sim" honesto que a humildade sussurra à consciência divina.
Irei voltar, sim, para revelar a caricatura do abraço sincero, que recorda um mundo melhor às almas
serenas e cheias de esperança no futuro.
Irei voltar para mostrar o longo caminho que conduz os corações até a linha do horizonte da vida, ao
verso que rima o soneto da esperança.
Irei voltar para descobrirmos juntos o segredo da melodia da timbila, a fantasia dos braços que
desenham a coreografia da dança Tufo e a arte que molda a máscara inspiradora dos passos da dança
Mapiko.
Irei voltar para traçarmos juntos uma sociedade sem pecados sociais, onde a educação oferece
conhecimentos que favorecem a competição ética no mundo, sem distinção de pertença social.
Irei voltar para arrancar o capim que cresce nas mentes, impedindo o florescimento da muda da paz.
Irei voltar para cantar com a criança africana a letra do silêncio e o ritmo do soneto de Hosana dos
anjos.
Irei voltar para mostrar as imagens dos momentos da travessia do deserto sem pisar na areia fina, mas
tocando a água do rio de palavras que purifica os olhos do espírito sábio.
Voltarei para evocar a saudade do tempo, recordar os bons momentos que vivemos e colher a chuva de
lembranças que fertiliza o solo das memórias, mantendo-as vivas em mentes de neurónios saudáveis.

Voltarei para recitar a poesia das noites de lua cheia, sentado à beira do Índico, a contar as estrelas que
alegram o pescador do bem.
Voltarei com a música do silêncio para fazer sorrir o coração calado. E estarei aqui e agora, com rima
sem soneto, com soneto sem rimas, para declamar a poesia do futuro que desenha estrofes do passado
e versos do presente.
Irei voltar…

 

28.02.25

Há poemas que não se deixam domesticar. Entram na boca como brasas, roçam a garganta, inflamam os sentidos. Há poemas que não cabem em uma moldura de significados fixos, que não se prestam ao descanso da interpretação clara. A poesia de M.P. Bonde é assim: um território de tremores, uma margem onde a palavra não ancora, mas resiste, se refaz, se desdobra em espectros de luz e escuridão. Um umbigo arde na boca longe de ser um mero livro, é um corpo em combustão, onde o íntimo e o simbólico colidem e deixam marcas.

Ao longo de seus versos, Bonde faz da palavra um campo de forças. Não há linearidade confortável, não há pausa para a respiração. O tempo se fragmenta, a memória se entrelaça ao presente, a experiência do corpo se confunde com o ônus da realidade.

No Caderno Primeiro: margem, nota-se uma reflexão sobre o tempo e a memória, com versos que dialogam com silêncio. O poema III traz elementos como “há anjos relendo Elliot no quarto onde amadurecem as palavras…”, evoca uma atmosfera introspectiva onde a literatura se torna um refúgio e, ao mesmo tempo, uma prisão melancólica.

Ademais, no poema IX, “na aflição escura a dureza do sono expande os gestos no soalho…”, o sono longe de ser um descanso, é uma matéria dura, um espaço de gestos que se expandem, talvez involuntários, talvez forçados pelo próprio desconforto da existência. O eu lírico não se abandona ao repouso – ele se movimenta no soalho, que amplifica sua presença tornando cada gesto audível, visível, palpável.

As figuras de estilo utilizadas por Bonde são afiadas e desestabilizadoras. A personificação das manhãs que “penduram o cume na folha pálida” , não é apenas uma atribuição poética da humanidade à natureza; é uma afirmação de que a luz não dissolve a angústia, mas a sustenta.

Há na sua poesia um brilho intenso, mas que não se entrega à claridade total, pois, como escreveu Antero de Quental, em Raios de Extinta Luz, “a arte é como luz: brilha do alto”, e é

desse lugar que Bonde conduz suas imagens – ora iluminando, ora mergulhando no escuro,

sem jamais se fixar em um único ponto. A sinestesia, subtil, entretanto presente, costura sensações e emoções em um mesmo tecido, criando uma poesia que se sente tanto quanto se lê.

Esse jogo entre a claridade e o desespero reaparece nos paradoxos da obra. A expressão “na claridade do desespero, as confidências do eco”, inverte a lógica comum: o desespero normalmente associado à escuridão aqui o autor o veste de luz. Esse tipo de subversão semântica, é recorrente na obra e exige uma leitura activa, onde cada verso pede para ser relido, decifrado, revirado como um enigma. O poema não se entrega de imediato — ele impõe resistência.

Por vezes essa resistência se manifesta no próprio estilo tornando-se excessivamente hermético. O excesso de deslocamentos sintéticos, pode gerar uma sensação de afastamento, impedindo que o leitor se conecte emocionalmente com o poema. No entanto, essa escolha estilística não é gratuita: é parte do próprio jogo de combustão que sustenta o livro. O desconforto não é um efeito colateral, mas um convite à imersão.

Já no Caderno Segundo: Porções do tempo, o tom parece mais intenso e onírico. No poema 4, a angústia é materializada em imagens como “Amarrei fios de lã na dobra da angústia” e “vozes amordaçaram lágrimas no vórtice da boca”. A recorrência do corpo – boca, umbigo, pupila – aponta para uma escrita que inscreve a subjectividade no físico, transformando emoções em matéria.

O título do livro já sugere essa fusão entre carne e verbo, entre matéria e discurso: um umbigo arde na boca. O umbigo, esse primeiro vínculo com a vida, o traço da conexão primordial, queima no lugar do discurso, na casa do dizer. É uma representação que ressignifica a oralidade não como um dom, no entanto como um fardo, um incómodo que inflama e queima. Mas o que resta ao corpo, se um umbigo arde na boca? Talvez resta apenas desassossego — um corpo incendiado pela linguagem, onde cada verso é fogo.

O impacto dessa escrita não está apenas no que ele diz, porém na forma como diz. A ausência de pontuação, a quebra abrupta dos versos, a escolha por imagens que desafiam a lógica habitual do pensamento: tudo isso faz de Um umbigo arde na boca um livro que exige uma leitura imersiva. Não há concessões ao leitor; há, sim, um convite – mas é um convite para a vertigem, para o fogo que arde na palavra e no corpo.

Ao final, resta a sensação de que fomos atravessados por algo indomável. Bonde não escreve para apaziguar, não escreve para ser decifrado em uma única leitura. A sua poesia é um organismo vivo, que nos escapa sempre que a tentamos fixar. E talvez seja essa a sua maior força, permanecer ardendo, mesmo depois que fechamos o livro.

 

Na pacata cidade de Inhambane, onde o mar sussurra segredos e as palmeiras dançam ao vento, uma tragédia silenciosa tem ceifado vidas sem alarde.
Num bairro tranquilo da terra da boa gente, o som do rádio de uma vizinha preenchia a manhã quando a notícia chegou. Rungo, um jovem de 32 anos, foi encontrado sem vida no quarto que alugava e ninguém percebeu os sinais. Ninguém sabia das noites mal dormidas, das dívidas acumuladas, do coração partido. A vizinhança ficou em choque, mas o luto foi rápido. “Ele devia estar a passar dificuldades”, comentaram alguns, antes de voltar à rotina. O silêncio que marcou a vida de Rungo foi também o epitáfio da sua morte.
Esta história, infelizmente, não é única. Em Moçambique, o suicídio é uma tragédia que ocorre em silêncio. Dados indicam que, em média, 8,4 pessoas por 100.000 habitantes tiram a própria vida todos os anos, e a maioria são homens.
Em 2023, quase cem pessoas tiraram a própria vida nesta província, com a maioria dos casos ocorrendo nas cidades de Inhambane e Maxixe, bem como nos distritos de Homoíne e Jangamo, mas o problema vai muito além dos números.
O que falta em cada estatística é a vida real de quem foi levado ao limite. É o rosto de homens que, pela pressão de parecerem fortes, nunca encontram espaço para desabafar.
A sociedade moçambicana, como muitas outras, ensina aos homens desde pequenos que “chorar é fraqueza” e “pedir ajuda é sinal de derrota”. Estas ideias tóxicas criam um ciclo de isolamento emocional, onde muitos se veem presos. Quando problemas financeiros, desgostos amorosos ou desafios sociais surgem, o peso da solidão cresce. Sem um sistema de apoio — sem uma palavra amiga, um abraço, ou até mesmo a coragem de procurar ajuda —, a ideia de terminar com tudo pode parecer, para eles, a única saída.
Mas onde estamos como sociedade? Onde está a família, que deveria ser um porto seguro? Muitas vezes, as famílias ignoram sinais claros de sofrimento porque os homens “são fortes e aguentam”. E a igreja? As comunidades religiosas precisam abrir espaço para discussões francas sobre saúde mental, quebrando os preconceitos que afastam as pessoas da ajuda necessária. O mesmo vale para a comunidade em geral. É urgente criar espaços onde os homens possam falar, chorar e ser vulneráveis sem medo de julgamento.
Em Moçambique, já vimos histórias que poderiam ter tido finais diferentes. Há casos de homens que tentaram pedir ajuda, mas foram ignorados. Uma mensagem não respondida. Um apelo descartado como “drama”. Estas são oportunidades perdidas, feridas abertas que deixam famílias a perguntar “o que poderíamos ter feito?”
Para prevenir esta tragédia silenciosa, precisamos de um esforço coletivo. É necessário educar crianças, homens e mulheres sobre a importância de expressar sentimentos. É essencial que a família esteja presente, que a esposa ou companheira seja uma aliada para ouvir, compreender e apoiar. É fundamental que todos nós, como sociedade, digamos aos homens que “está tudo bem em não estar bem”.
Cada vida perdida é uma voz que não foi ouvida, um grito que nunca chegou a ecoar. Não podemos permitir que os homens continuem a morrer sem serem ouvidos. O silêncio não pode ser o seu destino. É hora de mudar esta narrativa, antes que mais vidas sejam engolidas por este peso invisível.

Por: Fernanda da Lena Hermano

A história da arte é também a história das ausências. Em cada grande movimento, há nomes que não chegaram a ser escritos, vozes que não foram escutadas, imagens que nunca se materializaram porque as mãos que poderiam criá-las foram silenciadas antes do tempo.

Entre essas ausências, a presença feminina sempre foi um campo de disputa. Mesmo quando existem, as mulheres artistas precisam constantemente de reafirmar o seu espaço, justificar as suas narrativas, provar que a sua obra não é apenas uma extensão do doméstico ou do sentimental, porém um acto consciente de concepção e metamorfose.

Em meio a essa paisagem desigual, quando uma mulher escolhe o carvão – matéria rude e crua – e o pastel – frágil, quebradiço, mas radiante – para construir sua arte, ela está também a construir um território. Não apenas para si, entretanto para todas aquelas que ainda precisam romper barreiras para existir no campo da produção artística.

A exposição “Memórias daqui”, patente na galeria da Fundação Fernando Leite Couto, traz obras definidas por um jogo intenso entre o carvão e o pastel de óleo que conferem uma força emocional às imagens. Há rostos que parecem aflorar de uma memória distante, olhos que sustentam momentos repletos de emoção, traços que oscilam entre a nitidez e o esvanecimento. Indubitavelmente, Nelsa Guambe utiliza o desenho e a pintura como uma forma de escavação, isto é, cada linha é um resquício do que foi vivido e do que ainda ressoa.

Dentre as obras expostas, “Aiufa de Nankumi (29,7 x 42 cm, carvão e pastel de óleo sobre papel, 2024)”, não se impõe pelo deleite, mas pelo impacto. A composição nos apresenta um rosto feminino em desordem, uma identidade que se fragmenta entre o humano e o não-humano. A fusão entre a imagem e as criaturas que habitam sua cabeça propõe um estado de conflito, um embate entre forças internas e externas.

Duas entidades parecem dividir sua cabeça ao meio: à esquerda, um pássaro de presságio; à direita, uma forma menos definida, um híbrido de sombras que se confunde com o próprio traço da artista. Os olhos, inchados e marcados por tons de vermelho, azul e laranja, evocam um sofrimento que transcende a individualidade da imagem representada – um sofrimento que ressoa na memória de muitas mulheres, seriam marcas de violência? Seriam sinais de uma visão ampliada, que enxergam além do que é permitido? A obra abre a interpretações múltiplas, todavia não deixa dúvidas sobre sua força simbólica.

Na face, um segundo rosto se insinua. Seria um crânio? Um macaco? Um espírito ancestral?

A indefinição é precisamente o que o torna intrigante. Se um lado do rosto confere esse espectro do passado, o outro lado quase não existe – como se a ausência fosse a única possibilidade restante. O que significa ser uma mulher cuja metade da identidade foi apagada? O que resta quando a história de alguém é escrita apenas pelos outros?

A escolha dos materiais reforça essa tensão. O carvão, com a sua textura rugosa, gera uma sensação de pressa, de algo riscado rapidamente, como uma marca deixada em pedra. O pastel, mais delicado, introduz cor, mas não suaviza a dor expressa na imagem. Há algo bruto na obra, um desconforto visual que impede o espectador de apenas olhar sem sentir.

Outras obras também se destacam, pela sua potência e singularidade. Como em Duas Mulheres, aqui Nelsa nos apresenta um díptico intrigante. De um lado, um semblante de traços delicados, adornado com flores, exalando serenidade e graça. Do outro, um rosto de feições intensas, com um olhar perfurante, transmitindo vigor e determinação. A justaposição dessas imagens nos leva a questionar a complexidade da identidade feminina e a multiplicidade de papéis que as mulheres desempenham na sociedade. Seriam duas faces da mesma mulher? Ou representariam distintas gerações?

Contudo, nem todos os elementos da exposição alcançam a mesma potência expressiva. Em algumas obras, o traço parece sobrepor-se à emoção, resultando em composições visualmente densas, todavia carentes de subtileza. A paleta de cores, embora enérgica, por vezes se mostra previsível, enfraquecendo a capacidade de surpreender o espectador.

Apesar dessas pequenas ressalvas, na exposição “Memórias daqui” somos convidados a contemplar a força, a resiliência e a diversidade das mulheres, pois, “mulher é terra, sem semear, sem regar nada produz” (provérbio zambeziano, em Niketche de Paulina Chiziane), portanto, a arte serve como instrumento de empoderamento e transformação social.

Dessa maneira, as obras de Nelsa Guambe são como sementes que germinam no íntimo do espectador, despertando a consciência da força e da delicadeza da alma feminina. Seus retratos, esculpidos com carvão e banhados por cores resplandescentes, funcionam como espelhos que para além de reflectirem, também interpelam — revelando histórias, dores, lutas e esperanças.

 

Com o desenvolvimento das sociedades e a preocupação que estas sociedades vão tendo em relação à origem e ao passado do Homem, os costumes das comunidades, os traços que diferem uma comunidade da outra, a preocupação em manter imortais esses traços culturais, a cultura é usada na sociedade actual com infinidade de sentidos. Para o conceito da cultura, Marinez (2009) sublinha, no seu livro ‘Antropologia Cultural – Guia para o Estudo’, as definições dos clássicos Arnold e Tylon da seguinte forma:

Em 1869, Matthew Arnold definiu a cultura como o conseguimento da perfeição, que implica uma condição interna da mente e do espírito (doçura e luz), através do bom e do melhor que se pensou e se diz na história. E, em 1871, Edward Tylor, definiu a cultura como um conjunto complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e várias outras aptidões ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. Taylor faz uma reflexão importante e diz que a cultura não é biologicamente transmissível, mas sim adquirida dentro da sociedade, da qual este Homem é membro. Todas as culturas são dignas e não existem culturas mais valentes que outras.

Assim como a vida humana sofre influência do meio, também a cultura não é estática. Segundo Taylor, a cultura está em constante transformação. A cultura não é um fruto puro e está sujeita a processos constantes de contaminação. Marinez refere que a cultura é um produto do Homem, pelo que implica consciência e liberdade. O que faz distinguir o homem do resto do mundo animal é a cultura. Embora possa haver fenómenos comuns entre os homens e os demais animais, a diferença reside na consciência e liberdade presentes no acto humano.

A cultura é uma tarefa social e pertence à comunidade, ao grupo social do qual o indivíduo faz parte. O conjunto de experiências vividas pelo Homem, através da história, é que formam o património cultural de um determinado povo. A cultura é uma herança social reservada a um determinado povo, que merece conservação, transmissão e continuidade para as novas gerações. A linguagem é considerada um dos factores muito importantes no progresso da chamada herança social, que é a cultura. Graças à posse da linguagem, os homens podem transmitir, uns aos outros, uma ideia clara das situações não actuais e do comportamento adequado a essas situações, o que torna possível um enorme crescimento ao conteúdo da herança social. A capacidade humana de comunicar-se através da linguagem é considerada o primeiro facilitador da convivência humana e seguro transmissor dos traços culturais predominantes numa determinada comunidade. Para a fonte, com a linguagem, a transmissão do comportamento adquirido deixa de estar sujeita ao acaso. O conhecimento possuído por cada geração pode ser transmitido, como um todo, à geração seguinte.

A organização social em comunidades e a linguagem contribuíram para que o Homem tivesse uma herança mais rica que a dos animais. Assim, segundo Giddens, o que torna qualquer sociedade diferente é o facto de ela definir uma espécie de verdade. A cultura é um modo de vida total, e não apenas elementos parciais de uso e costumes. O autor fala da existência da cultura ideal, que é o comportamento que as pessoas acreditam que deveriam ter. Em contrapartida, a cultura real é entendida como o comportamento concreto das pessoas, ou seja, o que realmente fazem e vivem. Fontes acrescentam que “cada membro de uma sociedade precisa conhecer intimamente apenas a parte da cultura total necessária para adaptar-se e preencher um determinado lugar na vida da comunidade”. Isto quer dizer que o único limite à possibilidade de conteúdo de uma cultura é o conjunto formado pelas capacidades de aprendizagem e todos os indivíduos que compõem a sociedade portadora da cultura em questão.

Na realidade, este limite nunca foi atingido, nem aproximado. Por mais rica ou complexa que seja uma cultura, há sempre lugar para novos elementos. Os grupos sociais que são identificados pela sua cultura são cobertos de vários símbolos que funcionam como chave da cultura. Para Martinez, os símbolos formam sistemas entre si, que falam e, na sua inter-relação, transmitem mensagens que é necessário prestar-lhes a devida atenção para as captar. Etimologicamente, o vocábulo símbolo provém do verbo grego sumbalo, que significa lançar conjuntamente, reunir, amontoar. Expressa a ideia de aproximar e juntar duas partes de uma mesma coisa que originalmente estivera unida, com o fim de chegar a conhecer ou identificar algo. Trata-se de um sinal de reconhecimento.

Para que a cultura sobreviva por muitos anos, é necessário que ela seja transmitida a todos os novos membros da comunidade, para que saibam da sua importância na identidade dos traços de uma determinada comunidade.

Escrevemos-te deste nosso anónimo recanto. Queríamos publicar esta missiva na mesma noite quente de Dezembro passado quando, tomados pela angústia existencial e quase em prantos, escrevemos.  Sabemos que as palavras teriam mais comoção naquela altura, sobretudo quando cuspidas na língua que também foi dos nossos antepassados. Mas, infelizmente, a antiguidade dos nossos vocábulos ainda não cortou a fita na pista da corrida de velocidade das línguas do mundo. É uma pena não podermos te escrever no idioma que melhor expressaria a reciprocidade das nossas emoções. Tu sabes melhor o que isto significa.

Para compensar o infortúnio das nossas limitações, de não podermos te escrever na língua que corre na alma do nosso sangue e dos nossos antepassados, tentaremos usar as convenções que a maioria dos escribas usa nos seus actos. E como suporte, usaremos de empréstimo a língua que Gama e seus confrades de piratagem nos deram de herança.    

Já estamos em Janeiro de 2025. E, do outro lado do hemisfério, ainda carregamos as lembranças do frio, durante anos de sobrevivência na diáspora. O frio que nos trouxe a infância perdida nas memórias do vasto e serpenteante leito do Limpopo, quando ainda podíamos contar com a estação do inverno.  Lembra-se, era de fazer desenterrar todo o tipo de agasalho, de secar os dedos e os beiços, de reacender com vivacidade o afecto das nossas fogueiras. 

Nos tempos que correm, a antítese das coisas baralha a natureza! Qualquer ambientalista diria que são os carpos do aquecimento global. Os cristãos mais devotos diriam, seguramente, que Deus há muito tempo anda zangado! Nas aldeias da nossa terra, a mesma que te viu nascer, nas vastas planícies outrora esverdeadas de Mandlakazi, os anciãos diriam que os antepassados esgotaram a paciência de serem esquecidos. É cada qual com os seus argumentos e sua razão. A verdade é que se aluiu a harmonia entre os homens e a mãe natureza. Enquanto reflectimos, chega-nos a voz da Alice, a protagonista em Na Mão de Deus, que diz, perentória: “as pessoas vivem infelizes porque quebraram o pacto de harmonia com a vida”. 

2024 mal terminou, os dias do primeiro mês do novo ano esvaem-se a galope, num ritmo sem lógica. Não vemos o tempo passar! É como dizia a vó Ximeli, o ritmo dos novos tempos é outro. Ela, com quase 90 anos, tinha visto tudo nesta vida, e sabe o que diz. Para vó Ximeli, os sinais dos novos tempos não se traduzem apenas pelo ritmo acelerado, mas também pela insolência de realidades cada vez mais surpreendentes, insuportáveis, de crescente estupidez humana – desabafava em tom de tédio.

A verdade é que o ano começou com novos ciclos. Mas o novo, infelizmente, não traz a esperança de um novo começo. Gestado nos escombros da violência, o ano novo começa e corre sob o manto de incerteza, de uma paz incompreensível e de tensão latente, apesar do sol ir recuperando o domínio das tardes de Maputo, no lugar do cinzento de gás lacrimogênio e do barulho da pólvora. O brilho do alcatrão ressurge timidamente ante o preto das cinzas do pneu queimado e restos de cápsulas. Os “donos da pátria” aperaltam-se em posses e poses de ocasião. Dos púlpitos simulam discursos ufanos e emotivos, como sempre. O povo e a paz são jargões mais ouvidos. Que tipo de paz é essa, tecida à medida da gana de um bolso?

Paulina, como se pode falar de paz, desgarrados à reconciliação genuína e profunda? Como falar de paz, no meio de desaparecimentos forçados à luz do dia e da noite, mortes e enterros em valas comuns, mesmo depois de tudo… Como estar em paz, se as sequelas da pólvora jazem em membros mutilados, rostos desfigurados, no trauma e na ansiedade insanável de quem espera o retorno do filho que não voltou da “revolução”, e o Estado continua madrasta! A justiça cega. Ainda assim, e depois de tudo, a máscara ainda não caiu! 

Paulina, perdoa-nos por não ter o hábito de aprumar devidamente os pensamentos. As circunstâncias desorganizam as coisas. Há tempo para organizar pensamentos enquanto a pátria afunda em oceanos de lágrimas? Desde que aniquilaram a vontade do povo, esvaíram-se alguns dos mitos mais ufanos e ilusórios que anestesiaram o imaginário social. A passividade, a paz e harmonia social…

 Esgotaram toda a nossa paciência, confundiram-na com a apatia, que jamais nos foi intrínseca. E dá nisto, quando se semeiam histórias ao vento e se espera que elas mesmas protejam o sonho do universo e a nossa própria estabilidade, diria Erving Goffman.  

E agora, Paulina? E agora?

O caos virou o nosso normal. Negam-nos a liberdade como nos tempos dos nossos ancestrais vendidos a preço de um espelho. Negam-nos as nossas areias. O nosso ouro. Nosso gás. Nossa terra para erguer nossos esconderijos e produzir nossa sobrevivência. Negam-nos a nação inteira. Negam-nos tudo! E o barulho das armas é o eco da força de batuques que não param de estuprar nossas vidas miseráveis e únicas, como se tivéssemos outras de reserva. A morte deixou de ser temida pelos homens da farda e morremos como insectos. Craveirinha diria, se calhar menos alegórico do que naquele tempo, de forma espectaculosa “Feras matam velhos, mulheres e crianças/e não são feras, são homens/e os velhos, as mulheres e as crianças/são os nossos pais/nossas irmãs e nossos filhos, Maria!”. 

A pergunta que nos arrebenta os miolos é sobre o que é pior hoje, Paulina. A violência policial em si ou sua normalização?

Quando a polícia exibe o desprezo da vida e sequestra?  Quando os dedos no gatilho se erigem com o sangue de jovens (de)armados apenas com a voz e um dístico na rua? Quando seus dedos hirtos disparam a esmo o maldito gás nas residências, mutilam inocentes, semeiam luto e orfandade, espalhando terror, luto e a semente do ódio; e no lugar da vergonha, vinga a ultrajante disputa de narrativas, como se a morte fosse um simples arranjo discursivo?

Quando os run-flat de veículos blindados transformam corpos humanos em suas pistas de predilecção nas Avenidas da nossa desgraça? E no fim se fala de inquéritos cujo fim sabemos… Triste ópio de consolação colectiva.

O que é pior, nos dias de hoje, Paulina?  

No fim são champanhes às costas e custas do povo de que tanto falam, tripudiando do mesmo. Brindarão às ocultas pela divisão das tetas do Estado, depois de zombarem das nossas lágrimas. Vão negociar mordomias, vão discutir subsídios, vão comer, vão beber e depois arrotar o desprezo de sempre. Com o cinismo de sempre, virão de sorrisos postiços para apertar as mãos, celebrando a façanha em nome daquilo que entendem dar nome de paz. 

E o povo? 

O povo, esse, continuará minguando de fome e sede. Continuará na esperança de que um dia um elefante ainda pode se sentar numa poltrona e segurar uma xícara de café para depois dançar mapiko, mandowa, marrabenta ou kizomba. Continuará a servir de isca para pescar mais “donativos” do Banco Mundial e companhia FMI. Continuará a andar com o rabo fora. Continuará a estudar embaixo de árvores, em pleno século XXI. Continuará a (in)suportar todo o tipo de humilhação que lhes dá prazer! 

Os jovens continuarão afogando-se nos “xivotsongos”, sentindo-se presidentes e reis das suas vidas, por estarem a ingerir bebidas de quinta, de marca Presidente e Lord Gin. Nossas mães continuarão a pensar que têm toda a culpa da desgraça da vida dos seus filhos, enquanto são vítimas das “mentiras da verdade”. E assim tem que seguir a vida, neste festival sádico, para quem tem o vírus de que nasceu para ser dono de todos os moçambicanos a vida inteira, nem que seja necessário derramar centenas de litros de sangue.  

Ah, Paulina, há muito que perdemos o verdadeiro sentido da vida nestes trópicos! Desde que a sede pelo poder nos desumanizou. Há muito que os académicos que pululam as nossas televisões trocaram o pensamento crítico-reflexivo por um copo de vinho e cerveja, o lenitivo da nossa geração.  Faz tempo que substituíram a vocação académica por migalhas de sobrevivência. Não é de hoje que a educação virou o cúmulo do ridículo nacional. Faz tempo que nos nossos hospitais fede a morte, e os médicos, cansados, simplesmente assistem… 

A nossa soberania virou moeda de troca. Nossas Forças de Segurança transformaram-se em actores de circo, internacionalmente, ao alugarmos militares de um país que nem cabe na palma de Niassa para cuidarem de Cabo Delgado e dos recursos da nossa desgraça. Não seremos o novo Congo, mas não aquele sonhado por Patrice Lumumba? Não seremos o futuro Delta do Níger? 

No fundo, há muito que se perdeu o leme desta pátria! Desde que a nudez da gana se expôs em Cabo-Delgado, a consciência dos pés dos nossos irmãos já não adormece! Sarnau, em Balada de Amor ao Vento, diria, subscrevendo nossos vagos pensamentos: “Há muito que a luz adormecera no silêncio”.  

Paulina, tu sabias que, a uma velocidade supersônica, correm poços de petróleo a germinar, mais que cisternas de água, em cada esquina do país? Sabias que nas Avenidas Marginal e Julius Nyerere há mansões a florir mais do que um prato de milho no bojo da grei? Sabias que há muitos segredos escondidos no meio de toda esta confusão? 

Nós temos os nossos olhos cansados de derramar a falta de esperança. Temos o nosso gás a entornar-se no Rovuma e a servir de combustível para tudo assar. Assam-se os pés que não param de gritar e saltitam como pistões no interior dos cilindros. Torra-se a esperança de um povo. Arde a prosperidade de uma nação inteira. Temos Pande e Temane na míngua do nosso optimismo. Temos Moatize a parir, há muito, deslocações involuntárias. Temos Montepuez na raiva do passado e do presente. Temos tudo e nada ao mesmo tempo! É triste, Paulina. Tu sabes o significado de tudo isto. 

Tu, como poucos, cedo percebeste os jugos contemporâneos, porque tens alertado para os perigos de uma nação que se ergue sem o (re)conhecimento de si mesma, da sua memória e cultura. Por isso, em O Canto dos escravos, seus versos ecoam como som agudo das trombetas: “desperta do sono que te pode conduzir a novos abismos/escuta-me: sem passado e sem memória não há história/ninguém é ninguém se não souber quem na essência é”.

Paulina, queríamos ter rabiscado algo que expressasse a grandeza da tua obra e de mais de duas dezenas de estrada. Mas, o facto de estarmos com as tripas a ferver na angústia do desespero não permitiu. Talvez não fosse para ser nesta encarnação. E nada mais nos resta a não ser um amplexo cordial! 

Em colaboração com Isaías Mate

Sou Catarina Matusse, nascida no campo onde a vida pulsava lentamente, entre a terra e o ar fresco, onde o sustento da minha família se erguia dos cultivos que a natureza generosamente nos oferecia. Desde cedo, a educação era a luz que me guiava, iluminando o obscuro horizonte dos costumes que me cercavam. Quando terminei a 12.ª classe em Manjacaze, deixei para trás a tranquilidade da minha aldeia e mergulhei no caos vibrante da cidade de Maputo, onde o ritmo acelerado da vida se contrapunha à serenidade dos campos.

Aqui, tudo era diferente: as pessoas moviam-se apressadas, as prioridades eram moldadas por um egoísmo urbano que me destoava, e a luta pela sobrevivência adquiria um novo significado. Adaptar-me foi uma jornada dolorosa, onde cada passo me afastava das raízes que me sustentavam. Porém, não me deixei vencer. Lutei, estudei, e finalmente formei-me, senti um misto de orgulho e solidão. Confesso! 

Estar longe dos meus pais, meu porto seguro, era aterrorizante, mas foi o que escolhi e devo seguir por esse caminho! Até porque tornei-me a mulher que sempre sonhei ser, financeira e emocionalmente independente, capaz de estender a mão a meus pais em Gaza, que ainda aguardavam a minha luz com esperança. A cada vitória, ecoava em mim a mensagem que sempre me ensinaram: que devo sentir-me orgulhosa de ser negra…! 

Nas telas da televisão, nos programas da diáspora, essa afirmação pulsava como um mantra, no entanto, confesso que a melancolia me invade ao perceber que, neste mundo repleto de dinâmicas cruéis, a cor da minha pele, em vez de ser um símbolo de força, muitas vezes intensifica a luta por reconhecimento e dignidade. Sinto-me perdida entre a controversa beleza da minha identidade e a dura realidade que, ainda assim, persiste em deixar cicatrizes profundas na minha alma.

Sinceramente, foi ao sair da minha zona de conforto que percebi que o dilema da negritude não é apenas uma narrativa passada, mas um problema palpável, uma sombra que se arrasta, mesmo nas mais comuns das situações. Enquanto atravessava o oceano, numa viagem pelo mundo fora, deparei-me com uma realidade que doí para além do que imaginava: num autocarro lotado, eu era a única negra. O autocarro, apinhado de gente, tinha poucos assentos, talvez pela escolha prática de acomodar mais almas em pé do que assegurar conforto. As viagens eram curtas, o destino não estava longe, mas a carga emocional que levava parecia interminável.

Ali estava eu, sentada e com um lugar vazio ao meu lado, as acelerações bruscas do veículo fazendo as pessoas balançarem de um lado para o outro de forma incómoda. O que mais me marcou foi que, apesar do espaço escasso, ninguém parecia disposto a ocupar aquele lugar ao meu lado. O entendimento do porquê, tardou a chegar como um peso no meu peito: era a cor da minha pele que estava a intimidar aqueles que ali se encontravam. Nesse instante, uma onda de desconforto invadiu-me, fazendo-me sentir suja, como se a minha existência fosse um fardo.

Encolhi-me, desejando ardentemente ser invisível, evaporar na atmosfera da indiferença. O desejo de voltar para casa explodiu dentro de mim, uma saudade profunda da minha aldeia, onde a cor da pele era apenas uma parte de quem eu era, onde ninguém olharia para mim com olhos de estranheza. Naquele momento, a cidade, com o seu brilho frio e a sua solidão, tornou-se um labirinto opressivo do qual não conseguia escapar. A dor da rejeição, do isolamento, era um eco que permanecia, lembrando-me que, mesmo em um mundo tão vasto e diversificado, a minha luta ainda era apenas a ponta de um iceberg.

E isto ainda era apenas o começo da minha jornada. No meu destino temporário, participei de um sorteio cujo prémio era um telemóvel de grande valor que poderia mudar a minha vida. Quando vi o meu nome na tela, “Catarina Matusse”, o meu coração pulou de alegria, transbordando de esperança. Eu, aquela menina desajeitada do campo, tinha sido agraciada com algo tão precioso! Naquele instante, as memórias da humilhação no autocarro pareciam ter-se dissipado, como se a felicidade pudesse apagar o peso desse momento tão doloroso. Mas, ingenuamente, não sabia que o pior ainda estava por vir…

Ao subir ao palco para receber o meu prémio, um sorriso radiante e genuíno iluminava o meu rosto, mas, de repente, senti um olhar de julgamento que me cortou como uma lâmina afiada. O semblante da sorteadora transformou-se, assumindo uma expressão de desprezo que me fez tremer. Mas eu não me deixei intimidar; era claro que eu havia ganho o prémio, e entre a emoção de ter conquistado aquele objecto desejado e o desprezo daquela senhora, a alegria deveria prevalecer. Contudo, a atmosfera logo se encheu de tensão quando ela começou a levantar obstáculos, a criar dificuldades para me conceder o que era meu por direito, até mesmo tentando manipular a situação de forma criminosa através do meu próprio celular…!

Discutiu-se acaloradamente se eu deveria realmente levar aquele telemóvel para casa, como se a tela que exibia o meu nome não fosse suficiente prova da minha vitória. Para meu espanto, fui desqualificada, sem sequer poder contestar. 

A injustiça da situação era palpável, e até hoje não entendo os verdadeiros motivos que levaram à minha exclusão. O sistema de sorteio era automático, as regras eram claras, e eu, sem dúvida, ganhara aquele prémio. No entanto, a cor da minha pele tornou-se o obstáculo que me impediu de trazer o telemóvel para casa.  

Como posso, então, sentir orgulho de ser negra, quando a realidade me ensina que, mesmo quando a sorte sorri, há sempre aqueles que se aproveitam da sombra do preconceito para apagar o brilho dos meus triunfos? A melancolia e a dúvida permanecem, um peso que carrego todos os dias, lembrando-me que, na luta pela dignidade, a batalha ainda está longe de ser vencida.

Ao longo da jornada de Catarina, somos convidados a refletir sobre a complexidade da identidade e as lutas diárias que muitos enfrentam devido à cor da pele. Sua história não é apenas um relato pessoal, mas um espelho das realidades que persistem em nossa sociedade. 

É imperativo que cada um de nós reconheça que a luta pela dignidade e pelo respeito é uma responsabilidade colectiva. Devemos unir nos em solidariedade, questionar nossos próprios preconceitos e promover um ambiente onde todas as vozes sejam ouvidas e valorizadas independentemente da cor e raça. 

Que possamos agir com empatia, apoiar iniciativas que promovam a igualdade e celebrar a diversidade que enriquece o nosso mundo. A transformação começa com a conscientização e a disposição de cada um para fazer a diferença. Ao nos unirmos, podemos iluminar os caminhos de quem ainda luta para encontrar seu lugar no mundo, assim como Catarina. Lembremo-nos: todos somos responsáveis pela promoção da mudança…

Uns vêem o mundo em paredes brancas, outros nas estampas que a vida borda sobre os seus dias. Há quem encontre raízes na lembrança de um cheiro, no brilho de cores que resistem ao sol e ao tempo. O olhar, por vezes, é uma travessia. Nem sempre basta ver; é preciso decifrar, tocar com os olhos, sentir a textura do que se apresenta à nossa frente. 

É nesse fluxo entre o que fomos e o que nos tornamos que a exposição “Fico a ver o lá daqui”, de Jorge Dias, se desenha. Aqui, o olhar se abre para o instante que carrega séculos, para a cor que conta histórias, para o detalhe que revela uma identidade em perpétua construção. Não há respostas fixas, apenas perguntas que dançam sobre a superfície das telas, pois,“é o olhar que dá sentido ao que se vê, como aponta John Berger, em Modos de ver.”

Inaugurada no Camões – Centro Cultural Português, no dia 12 de Fevereiro, e aberta ao público até o dia 15 de Março, “Fico a ver o lá daqui” propõe um diálogo entre o que se vê e o que se sente, entre a memória colectiva e a experiência pessoal.

A série Beleza da Terra, composta por três obras (Beleza da Terra I, Beleza da Terra e Beleza da Terra II), é um dos pontos centrais dessa jornada visual. As obras, compostas por acrílico, colagens de tecido e papel espuma, materializam um discurso em que a sobreposição não é apenas técnica, mas também conceitual, isto é, revestimento de memória, tradição e reinvenção se entrelaçam, revelando a multiplicidade do olhar.

Nas três obras, observamos figuras que parecem totens ou guardiões da terra, elementos geométricos que evocam símbolos tribais e paletas que transitam entre os tons terrosos e as divergências do vermelho, azul e verde. As formas circulares, recorrentes nas obras, sugerem ciclos – de vida e de história.

As composições exibem uma dança entre o geométrico e o orgânico: círculos, vasos e figuras humanas emergem de um espaço em que as cores expressivas se impõem sobre fundos ornamentados. O uso do papel espuma adiciona um relevo quase escultórico, fazendo com que os elementos avancem para além da superfície plana e convoquem o espectador a um olhar mais atento.

Esse efeito volumétrico dá às criações uma sensação de materialidade, pois elas vão além da representação e ocupam o ambiente.

Mas o que nos diz essa “beleza da terra” que o artista propõe? Não se trata de uma contemplação bucólica ou de uma exaltação ingênua da paisagem. Pelo contrário, a beleza

aqui se apresenta através da resistência das tradições e dos desafios impostos pela modernidade.

Como no caso das práticas de herança como o timbila ou as danças tradicionais, que, mesmo diante da globalização e da urbanização, continuam a ser instrumentos de afirmação cultural.

A beleza que se propõe não é passiva, mas activa, em constante diálogo com as mudanças

sociais e políticas que definem o cotidiano de Moçambique. Entretanto, a força estética da série pode, em certos momentos, se perder na densidade de informações visuais. A profusão de padrões e sobreposições, embora intencional, pode desafiar a apreensão imediata da composição, tornando a observação mais exigente.

Para alguns observadores, esse excesso pode ser visto como dispersão, enquanto para outros, é justamente esse acúmulo que confere potência às obras, reflectindo a complexidade da história e da cultura que representam.

Vale ressaltar que, o título preconiza um deslocamento, ou seja, um exercício de ver à distância, de interpretar o outro lado a partir do aqui. Mas onde exactamente é “aqui” e onde

está “lá”? Jorge Dias responde sem respostas fechadas, conduzindo o observador por um mosaico de significados que recordam tanto a cultura moçambicana quanto uma estética globalizada e contemporânea.

Em Moçambique, essa dicotomia entre “aqui” e “lá” pode ser observada nas praças e avenidas que trazem consigo a memória histórica e a dinâmica social do país. A Praça da

Independência, no centro de Maputo, simboliza a transição de um “aqui” colonial para um “lá” de liberdade, sendo um espaço que não apenas evidencia um ponto de encontro urbano, todavia também o local onde as celebrações e os protestos, as manifestações culturais e políticas, continuam a redefinir o país.

Adicionalmente, o tecido, um elemento recorrente, remete às capulanas, que, além de vestimenta, são portadoras de narrativas, lembranças e afectos. Em outros termos, assim como a terra é cultivada e transformada, a identidade que emerge dessas obras também se 

inscreve na mutabilidade. Portanto, Jorge Dias, com essa exposição, questiona as fronteiras da identidade e da memória.

No jogo entre ver e ser visto, “Fico a ver o lá daqui” transforma o próprio acto de olhar em uma experiência de deslocamento. O espectador é chamado a preencher lacunas, a reconstruir significados, a costurar, ele também, sua própria interpretação. Como escreveu João Guimarães Rosa “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é na travessia”. E, talvez, ao final, perceba que “o lá” nunca esteve tão distante, ou que, no fundo, sempre esteve dentro do “aqui”.

 

Por Domingos Mucambe

As vezes que tenho uma visita guiada nas artes minguam quase nunca acontece, e, contra todas possibilidades e probabilidades, aconteceu: e, imersos num cenário onde preto e branco, cores predominantes, nos escureciam o presente nas sombras do passado, eu me revelava um inexperiente nessa coisa de ser guiado e, paralelamente nos desconhecimentos, quem me guiava também tombava nas suas explicações inexistentes, e, levados pela melancolia dos Madjoni-joni, partilhávamos mais silêncios que palavras. É nesse entremeio que nasce a vontade de escrever esse ensaio, para, num lado, dizer o quão gostei desse passeio nas histórias de muitas famílias moçambicanas e, do outro lado, reagir a obra de Nuno Silas, exposta no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

De longe, apenas o preto e o branco lampiscavam, numa dança coordenada, mas também adversativa: uma cor tentava levar o lugar do outro, e, no final, os dois conquistavam a atenção mesmo nesse infinito pelejo. São duas cores que, convencionalmente, têm sido usados para retratar todos os sentimentos ligados a sofrencia de vários tipos, até mesmo o desfavorável luto, por exemplo. E é bem isso que se sente, se vislumbra e se imagina naquelas grandes telas: as dolorosas angústias de um pretérito muito presente, e em prontidão de acontecer,  acompanhado também por luto: se não é luto por um querido que se tornou ente naquele trabalho mineiro, era luto porque as pessoas perdiam um pouco de si naquelas covas, ora a sua saúde, a sua sanidade, e outras vezes outras coisas indescritíveis, e que somente as histórias que traziam dentro dos seus peitos podiam desenhar esse panorama. Não é apenas uma angústia que nos nasce ao vislumbrar essas lutas, são muitas que nos perpassam onde se resguarda uma memória colectivamente vivida, por isso é que, de um modo, são ressuscitadas, se andam vivas como que nunca morreram, então foram trazidas ao diálogo. Falando em diálogo e discurso, a exposição “Madjoni-joni: retratos de mineiros e famílias moçambicanas na África do sul” traz uma intermidialidade quando junta, num mesmo espaço, a fotografia, o vídeo e o desenho em grandes telas. Em breves trechos, a intermidialidade é a “relação que se estabelece entre dois ou mais produtos de mídia e de estabelecer uma categoria analítica” (Kogawa, Ghirardhi et Dos Santos, 2022 (disponível em https://doi.org/10.1590/2176-457353511)).

Além desses três “produtos de mídia”, essa exposição tem algo de incomum, nas galerias moçambicanas, que é o jogo dialógico/dialéctico entre os desenhos (e outras artes) e alguns textos. Essa interacção entre o texto e o desenho, por exemplo, essa intermidialidade, faz-nos não termos saudades dos títulos das obras. Em algum modo, sente-se que o texto, em inglês, na primeira exposição, por exemplo, contextualiza, clarifica e, para o nosso bel prazer, aprofunda a degustação. Apesar de haver essa contextualização e clarificação, surge, nos ares, que as mesmas são parciais, o que faz com que a outra parte da interpretação ainda se resguarde no ofício individual e subjectivo. Aliado a essa questão, a ausência de títulos abre um campo de significações que fica ao encargo do próprio observador, apreciador.

Em telas, Nuno Silas conseguiu reunir variadas angústias de Gado Mapara Magaiza, denunciado por José Craveirinha, isolamento forçado pela apartheid até a xenofobia. Há aqui uma conversa entre as telas, todas trazem-nos na tez as dificuldades, o sofrimento e, no meio disso tudo uma única possibilidade, a resiliência de famílias moçambicanas nas terras do rand. Metaforicou o trabalho braçal com os capacetes usados pelos trabalhadores das minas, e, nesse jogo entre

palavra e figuras, Nuno Silas escreve “Slave labour on mines” [trad.: Trabalho escravo nas minas] que nos oferece balizas concretas, essas que nos permitem relacionar esse quadro com o contexto “Gado Mapara Magaiza”, onde se retrata o trabalho desumano (animal), desigualdades e outras injustiças sofridas por moçambicanos. “Mamparra Magaiza” assim surgiu para glosar com homens que eram explorados não só por ignorância, como também por falta de protecção das autoridades.” – Luís Loforte (2007, correio da manhã). É essa falta de protecção que os fazia gado. Num outro quadro, sinto que o Silas sugere a ideia do apartheid e o isolamento dos negros (em particular, as famílias moçambicanas) com o arame farpado atrás de um pai, mãe e filho.

Nesse trabalho coordenado de significações, está lá uma estória desenhada que nos chama atenção, a todos, que é a questão da xenofobia. Cecília de la Garza (2011, disponível em https://doi.org/10.4000/laboreal.7924), na tentativa de definir esse conceito, refere que “pode dizer-se que este tipo de discriminação se baseia em preconceitos históricos, religiosos, culturais e nacionais, que levam o xenófobo a justificar a segregação entre diferentes grupos étnicos com o fim de não perder a própria identidade”. É, à luz dessa pequena definição ou tentativa de se situar esse conceito, o caso de dizer que os moçambicanos sofrem preconceitos e discriminação constantes nas terras sul-africanas que leva os mesmos a estarem isolados e segregados. Contudo, a própria autora acrescenta que “por outro lado, muitas vezes acrescenta-se um preconceito económico que vê nos imigrantes competidores pelos recursos disponíveis no seio de uma nação” (ibidem). Esse por outro lado revela muito aquilo que é a problemática do moçambicano nas terras do rand, que é, simplesmente, uma migração económica. E isso é justificado na transcrição “I came to Joni because of poverty, indeed!” [trad.: Vim para Joni por causa da pobreza, de verdade], e, com falta de protecção e ignorância, coloca-o numa posição de fragilidade.

O quadro é simples: um grupo de pessoas rodeando uma outra pessoa numa posição, imagina-se, de resignação e sendo apedrejado. Essa obra revela muito desse comportamento hostil contra os estrangeiros na África do Sul direccionado aos moçambicanos, em geral. É uma imagem que é reveladora, não precisa de muitas palavras. Essa tinta-da-china sobre papel em 150 X 196 cm, datada de 2024, abre feridas que ainda vertem grãos de pus e, de um outro modo, intensificam o já intenso drama de ser um moçambicano pobre naquelas terras: o terror e o medo de, a qualquer momento, eclodir qualquer fissura económico social e a corda rebentar-se pelo lado mais fraco.

Por conta da sua fraqueza, esses pagam com vida, em mortes mais dolorosas que qualquer acto de sacrifício, paus e pedradas até a respiração perder-se entre o ar, contaminado por sua exploração.

Essa exposição traz isso, em geral, as angústias que temos como moçambicanos: dos muitos gados mapara magaiza, dos isolamentos em bairros de lata e, em particular, a xenofobia, que acaba sendo o demonstração mais que evidente do sofrimento dos moçambicanos na terra de Mandela.

 

“A maior arma de um opressor é a mente do oprimido.” — Steve Biko

  1. A Ignorância Como Política de Estado

A história de um povo é escrita nas salas de aula. O destino de uma nação não se decide apenas nos palácios ou nas urnas, mas sim, nos livros que são colocados nas mãos das crianças, nas palavras que lhes são ensinadas como verdades absolutas, nos limites impostos aos seus pensamentos, antes mesmo que possam questioná-los.

Em Moçambique, a ignorância não é um acidente. É uma construção. Os conteúdos escolares são cada vez mais superficiais, distorcidos e, muitas vezes, deliberadamente falsificados. Os jovens aprendem que Moçambique faz fronteira com o Mar Vermelho, que Azagaia, o maior rapper e activista da sua geração, era um mero consumidor de drogas, que é normal adolescentes do mesmo sexo desenvolverem desejos sexuais um pelo outro. Não sei como pode isso ser descrito como educação. Livros com erros grotescos são distribuídos nas escolas e, quando são expostos ao público, o Ministério da Educação alega desconhecimento. Mas a questão essencial permanece: se ninguém aprovou os manuais, como chegaram eles às mãos das crianças?

A resposta não está na incompetência, mas na intenção. Manter o povo na ignorância é o primeiro passo para garantir que ele não questione, que não lute, que não se rebele. A falta de uma educação de qualidade não é um descuido, mas sim um projecto de poder. 

  1. A Polícia e o Estado: A Violência Como Método

A consequência directa de uma população mal instruída é um sistema de justiça brutal e primitivo. A polícia moçambicana não investiga crimes, não respeita procedimentos legais, não consulta peritos forenses ou linguísticos. Não porque não queira, mas porque não sabe. A Constituição, que deveria ser o pilar do seu trabalho, é um livro desconhecido para a maioria dos agentes. Sem conhecimento da lei, aplicam apenas a força.

Os casos de abuso policial são incontáveis. A prisão arbitrária e a tortura tornaram-se ferramentas comuns para extrair confissões, e qualquer voz dissidente é silenciada. Um exemplo recente foi o famoso caso de Unay Cambuma (Wilson Matias), que foi espancado e humilhado publicamente. Mas parece que seu processo desapareceu nos corredores obscuros da impunidade. Está preso? Vai a julgamento? Ninguém sabe.

E poucos se atrevem a perguntar.

A impunidade é a lei silenciosa que governa Moçambique e a falta de conhecimento da população torna-a possível. Como exigir justiça quando não se conhece os próprios direitos?

III. A Mídia: A Verdade Silenciada

Se a educação fracassou e a polícia governa pelo medo, restaria ainda um último reduto de resistência: a imprensa. Mas o que acontece quando até a mídia é controlada?

A televisão estatal moçambicana (penso, única estatal), há muito, perdeu credibilidade.

Pressionada pela população a ser menos “mentirosa”, continua a operar sob uma única perspectiva: a que favorece o poder. A notícia não é um reflexo da realidade, mas sim, um espelho distorcido, uma narrativa cuidadosamente construída de modo a manipular a opinião pública.

Como alternativa, surgiram canais independentes, como a TV Sucesso, de Gabriel Júnior.

Mas dizer a verdade tem um preço. O sinal do canal foi removido da DSTV, sem explicação, deixando milhares de moçambicanos sem acesso a uma das poucas fontes de informação confiáveis. 

  1. O Custo de Dizer a Verdade

A censura à imprensa independente e a perseguição de activistas são sintomas de um governo que teme a consciência do seu povo. Mas nem todos se calam. Movimentos de jovens como os de Nádia Munguambe, Quitéria Guirengane, continuam a lutar pelos direitos humanos, mesmo sabendo que a batalha é desigual.

A luta pela verdade não é apenas uma questão de coragem. É uma questão de sobrevivência. Enquanto a informação for suprimida, enquanto a educação for manipulada, enquanto a violência policial for normalizada, Moçambique permanecerá refém de um sistema que prospera à custa da ignorância.

  1. A Última Pergunta

E então, o que fazer?

Eu sou carvão.

Tenho que arder.

Queimar tudo com o fogo da minha combustão.

José Craveirinha, Grito Negro

Há imagens que não precisam de palavras para contar histórias. Elas falam por meio as sombras que as compõem, dos traços interrompidos, das ausências que gritam mais alto do que as presenças.

Na escuridão das minas sul-africanas, onde o suor se mescla ao pó como se a pele se dissolvesse na terra, a exposição Madjoni-Djoni, de Nuno Silas, resgata rostos apagados pelo tempo e corpos esculpidos pela dureza da migração. Como um arquivo espectral, a mostra revela as cicatrizes deixadas nos trabalhadores moçambicanos e em suas famílias, traçando um percurso que vai do apartheid ao pós-independência de Moçambique.

Cada quadro é uma explosão de tensão e movimento. Neles, figuras humanas emergem do caos da tinta preta, como sombras arrastadas pelo destino. Os corpos parecem em fuga, mas o espaço em que se movem não sugere saída — é um véu de incerteza, gestos interrompidos, borrões de um tempo que insiste em se repetir.

As pinceladas brutas e frenéticas evocam uma violência latente: a de ser arrancado da própria terra, explorado até o limite e depois descartado como carvão consumido. A ausência de rostos reconhecíveis não desumaniza os sujeitos; pelo contrário, os transforma em símbolos da colectividade migrante, cujas histórias individuais foram soterradas sob o peso da economia extrativista.

Uma das obras é acompanhada de um vídeo de 6 minutos e 59 segundos, que introduz um tom de introspecção. O menino retratado, marcado por tons de azul, carrega na postura e no olhar uma interrogação silenciosa. O azul, aqui, pode ser lido como frio, distância, melancolia — ou, paradoxalmente, um vislumbre de esperança.

A inscrição Children’s Center na sua camisa adiciona um estrato de ambiguidade: seria um refúgio ou um espaço onde se arquivam futuros interrompidos? Algumas obras ressoam como um grito engolido pelo tempo, dando voz aos que foram transformados em matéria-prima da engrenagem colonial e pós-colonial.

A exposição, em sua proposta experimental, faz um jogo entre o visível e o invisível. As fotografias resgatam memórias visuais que poderiam ter sido esquecidas; os vídeos acrescentam camadas de testemunho e oralidade; as instalações de grande escala projectam essas histórias para um espaço onde já não podem ser ignoradas.

No entanto, há momentos em que a própria estética pode se tornar um desafio para o espectador. A ausência de legendas ou contextualizações mais directas exige que o público reconstrua as narrativas a partir de impressões sensoriais e históricas dispersas, o que pode ser tanto uma experiência enriquecedora quanto um emaranhado de leituras inconclusivas.

A exposição desenha, com traços ásperos e contrastes ferozes, a travessia de corpos moçambicanos que, empurrados pela violência da história, cruzam fronteiras em busca de sobrevivência. O vestígio do apartheid ressoa nessas imagens, não apenas como um passado sombrio, mas como um presente que persiste na segregação económica e na exploração dos migrantes nas minas sul-africanas.

A migração, longe de ser um acto voluntário, surge como uma imposição da própria terra que, devastada por políticas excludentes e por uma economia que nunca se descolonizou por completo, empurra seus filhos para longe.

Como em “Terra Sonâmbula”, “a guerra crescia e tirava dali maior parte dos habitantes” — mas se não é mais a guerra que os expulsa, é o desemprego, a pobreza e a memória de um sistema que, mesmo desmontado, ainda aprisiona.

A mina, metáfora de um ciclo vicioso, transforma-se em outro campo de batalha, onde a luta já não é contra soldados, mas contra um destino que insiste em reduzir vidas a carvão.

Se, por um lado, Madjoni-Djoni é uma celebração da resiliência e da identidade moçambicana na diáspora, por outro, nos lembra que a migração é também um território de perdas.

Há ausências gritantes, lacunas que nem a arte consegue preencher. Mas talvez essa seja a grande força da exposição: transformar o silêncio dos retratados em eco, a sombra em matéria, e a história enterrada em fogo vivo, pronto para arder até que toda a maldição da exploração seja reduzida a carvão.

Inaugurada a 11 de Fevereiro, a exposição “Madjoni-Djoni”, de Nuno Silas, estará patente nas galerias do Centro Cultural Moçambique-Alemão e Centro Cultural Franco-Moçambicano, até 29 de Março.

Vozes Livres, de uma liberdade esperada desde as atrocidades políticas que vitimaram a cultura. Vozes eufóricas na noite excitante do Stewart Sukuma e banda Nkhuvu (do termo referencial a uma ode à alegria, à cultura e à capacidade da música de unir e elevar o espírito). O esperado espectáculo lotado a venda de bilhetes às 14h57, iniciou com um memorial do rei do reggae Bob Marley na interpretação de Redemption Song. Relembramos os perecidos confrades desta pátria, parida dos políticos, em um minuto de silêncio ao pedido da figura do cartaz sentimos a interconexão espírita.

O palco com novo visual, preto da cor do carvão do Craveirinha: Eu sou carvão! / E tu arrancas-me brutalmente do chão/ e fazes-me tua mina, patrão/ E tu acendes-me, patrão, para te servir eternamente como força motriz/ mas eternamente não, patrão, acompanhava o piso cinzento e bancos castanhos, que evoca sensações de estabilidade, conforto e simplicidade. Acredita-se, na espiritualidade, que o uso da cor castanha na decoração de interiores tenha um efeito curativo. Estes foram os condimentos para o concerto ser e estar a medida da enorme banda de ode cultural.

Nove elementos acompanharam o concerto, desenhado após a crise, acredita o Stewart que as artes têm palavras a dizerem “nossa liberdade de expressão está em risco, este concerto é um apelo à luta contra as injustiças”. As lágrimas do Stewart Sukuma caíram em palco, as imagens retratando o sistema, deixaram a plateia inerte e triste. Foram momentos não desejados.

Hakuna Male (literalmente do título original MALE), é preciso dinheiro, logo que nasces nesse país, precisas de respirar, precisas das coisas da terra, uma música que retrata nossa necessidade diária de sobrevivência.  Precisamos de dinheiro, símbolo de lutas, pelo poder, pelas conquistas,  pela nossa forma negra, clara, branca, mulata de precisar contornar a vida,  ele se não fosse filho de Abraão (na referência bíblica diz que teve da sua primeira concubina, Hagar, o Ismael; de Sara, sua esposa legítima, saiu Isaque; e de sua segunda concubina, Quetura, teve outros seis filhos: Zinrã, Jocsã, Medã, Midiã, Isbaque e Suá) não teria as posses do pai, ou seja, não precisava de trabalhar arduamente para ter male,  diz Stewart, seria – borboleta (símbolo espiritual que pode representar a transformação, a renovação, a ressurreição, a felicidade, a beleza, a inconstância e a efemeridade da natureza). Não sei ao certo o que leva a entrar o percussionista numa dança desenfreada nesta música. Um homem de show!

Trajado do vestuário do cartaz, Stewart apresenta a cara hirta e alegre. Mas preocupado com tudo!

Seus movimentos de dança são reduzidos à tristeza, sem o bambolear das coristas, a banda Nkuvu estaria inerte a figura icónica do Gonzaga, baixista muito admirado pela claque e fenomenal. Salta para a bancada e senta-se, assistindo um produto da banda. Um Mondlane baterista nato. Stewart agita a segurança à sua segurança, as luzes dos celulares caem no seu rosto para a prosperidade dos fãs.

Transpira na terceira apresentação. A cunhada sente seu coração acelerado. Preocupa-se. Seus fãs querem o abraçar, o palco está alto e todos os dias é preciso cuidar em Mandziku, uma música de dança evocativa à ordem, mistura perfeita de palmas, e no seu dialecto central do mapa à marrabenta, dança que lhe é característica.  Agitou o lodo e desfizeram-se dos assentos em compassos de danças de um trio de percussionistas. O ritmo. O som. A tradição. A harmonia. A batida. As imagens para a rede social. O descamisar do casaco do artista, foi de exímios guerreiros e bailarinos Tsongas, em uma noite quente de África. De Moçambique.

Vamos dançar a marrabenta para que todos se sintam satisfeitos.  As luzes morreram. O cheiro encantado do perfume das mulheres espalhou-se pelo ar abafado. Canta o músico: deixe a preguiça, venha dançar na alegria da gente, um convite para o baile das nossas conquistas. A música remete a libertação do ego. A música de Stewart desfigura um momento entre a transmutação e a maturação auditiva. É preciso perceber a mensagem para o baile. A música levou no final ao dedo do Fred Mercury na chamada da Felizmina ao namoro do bairro, uma bela mulher de Moçambique, uma bela mulher focada no coito e no prazer de viver com seu guerreiro trovão.  Uma mulher que acabará com o sofrimento no bairro. Em especial no lar, depois de casada. A Julieta e a Josefina, duas cobras do passado que não respeitavam o homem, são esquecidas na anciã da beleza corada, de olhos brilhantes como diamantes. Essa Felizmina, mulher que atrai homens de posições romancistas, adornou a sala grande do franco. Surgiram beijos e lágrimas de casais em briga, que usaram as Vozes Livres para a reconquista. Para as pazes. Para um bem maior que o ego. É lindo. Foi lindo. É essa a função da música.

Educação para Todos, um movimento seguido pelo Stewart, trouxe a triste certeza que a educação está obsoleta, decadente e precária, contrariada pelos políticos que mantém a certeza de haver crianças a sentarem em carteiras pelo país todo.

É embaixador do Conterpart e SESC, cujo objetivo é de levar alimentos aos mais favorecidos. Stewart apela ao fim da mão estendida, para um Moçambique cheio de terra e riqueza, temos de produzir alimentos diversos, bens diversos necessários à diária dos moçambicanos.

Eu e tu, um dueto entre Stewart e Oliver Mtukudzi, gelou a sala grande do franco, em coro de esperanças. Há sempre guardians of the light protegendo-nos. E Vozes Livres foi isso, uma esperança que embalou nosso psíquico cheio de mágoas. Mtukudzi ali patente no palco, ajustou-se ao microfone e deleitou-se na transmissão musical. Sua imagem velha ostentava uma biblioteca aproveitada pela Banda Nkhuvu. É um facto.

Precisamos de respostas, porquê (Why?).  Esta música apresentou imagens dos últimos feitos negativos do sistema político, perpetrados pelas eleições e seus resultados, precisamos de dar respostas, um dueto de Stewart e Fermom Mondlane (um artista com a capacidade de fazer mais de 8 vozes diferentes e interpretar vários personagens é um dublador de filmes), com cabelos da moda, esticados por pentes de ferro quente. Terminou em abraços fraternos à sua apresentação.

Faça a mudança que queremos ver no mundo (Gandhi).

Azagaia e Eduardo White. Foram relembrados num reggae de espírito e de profundidade oceânica, infelizmente, vivemos de matéria, não podemos desistir. Vozes Livres foi este êxtase de mensagens antigas e novas misturas de vários sons da banda Nhkuvu. Vozes Livres, é estar livre no palco, dizendo os problemas. Dizendo as soluções e prevendo o futuro.

Os meninos à volta da figueira/ vão aprenderam como se ganha uma bandeira/ e vão saber o que custou a liberdade/.  Liberdade essa em círculo no palco das vozes livres, uns meninos disfarçados de adultos convidados, apresentaram o coração (Mbilu Yanga), o musculo mais importante do corpo, que a cada batida fornece alimento e oxigênio às células. A música alerta para que tenhamos um coração saudável, como a chave para um corpo saudável. Em uma roda de estrada de vida, sonho, bairro e homem, um grão de areia ao vento, uma luz no fundo, um sonho distante, perdido. Num beco sem saída. Meu coração, minha rosa, és um sonho que não tive. A história que não quis contar. Um sonho distante, firme nas estrelas. Uma poesia cantada em sinfonia de uma caixa, uma viola baixo e chocalhos. Um segredo de um passo engasgado na noite. Cantar poesia, em vozes livres trouxe nossa musicalidade de leitores dos nossos poetas. Isto é que torna o músico, uma figura de respeito. Uma figura que altera o estado de esqueletos e mentes, um historiador que não quer calar.

O mel é doce por si mesmo. Canção interpretada por vários duetos, onde os jovens se preocupam com o mel, lutam lutas de amores perdidos nas raparigas cheias de doçura. Um sol para aquecer. A preocupação dos jovens.  Por causa do mel, Wulombe. É uma metáfora cantada. Explica-nos esta falta de amor. Este nosso bárbaro desejo. Não em uma carnificina. Mas em ter e dar amor a cunhada, a esposa, a avó, a nação.

O café referenciado por Stewart é cheio também de tristeza, mas carrega amor. Entre os agricultores. Mas esse café não tomado está patente na cor negra do africano. É cheio de sangue invisível, de sofrimento na roça. Um café tomado na história de batalhas às conquistas. Nossos heróis são aqui exaltados em uma harmonia de dó menor. Uma rota de café com estórias de tristeza ao toque quente da chávena. Com acordes de fá e ré. Entra um som dos instrumentos africanos para apimentar a final.

Os ossos. Os músculos. Os tímpanos. O corpo começava a fraquejar. O único meio de nos retirarmos. Em txopela de Moçambique. Numa boleia das lendas. De uma condução segura do motorista. Regressaremos um dia. A música confraterniza com a cidade. Suas gentes. Sua beleza. Tem ritmos de dança a dois. Não é um bailado. Mas sim uma música de pares.

Seus fãs conhecem suas músicas. Vi isso e sei o que escrevo. Mesmo a língua sendo diferente do meu dialecto. O seu dialecto encanta na musicalidade. Na perfeição entre as cordas vocais, entre as cordas da viola. É preciso prática e ensaio para se chegar a um concerto de vozes livres e não nos cansarmos de remexer e ouvir.  Os técnicos deste concerto afinaram o aparelho à medida dos 20 hertz auditivos. Não doía. Doeu não ter saltado ao palco e se juntar ao baile desordenando do branco alegre na terra de Mondlane. Livre dos estereótipos do seu continente. O presente. Um quadro em grafite retratando sua imagem caiu às mãos em ofertório do Cubo de Gelo (tradução livre do nome).

Mundo primitivo. África cresceu ouvindo sua história contada pelo outro e diminuindo o africano. Contada para transmitir os heróis e heroínas africanas ao esquecimento, Stewart embala na mbira. O coro em onomatopeia solfeja. Os guerreiros na tela batem os escudos, festejando o nascimento da criança. O filho do rei. A rainha trouxe o salvador.

Ntunia, não diga adeus, não diga até amanhã.  Na voz de Ana Girão foi fenomenal. Cabeças abanavam. Aceitando a colocação vocal livre. O coro dos mais de 700 espaços ocupados, e em pé, contavam-se rapidamente, um número sem sentido. Aplaudiram eufóricos. Esperando pelo fim em Olumwengo.

A simbiose entre as artes, uma colaboração solicitada pelo Stewart.

Não terminou, apesar de terem sido canceladas pelo sistema, a banda continua esperando mais eventos. Continua firme a causa. A música não pode ser algemada.

Relembrou e agradeceu ao Aurelio Lebron e Manuela Soeiro. Um beijo selou a amizade de mãe e filho. Um beijo dado com vênia pelo trabalho feito em prol da cultura de palco.

Marrabenta é nossa história, nossa identidade cultural. Cultura do homem pobre e cheio de riqueza no bailado e na alegria.  Esta música gira a mente alegre dos fãs da banda, esta música não se inventa, inspira algo em cada bailarino no palco. A marrabenta é de todos os povos de Moçambique.  É dos expatriados que acompanham o remexer que dizem que vale a pena casar. Parece combinação.

No dia seguinte não queríamos esperar pelo próximo cartaz do franco, mas sim, contemplar o ontem.

Um ontem cheio de gratidão a organização deste concerto fabuloso!

Um concerto que desmistificou as horas de uso do palco, das 20h de início, o concerto divorciou-se de nós  às 23h.

Não vale a pena confiar na banda Nhkuvu para abrir uma época cultural no Centro Cultural Franco Moçambicano, onde o caranguejo tentará te calar e te puxar para o lado como sua caminhada à beira mar. Ao topo chegaram e ergueram a bandeira de uma banda simplesmente exímia no tocar de instrumentos e na libertação de vozes. Caricaturadas pelo Zimba esquelético em palco vimos desenhos reais e com sabores do chef Graça, provamos a refeição típica da nossa casa Nhkuvu.

Rasgam-se os corações, varem-se as palavras e enchem-se as almas diante do embate entre cores e letras. As obras de Sebastião Coana não repousam; elas são fragmentos de um discurso visceral, onde as cores gritam, recontam histórias que a memória tenta esquecer. Há algo de violento na forma como as pinceladas cortam o espaço, como se as próprias telas fossem um corpo marcado pelo tempo,
cicatrizando na retina do espectador.

Os olhos percorrem os contornos, mas não encontram descanso. Cada tonalidade estremece como um resquício das vozes que Paulina Chiziane eterniza em sua literatura — vozes de “mulheres sem vozes”, de espíritos inquietos, de povos que se recusam a desaparecer. A própria percepção do observador se vê alterada diante dessa sobreposição de histórias e imagens, como “à força de perscrutar as sombras a retina falseada as imagens, alargando-as, enchendo com ellas os ares”, nas palavras de Fialho D’Almeida em A Cidade do Vício.

Neste cenário, não há mera contemplação. Há uma urgência que trespassa cada traço, uma pulsação indomável que desafia o olhar a decifrar segredos encobertos por tinta espessa. É como se o tempo houvesse sido comprimido nas telas, transformando cada fenda, cada explosão cromática, numa fissura por onde surgem histórias de dor, resistência e pertença.

Ao atravessar esse território onde as letras se dissolvem em tintas e as tintas se transformam em narrativas, o espectador não sai ileso. A exposição Diálogo entre Letras e Cores não apenas propõe uma conversa entre imagem e palavra, trata-se de um pacto sensorial em que a arte adentra a pele e se expande como uma ferida aberta.

A textura consistente dos quadros de Sebastião Coana reforça a fisicalidade do gesto artístico. O uso expressivo da matéria pictórica gera volumes que parecem pulsar, deslocando a pintura do domínio da superfície bidimensional para uma presença quase corpórea.

Há nessa fusão entre representação e essência, uma tentativa de capturar aquilo que persiste para além das telas. Não por acaso, Luís de Camões em Os Lusíadas escreveu “ali tinha em retrato afigurada, do alto e Santo Espirito a pintura”. Assim como na epopeia camoniana em que a pintura se torna reflexo do sagrado, a obra de Coana não se limita à cor e à forma.

Dentro desse universo, há figuras que se insinuam sem se definirem completamente, rostos desfeitos, corpos entrecortados por manchas e riscos, olhares que emergem simplesmente para se dissolverem na  atéria cromática – tudo sugere uma identidade em trânsito, uma batalha incessante entre a visibilidade e o apagamento.

As cores, em sua fúria desordenada, funcionam como um sistema representativo de resistência. Os vermelhos e laranjas incandescentes ressaltam fogo e sangue, mas também vitalidade e transformação. O negro, que por vezes parece engolir as formas, remete à escuridão da memória colectiva, às lacunas históricas e aos silêncios impostos. No entanto, mesmo nas zonas mais sombrias, há sempre um vestígio de luz, uma linha que resiste, uma cor que se infiltra – uma metáfora para a persistência das narrativas que recusam ser esquecidas.

Se há algo de literário na pintura de Coana, não é apenas pela proximidade com os temas de Paulina Chiziane, mas pela maneira como suas telas operam como páginas abertas, esperando ser lidas.

A sua técnica manifesta um texto escrito em dimensões, onde cada nova aplicação de tinta é uma reescrita, uma contestação da versão anterior, uma tentativa de dar corpo ao indizível. Com efeito, a arte não se contenta em representar; ela interroga e provoca.

Logo na entrada da galeria, Mãos Desacorrentadas (100 x150cm, acrílico sobre tela texturada, 2025) se impõe como um apelo ao olhar e à reflexão. As figuras emergem de uma textura saturada, quase orgânica, onde cores quentes e opostas acentuam a força do gesto representado.

As mãos, protagonistas, se entrelaçam num movimento que sugere libertação, cuidado e reconstrução. O olhar da imagem inferior transmite uma gravidade inefável, enquanto a presença superior parece desintegrar amarras invisíveis, como se refizesse um caminho há muito traçado.

A obra não se restringe a representar um instante, entretanto trás a tona um processo, ou seja, um deslocamento entre o que foi e o que se torna. A ausência das correntes é tão expressiva quanto sua possível existência anterior, e o toque das mãos sobre o cabelo sugere mais do que um simples acto cotidiano: há ali uma reafirmação de identidade, uma reconfiguração do ser.

Coana, mais uma vez, trabalha com tonalidades que vão além da tinta, oferecendo ao espectador um espaço para sentir e reinterpretar. Mãos Desacorrentadas abre-se como um território onde cada olhar encontrará sua própria narrativa de liberdade.

Liberdade essa, que, agora se materializa em uma explosão de movimento e textura em( 100 x 120cm, óleo s/tela textura, 2025).

A composição lateja com energia, onde os desenhos parecem romper os estratos que as aprisionam, gerando um impacto de desencontro e premência. A combinação de nuances vivas, entre o laranja ardente e os azuis discordantes, intensifica a tensão entre corpo e espaço, como se os personagens lutassem contra uma barreira, ou contra si mesmos.

A textura não é apenas um elemento estético, mas parte essencial da narrativa: ela sobrepõe e obscurece, sugerindo que a liberdade não é apenas um ideal, mas um processo de ruptura.

No entanto, essa mesma materialidade pode ser lida como uma armadilha estética.

A sobrecarga de textura e a sobreposição de formas podem, em certos momentos, obscurecer a nitidez da mensagem, tornando a cena fragmentada e menos acessível a leituras directas.

Ainda assim, a obra Liberdade reafirma o compromisso de Coana com uma arte que não apenas se vê, mas se sente. A obra, convida à acção, à quebra de padrões, à redefinição do próprio conceito de liberdade.
Diante dessas obras e mais, o olhar do visitante é constantemente desafiado. Não há respostas prontas, apenas vestígios que pedem para ser lidos, indícios de histórias que se moldam conforme a sensibilidade de quem observa. Mais do que contemplação, há um chamado à escuta, à releitura de um passado que ainda se escreve.

Até o dia 09 de Fevereiro, na Galeria do Porto de Maputo, permanece a chance de atravessar esse espaço onde a imagem e a memória se entrelaçam. A experiência não se encerra na visita; ela se conduz adiante, reverberando em cada um que se permite sentir.

Os corredores do Centro Universitário Cristão de Pembene, tão serenos à primeira vista, escondem histórias que se espalham como folhas ao vento, carregadas de sussurros e indignações. Entre os rostos apressados e os livros apertados contra o peito, há um nome que emerge com frequência: Likane, o professor que veste o título de doutor como armadura e o poder como arma.

Likane não era apenas professor; era também um estrategista social. Com um sorriso que oscilava entre o falso e o predatório, fazia questão de ser amigo de todos. Mas os mais atentos percebiam que suas amizades seguiam um padrão: sempre jovens, sempre estudantes, sempre mulheres. Não era amizade o que ele buscava, mas oportunidades.

Diziam que aquelas que, por infortúnio, entravam na sua mira, logo descobriam o verdadeiro preço de sua simpatia. Havia quem falasse de encontros em pensões escondidas, de convites sussurrados no canto de corredores, de promessas veladas que misturavam notas académicas e ameaças disfarçadas.

Foi num desses corredores, em meio ao vai e vem quotidiano, que Likane cruzou com uma jovem estudante do curso de Administração. Olhou-a de cima a baixo e, com a voz carregada de audácia, sentenciou:

— Enquanto não me abrires as páginas, daqui você não sai.

Ela riu-se. Talvez por nervosismo, talvez acreditando que era uma brincadeira. Mas, à medida que os passos de Likane se afastavam, um frio subiu-lhe pela espinha. Algo estava errado. Ao chegar a casa, o episódio não lhe saía da cabeça. Durante o jantar, contou à avó, como quem divide um fardo pesado.

A anciã, mulher de sabedoria forjada pelas intempéries da vida, não disfarçou o espanto.

Seus olhos se arregalaram ao ouvir a história:

— Um professor assediador no Centro Universitário Cristão?

 

A avó sabia que aquelas palavras eram mais do que um mero desconforto. Eram um sintoma de algo maior, um eco de tantas histórias sufocadas pelo medo, pela vergonha, pela impotência diante de figuras que usavam o prestígio como escudo para os próprios pecados.

No Centro, enquanto a jovem tentava digerir o ocorrido, Likane continuava a caminhar pelos corredores, confiante em sua impunidade. Mas, como as folhas que sussurram segredos ao vento, as histórias sobre ele começavam a se espalhar. E, em algum lugar, uma onda de indignação começava a crescer.

 

Todos nós somos parte integrante de uma sociedade. É um organismo vivo, composto por cada indivíduo e moldado pelas suas acções, escolhas e valores. Por isso, quando afirmamos que a sociedade anda doente, estamos, implicitamente, a reconhecer a nossa própria condição de desequilíbrio. Este desajuste colectivo é um reflexo directo de problemas individuais que, de forma acumulativa, impactam a estrutura social como um todo.
Mas de onde surgem esses problemas? Eles não aparecem do nada, nem são meros acidentes. Muitos deles derivam do desmoronamento das famílias, que são a célula fundamental da sociedade. Quando os alicerces familiares se fragilizam, a sociedade torna-se uma construção instável, permeada por valores morais distorcidos e desvirtuados. A família, sendo o núcleo primário de formação do indivíduo, desempenha um papel crucial na transmissão de princípios éticos, culturais e sociais. Se esta célula entra em colapso, a sociedade, que é uma extensão mais ampla do ambiente familiar, começa a refletir essa mesma disfunção.

A Família como Reflexo da Sociedade
Uma sociedade saudável é o resultado de famílias equilibradas, e o contrário também é verdadeiro. Se os índices de criminalidade aumentam, isso não é apenas um problema estrutural ou legal, mas um sinal de que a base formativa do indivíduo está comprometida. Cada criminoso que comete actos hediondos nasceu e cresceu numa família. Da mesma forma, os professores, advogados, médicos e polícias, sejam corruptos ou íntegros, também são frutos dessa mesma sociedade e, por extensão, dessas mesmas famílias.
Isso não significa que seja possível apontar culpados de forma directa. Não há um único responsável pela deterioração social, mas há um envolvimento colectivo. O gradual declínio dos valores éticos é um processo no qual todos participamos, quer activamente, pelas nossas acções, quer passivamente, pela nossa indiferença.

A Normalização de Atitudes Prejudiciais
A degradação moral da sociedade começa, muitas vezes, com a normalização de práticas questionáveis. Um exemplo simples é a forma como as roupas são vistas actualmente. Argumenta-se que ninguém deve ser julgado pela forma como se veste, o que, em princípio, é correcto. No entanto, a liberdade que esse pensamento promove, muitas vezes, leva a extremos que ignoram contextos e consequências. A vulgarização de comportamentos outrora considerados impróprios é, muitas vezes, celebrada como progresso, quando, na realidade, pode ser um reflexo de uma sociedade que perdeu o sentido de limites e de autoconsciência.
Outro exemplo é a forma como recompensamos o esforço. Quando um pai oferece dinheiro ao filho para o incentivar a estudar, ele pode estar, sem querer, a associar o valor do conhecimento a uma transação monetária. Isso desvirtua o verdadeiro propósito da educação, transformando-a num meio para obter recompensas imediatas, em vez de um processo de crescimento e realização pessoal.
Este problema alastra-se às escolas. Muitos alunos, hoje em dia, não conseguem frequentar aulas sem dinheiro no bolso, muitas vezes, para pagar professores que cobram para garantir passagens de ano. Mais preocupante ainda, este comportamento é frequentemente incentivado ou, no mínimo, tolerado pelos próprios encarregados de educação. Ao aceitar essas práticas, as famílias contribuem para a perpetuação de um sistema corrupto, que não apenas prejudica o aluno, mas também compromete a integridade do ensino.

O Reflexo da Educação na Vida Adulta
As consequências de uma infância sem orientação adequada manifestam-se, inevitavelmente, na vida adulta. Os profissionais públicos, por exemplo, muitas vezes, demonstram um conjunto de características que refletem a carência de valores e princípios, durante a sua formação. Prepotência, arrogância, desrespeito e cinismo tornam-se traços comuns em muitos deles, mesmo em interações com pessoas desconhecidas. Estas atitudes são um reflexo directo da educação (ou falta dela) que receberam, tanto em casa como na escola.
Esses adultos, por sua vez, influenciam negativamente os ambientes em que actuam. No sector público, por exemplo, é frequente encontrar pessoas cuja postura arrogante e desumana demonstra uma desconexão completa com o papel de serviço à sociedade que deveriam desempenhar. Quando indivíduos assim alcançam posições de poder, a situação agrava-se. Em vez de liderarem com diálogo e empatia, recorrem à imposição e à intimidação, apoiados por subordinados que perpetuam o mesmo comportamento.

O Papel de Cada Um na Transformação Social
É fácil culpar a sociedade por todos os males, mas a verdade é que cada um de nós tem uma parte de responsabilidade. Não basta identificar os problemas; é preciso agir de forma consciente para corrigi-los. Isso começa em casa, no núcleo familiar, com a transmissão de valores sólidos e com o exemplo. Uma criança que cresce num ambiente de respeito, honestidade e empatia terá mais probabilidade de reproduzir essas qualidades na sua vida adulta.
Além disso, é fundamental questionarmos as normas que aceitamos passivamente. Será que estamos a permitir que comportamentos prejudiciais se tornem a norma? Será que estamos a educar as próximas gerações para serem cidadãos conscientes, ou estamos apenas a prepará-las para sobreviver num mundo de interesses e conveniências?
A mudança é um processo lento, mas começa com passos simples. Valorizar a educação, promover a honestidade e incentivar o respeito mútuo são algumas das formas de construir uma sociedade melhor. Cada família, ao fazer a sua parte, contribui para a construção de uma sociedade mais justa, mais humana e mais equilibrada. Afinal, a sociedade não é nada mais do que a soma de todos nós. Se queremos um futuro melhor, é necessário começar a mudança agora, dentro das nossas próprias casas.
Este texto reflete sobre os desafios que enfrentamos enquanto sociedade e a importância de resgatar os valores fundamentais no seio familiar para inverter a tendência de deterioração social. Apenas com esforço colectivo e responsabilidade individual será possível reverter este cenário.

 

Tete, 21 de Janeiro de 2025

 

Um vídeo está a circular nas redes sociais em Moçambique. Dois académicos, Régio Conrado, Professor de Ciência Política, e Osvaldo das Neves, Docente de Estudos Literários, ambos da Universidade Eduardo Mondlane, envolvem-se num aceso debate.

Em plena discussão, os egos inflamam-se. O tema inicial, centrado na política, transforma-se num confronto sobre qual dos dois possui maior refinamento cultural. O Professor Conrado cita clássicos das artes plásticas e da música, que considera esteticamente relevantes, e lamenta que muitas pessoas, como o seu opositor, tenham ouvidos apenas para captar a sonoridade de Zena Bacar ou para géneros musicais dos guetos sul-africanos, como o amapiano. Questiona se quem aprecia amapiano é capaz de compreender a Nona Sinfonia de Beethoven.

O vídeo, agora viral na internet, reacendeu a memória e trouxe de volta ao imaginário colectivo aquela que é conhecida como “The Golden Voice of Mozambique”. Mas quem é Zena Bacar? Abaixo, apresento uma breve exposição sobre a trajectória da artista, cuja obra tem sido objecto do meu trabalho de pesquisa. Alguns resultados deste trabalho foram publicados como capítulo do livro Cadernos de Música Moçambicana e apresentados no seminário sobre “Movimentos Sociais Transnacionais, Risco e Espaço Público”, no âmbito do Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global em Coimbra.

Zena Bacar Ali – mais conhecida como Zena Bacar – nasceu a 25 de Agosto de 1949, no Lumbo, Ilha de Moçambique, e faleceu a 24 de Dezembro de 2017, na cidade de Nampula. Foi vocalista e compositora do grupo musical Eyuphuro. Para além de vocalista principal, chegou a liderar o grupo, sendo a única mulher na banda.

Ao longo de uma carreira de cerca de 30 anos, Zena cantou sobre as injustiças sociais enfrentadas pelas mulheres em Moçambique. Simultaneamente, a sua voz celebrou a valorização da identidade, da liberdade e do papel da mulher na sociedade. Defendeu, igualmente, o acesso das mulheres à educação.

Quando Moçambique alcançou a independência do jugo colonial português, Zena tinha 26 anos. Naquela altura, muitas mulheres makhuwas não tinham acesso à educação, o que as impedia de comunicar em língua portuguesa, a língua oficial do país. Entretanto, conforme descreveu o músico Gimo Mendes, fundador do grupo Eyuphuro, Zena era uma mulher diferente: vestia-se bem, era desinibida e comunicativa.

Estas características levaram a que fosse convidada a participar, entre Dezembro de 1980 e Janeiro de 1981, no Festival Nacional da Canção e Música Tradicional de
Moçambique. Durante a formação da delegação da província de Nampula para o festival, reuniram-se vários músicos, entre os quais Salvador Maurício, Gimo Mendes, Omar Issá e Zena Bacar.

No festival, os participantes representavam delegações provinciais, com cada província a dispor de um tempo de actuação. Algumas delegações formaram grupos musicais ad hoc. Durante uma entrevista que realizei com David Abílio, então director da Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, este explicou-me que o festival era “uma oportunidade para promover a colaboração entre artistas de diferentes pontos do país, muitos dos quais nem sequer se conheciam antes, assim como nunca tinham estado nas respectivas capitais provinciais”.

Em Maputo, Salvador Maurício, Gimo Mendes, Zena Bacar, Mussa Abdala e Omar Issá formaram um grupo ad hoc e chegaram a gravar duas músicas na Rádio Moçambique, com a assistência de Américo Xavier. As músicas, cantadas em Emakhuwa (variante Nahara), foram: Amwara a N’rakhe (“A esposa do senhor N’rakhe”), interpretada por Salvador Maurício, e Orera Kurrera (“Vaidade sem juízo”), cantada por Zena Bacar.

Ao regressarem a Nampula, os artistas decidiram aprofundar o trabalho do grupo ad hoc e transformá-lo numa banda. Em 1981, formou-se o Eyuphuro, que significa “furacão” em Emakhuwa. No entanto, duas semanas depois, Salvador Maurício foi convidado a gravar um disco na Rádio Moçambique, em Maputo, afastando-se do grupo. Assim, Gimo Mendes, Zena Bacar, Mussa Abdala e Omar Issá continuaram com o Eyuphuro.

Em 1986, o Eyuphuro realizou a sua primeira digressão europeia, actuando na Holanda, Bélgica, Suécia e Dinamarca. Quando entrevistei Gimo Mendes, este explicou-me que a viagem à Europa motivou o grupo, que teve a sua música apreciada pela fusão entre a percussão tradicional da costa oriental de África e as guitarras acústicas.

As composições do Eyuphuro têm uma forte influência das danças do litoral da Província de Nampula, como o Tufo, Nsope, Namahanja, Xacaxa, Morro, Djarimane e Massepwa. Estes ritmos ecoaram em festivais de música em vários países europeus.

Entre 1986 e 1992, o Eyuphuro actuou em 18 países, incluindo Escócia, Inglaterra, Itália, Canadá, Alemanha, Finlândia, Holanda, Irlanda, Suécia, Bélgica, Dinamarca, Noruega e Estados Unidos. Em 1989, o grupo foi convidado pelo músico inglês Peter Gabriel para participar em festivais europeus de grande notoriedade, como o WOMAD Festival, em Carlyon Bay.

O momento de maior destaque do Eyuphuro foi a gravação do seu primeiro álbum, Mama-Mosambiki, nos estúdios da Real World Records, em Londres, em 1989. A ficha técnica do álbum inclui Zena Bacar (voz), Gimo Mendes (voz e guitarra), Chico
Ventura (guitarra), Mário Fernandes (baixo), Mussa Abdala (percussão) e Belarmino
Rita Godeiros (percussão rítmica).

Em 2001, a banda gravou o segundo álbum em Maputo. Produzido e dirigido por Roland Hohberg, da Mozambique Recording, o disco, intitulado Yellela (expressão em Emakhuwa que significa “é isto mesmo”), contou com Zena Bacar (voz), Issufo Manuel (voz), Mussa Abdala (voz e percussão), Belarmino Rita Godeiros (percussão rítmica), Jorge Cossa (percussão), Firmino Luís Hunguana (baixo), Mahamudo Selimane (guitarra), Mariamo Mussa Hohberg (voz), Orlando da Conceição (saxofone) e Benedito Mazbuko (teclados).

Zena Bacar é lembrada como “The Golden Voice of Mozambique” (um título atribuído pela Real World Records, em Londres). A sua música concentra-se em dois grandes temas: o amor e a intervenção social, com um foco especial na mulher. A artista defendeu a liberdade de expressão das mulheres e o seu direito à educação e a cultura.

Por Domingos Mucambe 

 

Por anos, muitos poucos anos, diga-se, ao abono da verdade, fiquei por muito tempo pensando em como na literatura de Moçambique o conteúdo erótico é escasso, e quando aparece, é muitas vezes disfarçado, usando metáforas de difícil compreensão, não porque, penso eu, talham bem a palavra, que é, por si, uma actividade literária refinada, mas porque temem tocar nesses assuntos.

Esse suposto medo tem uma razão que vai além da ordem dos versos e letras: a nossa cultura.

Tudo o que remete ao erótico nessa cultura é profundamente combatido, reprimido e ocultado, na máxima potência. Ainda em muitas famílias africanas é raro ver pai e mãe aos beijos em frente das crianças, ou mesmo assistir a cenas eróticas num filme com a família. Contudo, dá para se perceber que já alguma mudança nesses costumes trazidos por esses tempos novos.

Talvez seja por conta desses novos tempos em que nasce o livro “O que faz a alma gozar transforma”, uma colecção de poemas que, cuja íntima finalidade, provoca calafrios e lembram a tesão. Muito pior que lembrar a tesão, esse livro romantiza a tesão, fá-lo suportável, dizível, algo apreciável e que deve ser contemplado no lugar de reprimido.  Esse talvez seja a maior façanha desse livro lançado em 2024, por Benjamim Luís: tornar o erótico algo “discursável” e conversável numa sociedade resultante de dois blocos opostos, a tradição africana e as religiões (cristianismo e islamismo), que, sabe-se, são dois eixos que tratam a questão do erotismo como tabu, para um lado, e algo a se esconder, para o outro lado.

Há muito que se pode dizer sobre esse livro. Mas, a temática restringe-se nessa vertente: o erótico, o sexo, o prazer, ou seja, uma poesia erótica. Além da uniformidade temática, esse livro tem uma poesia simples, de fácil compreensão. Trata-se de uma proposta com uma escrita acessível para qualquer falante da língua portuguesa. A sua escrita é leve, bonita, prazerosa, fluida e muito maleável.

As discussões em torno da poesia dividem-se em dois caminhos: a poesia tendo a finalidade estética, e a poesia tendo uma finalidade funcional. No primeiro caminho, contempla-se a beleza, a estética, o belo que a literatura pode trazer e ser, com o que muitos dizem, um poema não precisa dizer, basta ser. Aqui, fundamentalmente, o ápice da produção poética reside no prazer que ela trará, e não na lição, ou a mensagem. A Hilda Hilst falando sobre a tristeza de explicar um poema, ela diz que “O poema é um soco”. Deve chatear-nos o estômago, e assim o poema teve muito sucesso.

Pelo caminho contrário, existe o Benjamin Luís, com a sua proposta poética, em que, na escolha entre mensagem e estética, vai pelo primeiro caminho, e tem muito para dizer em meios poéticos.

Professor Manusse, docente de literatura, ensina que a literatura não é o que se diz, mas como se diz. Para esse, o mais importante é a forma com a qual se narra, e não a história em si. Benjamin Luís desvincula-se desse caminho, não por completo. Poesia que é poesia, terá sempre a estética, senão não seria poesia.

Na luta entre o denotativo e conotativo, a escrita de Benjamin Luís pende mais para a denotação, a literalidade. No seu texto “O reencontro”, apresenta-nos apenas palavras, sem nenhuma construção metafórica ou de outras figuras de estilos, que enriquecem tudo aquilo que é poético.

O texto:

“Olhar intenso e recíproco

Ansiedade;

Curiosidade;

Saudade;

Toques;

Beijos;

Carinho;

Lambidela;

Suave e longa.

Gemidos;

Fervor;

Desejo;

Penetração;

Zumbidos;

Ofegos;

Orgasmos.”

Todas as palavras perfiladas nesse poema significam aquilo que o dicionário nos oferece, exceputando-se a palavra zumbido, que é referente ao ruído provocado por insectos, e no toque entre duas pessoas, no acto de penetração, vão provocando gemidos. Houve uma altercação entre o zumbido e gemido, talvez motivada pelo uso pretérito da palavra gemido, ou foi arbitrário. 

Esse é um poema simples, claro, e com intenções definíveis, a de mostrar o que acontece depois de muito tempo em que amados, ou pessoas que partilham o leito, se reencontram, o desenlace, os sentimentos e o desejo de possuir um e o outro.

“Ao meu lado ela se deitou,

Nua e sedenta,

Olhos entreabertos e famintos,

No mesmo instante ela sussurrava o proíbido,

O meu coração batia forte,

Enquanto o meu pénis pulsava em sua boca abrasadora

Seios firmes,

Areolas pretas, muito pretas

E a minha boca envolvia os seus mamilos

Sugando o primeiro mel

De prazer

Suor, Saliva gemidos, latidos, promessas de amor,

Continuamos cavalgando

Até a aurora rasgar as nossas almas nuas através da janela de vidro” (In sede)

O livro “O que faz a alma gozar transforma” é feito disso: de gemidos, beijo, sexo e prazer, no seu todo. Para reforçar o erotismo poético de Benjamin João Luís, Aldo Fonseca Fernandes fez ilustrações no livro, que foi publicado, pela primeira vez, em formato e-book em 2023. Os traços de Aldo são também eróticas, homem e mulher no acto sexual.

Trata-se de uma pornografia escrita. Quando vi a capa do livro, as cores vibrantes e vivas capturaram a minha atenção. Mas, o detalhe que salva à vista, é o sinal de proibido para menores de dezoito anos. Aquele foi um indício preliminar de que se iria lidar com conteúdo sexual explícito. Com essa escrita, Benjamin Luís coloca-se como um mensageiro do Deus eros.

Para o que lê, pode enviesar o emprego da palavra pornografia porque olham para isso com um viés moralista. Benjamin, tecendo esse livro, não teve uma visão moralista, longe disso.

Imagino ele a dizer que no erótico não existe moralidade. Aliás, a moral, principalmente a cristã e a islã, olha para o erótico como se fosse uma prevaricação, então é combatido. “Com seus mantos severos, o cristianismo cobriu a sua face (do eros), atribuindo-lhe o nome de pecado onde antes era motivo de festa.” (Friedrich Nietzsche, A Gaia ciência). Se hoje, olha-se o erótico como uma perversão, algo sombrio, que se “arrasta pelos becos, ao invés de alcançar o voo aos céus” (ibidem), é muito por conta da moral. Tal como Benjamin celebra o erótico e sexual, de forma explícita, Nietzsche no mesmo livro ordena e profetiza que “eros se levante de novo! Que as amarras sejam quebradas, que o amor retorne a sua força, e se levante de novo”.

Acima de tudo, esse livro é uma proposta erótica que celebra o amor, romantiza o erótico, e aprecia o prazer que advém disso. A religião, para Nieztsche, ensinou que o prazer carnal (principalmente o sexo) é uma armadilha do Diabo, e o Benjamin Luís muda o cenário, ou tenta mudar, julga que não se deve ter vergonha do erótico, porque não é vergonhoso, troca o sacrificar do prazer pelo lançar-se ao prazer, de corpo e alma, até gozar, como uma medida de transformação.

 

Há cinco décadas, assistia-se ao final de um ciclo e ao nascimento de uma nação. O pais reinventava-se sobre o fascínio da revolução
e de um progresso assegurado para todos. O delírio atingia operários e camponeses, liberais e intelectuais, forças armadas e milicianos, dos mais cépticos aos mais optimistas. Eram tempos de crenças e de novas semeaduras, marcados por uma onda de libertação, distribuição e busca por justiça social.

Os tempos, entretanto, ganharam contornos alternados. Os discursos socialistas e mobilizadores ganharam novas versões e se transformaram em panfletos melodramáticos. Tragicómicos. Os antigos colonizados reconfiguraram suas matrizes e os vilões se alinharam como peças de um tabuleiro de xadrez sem cores.

Perderam as ideologias e as manias revolucionárias. As ideologias sobrevivem, agora, feitas ondas sem cristas, de um mundo de notas verdes e de todas as conveniências ideológicas. As assimetrias agigantam-se e descontrolam as estatísticas que, por vezes, mais se confundem com aberrações. Políticos se reinventaram em latifundiários e elites empresariais inevitáveis, enquanto o povo globalizado, com todos os sofrimentos e exclusões, virou essa degradação e desigualdade humana, e expectadores famintos de um mundo que há muito deixou de ser
seu.

Francisco Chuquela encontrou uma forma de exorcizar seus fantasmas dos novos e velhos tempos. Rebuscou as vicissitudes e as décadas de hipocrisia da aldeia global, num planeta cada vez mais violento e impróprio para complacências. Seguiu, a rigor, uma tradição literária venerável, na linha e na sombra de alguns dos mais conceituados escritores moçambicanos que adoptaram o mesmo diapasão.

Eventualmente, não tenha sido motivado pelas mesmas razões, mas a carência, o sofrimento e a tristeza universalmente sintomáticos. Chuquela começou publicando textos de forma dispersa, permitindo que essas pérolas da escrita fossem, mais tarde e finalmente, reunidas em uma colectânea.

Tchambalakati e Outras Crónicas, resgata um género que parece em declínio, por vezes, aparatoso, outras vezes, nem tanto, que é a crónica jornalística. Assim, ele abre completamente o seu peito e a sua alma, mostrando-se honesto e franco, com reflexões, factos, e com a sua visão do mundo de bairro, cidade, país e mundo, instigando, desta forma, ao leitor para que se converta num agente observador, sem que, necessariamente, se acomode. As leituras não devem oferecer respostas, e muito pelo contrário, estas precisam de propiciar, novos questionamentos e muita indignação.

O escrever para Chuquela é um pouco mais que um acto de coragem e ousadia. Ele escreve para se aterrorizar e requebrar os poderes instituídos. Trata-se de uma atitude de confronto consigo mesmo, e com o mundo que ele, sozinho, consegue enxergar, porém, diante do qual continua impotente para o alterar e até sugerir novos rumos. Tchambalakati é, então, um questionamento ao estado de arte do nosso país, sociedade, os modelos de desenvolvimento e sustentabilidade e, principalmente, da convivência estrutural pacífica e humanamente aceite.
A sua crónica destemida – ora mais directa, ora mais subjectiva – reforça a relevância e o impacto desse género em Moçambique. Só
um pais como o nosso oferece tanta matéria prima para escrever sobre a nossa indignação. Como digno sucessor dos gigantes literários, seja assim considerado por Mélio Tinga ou outros, Chuquela insiste, com orgulho, em seguir as pegadas dos embondeiros.

Tchambalakati, de Francisco Chuquela, refere-se a uma planta nativa das regiões tropicais da Ásia, também, conhecida como Erva-Príncipe. Sabor e aroma agradáveis, intensamente fresco, com inúmeras propriedades, de entre elas a calmante, a diurética e a antidepressiva. Analogamente, o Tchambalakati, é fundamental no processo de desintoxicação do corpo, auxiliando na eliminação de toxinas e impurezas. A modernidade descobriu a sua eficiência para repelir insectos.

Este título do livro de Francisco Chuquela deve ser entendido como uma grande metáfora social: uma sugestão para apreciarmos o chá, mas, fundamentalmente, como um apelo à necessidade de repensarmos a nossa sociedade, a exclusão nas periferias e o descaso ao qual a maioria está sendo relegada. Trata-se de um chamado à desintoxicação dessas impurezas que estão levando as pessoas às ruas e fomentando contestações.

Palmilhando seus textos, o autor reforça esse pedido para que o pais aprenda a plantar uma planta tão natural, com esse intuito de que possamos, mais progressivamente, plantar algo mais que repele e expulsa insectos, como ele descreve nos textos Mupswetu’s, e  bhoromani’s. Estes, segundo o autor, são os que, hoje, ascenderam, são ladrões de luxo, assassinos sofisticados, violadores em posições respeitadas e, como podem imaginar, possuem maiores habilidades de esquivar-se das balas.

Então, as crónicas do Tchambalakati são um Moçambique real com as suas disfunções societárias, com os sonhos adormecidos, com as aspirações de todos que almejam um país são e funcionando sem desvios. Um Moçambique que tem de ser menos político e mais social e económico, afectuoso, que não repousa para dar oportunidades aos seus jovens.

Se a função da crónica é ressignificar o registro de fatos comuns, feitos em ordem cronológica, então, nosso autor assume que essa crónica assume contornos de género narrativo, reflexivo e episódico. Por conseguinte, ele resgata o flagrante do quotidiano nacional, em seus aspectos pitorescos e inusitados, com certa dose de humor e de reflexão existencial.

A obra de Francisco Chuquela contém passagens líricas e comentários de interesse social e a linguagem é, quase sempre, coloquial e irreverente, ou, não fosse ele próprio, um jornalista e observador atento. E, apesar desse viés quotidiano e episódico, o autor foi audaz ao preservar e rever seus escritos por um período  de 12 anos. Essa decisão, de congelar no tempo esses registros, revela-se profética à luz das recentes manifestações pós-eleitorais, como acertadamente apontou Mélio Tinga em sua apresentação da obra. Tchambalakati antecipa, de forma inquietante, os acontecimentos que viriam a seguir.

Tchambalakati não pode ser olhado apenas através de uma lupa literária, porque não é possível vê-lo assim, à árvore deve ser vista na sua plenitude e esplendor. Julgo ser esse o encanto das crónicas do Chuquela para o leitor. Elas não sobrevoam o subúrbio, elas são o próprio subúrbio; sente-se o medo, o cheiro, o barulho dos bairros, o sangue, o suor, a embriaguez, a dívida, a miséria, o ximovhana e o xilalassane.
Chuquela mostra conhecer, profundamente, o que escreve, porque habitou muitos destes lugares, porque passou por estas ruas, porque conheceu os personagens que atravessam cada uma destas crónicas. Em Maxaquene, Mavalane, Polana Caniço, Aeroporto, Xipamanine, entre outros.

Neste livro, dois personagens são a expressão de medo para quem reside no subúrbio; Mupswetu, um consumidor calejado de soruma
e assaltante temido, que acaba nas mãos da população que executa ela mesma a justiça; o segundo é Mbhoromani, um ladrão, assassino e violador de mulheres e crianças, tido como uma espécie de mito, um fantasma, um xipoco, uma lenda. Um homem que escapava com uma facilidade assombrosa das mãos da polícia, das grades e se esquivava com mestria das balas.

Apanhado, foi colocado um pneu e gasolina. Acenderam, mas Mbhoromani não ardia, ria-se. Uns curandeiros apareceram, bateram com força na sua sombra, Mbhoromani não resistiu a tanta dor. Foi assim que acabou por arder.

Fora a isso, dois outros temas sensíveis são colocados em hasta pública; o primeiro, a pobreza profunda instalada nos bairros, na sua maioria próximos do centro da cidade de Maputo – desde a estória de um jovem que perde a namorada para um empresário Português, ou a estória de uma avó que tem de colocar o pouco açúcar numa chaleira enorme, para melhor gestão e, por fim, uma criança que aguarda o final do ano para poder tomar um refrigerante.

Na crónica “Miséria”, o autor nos traz um olhar ainda mais íntimo sobre a infância em meio à pobreza. Chuquela, habilmente, retracta o impacto da desigualdade na auto-estima e no desenvolvimento das crianças, usando o olhar zombeteiro dos colegas do protagonista como um reflexo da crueldade social. A força deste texto reside na sua capacidade de nos fazer sentir a dor e a vergonha de quem cresce sem os recursos básicos, mas, também, de destacar a força interior daqueles que, mesmo na adversidade, buscam seguir em frente.

Chama atenção neste livro, também, o poder criativo na nomenclatura, comum nas zonas suburbanas, a título de exemplo: Lourenço da Silva, que passou a ser conhecido como tio Munene – nome atribuído por pessoas do bairro, por este aceitar os filhos que a esposa o dava, mesmo sendo de uma cor diferente da dele (Munene como quem diz pessoa boa, pessoa de bom coração); Lourenço Vilário Xonguissa, que passou a Massopeni – depois de ter acabado o contrato no Clube Naval, começou a beber de forma desmedida; ou então Thumbu-Rhumbu – designando um homem barrigudo e explorador de mão-de-obra infantil.

Este livro é, então, essa difícil conjugação entre a sobrevivência ao tempo e o aspecto diagnóstico associado a uma metáfora que deixou de ser e virou realidade.

Soou-me um belo convite ler os poemas deste poeta moçambicano justamente numa altura em que o país vive uma convulsão social pós-eleitoral que nos tem custado a partida de muitos vivos.
Enquanto os vivos das manifestações têm ido algures num céu religioso por conta da sua justa causa, o destino dos vivos do poeta Quive permanece uma incógnita.

Da forma como os primeiros poemas em prosa iniciam a parte l: Cidade, é como se o poeta inopinadamente despertasse no meio de uma era de extinção e se deparasse com um mundo sem homens, homens vivos, pois os homens mortos é que mais pululam no mundo lírico do poeta.

A descrição ou a pintura apocalíptica das cidades é bem conseguida no livro, pois o poeta teve o engenhoso cuidado de fazer uma correcta selecção das palavras que evocam uma atmosfera fúnebre como morte, ruínas, ausência, silêncio, moscas, sepulturas, vazio, e todo etc que nega a cor à vida.

Para adensar tal atmosfera fúnebre, juntam-se alguns nomes das cidades que lembram a guerra: Tripoli, Bagdad, Alepo, Damasco e, talvez Lampedusa aonde, às vezes, chegam os corpos sem vida dos migrantes pelo mediterrâneo.

A inquietação agonizante do sujeito poético sobre o paradeiro dos vivos causa múltiplas interpretações ao leitor que também busca a reposta, ou melhor, as respostas sobre uma espécie que lhe é familiar: os vivos. Para onde foram?

Se o livro fosse feito unicamente dos poemas da Cidade, entender-se-ia que os vivos foram levados metaforicamente pela guerra, catástrofes, pandemias e outras desgraças do mundo para o leito da morte. Mas a entrada dos poemas do Corpo, parte II, trazem outro espectro no livro: o amor que partiu. Os poemas do Corpo são de angústia e solidão. Há uma mulher que partiu e deixou o sujeito lírico desconsolado com a sua ausência tão intensa que se chega a confundir com a inexistência.

O sujeito lírico canta a beleza e as saudades desta mulher, mas no fundo sente que as palavras não lhe são suficientes para curar a solidão. O poeta precisa literalmente do corpo para amar, tal como atesta o Poema XVI:

Cresce-me ardente a saudade da tua presença com os beijos todos que ainda guardo, no labirinto da memória, ínfima a coragem de te encontrar (…) quando pela minha mão o teu corpo se estende em alguma cidade; e entro-te feroz, enraivecido pelos dias de ausência, quase inexistência; (…)

Como se lê, há uma paixão que arde e se acumula no peito do poeta ansioso por encontrar a sua flor de saudades, Zanóbia, e rega-la com o seu amor. Mas quando não tem o seu doce amor, como é que um poeta passa a olhar o mundo dos vivos? Com as cores vivas do arco-íris ou com as cores cinzas da guerra? Eis a questão que se nos mostra um ponto de conexão entre as duas partes do livro: a Cidade e o Corpo.

Ao certo, afigura-se-me que, com a partida da sua amada, o mundo dos vivos aos olhos do poeta também partiu, daí que o sujeito poético passa a indagar: para onde foram os vivos? É como que, no lugar da alegre canção “xiluva” da Banda Kakana, lhe passasse a tocar no coração o “no sunshine when she is gone”; de Bill Withers.

Os vivos para o poeta, em algum momento da sua poesia, significam as cores quentes, a luz, o amor, a esperança que, de cidade à cidade, ele busca reaver sem sucesso desde que a sua amada partiu. Se esta for a premissa maior, então, era suposto que este livro de poesia iniciasse com a causa que acinzenta a sua visão que é parte II — o Corpo — e terminasse com o caos que é parte l — a Cidade. Todavia, na poesia, a desordem tem mais de perfeição que a ordem. Ademais, não deixa de ser interessante que se avente a possibilidade de que as duas partes do livro sejam uma manifestação poética que resultou de um duplo golpe emocional simultâneo sobre o sujeito lírico: um amor ausentado e a desilusão da polis.

Enfim, Para Onde Foram os Vivos é uma obra poética que calha perfeitamente com espírito de um leitor que esteja a enfrentar concomitantemente a solidão amorosa e a distopia do nosso mundo, pois perguntar para onde foram os vivos é mesmo que perguntar para onde foi o amor.

 

Provocações…, ah provocações

Devia ser um gemido grego

Para dizer provocações…

António Abujamra

 

 

Reler o Teatro e a Peste de Antonin Artaud, nestes tempos de peste (e não passo a repetição) é um imperativo, um certo de tipo armadura, uma defesa intelectual e moral. Entenda-se a peste como a doença política que estamos a viver. Uma enfermidade que aflige aqueles que “escolhemos” para nos representar na gestão da nossa vida social acaba se degenerando em epidemia letal quanto a peste que inspira o fervoroso discurso de Artaud sobre a necessidade de aprendermos a resistir às trevas, que se escondem nas palavras daqueles que só servem para embrutecer e distorcer o nosso ponto de vista sobre as coisas. Mas afinal, qual é o nosso real ponto de vista sobre o estado das coisas na pátria desanvindaʔ

Pensar a sociedade com as lentes do teatro é o mesmo que apontar o telescópio contra o minúsculo elemento vivo, ampliá-lo até à compreensão da mecânica que engendra o todo. O todo, neste caso, só pode ser esta existência cósmica, em que estamos todos em conexão, em rede e com cada vez mais sede de conhecer a fundo o outro, que é na verdade o fundo mais fundo de nós próprios. O outro é o rio em que devíamos nos narcisar. Imagina amar o outro com o mesmo amor que nutrimos pelo ego. E como seria se as crianças pudessem desenhar a paisagem do futuro com legos de madeira, porque não faltam mais carteiras nas novas e modernas e equipadas salas de aulas das nossas escolas.

Nesta nova pandemia social, a nossa imunidade intelectual, no sentido mais espiritual do termo, está a ser posto em prova. O que dizer do nosso despreparoʔ Uma juventude sem voz própria, que significa além de atestar o seu fracassoʔ E o teatro, na sua poética do social, no seu papel de reencantador do mundo com arte e pedagogia, o nosso teatro de comunidade e sem a quarta parede que posicionamento deverá tomarʔ

Talvez a verdadeira revolução esteja a acontecer nas artes, os fatídicos

acontecimentos dos últimos dias, vem nos desafiar com novas narrativas, novas personagens e cenários jamais vistos no nosso contexto, que talvez seja a mais preciosa mina de material criativo para “desmontar a noite”, já leram o poeta Japone Arijuaneʔ

Ndlavela, 08 de Dezembro de 2025

 

Depois de uma tremenda convulsão social pós-eleitoral que envolveu sacrifícios e morte de centenas dos nossos compatriotas, a pior derrota que podemos sofrer é voltar à mesma velha casa sem nenhum acordo de esperança que nos inspire um futuro melhor.

Como nação, se nos permitissemos pôr a mão na consciência e reflectir sobre o mal que nos trouxe até este colapso político-social, com facilidade concluiriamos que a Comissão Nacional das Eleições (CNE) e o Conselho Constitucional (CC) é que foram a raiz de todo este desastre sócio-político.

Estes órgãos estatais se tivessem feito o seu trabalho com integridade, responsabilidade e transparência, o inestimável desastre humano e económico em Moçambique não teria tido o espaço. Toda a permanência ou mudança política teria ocorrido de forma pacífica e civilizada. 

Porque o CC e CNE se tornaram os principais vilões na nossa desgraça eleitoral?

sua culpa não recai na sua existência, mas na sua natureza constitutiva. É pouco discutível que estas duas instituições perderam por completo a confiança do povo soberano, por conta da sua composição estrutural que é partidária.

Ora vejamos, segundo o Boletim de processo eleitoral publicado pelo CIP, em Setembro de 2022, a CNE é composta maioritariamente pela Frelimo. Ou seja, dos 17 membros que compõe a CNE, 5 são membros da FRELIMO, 4 da RENAMO, 1 do MDM, 7 da sociedade civil. Entretanto, a mesma sociedade civil é seleccionada pelos partidos políticos, uma condição que permite que a FRELIMO tenha 3 simpatizantes da sociedade civil, a RENAMO apenas 2, e outros 2 são flutuantes.

Esta composição perniciosamente partidária foi almejada pela própria RENAMO, tendo argumentado que não acredita na neutralidade dos cidadãos capazes de compor a CNE e garantir a sua integridade. Seja como for, a prova irrefutável de que a proposta da RENAMO falhou por completo, é esta CNE corrupta e podre tal como se nos mostrou recentemente. Urge uma reforma profunda.

Quanto ao Conselho Constitucional, também é uma instituição que enferma da mesma doença partidária. O presidente deste órgão é nomeado pelo Chefe do Estado, três juízes são da FRELIMO, 2 vem da oposição e um da magistratura judicial. Sendo assim, a maioria é Frelimista, logo o órgão é pró-vermelho, e isso se agrava pelo facto de o Presidente do CC fazer parte do Conselho do Estado liderado pelo próprio partido no poder. Urge a independência constitutiva deste órgão muito importante para dirimir conflitos na sociedade de forma justa e pacífica

Como o CC e CNE deviam ser compostos?

Os dois órgãos deviam ser expurgados de qualquer interferência política no seu seio. Para CNE, a melhor forma de recuperar a sua credibilidade é através de um concurso e  selecção dos representantes da sociedade civil a ser feita pela Fundação MASC, uma organização que superintende as diversas actividades da sociedade civil.

O CC, por sua vez, devia romper as correntes partidárias e construir a sua composição a partir de dentro do universo da magistratura, realizando eleições internas com base na meritocracia, verticalidade e sucesso profissional.

E, não menos importante, de modo a punir comportamentos de alienação e reforçar o espírito de integridade entre os membros de órgãos eleitorais, torna-se necessária a revisão do código penal, no sentido de agravar-se ainda mais as penas relativas a crimes e delitos eleitorais. Penas leves encorajam a proliferação de crimes hediondos que atentam a unidade democrática e nacional.

Enfim, sem reformas profundas desses órgãos, não se pode esperar que o passado e presente sujos da nossa democracia sejam diferentes da desgraça que nos espera no futuro. As coisas só mudam se fizermos algo para que mudem. E acreditem: Moçambique pode, um dia, tornar-se uma referência de um país de válidos processos democráticos que legitimam o poder, basta sabermos tirar lições da nossa presente crise democrática e combinarmos esforços profissionais para que o ciclo de violência eleitoral cesse definitivamente.

Esta é a hora de pensarmos num país que sirva para todos os moçambicanos.

Cobicemos outras nações africanas que já ultrapassaram esses empecilhos de partidarização dos órgãos do Estado e seguem adiante rumo a desenvolvimento humano, enquanto nós continuamos no Top 7 dos países mais pobres do mundo.

A corrupção e a falta da justiça já nos atrasaram o suficiente como nação. Temos de dizer chega de forma racional. Penso, em última instância, que esta é que deveria ser a segunda luta de Venâncio Mondlane e de todos partidos da oposição: lutar para reconstrução de órgãos eleitorais transparentes, livres e justas para que as próximas eleições sejam credíveis e menos problemáticas, caso a grande batalha pela verdade eleitoral seja interrompida.

e-mail: tsembah@gmail.com

 

Introdução

As tecnologias de comunicação, como celulares e redes sociais, têm transformado radicalmente a maneira como interagimos e nos expressamos, influenciando nossas práticas culturais, morais e linguísticas. Essas mudanças não são apenas uma adaptação de quem decide usá-las, mas revelam transformações profundas no comportamento humano e nos valores que pautam as relações interpessoais. Entre essas mudanças, destaca-se a diferença entre a linguagem utilizada em cartas e nas actuais mensagens de texto, bem como a modificação das formas de tratamento e da confiança que as palavras carregam.

Neste contexto, surge uma reflexão sobre a influência dessas tecnologias na preservação dos aspectos culturais e éticos e na maneira como o valor das palavras é encarado na sociedade.

Desenvolvimento

Antes da popularização dos celulares e da internet, a comunicação por cartas era comum, e a linguagem escrita assumia um tom mais cuidadoso e poético. Em cartas, as pessoas tinham a preocupação de utilizar palavras bem escolhidas e de valorizar as expressões, numa tentativa de cativar o leitor. Esse modo de escrever trazia certa formalidade e um vínculo emocional entre remetente e destinatário, reflectindo o cuidado e o respeito que pautavam a comunicação. Além disso, compromissos verbais ou escritos, em cartas, eram levados muito a sério, e marcar um encontro significava cumprir, sem desvios, aquilo que foi combinado.

Com o advento dos celulares e da internet, as mensagens de texto instantâneas tornaram-se a principal forma de comunicação.

Esse novo contexto trouxe uma linguagem mais rápida e informal, onde o imediatismo, muitas vezes, prevalece sobre o cuidado com as palavras. A praticidade e a rapidez com que enviamos mensagens frequentemente banalizam o conteúdo das conversas, levando ao uso de abreviações, emoticons e até à falta de atenção com a ortografia. Essa simplificação pode, aos poucos, minar o valor atribuído à palavra, esvaziando a importância de cada frase.

Além disso, o comportamento oral passou por transformações significativas. Em contraste com o passado, onde as conversas presenciais seguiam um ritmo mais cadenciado e formal, a comunicação actual é marcada pela informalidade e pela ausência de protocolos. Termos e expressões que antes eram evitados tornaram-se comuns, e a banalização de temas culturais e morais é cada vez mais presente. A superficialidade gerada pela instantaneidade do mundo digital pode levar à perda de aspectos culturais e éticos, que não encontram o mesmo valor nas interações virtuais.

Conclusão

O impacto das tecnologias de comunicação é evidente nas formas de tratamento e na maneira como atribuímos valor às palavras e aos compromissos. A mudança de uma linguagem cuidadosa e emotiva das cartas para a informalidade das mensagens de texto e o imediatismo da comunicação virtual aponta para uma transformação cultural e moral na sociedade. A preservação de valores essenciais, como o respeito e o compromisso, demanda uma reflexão sobre como equilibrar as facilidades tecnológicas com a valorização dos aspectos culturais e éticos que compõem nossa identidade.

 

 

 

De luxo para lixo, assim se transformou Maputo. Velha e gagá, aos 137 anos, parece já não alcançar o nariz para, no mínimo, limpar o seu próprio ranho. Maputo já não dorme acordada há meses,“xilunguine” borrou a maquiagem e deixou cair a máscara.

Seduzida desde o tempo colonial, Kampfumo não cedia de qualquer maneira e nem levantava a saia para qualquer um, mas hoje deu para o lixo. O que houve com a princesa? Questionam-se as cidades vizinhas, que de longe lamentam e riem-se do novo semblante que “xilunguine” ostenta nos últimos dias.

Há noites que Maputo não se banha, muito menos depila as suas ruas e avenidas. Cheira mal em todos os compartimentos e falta espaço para respirar. Maputo perdeu admiradores, marginal está uma marginal, nenhum homem deseja a acácia vestida de impurezas. Bairro a bairro, a capital foi sabotada e abandonada imunda.

Não há mais nada de melhor que se diga sobre ti, mana centenária. As banhas criadas pelas dunas de resíduos sólidos no teu corpo roubaram o mínimo de respeito que Chimoio, Inhambane, Nampula e outras tuas irmãs tinham sobre ti. Estás podre até às ancas.

Entre músicas e poemas escritos pensando em ti, Kampfumo, sobram-te, neste momento, lamentações. O teu corpo escalado por rugas torna-te malquista e inapropriada de afagar. Como se não bastasse, nada explica aos teus filhos que, mesmo resmungando com a situação, não têm escolha senão dividir o “xiquento” entre contentores fervilhando urina.

O que houve contigo, “Kamaputso”? O que dirás a Eduardo Mondlane, Samora Machel, aos heróis moçambicanos, a Tomás Nduda, Kenneth Kaunda e a Josina Machel, gente de vulto que depende da tua higiene para dormir tranquila ao longo das avenidas onde lhes concedes aposentos? 

Do melhor para o pior destino turístico, devias-te envergonhar por isso, Maputo, e talvez  recuperar as memórias de quando eras bela e interessante. Para quem já teve oito maridos, estás uma desgraça nas mãos do teu actual dono, que parece ter nenhum plano para lavar a tua cara ciscada e amarfanhada.

Retrata-te, “xilunguine”, antes que seja tarde e percas a grandeza. Já andas suja, bêbada e corrupta. Não te sujes mais. Ganha consciência e limpa a cara enxovalhada pela imoralidade que tu mesma incubas ao longo das barracas do Museu. Vinha correndo e cantando “Txuna Maputo” e, depois disso, nada se viu senão o significado da primeira palavra da frase. Porque sufocar os já extenuados citadinos que incansavelmente buscam caminhos para te abandonar?

Lava-te e responde-me, por favor.

Com poucos dias para o empossamento do novo governo, declarado a 23 de Dezembro, num ambiente marcado por crescentes tensões e polarização política e social, surge uma oportunidade ímpar para repensar e redefinir as prioridades da pasta da Cultura. Como artista, esta questão inquieta-me profundamente. Num país tão rico em diversidade cultural como o nosso, mas onde a gestão desse património tem sido frequentemente negligenciada, urge reconhecer o papel transformador da cultura como instrumento de coesão social, identidade nacional e motor de desenvolvimento económico.

A actuação do Ministério da Cultura e Turismo, que agora cessará funções, foi, a meu ver, redutora, intransparente e limitada. Ficou restrita à promoção de eventos pontuais e à valorização superficial de manifestações culturais, ao mesmo tempo que negligenciou as reais necessidades dos artistas, criadores e indústrias culturais e criativas. Adicionalmente, cooptou o Fundac – fundo destinado à pesquisa e ao desenvolvimento de iniciativas culturais – para outros fins. O resultado? Um cenário onde o potencial económico e social da cultura continua subaproveitado.

É crucial, antes de mais, questionar o que significa “cultura moçambicana”. Sem uma visão clara e inclusiva, continuaremos a ver políticas desarticuladas, afastadas do povo e desconectadas das dinâmicas actuais. Uma abordagem que reconheça a cultura como eixo estratégico para a transformação social fortalecerá a identidade nacional e criará oportunidades para artistas e comunidades em todo o país.

Outra questão que merece atenção é a própria designação do Ministério. A combinação de Cultura e Turismo, embora funcional em muitos contextos, é limitativa para um país onde arte e criatividade já se afirmam como motores de transformação económica. Proponho um nome mais abrangente, como Ministério das Indústrias Culturais, Criativas e Turismo, que reflicta o carácter mercantil e industrial da arte contemporânea e potencie os fazedores de arte, transformando social e economicamente as suas vidas.

A cultura em Moçambique não deve ser apenas um espelho do passado, mas um campo de interacção entre o antigo e o moderno. Num momento em que a vida moderna ameaça as tradições rurais, é essencial encontrar um equilíbrio. Sem isso, corremos o risco de perder a nossa riqueza cultural. Promover um diálogo entre expressões autóctones e contemporâneas, garantindo igualdade de oportunidades a todos os criadores, assegurará que a cultura permaneça viva, diversa e relevante.

O maior desafio, no entanto, reside na capacidade do Ministério para perceber e fortalecer a cadeia de valor cultural. Muitos artistas moçambicanos enfrentam dificuldades para profissionalizar as suas actividades e alcançar mercados. Se nada mudar, talentos promissores continuarão condenados ao amadorismo e à precariedade. Por outro lado, políticas que facilitem o acesso a mercados, fundos de apoio e capacitação profissional poderão transformar a arte numa fonte digna de rendimento e integração social. É também urgente reconhecer o papel do mecenas e criar incentivos claros para que a classe empresarial compreenda as vantagens de apoiar projectos artísticos e perceba o retorno proporcionado pelo Estado.

A transparência na gestão de iniciativas culturais é outro ponto crítico. Casos como a polémica em torno da estátua de Eduardo Mondlane mostram como a má gestão mina a confiança pública e desmotiva os fazedores de arte. Um Ministério transparente, que envolva artistas e comunidades nas decisões, será catalisador de mudanças positivas e exemplo de boa governação.

Os museus moçambicanos, actualmente subaproveitados, devem ser reaproximados do povo. Alunos, estudantes e turistas devem encontrar nesses espaços não apenas arte e história, mas experiências transformadoras que promovam curiosidade e orgulho nacional.

Além disso, a crescente digitalização exige esforços governamentais para capacitar artistas a monetizar as suas obras em plataformas digitais. Legislações claras sobre direitos autorais e royalties são indispensáveis para proteger os criadores e garantir que beneficiem do seu trabalho.

Por fim, a descentralização é fundamental. Governos provinciais e distritais devem ser empoderados para criar e apoiar iniciativas culturais locais, promovendo festivais temáticos, valorizando artesãos e transformando praças públicas em espaços de intervenção artística. Sem esta descentralização, o fosso entre zonas urbanas e rurais continuará a crescer, deixando muitas comunidades à margem da vida cultural.

Manter o status quo significa perpetuar exclusão, má gestão e desperdício do imenso potencial da cultura moçambicana. Adopção de uma visão ousada, inclusiva e transformadora permitirá que a cultura se torne uma força de progresso, aproximando o governo do povo e capacitando os cidadãos.

Ao novo ministro e ao novo presidente, deixo esta reflexão: a cultura é mais do que um símbolo, é um motor para a coesão e o desenvolvimento. E, se bem cuidada, pode ser a chave para um Moçambique mais unido, próspero e criativo.

Álvaro Taruma é escritor e finalista do Prémio Oceanos 2024.

 

Ó Jovens!
Ó ilustres 100 noção!
Ó minha nossa senhora da razão!
Ó campeões da mansidão!

Convém acreditar nos jovens; Ora por mera fé de ser a fase da fronteira para o desenvolvimento tanto físico assim como psicológico, moral e intelectual.

Convém acreditar, ainda, nos sem noção, nos ilustres dogmáticos quando se trata de razão, nos campeões da mansidão – eis uma das razões para se fazer, nesta fase, um pacto (des)leal com a própria noção sobre Nação.

Mas de que noção de Nação nos referimos?

*A esperança perdida* de uma geração que, mais do que nada, idolatra a curtição e se esquece completamente de abraçar causas que visam a mudança.

Geração atrapalhada no pensamento de que tudo está consumado e que não há nada a ser revertido para a combinação dos dados.

Muito triste – uma juventude que nasceu corrupta e que caminha corrompendo até para ter uma relação amorosa. E, cara sem vergonha, a mesma sai à rua para cuspir reclamações sobre a corrupção nos outros, enquanto ela mesma boceja o próprio oxigênio.

Engraçado!

Para o exercício pleno da cidadania, é preciso que a massa popular esteja ciente dos seus direitos e deveres, não sendo suficiente estar nas lamúrias – quem não conhece seus deveres, tão pouco saberá exigir seus direitos.

Em muitas cidades, é notório a inexistência de bibliotecas que ajudariam aos cidadãos a ganharem o gosto pela leitura, o que permitiria, portanto, um maior envolvimento na vida política e do bem-estar social.

Nota-se que, os indivíduos que fazem parte desta sociedade, são como analfabetos que, diante de graves dificuldades de leitura, fixam o olhar em um texto fingindo estar a ler o escrito.

É penoso!

Uma sociedade que vive de reclamações para com quem entendeu que algo não está justo.

É injusto!

Uma juventude virada mais para o lazer que em prol do desenvolvimento da nação, ou pelo menos, do que sabe fazer.

É de aborrecer!

Uma camada incansável de projectar a ociosidade, que vive da utopia de poder enriquecer sem trabalho, preocupada em ganhar sem investir nenhum centavo…

Pobre coitado!

Mas esta é a nossa juventude que reclama de tudo quanto é vivo e exige trabalho para ser usufruído. A decisão está nas nossas mãos: ser (des)leal à nossa própria noção sobre Nação.

 

Era assim chamada a dona Lodina, pela distância que percorria de casa à paragem.

Lodina, a mãe já dizia, você foi um fruto da ilusão.

Em 1983, Angélica conheceu Bartolomeu, seu marido por 23h. Foi mesmo uma ilusão de meninice, dizia a avó já cansada da vida madrasta lá em Xikodwene.

A Angélica percorria distâncias em busca de água e foi assim que sucedeu a diegese.

A Angélica engravidou e logo pôs-se a correr para Maputo com um mujonijoni que a encontrou 23h chorado sem saber o que fazer. Assim, Angélica deixou a mãe já velha, para descansar nos braços do mujonijoni.

Lodina, sua filha, já crescida, vê o seu lar na Matola em Mumemo, lugar esse novo, sem muita gente e em via de desenvolvimento, é como se ela estivesse voltando à sua origem, lá em Xikodwene.

Lodina caminhava durante 10 horas para a paragem, tinha uma vida dividida entre dois espaços, Maputo-Matola, vivia uma vida de estrada, saía de casa à madrugada e chegava em Maputo ao meio dia e logo tinha de pegar o transporte para voltar a casa e só chegava às 23:55 minutos, com muitos filhos de nacionalidades diferentes, diziam as vizinhas, em risos e gargalhadas, meninos de todas as cores, mal viam a mãe.

A avó Angélica não gostava da filha desde o dia do seu nascimento, em 1984, porque se parecia bastante com o pai.

Sem ninguém, Lodina fazia dos seus filhos a sua única família, a família onze mulheres.

No dia 25 de Maio, pelas 6 horas, dia do seu aniversário, a última filha indo a escola, vê a sua mãe jogada, perto do instituto de mumemo, sem ninguém, as 10 meninas enterram a mãe e a sua filha mais velha, a Admira, nome dada pela mãe, porque a mãe admirou-se ao ver que no seu ventre carrega uma branca de raça.

Admira foi obrigada a fazer o mesmo percurso da mãe para poder garantir o pão de cada dia das nove irmãs.

 

África, um continente com características únicas, é o único que se estende pelos quatro hemisférios e é
abraçado pelos mares Mediterrâneo e Vermelho, enquanto os oceanos Índico e Atlântico oferecem o som
das ondas, que refrescam ao ritmo de uma orquestra os seus 30 milhões de quilómetros quadrados, que
escondem a herança da riqueza africana. A África ocupa o pódio como o terceiro maior continente na
hierarquia global, porém poderia merecer um troféu maior na classificação de riqueza e diversidade cultural.

Ao fazermos a anatomia da África, encontramos uma estrutura que encanta e apaixona qualquer
consciência holística, desenhando um futuro promissor no presente, dentro do campo que delimita o lago do desenvolvimento social. Contudo, torna-se difícil entender por que a “menina África” continua parada no semáforo da distracção, enquanto os resultados das análises macrossociais e macroeconómicas observadas não indicam transtornos que conduzam à “hepatite social”.

Os olhos, com retinas límpidas, mostram que a base do futuro socioeconómico da humanidade está na
cintura atraente que suporta, de forma atlética, o tronco esbelto da África. A beleza dos seus lábios, que
carregam o batom de todas as cores da sua diversidade biológica, encanta qualquer raça. A pele simpática e acolhedora das suas temperaturas, que convidam a mergulhos apaixonados nos abraços dos seus oceanos, mares, rios e lagos, refresca qualquer mente. A África apaixona com lucidez divina, cada espírito vindo de qualquer hemisfério, que a visite para celebrar a vida nas suas águas mornas e participar da ceia dos seus abundantes recursos naturais e ecológicos, que facilitam o desenvolvimento e promovem a valorização da vida e da dignidade da alma. Entretanto, a amnésia do cérebro da África parece esquecer os factores que promovem o desenvolvimento e o bem-estar colectivo, enquanto observa, sem compaixão, a anemia que atinge o coração das suas nações.

A pergunta que surge em mentes honestas é: para que direcção sopra o vento do desenvolvimento da
África? A vida na incerteza ainda domina os neurónios de muitas nações africanas. A ausência de audácia leva algumas delas a importar palitos de dentes, mesmo com a imensidão de florestas que poderiam sustentar esse tipo de produção e que já serviram de palco para os passeios serenos do mítico Tarzan.

A luta pelo disfarce da identidade africana alcança proporções preocupantes: mulheres lindíssimas de origem africana ainda negam a sua identidade, trocando o tradicional lenço na cabeça por cabelos postiços indianos ou chineses, numa tentativa de se aproximar de um padrão de beleza associado a países com indicadores de desenvolvimento notável.

Essa incerteza cultural afecta até as bases da identidade, distorcendo o conceito de globalização cultural para acomodar os fracassos que emergem da fragilidade dos pilares do desenvolvimento social. Contudo,
mesmo com os disfarces, os estudos de ADN não deixam dúvidas: a raça está nos cabelos, no tom da pele
e no espírito resiliente. Mesmo sob uma peruca indiana ou chinesa, a raça africana mantém-se viva no
selo negro que autentica o seu ADN. Ela está também nos olhares sofridos, que carregam as marcas de
uma África que um dia foi deixada para trás na maratona do desenvolvimento, impedida de se classificar bem nas “olimpíadas” do progresso global.

A cor África, que celebra o festival do sabor de chocolate, fascina o mundo e celebra o bem. África tem
tudo para merecer o reconhecimento como um continente essencial, que desenhou o berço do
desenvolvimento da humanidade. O mundo precisa resgatar o verdadeiro significado da palavra
“humanidade” para construir uma vida mais equilibrada entre as nações.

A África será melhor quando os actores políticos africanos emprestarem as suas consciências à ciência do
desenvolvimento, abandonando a visão errónea que define a política como um caminho curto e rápido
para a riqueza, ignorando os meios. A política deve estar ao serviço do povo africano, mobilizando a
ciência e promovendo a harmonia social.

A filosofia moral de Kant entende por humanidade (Menschheit) a natureza racional, que implica a
humanidade como a única condição sob a qual um ser pode ser um ‘fim’ em ‘si mesmo’. Apesar de ‘o fim’,
fundamentado em princípios racionais, também produz desejos, como o amor pelos seres racionais e o
desejo de beneficência.

A África precisa ser estudada. Talvez esse estudo possa começar com uma reflexão inspirada na fábula
do sapo que cheira a chulé, mesmo vivendo na lagoa.

AFINAL, POR QUE, APÓS TANTOS ANOS DE DESCOLONIZAÇÃO, A ÁFRICA AINDA PERMANECE COMO O BERÇO DA POBREZA E DO SOFRIMENTO?

De forma simplista, trazemos o trecho que narra a história do sapo:
Era uma vez um sapo que não lavava os pés. Não lavava os pés porque não queria. O sapo morava na lagoa, mas cheirava a chulé porque se recusava a lavar os pés.

Com essa fábula, acreditamos que há questões difíceis de explicar, ou que, mesmo explicadas, permanecem incompreendidas. Será que podemos substituir o sapo da história pela África?

A África tem condições para levar suas sociedades a não “cheirarem a chulé” de pobreza. Possui climas
favoráveis, terras aráveis, subsolos ricos em recursos minerais preciosos. No entanto, continua a ‘cheirar
chulé’ da miséria, mesmo estando imersa e nadando na “lagoa” de recursos que poderiam favorecer um
desenvolvimento próspero e sustentável.

Se o conceito da palavra piedade superar o egoísmo humano, a cintura forte, que suportou o peso da
colonização e da escravatura, encontrará descanso num novo conceito de independência africana. Se as
nações com desenvolvimento consolidado libertarem os termómetros que medem o progresso, deixando
de manipular as bússolas que orientam a educação oficial da África, aumentará a probabilidade de um
equilíbrio no desenvolvimento entre as nações. Contudo, a participação da África na competição pelo
desenvolvimento passa pela ausência de interferência dos continentes mais desenvolvidos no “menu” das estratégias de crescimento das nações africanas. Só assim poderá haver uma competição mais equilibrada no campo do desenvolvimento global.

Se as nações desenvolvidas continuarem a influenciar o comportamento das nações africanas pela preferência pela ignorância ou fornecendo fórmulas de desenvolvimento irreais, continuaremos a testemunhar a estagnação intelectual da África e o domínio eterno da pobreza social e cognitiva.

Se as organizações internacionais não limitarem a produção e a venda de armamento bélico [a Indústria de Guerra], a África será privada de seu desenvolvimento, pois a sua vulnerabilidade continuará a
favorecer o surgimento de guerras.
De que valem palavras que mobilizam a esperança da consciência africana, como aquelas que afirmam:

“A África é rica, e o futuro das nações está na África”, quando os povos africanos continuam a viver
abaixo da linha da pobreza? Ainda enfrentam fome, nudez, falta de abrigo, ausência de condições educacionais adequadas, e políticas de mobilidade pública ineficazes, enquanto são liderados por
governantes movidos por um conceito de riqueza que não beneficia o colectivo. A ÁFRICA merece consideração favorável. DEVE SER VISTA COMO UM ATIVO ESSENCIAL NO CONTEXTO DAS NAÇÕES, e não como um campo de extracção de riqueza que apenas alimenta nações já satisfeitas. É urgente ajudar a África a reflectir sobre o conceito de desenvolvimento e bem-estar.

A ausência de um pensamento colectivo e de um pensar no bem-estar comum desvia o rabisco que deveria desenhar a essência da humanidade e a qualidade de vida apreciável para todos. As mentes
particularistas que orientam muitas organizações sociais e influenciam as políticas públicas das nações africanas perpetuam dinâmicas semelhantes às do período da escravidão. Libertar a África significa salvar o seu povo de um sofrimento que já dura centenas de anos.

Os 30 milhões de quilómetros quadrados da África escondem riquezas suficientes para satisfazer a
humanidade. No entanto, apesar dessa imensidão de recursos, as migrações continuam a ocorrer em um
único sentido, porque ainda falta o conhecimento necessário para transformar as vantagens comparativas que a África possui em vantagens competitivas. Esse é o caminho para acelerar o desenvolvimento e libertar suas nações de todo tipo de pobreza.

África, acredita! O conceito de humanidade pode, um dia, ser ressignificado na poesia do
desenvolvimento declamada no altar da catedral do conhecimento.

 

O urgente e o remanescente a fazer-se aquando da actual crise pós-eleitoral em Moçambique

Quando os que têm poder de mudar um país passarem a olhar para os artistas, em geral, mas, sobretudo, os de permanente ou pontual intervenção social, e os virem não como uma ameaça mas sim como um aviso, evitar-se-ão fenómenos como os que hoje se vivem em Moçambique.

Azagaia é um grande exemplo. É verdade que o é sem deixar de ser um exemplo: há muitos outros artistas, nas mais diversas áreas da arte, que muito fizeram e/ou fazem por um Moçambique cada vez mais justo, embora muitos o tenham feito e/ou o façam de forma

indirecta, contudo sempre verdadeira! Mas a diferença de Azagaia está na audácia, está na

ousadia que o caracteriza e que lhe confere notoriedade e, por conseguinte, popularidade! Por isso redigo: Azagaia é um grande exemplo.

A arte, quando bem manejada, é, em contexto de indignação ou até de revolta, uma das formas mais pacíficas e, inclusive, encantadoras de manifestação! Portanto, que se ouçam os artistas e que se apliquem as suas ideias, a partir das ideias que, no mínimo, sejam proveitosas.

Mas isso dos artistas e das artes é para depois… é para quando finalmente estivermos todos aliviados da actual tensão. Por agora, e antes da afamada e controversa ideia de diálogo, tem de haver, primeiramente, oração – reconhecimento a Deus, o Todo-poderoso; posto isto, é tolerância o que deve reinar entre todas as partes envolvidas nesta crise. Esta tolerância trar–nos-á paz, e só em paz poderemos pensar no que ademais pretendamos; por fim, é também urgente que não se perca o foco no primordial e final objectivo, o qual, suposta e resumidamente, é tornar Moçambique um país justo ou mais justo.

 

11/12/2024

 

Nos dias actuais, a juventude moçambicana enfrenta desafios que vão muito além do que é amplamente reconhecido nas discussões sociais e políticas. Enquanto grande parte do debate sobre a depressão juvenil é centrada nos aspectos psicológicos individuais, como desequilíbrios químicos ou traumas pessoais, pouco se fala sobre os factores sociais e estruturais que impulsionam essa crise. A letargia colectiva observada entre os jovens é, em grande parte, alimentada por uma sociedade que, ao invés de proporcionar apoio e oportunidades, os sobrecarrega com um sistema que falha em oferecer perspectivas reais de crescimento e desenvolvimento.

A Conformidade Silenciosa da Juventude

Quando analisamos o estado actual da juventude moçambicana, é impossível não notar o profundo desânimo que permeia suas atitudes e comportamentos. Este fenômeno, muitas vezes categorizado como “apatia”, é, na verdade, um sintoma de uma crise social mais ampla. Jovens que acordam cedo, todos os dias, para enfrentar condições degradantes no transporte público, trabalhos mal remunerados e uma economia em declínio têm sido empurrados para um estado de conformidade silenciosa. Eles já não reclamam, já não protestam. Ao invés disso, aceitam essa realidade com um resignado silêncio, fruto de uma dor que se tornou parte de sua rotina diária.

Esta aceitação da dor diária como algo inevitável é um claro indicativo de que a juventude moçambicana não apenas perdeu a esperança, mas também a capacidade de imaginar uma vida diferente. Eles não estão apáticos por natureza, mas foram condicionados por uma sociedade que os desencoraja continuamente. Não é que os jovens sejam preguiçosos ou desmotivados, como algumas narrativas populares sugerem, mas sim que eles têm sido repetidamente traídos por um sistema que não oferece oportunidades significativas de melhoria.

A Falha do Sistema e a Depressão Colectiva

O sistema moçambicano, tanto em termos de infra-estrutura quanto de políticas sociais, falha consistentemente em fornecer os meios para que os jovens possam prosperar. O transporte público superlotado e as condições insalubres de trabalho são apenas alguns exemplos de como o ambiente ao redor da juventude contribui para essa depressão sistêmica. De acordo com Silva e Martins (2018), o estresse contínuo gerado por condições sociais adversas pode agravar os sintomas de depressão, levando a uma sensação de impotência e desesperança entre os indivíduos afectados. Esta afirmação encontra eco no contexto moçambicano, onde a falta de políticas de apoio à juventude e a ausência de
infra-estrutura adequada para o seu desenvolvimento resultam em um ciclo contínuo de frustração. Além disso, as poucas oportunidades de crescimento econômico ou educacional
reforçam o sentimento de desesperança. Mesmo aqueles que conseguem ter acesso a empregos estão frequentemente confinados a funções mal remuneradas e sem perspectiva de mobilidade social. Nesse contexto, a depressão deixa de ser meramente um problema psicológico e se torna um reflexo directo das falhas sociais e estruturais do país. Oliveira e Tavares (2019) sugerem que, em ambientes onde o crescimento econômico é limitado e as oportunidades são escassas, a juventude tende a experimentar níveis mais elevados de ansiedade e desespero, o que pode culminar em um estado de depressão colectiva.

A Invisibilidade da Crise Juvenil

Um dos aspectos mais perturbadores dessa situação é como a crise da juventude moçambicana permanece amplamente ignorada pelas autoridades e pela sociedade em geral. Embora seja evidente que as condições sociais adversas estejam contribuindo para a
depressão juvenil, o governo moçambicano e as instituições responsáveis pela criação de políticas públicas continuam a minimizar a gravidade do problema. A ausência de programas eficazes de apoio à juventude e a falta de investimentos em educação e infra-estrutura são evidências de uma negligência institucional que apenas aprofunda essa crise.

Essa invisibilidade da crise juvenil também é alimentada por uma cultura de estigmatização, em torno da depressão e da saúde mental, em geral. Muitos jovens não se sentem à vontade para buscar ajuda ou falar sobre seus sentimentos de desespero, temendo serem rotulados como fracos ou incapazes. A sociedade moçambicana, como muitas outras ao redor do mundo, ainda carrega o estigma de que problemas de saúde mental são uma
fraqueza individual, em vez de reconhecer que são sintomas de falhas sistêmicas que precisam ser abordadas colectivamente.

Como apontam Costa e Almeida (2020), a estigmatização da saúde mental é um dos principais obstáculos para a busca de tratamento, especialmente em sociedades onde a juventude é vista como responsável por sua própria sorte.

Caminhos para a Superação

Para romper com este ciclo de letargia e depressão, é necessário que a sociedade moçambicana, juntamente com suas instituições de poder, tome medidas proactivas e estruturais. Primeiro, é crucial que as políticas públicas direccionadas à juventude se
concentrem na criação de oportunidades reais de desenvolvimento. Isso inclui não apenas melhorias no sistema de educação, mas também a criação de programas de emprego que
ofereçam condições dignas de trabalho e salários justos.

Além disso, deve-se investir no transporte público e na infra-estrutura urbana, de modo a aliviar o estresse diário que aflige a juventude moçambicana. Um transporte público funcional e acessível, por exemplo, não só melhoraria a qualidade de vida dos jovens, como também contribuiria para o seu bem-estar mental. Segundo Ferreira e Souza (2021), melhorias na infra-estrutura pública, como transporte e espaços de lazer, têm um
impacto directo na redução dos níveis de estresse e ansiedade entre os jovens, o que pode ajudar a diminuir a incidência de depressão.

Finalmente, é essencial que a sociedade moçambicana passe a encarar a saúde mental como uma prioridade. Campanhas de consciencialização que desestigmatizem a depressão e outros transtornos mentais são necessárias para que os jovens se sintam mais à vontade para buscar ajuda. Instituições de saúde mental devem ser reforçadas e acessíveis a todos, independentemente de sua condição econômica. De acordo com Gonçalves e Ramos (2022), o acesso a serviços de saúde mental de qualidade é um dos factores-chave para a redução da incidência de depressão em sociedades de baixa renda.

Conclusão

A juventude moçambicana está presa em um ciclo de letargia e desespero que não pode mais ser ignorado. A depressão juvenil não é apenas um fenômeno individual, mas sim, o reflexo de uma sociedade que falhou em oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento de sua próxima geração. Para romper com esse ciclo, é necessário que as instituições moçambicanas reconheçam a gravidade do problema e implementem políticas públicas que criem oportunidades reais de crescimento e bem-estar para os jovens. Sem essas mudanças, continuaremos a assistir ao agravamento de uma crise que afecta, não apenas os indivíduos, mas o futuro de toda uma nação.

Referências Bibliográficas

Costa, M., & Almeida, F. (2020). Saúde Mental e Juventude: Desafios em Países em Desenvolvimento. Editora do Conhecimento.
Ferreira, P., & Souza, R. (2021). Infraestrutura e Bem-Estar Juvenil em Países Africanos: Uma Análise Comparativa. Estudos Africanos.
Gonçalves, L., & Ramos, E. (2022). O Impacto da Saúde Mental em Países de Baixa Renda. Editora de Saúde Global.
Oliveira, A., & Tavares, M. (2019). Economia e Desigualdade Social em Moçambique. Revista de Estudos Moçambicanos, 34(2), 112-130.
Silva, J., & Martins, B. (2018). Juventude e Desafios Sociais: Uma Abordagem Crítica. Editora Perspectiva.

 

Disse com graça o nosso saudoso cronista, Juma Aiuba, é preciso ver piada em tudo. E o jovem escritor Hélio Inguane foi consequente na aplicação dessa máxima sobre os seus textos. O livro da sua estreia é composto por temas de grande peso existencial, mas narrados com um elevado sentido de humor que, a nós leitores, nos faz ignorar ou suportar com ânimo a dureza da vida.

Onde há escassez do material de sobrevivência, Inguane chega e introduz o prazer irracional que vai agravar ainda mais a situação económica, que o diga o personagem João Matandza quem gastou os lucros do seu modesto negócio com prostitutas. Onde prolifera a doença advinda de longos anos de exploração laboral, Inguane adiciona a indisciplina que impede o cumprimento da medicação do tio guarda. Onde prevalece a trauma duma terrível emboscada, o autor derrama álcool, mulheres e consequente abandono familiar como analgésico para vida do André Ximovane. E quando a família tenta organizar um pouco da sua imensa pobreza, vêm Joãozinho ou o menino do texto sem título com os seus ingénuos furtos e macaquices. E o John Perigo que é daqueles bandidos que criam um desassossego nos nossos bairros, é retratado como um artista que tem uma morte cinematográfica. Os evangelistas que muito nos têm interpelado nos chapas com palavras divinas, prometendo uma paradisíaca salvação, na escrita de Inguane levam tareia hilariante dos molwenes de Hulene, mal se conseguindo salvar a si próprios. É neste ritmo irónico e burlesco que Inguane nos vai habituar a ver piada em vidas sérias, muitas vezes atordoadas pela miséria.

Lagartos de Madeira e Zinco é um livro que nos oferece um momento aconchegante, não importa o lugar onde estejamos a fazer a leitura. Quem o lê, fá-lo com um sorriso despontado nos lábios de início ao fim, pois longe de servir-se de formas complexas no uso da palavra, o autor tem maior interesse em partilhar a condição humana e experiências de vida de gente que nos é local, familiar e, de certa forma, com vida apoquentada.

Há sentido de humor, há lição moral, há sabedoria nas crónicas de Inguane, o que nos faz indagar o seu profundo conhecimento de vivências que se afigura desproporcional à sua idade juvenil.

Em termos de conteúdo e forma, a escrita do autor moçambicano é deveras substancial por permear as linhas existencialistas e apresentar uma estrutura em que as acções da narrativa, às vezes, iniciam pelo fim e
terminam no meio – uma forma estranha e peculiar de atiçar a atenção do leitor que, uma vez que conhece o fim, fica mais curioso pelo início e desenvolvimento do enredo. Ademais, o nosso autor mostra-se-nos um narrador observador, pouco sério e burlador na sua forma de contar os acontecimentos pela razão de, de quando em vez, nos surpreender ao admitir que esteve a mentir para nós sobre algumas ocorrências,
emendando-se imediatamente. Para uma alma não pequena, tais confissões só servem para dar mais gracejo à narrativa.

Por estas e outras razões estéticas e temáticas, o livro de estreia do autor moçambicano, Hélio Inguane, é um belo convite para um leitor, talvez sofrido, que se pretenda curar, lendo mágoas consideravelmente maiores que as suas. A sua linguagem simples, mas profunda na descrição da miséria e contradições desta vida torna os textos mais íntimos e, ao mesmo tempo, redentores pela particularidade humorística. Nisto, atrevo-mo a afirmar que Hélio Inguane é uma reluzente promessa na escrita moçambicana à moda criativa de Mia Couto e Sérgio Raimundo.

Esperemos, por isso, pelas melhores crónicas de sempre.

Começo por felicitar as demais entidades internacionais e nacionais que trabalham na prevenção e combate da VBG (Violência Baseada no Género).

SADC define como todos actos perprertados contra mulheres, homens, rapazes, raparigas, em virtude do seu sexo, acrescento os de sexo indefinido, os vulneráveis. Realçar que causam ou podem causar danos físicos, sexuais, psicológicos emocionais ou económicos. E defende que a VBG abrange violência doméstica, assédio sexual no local de trabalho, abuso sexual e emocional, e reitero as várias formas de tráfico de seres humanos.

Em vários países, cerca de 1/3 das mulheres, tentava obter separação ao serem assassinadas, especialmente nos três meses que antecederam o crime (Dobash et al 2004). Hoje em dia, temos mulheres a assassinarem os seus parceiros, como exaustão ou defesa própria, busca de lucro fácil.

Em consequência, o resultado da violência contra a mulher e a criança, de Janeiro a Dezembro de 2022, foram atendidos 5.583 casos cíveis ao nível nacional, no Gabinete de Atendimento à Família e Menor Vítima de Violência e cuja a tipologia era: falta de assistência alimentar ao filho, falta de assistência alimentar ao cônjuge, impugnação de paternidade, regulação do exercício do poder parental, abandono do lar, abandono do menor, reconhecimento da união de facto, separação litigiosa, separação por mútuo consenso, divórcio, divisão de bens (retirado do Observatório de mulheres).

A preocupação exposta pelo IPAJ, no manual/brochura de diagnóstico de necessidades dos Serviços de Violência Baseada no Género (VBG), na cidade de Maputo, na página 30, admite a falta de meios económicos por parte dos perpetradores, e interroga ainda em que medida as custas judiciais podem beneficiar as vítimas? Por exemplo, a construção de abrigos para atender a falta de Centros de Trânsitos.

Ao debruçar sobre as consequências, está lá a mulher e o menor. Entendo que o menor (crianças e adolescentes), que estão nas manifestações, talvez tenham em falta muitas necessidades ou não. Porquê nos centros urbanos não temos a mesma situação? Será que a violência política-social escolhe os alvos? A vulnerabilidade faz do menor presa fácil. 

Sinto um diluir das campanhas e apelos, contra todo tipo de violência, porque os outros serviços/pacotes de resposta são inexistentes, e ou sobrecarregados para a demanda, mas não desaconselho, sou a favor de priorizar acções, como a educação, recordando que existe a Carta Africana dos Direitos e bem-estar da Criança, que recita que a criança, tendo em conta a sua maturidade física e mental, precisa de segurança e cuidados especiais.

Outro Instrumento é: A Convenção da União Africana Sobre o Fim da Violência Contra Mulheres e Meninas. Portanto, não tenhamos dúvidas que por causa da aclamada situação, os menores e as mulheres que já estavam numa situação vulnerável, terão a sua vulnerabilidade acrescida, na pior das hipóteses, dependendo do desfecho do actual cenário social violento, e o juízo crítico da próxima sociedade, nação, que terá a dura missão de tratar a saúde mental, reduzir o acesso à droga e ao álcool, a promiscuidade, sim. 

Uma rapariga de 12 anos precisa de implante? Sim, porque o fabricante quer o seu uso, mas 12 anos… Devia concentrar-se na escola, esta corre muitos riscos de não fazer a 10a classe. A educação e os valores morais estão a falhar muito. Reforço o apelo à empatia, coragem, determinação, não à violência contra qualquer indivíduo, independentemente do status, género definido ou não, função/ocupação, idade, religião, etnia.

 

Quero desenhar o rosto da solidão com letras do pensamento inocente, nas curvas que declamam o poema daquela donzela sacrificada pelo futuro, em estrofes de sentimentos que evocam um presente bom.

Quero escrever versos de sentimentos solitários que descrevam lembraças da voz do vento, anunciando a chegada de uma madrugada de solidão, revelando o segredo da esperança sob a luz de um amanhecer sem nuvens, mas com sombras que repousam o bem.

Quero voar com as letras da solidão para um mundo próximo, onde o sorriso lembra o salto dos golfinhos no dia do mar do verão e abre o horizonte para o banquete das maravilhas da natureza.

Quero ver o “sim” de um novo dia, que traz o sabor do beijo fresco da madrugada solitária, reacendendo a paixão de viver num mundo que faz milagres e colore o futuro com maravilhas. Quero maquiar a solidão com as cores do arco-íris, alegrando o pântano que viu o sol secar sua alegria sem piedade.

Quero sorrir após a escravidão e celebrar a superação do sofrimento com a dança da Capoeira ou ao som da Timbila.

Quero recordar a pureza, a virgindade dos traços humanos, para lembrar o espírito da imagem da alma, traduzida em atitudes verdadeiramente humanas. Às vezes, precisamos sair do formalismo da consciência e permitir que a mente escute melodias Caipiras e que visualize a dança do Tufo. Quero manifestar a presença humana escrevendo poemas ou admirando o som que lembra a imagem da santidade.

Preciso sorrir na esteira da solidão, lembrando a dança da Capoeira que entretinha a escravidão da minha mente no campo do sofrimento, e os chicotes da solidão deixaram marcas que inspiram os neurónios a imaginar um mundo diferente.

Quero voar em pensamento, sem o paraquedas da língua, para sentir a liberdade dos pássaros, pousando em céus azuis sem sombra de solidão e preenchendo a vida com letras de poesia. Às vezes, quero guardar lembranças de passeios sob as ondas, celebrando a vida no reino marinho e comunicando com o verbo da língua oceânica.

Quero escrever ‘o verso da solidão’ com o verbo do meu Eu, sem receio.

 

29/10/24

A morte do curandeiro

Bava Mugubuzi. Assim chamavam o grande curandeiro da aldeia Gubuzi. Homem cheio de dinheiro, esposas, hortas, gados e empresas, mas tudo era diabólico. O homem

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