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ARTIGOS DE OPINIÃO

Algumas obras não pedem licença! Elas invadem, desestabilizando e lançando golpes que atingem o coração e consciência de quem as lê. Missa pagã, é um desses raros exemplos. Mais do que uma colectânea de crónicas, é um grito contido, um toque de alerta para as inquietações e contradições que habitam a nossa sociedade.

Fernando Manuel, revela uma obra que ousa desafiar os cânones literários, descrevendo como os eventos “acontecem a velocidades alucinantes” e ganham “dimensões tão radicais”.

Em consonância com essa abordagem, esmiúça os detalhes da religiosidade, disparidades sociais, e aspirações pessoais, construindo território onde o riso e a indignação caminham lado a lado, e onde cada personagem apresenta algo inesperado sobre a sociedade e, talvez sobre nós mesmos.

No primeiro capítulo o leitor é embrenhado em “Salmo I- sobre a sombra do tempo” ; “Salmo I”, que geralmente é associado a louvores e súplicas contrasta ironicamente com a visão desencadeada do autor em relação ao tempo e a vida moderna.

Por outro lado, “ Sobre as sombras do tempo” , insinua que o tempo, mais do que uma dimensão linear, é uma presença persistente e intangível, que traz consigo as marcas de um passado distante e, ao mesmo tempo, projecta incertezas no futuro.

Fernando Manuel estrutura suas crónicas dissecando uma linguagem que é ao mesmo tempo, poética e desconcertante. De facto, combina humor e sarcasmo com uma melancolia subjacente, criando uma voz narrativa que desafia o leitor a enxergar além do que é dito.

Ele se debruça sobre pequenas cenas como: a lembrança de tomar chá de limão, dividir pão entre os membros da família e ouvir a voz de Oliver Ngoma no rádio, momentos íntimos que colectivamente, constroem um retrato da sua existência e identidade cultural, dando ao leitor uma sensação de proximidade com o personagem e criando uma nostalgia que reflecte nas experiências daqueles que sentem os efeitos das rápidas transformações do mundo ao seu redor.

Sob uma óptica mais apurada em “Evangelho Pessoalizado”, encontramos não apenas uma narração, mas uma escultura, com precisão quase cirúrgica, de uma crítica feroz à mercantilização da fé. O cronista, lança um olhar ácido sobre as práticas religiosas contemporâneas, onde o sagrado e o profano se entrelaçam em uma dança de interesses financeiros e promessas vazias.

Ao descrever a igreja na Avenida Marien Ngouabi, o autor molda-a quase como uma fortaleza, uma espécie de “castelo de ilusões” em que multidões depositam seus sonhos e esperanças.

O cronista descreve ainda a explosão de cânticos e vozes vindas do templo, uma cacofonia que parece ecoar não só os anseios de redenção dos fiéis, mas também a surdez proposital do Criador – um Deus que talvez já esteja cansado de promessas não cumpridas ou de pedidos que jamais cessam, diria Frederick Nietzsche “ a fé é ignorar tudo aquilo que é verdade”.

A crítica se concentra, portanto, na maneira como a igreja é apresentada como um “mercado de almas,” onde o valor de cada fiel é medido pelo dízimo que pode oferecer. Em vez de ser um santuário de acolhimento, a igreja é mostrada como um cofre insaciável, alimentado pela inocência e pelo desespero dos fiéis.

No entanto, é interessante notar a posição do narrador que, observando de fora, encontra-se ele mesmo em uma espécie de deserto espiritual. Ele confessa ter “pontos de fuga,” como se estivesse encarcerado em uma teia invisível de angústias, buscando alívio na sua própria solidão e nas pequenas evasões para aliviar as exigências diárias.

Sua peregrinação até o bar da esquina se transforma em um rito pessoal, onde ele busca em cada gole um pouco de esquecimento, como se o álcool fosse sua hóstia amarga diante de uma vida em que o sagrado se transformou em farsa.

Contudo, o foco à exploração financeira e na relação com o lucro pode reforçar estereótipos negativos sobre igrejas evangélicas, ignorando os aspectos positivos que também existem em muitas comunidades religiosas. A generalização pode dar a impressão de que todas essas igrejas actuam de maneira predatória, o que pode ser percebido como um viés.

Por conseguinte, nota-se que o autor não dedica muita atenção aos fiéis que realmente buscam conforto espiritual. Esses personagens são mostrados de maneira um tanto distante, quase como figuras ingênuas ou manipuláveis, sem uma análise minuciosa de suas motivações e dilemas.

Ainda assim, com sua fluidez, Fernando Manuel leva o leitor a rir das desventuras de uma sociedade em decadência; Em vez de oferecer respostas, ele lança dúvidas que iluminam brevemente, apenas para mergulharem novamente em novas sombras.

Mais a diante, em “ Pobreza e Álcool”, o autor expõe, de forma mordaz, a precarização da classe média moçambicana e a escalada do consumo de álcool como válvula de escape para a desamparo social.

rofissionais como professores, médicos e funcionários públicos — outrora considerados pilares da sociedade — são levados à margem, enquanto suas profissões perdem qualquer estabilidade ou dignidade. “A falta de dinheiro é a raiz de todo mal,” conforme popularizou George Bernard Shaw, revelando como a escassez de recursos mina o espírito e empurra uma sociedade inteira à beira do colapso.

Sua análise confronta a retórica política de igualdade e tolerância, evidenciando como promessas de mobilidade social e meritocracia se diluem em slogans vazios.O consumo crescente de aguardente caseira torna-se, então, um reflexo melancólico desse ambiente. Incapazes de encontrar uma saída, muitos recorrem ao álcool como uma forma de anestesiar a frustração.

O professor embriagado tentando ensinar, transforma-se em um ícone de desconexão das condições de trabalho e de vida. Fernando, expande essa ideia para mostrar como, de Niassa a Maputo, o desânimo é o mesma, com o álcool servindo como um antídoto momentâneo para o sofrimento, embora acabe apenas agravando a apatia social e a miséria material.

A obra, não apenas demonstra uma sensibilidade única para apreender as inquietações de uma geração subjugada, entretanto também nos faz lembrar de autores e pensadores cujas teorias desconstroem visões limitadas de realidade. No capítulo “Gajos Bons,” o cronista provoca reflexões que ressoam ideias da Teoria da Relatividade, demonstrando que a verdade não é absoluta e que o entendimento da realidade depende do ponto de vista de cada um.

Fernando é, sem dúvida, um “gajo bom”, não apenas por sua compaixão pelos personagens marginalizados, não obstante também por sua capacidade de transitar por ideias filosóficas e científicas, ou ainda por já ter sido professor de História, com efeito, enriquecendo a literatura com percepções provocativas e originais.

Missa pagã, portanto, é uma obra que conduz o leitor a reflectir sobre a espiritualidade de um modo que não esteja preso a dogmas, porém enraizado nas experiências e contradições de todos nós.

 

Lágrimas no Estendal do Tempo, de Carlos Nhangumele, chancelado pela Cratylus, E.I, é um romance que se enquadra no Realismo, pois faz um retracto objectivo e fiel da vida de Tomás Mascarenhas, que abandona a família por mais de uma década e só regressa morto a casa. O autor, com esta obra, além de sugerir através do título a metáfora de que o tempo cura tudo, alterca as questões com que o país se defronta e as suas vicissitudes actuais e atemporais: a corrupção, o desemprego que reenvia os jovens à formação militar, a insurgência em Cabo Delgado e a crítica ao sistema hospitalar, revelada pela busca por melhores tratamentos na África do Sul.

Estamos diante de um romance, em consonância com Silva (2006), de acção ou de acontecimento, visto que se relega à análise psicológica das personagens e à descrição dos meios para o segundo plano, em detrimento da sucessão e do encadeamento das situações e dos episódios sobre o que aconteceu com Tomás e a sua família. É uma obra composta por 38 capítulos intitulados e, quase todos, epigrafados, e um prólogo.

Trata-se de intrigas com princípio, meio e fim bem estruturados. O título (Lágrimas no Estendal do Tempo) é justificado pelo fardo carregado pelo personagem Tómas ao longo do seu percurso; da constituição, abandono até ao seu regresso à família, vai despoletando uma sequência de acções que, naturalmente, giram à sua volta; um realismo que, fazendo a anatomia do carácter, critica o Homem e, como arte, pinta-o, condenando o que há de mau na nossa sociedade.

A estória de Tomás desenvolve-se em Maputo, Sofala, Nampula, Inhambane, Cabo Delgado e África do Sul. O tempo é actual. Os objectos e eventos culturais têm existência empírica e emigraram para o universo ficcional; por exemplo, a referência do narrador à música de Mabermuda, recordada por Mavie, quando viu Tomás a tomar uma 2M; outrossim, à música de chamada no Huawei do narrador, “Running to you”, de Chiklé e Simi, entre outros. Assim sendo, o narrador, enquanto nos vai dando a conhecer a diegese que envolve outros personagens (Sara, Mavie, Rita, Sandra, Paulo, Sofia, Kito, Nália, Nguila, Gimwandruzana, e o Mecânico), vai levantando questões filosóficas como: o sensível, o existencialismo, o prelúdio de metamorfoses e a dialéctica da solidão e do (re)encontro.

Desta feita, os traços em referência são patentes na história de Tomás que, envergonhado pela sua condição de esterilidade e com raiva da sua esposa, Sara, por ter feito filhos fora do casamento para provar que ela não era o problema, Tomás, curado, abandonou a vida militar para abraçar a de motorista, mas, nas cidades por onde passava, deixava filhos e, em Mueda, ainda militar, envolveu-se com Rita, sua colega, e o resultado foi: Sofia, que mais tarde veio a se relacionar com o primogénito da Sara, esposa de Tomás, situação que gerou tensão, porque Rita acreditava que a filha se havia relacionado com o seu irmão sem saber. Esse incidente serviu também para a revelação da verdade do dito, de que dadas as circunstâncias de abandono por três anos, Sara ter-se-ia envolvido com Mavie, pai do seu segundo filho, Kito. Ademais, Tomás foi contraindo matrimónios frustrados com várias mulheres ao longo do país, e regressa morto da África do Sul, para a responsabilidade da sua família, constituída com Sara.

O sensível, sendo o que se produziu com o transcender, sem que as personagens tenham consciência do mesmo, resultado da impulsividade, desejo, apetite e aspiração, nota-se quando a personagem Tomás abandona a família e abraça a vida de motorista, depois de receber uma indemnização das FADM. Como uma acção inconsciente, o próprio personagem afirma, a dado passo, ao conhecer uma mulher masena, Suzy, o seguinte: “(…) o diabo tentou-me e (…)” (Nhangumele, 2024:115) e quando diz “Juro que aquele dinheiro me cegou (…)” (Nhangumele, 2024:115), para lidimar a ausência da consciência na transcendência.
Como muito bem nota Shelling (s/d), apud Da Silva (2002:127), “o Eu, portanto, não é sensível se não existe nele uma actividade que ultrapassa o limite. Devido a esta actividade, o Eu deve, para ser sensível a si mesmo, colher em si (o ideal) o estranho.” De facto, Tomás, do seu desejo de vingança, vai ultrapassando os limites, sem controlar os apetites, traindo Nanda pela empregada, makuwa, acolhendo o estranho, na medida em que não cabe na sua imaginação o seu comportamento de ingratidão, como se lê: “(…) mas que trocaria a minha então esposa, que me tirara da sarjeta e resgatara por uma secretariazinha, nunca tinha imaginado. Este foi o motivo que me fez separar-me de Nanda e perder mais uma vez o lar e, inclusive, a oportunidade de me reerguer depois de tanta coisa que vivi.” (Nhangumele, 2024:126) (grifos nossos)
Mais profundo ainda foi quando Tomás, não aguentando com o facto de que ele era o problema de o casal não ter filhos, associado às provas de Sara, sua esposa, que engravidara de Mateu, a convivência com ela reflectia uma canalização do seu sofrimento a si, conforme assevera Sara: “(…) Tomás vivia batendo em mim. O insulto que quisesse endereçar ao Paulo endereçava-o a mim (…)” (Nhangumele, 187:187).

O abandono e os resultados, a maneira como Tomás termina encaixam-se no prelúdio de metamorfoses, o diálogo entre a aparência e o ser, a ideia do carácter esquivo e desorientador da existência, dessa eterna transcendência da verdade: “o que nos envolve imediatamente, o mundo que se inscreve na percepção das personagens pode esconder e não “mostrar” o que está por detrás dele, as coisas podem ser enganosas e falazes” (Da Silva, 2002).

Tomás acreditou que quem era problemático era a esposa, até porque, no seu meio, na voz da personagem Sara “(…) não importam os motivos. (…) homem sempre tem razão (…) sem se fazerem exames, já se concluía que estéreis são as mulheres. Homens são uma bênção. Não carregam nenhuma maldade…” (Nhangumele, 2024:187); mais ainda, viu-se na melhor opção, porque, também tinha indemnização, abandonou a família e, das peripécias amorosas, terminou abandonado, regressando morto para a responsabilidade da sua primeira família, não que o fadário da morte fosse evitável.

O abandono à família é igualmente a dialéctica da solidão e do encontro, a acepção de que a sociedade em que se desenvolve a nossa existência pública é uma esfera de contrafacção, dissímulo e hipocrisia. A vida que cumprimos nesse contexto é um contínuo afastamento de nossas possibilidades pessoais, um papel que não decorre dos reclames da nossa vocação original, mas que se impõe pelas circunstâncias da exterioridade colectiva. É todo esse cenário que Tomás tentou manter com Sara, com o casamento, tanto que até à revelação da verdade, estaria o segredo intacto entre Sara e o próprio Tomás, este último carregando o peso, enquanto se ostenta o conceito de família unida e feliz.

Tratando-se de uma história de um casal (um romance), no plano deste, o amor e a aventura igualmente o caracterizam; curiosamente, surge-nos uma questão correlata a essas características, respondida por Noa (2008), analisando Meledina, de Aldino Muianga: Qual é o espaço do amor na obra de Nhangumele (2024)? A saber: “não é uma história de amor, mas da sua impossibilidade, devido a condicionalismos vários, inerentes às próprias personagens e ao contexto em que se encontram” (Noa, 2008:5). Em outros termos, Tomás e Sara, apesar de se amarem, não ficam juntos.

Portanto, Lágrimas no Estendal do Tempo, de Carlos Nhangumele, examina alguns problemas últimos da vida, desencadeados pelos personagens ao longo do percurso de Tomás, que representa a história de um homem que vive assediado pela imagem daquilo que lhe falta, que não podia ter mais, porque Sara havia já se relacionado com Mateu e Mavie. Queria ser ele pai do primogénito Paulo e do Kito. De facto, como assevera Sartre, apud Da Silva (2002), “o Homem é aquela realidade que não é o que é, é o que não é (…) o ser que se realiza na sua própria superação” e, acrescento, até à morte.

 

Bibliografia

Activa
Nhangumele, Carlos. (2024). Lágrimas no Estendal do Tempo. Maputo: Cratylus.

Passiva
F. da Silva, Vicente. (2002). “O sensível, o existencialismo, o prelúdio de metamorfoses e a dialéctica da solidão e do encontro”, in Dialéctica das Consciências e outros ensaios. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
N. Francisco. (2008). Meledina (ou a história de uma prostituta), de Aldino Muianga: A Arte da Memória. Via atlântica nº 12 DEZ/2007.
A. Silva, Victor Manuel. (2006). «Génese e o Desenvolvimento do Romance», in Teoria da Literatura (8ªed.). Coimbra: Almedina. Pp. 671-686.

Não perguntes o que a tua pátria pode fazer por ti, pergunte o que tu podes fazer pela tua pátria.
Jonh Kennedy

 

Eclodiu em Moçambique um fenómeno político conhecido como Venâncio Mondlane (VM7), que quebrou convenções, elevou a retórica e cuja a sua militância ou impressão popular foi capturada pela sensibilidade da artista plástica Sandra Pizura, no quadro “Os mandamentos do VM7”.

Sandra Pizura recorreu à técnica: acrílico sob tela para dar vida ao quadro “Os Mandamentos de VM7” em dimensões 1.70×1.15m, obra criada a 4 de Novembro de 2024.

VM7, segundo consenso de pesquisas, significa: Ventos de Mudanças da 7ª Geração. O título: “Os mandamentos de VM7”, por si, já sugere uma posição messiânica do político no cenário moçambicano, estamos aqui a debruçar sobre a influência colossal que o mesmo tem sobre o povo e sobretudo nos jovens. Os Mandamentos figuram como os ideais do pensamento político e intelectual do VM7.

O quadro apresenta uma harmonia sublime do ambiente natural: As árvores, montanhas, planícies, os prédios ao fundo e a euforia popular no centro do quadro.

O céu azul domina o canto superior direito do quadro, seguido de alguns prédios, uma ponte unifica a área urbana e rural, e logo depois surgem os inúmeros seguidores do VM7 de praticamente todos os lados, e aglomeram-se fazendo uma legião em marcha, com o VM7 na linha da frente.

As linhas da obra são essencialmente curvadas, seduzindo o olhar do espectador desde as linhas traseiras longínquas donde vem os seguidores, até ao ponto central de destaque onde figura o líder. As formas são naturais, ornamentadas pelo extenso verde da vegetação, e pela enorme moldura popular, que cria instantaneamente ao espectador a sensação de movimento e de marcha seguindo o itinerário do líder.

Sandra Pizura manipula habilidosamente as perspectivas, as sombras, e os realces frontais dos populares criando uma ilusão óptica de tridimensionalidade dos objectos e figuras do quadro, adicionando-lhes uma profundidade peculiar, que permite vislumbrar até, o movimento, a energia e as vozes dos populares.

As cores são essencialmente transfiguradas da natureza ao quotidiano popular, o verde envolvendo a rica paisagem e o percurso revolucionário dos populares, a miscelânia de tons escuros e claros de castanho nos rostos dos populares, simbolizando a união de diversas raças e religiões na marcha, o azul do céu representando a aprovação divina da causa da marcha, e o branco, a imensa paz de espírito que caracteriza o povo e o líder em curso.

Os espaços distintos como os prédios brancos traseiros, a aldeia habitada à esquerda, e o movimento de populares que surge pela estrada à direita, realçam a ideia de que VM7 é um homem com convicções políticas e intelectuais gigantescas e, por isso, influencia multidões de todos os cantos do país e de todas classes sociais.

O quadro representa a luta incansável do VM7 pela democratização do poder e das instituições do estado, uma luta consolidada pelas suas famosas marchas que crescem mais e mais. A presença da bandeira moçambicana possui um forte simbolismo nacional, que destaca a marcha como uma luta não só política, mas do povo moçambicano em geral, aliás, Pizura explora visualmente bem a presença de cidadãos muçulmanos e até de raça branca no quadro.

Venâncio Mondlane é imortalizado bem no centro do quadro, com o seu colete preto icónico, o seu olhar frontal sempre convicto e esperançoso, semeando no povo a mesma esperança e convicção. O gesto das suas mãos e da sua voz concordando: Anamalala!

A sensação transmitida pelo quadro é visivelmente de liberdade, de busca por mudanças, de inconformismo com a actual situação político-social e económica de Moçambique.

Moçambique actualmente vê-se mergulhado numa crise económica política e social sem precedentes. Venâncio, figura carismática, têm-se valido como grande porta-voz do povo, perfilando acima de discursos retóricos vazios, inovando na forma de fazer política.

O quadro “Os mandamentos de VM7”, dada a sua fiel representação da personagem histórica e carismática que retrata, tem o perfil e a estética igualmente para se tornar um quadro histórico, dada a sua alusão a um momento político, social histórico em todo o País.

Artisticamente, Sandra terá nos induzido com esta obra, a reflectir, igualmente, sobre os conflitos do período pós-eleitoral, em que nos encontramos, sobre a necessidade de reforma e serenidade dos orgãos eleitorais de modo que possamos recuperar a credibilidade dos mesmos, sem descartar a necessidade crescente da cidadania do povo como factor de pressão para mudanças significativas.

A importância desta obra é multipla na medida em que preserva um momento histórico do país com um protagonista político ímpar, radiografa a actual vontade popular por mudanças políticas e sociais significativas, e traduz o desejo indelével de uma revolução para um Moçambique melhor.

Sandra Adélia Fernando Pizura é designer gráfica, ilustradora e artista plástica, participou de inúmeras exposições individuais e colectivas, é formada pela Escola Nacional de Artes Visuais, mestrada em Design E Multimédia pela Universidade Pedagógica e é docente na cadeira de Desenho Artistico no Instituto Superior de Artes e Cultura.

Se os mandamentos de VM7 serão cumpridos, apenas o tempo dirá …

É caso para dizer que o dono da bola não tem voz, e, com isso, um descamisado tem, neste momento, o poder para mandar jogar ou derrubar as “balizinhas” implantadas no interior do Zimpeto.

Pela primeira vez, a Federação Moçambicana de Futebol (FMF) parece desconhecer a localização das credenciais de ordem e segurança, demandadas pela Confederação Africana de Futebol (CAF), para a realização do encontro entre Moçambique e Mali, referente à quinta e penúltima jornada de acesso ao CAN Marrocos 2025.

O ambiente de incertezas preocupa a CAF, que, neste momento, teme pela integridade dos atletas e não só. Há um acidente iminente, o desporto e a política estão em rota de colisão. O Governo não pode “meter-se”. As regras são claras: em sopa de legumes, o feijão não é ingrediente. Diante de tudo isto, surge a questão: será que os Mambas vão rastejar, esta sexta-feira, no meio de pneus em chamas?

É um facto para dizer que, apesar de estar fora do jogo, Venâncio Mondlane parece, neste momento, o único com as chaves para abrir o Zimpeto e deixar o povo e os Mambas serem felizes. Em parte incerta, o tipo admoesta os movimentos do país e já se tornou calendário seguido pelos moçambicanos. Todos os movimentos são em respeito pelas recomendações deixadas nas suas lives nas redes sociais.

O jogo está marcado para as 18 horas, no Estádio Nacional do Zimpeto (ENZ), no meio das manifestações novamente convocadas pelo “político-mor” da juventude. Torna-se quase impossível prever o cenário do dia, muito menos o ambiente do jogo. Entre dúvidas e incertezas, Moçambique não tem outra escolha a não ser realizar a partida, sob pena de perder os três pontos a favor do Mali e, assim, comprometer a tão esperada segunda qualificação consecutiva para um CAN na história.

Sou a favor da revolução e manifestações pacíficas, mas também amo o futebol e a história em volta. Sou expectante das mudanças à vista e, como moçambicano, choro junto com o povo, daí que também estou nas ruas a marchar em direcção à liberdade.

E agora, o que fazemos, “maguengue”: jogamos ou perdemos? Mali está entre nós. Lutamos ou cedemos os três pontos, além do pagamento da multa de mais de 30 milhões de Meticais.

Entrarmos em jogo quando forem 18 horas pode ser outra forma de nos manifestarmos. Podemos rugir sem nos insurgirmos durante os 90 minutos. Somos fortes para lutar em duas frentes. Podemos zangar-nos sem nos espalharmos, podemos pressionar sem nos envergonharmos, podemos jogar, ou perdemos a oportunidade de estarmos presentes na maior montra futebolística africana, onde só as 24 nações bem polidas passeiam a classe.

Quem de direito deve conceder-nos o direito de vibrar com o futebol. Quem de direito pode dar-nos o direito de ver Dominguez e os seus em campo a arrumarem os malianos,. Somos fortes, mostramos eficácia no primeiro encontro em Bamako. Uma trégua de 90 minutos pode dar-nos ar fresco que não sentimos desde a saída às urnas.

Que o dono da bola se posicione ou o descamisado tomará o apito e voltará a liderar a equipa que parece caminhar sem capitão. O que fazemos, “maguengue”: jogamos ou perdemos?

Mangue é um homem trabalhador, um chefe de família muito ordenado de cabeça e nos planos. Para atestá-lo estão ali aquelas inumeráveis palhotas que formam o seu povoado_ Ka-Mangue_, a abarrotar de mulheres e de filhos, dos quais alguns já lhe haviam dado netos e netas, outros a labutar na cidade-capital distante, e não tarda nada que outros ainda se lhe juntem nos labores das minas na África do Sul. As machambas e o gado completam e justificam a vida de opulência e de fausto que são os distintivos do seu pristígio. Em poucas palavras, avassala os outros habitantes com a riqueza que ostenta.
Em cada época de quadra festiva, ou por ocasião de celebrações de rituais para honrar os defuntos, a sua casa é de todos; um corre-corre de gente, vinda doutras povoações, e das casas vizinhas para outro reencontro entre amigos e familiares.

Ele disfruta os momentos de tranquilidade à sombra das árvores que cresceram frondosas ao redor da casa principal. É aí onde, na companhia das três esposas, revezadas no cumprimento das obrigações matrimoniais, ou em convívios amenos, um petisco aqui, uma aguardente acolá, repousa os seus cansaços e elabora projectos para maior enriquecimento. Quando já a força das bebidas amolece os ânimos e convida ao sono, estira-se sobre a esteira e adormece no embalo da prosperidade.

Quem o visse mergulhado no sono diria que, durante o mesmo, vivesse ou revivesse eventos como se estivesse em plena vigília. O dele é um descanso laborioso, atormentado de pesadelos. É só vê-lo a mexer-se, a remexer-se, a rolar na esteira, ora para a direita, ora para a esquerda, a resmungar discursos, a transpirar de tal sorte que emerge do mesmo encharcado de água, ou como sobrevivente de um grande perigo.

Desperta de brusco e sacode a cabeçorra calva para afugentar as imagens dos sonhos. Sentado, arfa como se o ar lhe escasseasse do peito.

A partir de uma determinada altura Mangue começou a levar para a esteira do descanso uma catana, a mesma que empunhava quando se dirigisse aos matos para o corte de galhos de arbustos_ e ele era louco por exercitar-se nestes pequenos trabalhos domésticos, embora não faltasse quem os pudesse executar com a mesma perfeição. A princípio, o gesto causou estranheza entre as mulheres e os filhos, mas as perguntas sobre o motivo ou os motivos conservaram-se no silêncio das dúvidas.

Com o tempo os espantos da família subiram de tom. Como se não bastasse o questionamento sobre a função da catana no decurso dos sonhos, o dono da casa começou a revelar comportamentos que avolumavam as apreensões. Depois das convulsões dos pesadelos Mangue ergue-se de chofre, aos safanões, de catana em punho e, com modos furibundos, de quem se defende ou ataca um inimigo, desfere golpes ao tronco da árvore em cuja sombra descansara com o empenho de um guerreiro. Fá-lo com um vigor tal que se alvejasse um ser humano dividi-lo-ia em dois, ou era capaz de decapitá-lo ou decepar-lhe um braço.

A lâmina do instrumento enterra-se quase toda na dureza da madeira húmida das árvores. Nestes lances_ outro mistério e outra coincidência por decifrar!_ os alvos atingidos são sempre os mesmos: as lagartixas.
Destas, que abundam nas redondezas da casa pela riqueza de insectos nos arvoredos, a princípio inadvertidas daquelas violências, muitas foram sacrificadas nos impetuosos ataques do dono da casa. Outras, muitas outras, perderam as caudas nas tentativas de fuga. Estas, as caudas, precipitam-se no ar e caem no solo para estrebuchar e acabar imóveis, mortas e sem valia. Os corpos remanescentes rastejam as dores, em curvas espirais para se abrigarem nas pequenas concavidades dos troncos das árvores. Na trajectória da fuga deixam rastos dos seus líquidos internos.

Tirando esses episódios, Mangue exibe o comportamento de um homem equilibrado e ponderado, senhor do seu juízo, ainda merecedor do respeito e da admiração da sua prole e dos demais residentes na povoação. Dir-se-ia que depois dos sacrifícios ele olvidava os incidentes, como se houvessem passado de insignificantes pesadelos a que não atribuía importância alguma, nem que lhe afectassem a disposição e os humores.

Quantas caudas teria amputado naquelas práticas é questão que nem ele próprio seria capaz de responder com acerto. Sempre que regressa ao lar para os festejos do fim do ano, _ e já faz três épocas em que se envolve naquelas batalhas_ todos adivinhavam a carnificina de lagartixas iminente. Seria aquele um ritual a que se obrigava ou que alguém, ou algum poder oculto, a tal o forçasse? Porque os há, os espíritos, que se apoderam do corpo de um cidadão e dele a mente e a mão tomam para executar as suas vontades, as mesmas que em vida não foram capazes, porque o tempo, as oportunidades e a habilidade para isso não tiveram.

Mas o que estaria por detrás das sessões de amputação daqueles pobres répteis e, ainda por cima, porquê com aquela violência toda?

Mangue fora sempre um homem ambicioso. Esta gula desmedida pelo poder e pela riqueza data da adolescência, desde os tempos em que era pastor das manadas do avô Gonhane. Nos campos era de exibir valentias_ todo jactâncias e estilos_e de propalar conhecimentos sobre tudo e sobre todos. Açulava os rapazes, uns contra outros, em brigas para dividir amizades e camaradagens. As melhores pastagens eram para os seus animais, os melhores frutos colhidos nas matas iam parar à sua boca, aos restantes reservava sempre o papel de servos dos seus caprichos. Dizia, de modo a todos escutarem, que, quando crescesse teria aquela região a seus pés. E fazia-o com aquela voz de bode, de timbre grave, que emanava do peito e ressoava na garganta como uma salva de trovões e que parelhava com o seu corpo avantajado, conjunto este que a muitos intimidava. As moçoilas do lugar tinham-lhe em simultâneo admiração, paixão e medo.

Não lhes respeitava a graça, o recato, e muito menos a castidade. Servia-se de artimanhas e de ameaças para conseguir os seus intentos, e esses eram os da exploração do medo e das fraquezas dos outros, das manipulações das fragilidades dos que dele necessitavam. Muitas fez, e muitas outras ficou por fazer, até à primeira viagem para as minas do Djone, em Caltonville. Em resumo, era um troca-tintas, um divisionista ambicioso e insuportável!

Nos compondes ao redor daquele complexo mineiro envolveu-se em pelejas que lhe deixaram marcas no corpo e no espírito. Bateu e foi sovado; pisou e foi pisado, esfaqueou e foi esfaqueado. Era a experiência de luta pela vida e pela sobrevivência que se acumulava. Aprendeu que para ser bem sucedido não podia voltar as costas à luta, que necessário era abrir o caminho à catana, porque esta vida é mesmo uma selva, onde apenas sobrevivem os mais fortes. O seu estandarde é o dos que acreditam que melhor é morrer do que ser derrotado.

Naquela quadra festiva_ a quarta depois do início daqueles surtos_ Mangue foi de novo acometido pelas crises dos ataques às lagartixas.

Aquelas, porém, distinguiam-se das anteriores por uma estranha singularidade.

As primeiras etapas do sono de Mangue são uma viagem tranquila e paulatina para um universo envolvido por uma atmosfera de penumbra, onde as imagens de eventos do dia e de pessoas se embrulham e confundem entre si. Nada que tenha algum sentido material, apenas sombras disformes que flutuam num encantamento, a caminho da inconsciência. Mas eis que, às tantas, ele penetra no isolamento de um descampado, ou então acha-se perdido nos labitintos dalguma povoação.

O seu corpo agigantado volve-se ora para esquerda, ora para a direita, e mostra sinais de um atarantamento, como se desconhecesse ou duvidasse dos caminhos a seguir. É um ser erguido na praça do nada. Os olhos vasculham para o lado nascente; daí vem a claridade avermelhada do nascer do dia; quando se volta para poente a escuridão intercepta os horizontes. Do norte e do sul a névoa leitosa da cacimba oculta mistérios.

Na mão empunha a catana companheira dos combates. Da retaguarda detecta movimentos. Então assiste àquela procissão de seres que rastejam ao seu encontro. São seres de fantasmagoria, semelhantes àqueles que se inventam nas estórias. Pequenos, porém, são incontáveis, multidões de caudas de lagartixas que se sustentam na marcha, cada qual sobre a sua muleta. Mancam em silêncio porque não possuem bocas com que falem.

Suas vozes emudecidas levaram-nas os restos dos seus corpos. São animais mutilados de membros e de palavras.

Mangue agita-se na esteira, não desperta, todavia. O seu sono é de chumbo, paralisado nos instantâneos do hipnotismo da surpresa. Estuga uns passos em direcção à fuga. A sua, porém, é evasão para o universo doutros desfiles. Na sua intercepção marcham cortejos de espectros: os de cabeças decapitadas de pessoas que se reconhecem na névoa dos horizontes: as dos pastores do seu tempo, as dos rostos transfigurados das mulheres que violou, os dos traços severos e disformes dos homens a quem de bens usurpou, as das crianças cujos pais imobilizou de ferimentos nos combates em terras longínquas. Não possuem corpos com que se ergam, apenas flutuam, tais balões, ao compasso da revolta. As bocas entoam cânticos de um cancioneiro de protestos: “…queremos os nossos corpos de volta…o que são as nossas cabeças sem corpos que movimentem?…o que são os nossos corpos sem membros que os agilizem?…queremos a nossa dignidade….queremos ser inteiros…”.

Neste transe, Mangue esboça corridas de escape. Esbarra, porém, nas muralhas do cerco do seu próprio pesadelo. Desfere golpes de catana contra a revolta dos mutilados em levantamento. É uma batalha desigual a que trava: grita por socorro, brada maldições na correria desenfreada.

Hoje em dia, ele é um homem que não dorme, prisioneiro duma insónia que o acompanha pelos dias fora e pelas noites dentro, com receio do seu próprio descanso. Vela a queda na cascata da desgraça. Se concilia sono, deste desperta em grandes sobressaltos, e galopa alucinado, em fugas para a cerração dos matos, em pelejas contra as imagens dos súbditos que subjugara e abusara com o fim de angariar glórias e acumular fortunas, os mesmos que então reclamam pela devolução da dignidade que ele lhes usurpou.

 

In “ Contos Profanos”. Alcance Editores, 2023.

As ondas possuem uma propriedade conhecidíssima, transportam energia, sem necessariamente, transportar matéria. Na sua propagação as ondas cantam a história da Humanidade, os sonhos de um povo, os gritos dos escravos e a fantasia das sereias. O mar se veste a rigor e comunica. Explica aos insulares o sentido da musicalidade, e aos continentais, que toda a vida terrestre depende do mar. As ondas, vaidosas, fazem a comunicação mais eficiente e nítida que conhecemos. A vida é uma onda.

Gimo Abdul Remane Mendes, de seu nome extenso, curiosamente, a meio de um nome islamizado, manteve o Mendes. Ele é um profundo conhecedor do mar, seus segredos e alma, e dos ciclos das ondas como ninguém. Entende as lições das marés baixas, os perigos das altas e o silêncio de marés mortas. Nasceu escutando e decifrando os sons das pristinas praias de Mossuril, vila adjacente ao litoral que, em tempos de cordialidade, bate de frente com a majestosa Ilha de Moçambique, essa antiga capital e berço de tantos mistérios e ritmos que enfeitiçam.

A cidade de Nampula, capital e Rainha do Norte, esse ponto de entroncamento para onde convergem todos os eixos sociais, culturais e económicos, na realidade da sobrevivência, celebrou mais um aniversário. Mês de Agosto. O maior presente que a cidade e província, hoje, tão descaracterizada, ainda, poderiam oferecer, com originalidade, aos naturais e visitantes, são as suas vibrantes vozes e talento musical do litoral e do interior. Artistas que simbolizam a prova maior da miscigenação que repescou o mais nobre de dezenas de povos e culturas. Mas, Nampula não produziu nem centenas, e, muito menos, milhares de vozes de ponta. Foram só dezenas que, com algum privilégio, atingiram patamares nacionais, continentais ou até mundiais. Os que lograram atingir esses pódios, fizeram-no, à perfeição, com marcas que flutuam sob o anonimato dos ventos, no fervor das geografias e dos ciclos lunares que beijam as ondas.

Gimo Remane esse iconoclasta e dono de uma voz arrebatadora que, cantando na sua língua original, Emakhuwa, se autorizou a ser perseguido por uma sonoridade secular, a viajar com a serenidade e calmaria do tufo requintado, enfim, prendeu-se a uma entoação que balança e requebra as cinturas, sempre com o rigor e vigor de uma voz que não teme os ventos. Ele se converteu-se, por mérito próprio, num dos maiores, quem sabe, no mais bem-sucedido artista da província, além-fronteiras, com distinções e premiações bem-sucedidas. Ele quis ser original e pagou bem o preço de ser erudito. Com a banda original que ajudou a estruturar e criar, tão original quanto icónica, o Remoinho, Eyuphuro, cantaram e encantaram Nampula, Moçambique e o mundo. Vivíamos os primeiros anos do sonho da libertada e da identidade cultural, da independência, quando, ainda, deslumbrados viajávamos no comboio azul da revolução entre o Setembro da vitória, e o Junho da explosão.

Nampula celebra sua festa de elevação a cidade a 22 de Agosto. Gimo abraço o mundo a 23 de Agosto de 1955. Mês e época dos ventos das monções, e de todos os recomeços. Seu Pai Abdul Remane António Mendes, enfermeiro, na época com o título oficial de auxiliar de enfermagem, era o alquimista que cuidava da saúde de uma população discreta e constituída por pescadores e camponeses, que acreditavam em outras formas e poderes para tratar de suas mazelas. A espiritualidade e o misticismo de outros poderes divinos.

Sua Mãe, Lina Abdulremane, filha de Tove Jensen Mendes, um sul-africano que também andou por Mossuril, e que teve influência na educação da sua mãe. Ela era de profissão mais liberal e que cuidava da família, e dos assuntos mais domésticos, era de uma linhagem das lideranças locais reforçada pelo lobby que tinham junto do governo colonial. Ela foi a primeira responsável por incutir, no seu filho, o gosto pela música e pela educação cultural que ele preservou até à actualidade.

Convenhamos, Gimo Remane, nasce, então, numa época e com uma família mediana e com as condições bem mais que suficientes para ter uma vida digna e regrada. O primeiro infortúnio na sua vida regista-se com a partida prematura de seu Pai, Abdul Remane António Mendes. Gimo tinha (2) dois anos. Este vazio foi sentido pela família com pela vila de Mossuril. Gimo, com lamenta, não tem a oportunidade, nem a menor possibilidade de conviver com seu Pai e, muito menos, desfruta das inúmeras histórias que este tinha para contar. Esta ausência nunca foi substituída e a família se ressentiu dessa perda. Para compensar, viveu dos fascinantes episódios contados pela sua Mãe e pelo avô Mendes, das brincadeiras dos amigos e da sabedoria de um povo que nunca abandona as crianças. Esta época difícil molda sua personalidade e sua postura.

Mossuril cresce e prospera como vila, com mercados vigorosos de peixe, oleaginosas e verduras, e como ponto de transição, quase obrigatório, para quem se deslocasse de carro para uma das praias mais concorridas da região norte, a praia das Chocas-mar. Na sua infância foi tratado como Gimo Onsiriri, na prática, Gimo de Mossuril, que era já uma forma de o acarinharem e enaltecer aquele espírito de guerreiro. Os nomes que recebemos se transfiguram e moldam personalidades. Respeitado por ser filho de uma família bem estabelecida e de prestígio tem o apoio de todos, mas quer viver a sua própria epopeia. Viveu e fez a sua infância no bairro Onrira.

Ainda, na infância da idade, ele foi herdando as inúmeras e indiscritíveis influências de uma cultural afro-árabe e mestiçada, de povos e mercadores visitantes que, com alguma regularidade, ali exerciam o comércio com os locais. Eram mercadores oriundos de Omã, Índia, em particular Gujarati, Indonésia e Malásia e depois, naturalmente, Portugal que ainda trouxe os goeses e chineses de Macau. Alguns já com residência na região, outros produtos de novas gerações. Mas, chegam, igualmente, de Zanzibar, da Tanzânia e Quénia. Pela Ilha, Mossuril, Lumbo e Angoche saíram, com muita mágoa e dor, milhares de almas moçambicanas que levaram o seu DNA para o mundo. Os escravos. Um cruzamento que espalhou as matrizes culturais deste povo que, fez da sua cultura, uma das mais ricas que Moçambique ostente e se orgulha.
Mossuril era, então, esse paraíso de pura beleza e encanto, um observatório privilegiado para o mar, e em dias serenos, para a própria Ilha de Moçambique e as restantes bem nas proximidades. Mas a vila ganhava vida como porto de chegada de pequenas embarcações, com origem no própria Ilha e outros pontos, como Angoche e Nacala, que ali descarregavam o produto da sua pescaria, do transporte de mercadoria e de passageiros.

As águas de Mossuril tipicamente cristalinas, atreladas a um céu azul-celeste de tirar o fôlego aos privilegiados, era mais que um cartão-postal, mas um delírio criado por Deus. Foi nestas praias e paraíso tropical que Gimo Onsiriri brincou com seus amigos, jogou futebol de praia, viu os grupos culturais de Tufo, aprendeu a arte de pescar, viu Mestres fabricarem embarcações Dhow, e começou a entender que tinha um mundo a seus pés. Maturava sua idade e preparava seu futuro.

Apaixonado pelos grupos culturais locais, ele seguia, com regularidade, as mulheres e os grupos de dança de Tufo, esta espécie de Taarab em Zanzibar, e prestava redobrada atenção sobre o sequencialmente dos ritmos dos tambores. Esta era uma escola natural de preservação cultural, mas um marco indelével de transição de conhecimento geracional. Foi nestas praias de Mossuril que, entre um mergulho e outro na praia, ele começa a libertar sua voz, primeiro para si mesmo, sempre na imitação, depois, para a sua província, seu país e seu mundo. Sua voz de muito instinto, e, alguma rouquidão, parecia seguir essa ondulação, umas vezes se confundido com a voz dos próprios ventos, outras vezes, embalado pelo ritmo daqueles tambores. Cantar era preciso e viver não era preciso. Vivia no limite e aprendia tudo.
Gimo pode não ter tocado viola de lata, como a maioria dos músicos que tocam em áreas suburbanas, todavia, educou seu ouvido para os sons agudos do ritmo Tufo. Viola de lata foi sempre instrumento obrigatória. Os trovadores improvisam seus versos ao som destas violas. Na realidade, todo este litoral sobrevive de Nigungo e Nsope, para além de Tufo, como a base essencial. Estas danças e, amiúde, os grupos que se criam fazem uso e recurso desta acústica de batuques e tambores e, ainda, dos estridentes instrumentos metálicos. Também, usam um apito, que produzindo sons mais graves, parece destoarem, porem, são os marcadores da cadência dos e da execução dos próprios passos de dança. Depois, tudo se complementa com a sensualidade. Existe um erotismo marcante na dança Tufo que se complementa com a educação tradicional ou os ritos de iniciação tão comuns da sociedade matrilinear e de todo o norte do país.

A Mãe Lina Abdulremane toma consciência de que Mossuril, apesar do seu potencial, seria demasiado pequena para os sonhos do seu filho. Era necessário conhecer a cidade e os segredos do colonizador. Conhecer a iluminação e aprender novas línguas. Decide enviá-lo para a Ilha de Moçambique. A Ilha o recebe cordialmente para que ele pudesse beneficiar da magia. Na Ilha dá continuidade aos seus estudos e, posteriormente, para a prática cultural que se impregnara em seus sentidos e sentimentos. Aprende a tocar viola durante uma semana, na casa de um familiar onde esteve hospedado. Depois foi talento natural e o seu ouvido.

Os grupos de Tufo prosperavam e pipocavam em todas as esquinas. Competiam pelos prémios nos concursos da municipalidade. Um dos mais famosos foi o grupo Estrela Vermelha. Perdura até aos dias de hoje. Novas roupagens, mas a mesma sensualidade. Gimo conheceu o grupo e viu suas aparições públicas. Convenhamos, aqui reside o berço da sua criatividade e musicalidade. A Ilha de tantas histórias e poemas, músicos e velejadores.

Se a Ilha de tantas histórias e segredos que lhe abre as portas, de par em par, para o início de uma marcante carreira musical, melhor cultural, foi a cidade de Nampula que o levou para a capital e para os extremos do mundo. Entre a escola, quase única que a Ilha disponha, na cidade de cimento, e a música popular e dos grupos de Macuti, ele arruma tempo para o desporto, para a praia e para a sua religião. Pode não ser devoto, mas é um crente com fé e faz jus aos ensinamentos espirituais. Vive com familiares e aprendem outras lições de vida, de bem-estar e convívio fraterno entre as pessoas. Contempla hortas a fio aquela ponte que parece não ter fim. Obrigatório para os ilhéus frequentaram a praia. Naquelas praias o tempo se deita para contemplar a obra feita por Deus, a generosa mãe natureza.

Mas a Ilha para além de ter o poder de convidar Deus e o tempo para repousaram, ela própria vive num sono interminável. Tudo se faz tão devagar, que parece que todos vivem e convivem parados. Sem pressa e sem velocidades. Pouco ou quase nada acontece com os nativos. As iniciativas, mais ousadas, se originam da perspicácia e sensatez de alguns dos seus filhos que vivem no exterior. Não admira, pois, que todos tentem viver imigrantes. Sonham com Nampula.

O mundo além-mar. Terra firme e onde tudo acontece e o mercado gira. Limitado pelos estudos na Ilha, ele migra para a grande capital. Nampula. Sente esse pulsar de uma cidade que tem de tudo um pouco. Escolas de níveis mais elevados, mercados complexos, ferrovias e representantes de tantos outros distritos. A rádio pode ser captada com nitidez e a piscina do Ferroviário vira o sonho da meninice. Nampula era então o centro ideológico e dos vestígios de uma época de glória. Um novo mundo, ortodoxo, algumas vezes, desregrado noutras.

Em Nampula Gimo não tem tanto contacto com os grupos culturais dispersos, muito pelo contrário, convive de muito perto com o som metálico e vibrante das violas e guitarras eléctricas, das diferentes bandas musicais que proliferam, um pouco por toda a cidade. Na época, José Júlio Patinho, uma espécie de trovador, fazia as delícias das grandes massas. Cantava em português e em Emakhuwa. A Rádio Moçambique, à procura de uma programação mais em linha com a revolução, na época, era única e procurava fazer parte do projecto de unidade nacional. Se subdividia entre tocar os hinos gloriosos da revolução, o substrato da epopeia libertadora, reproduzir alguma música pop internacional, com destaque para a brasileira, Soul e funk americano, que ganhava força. Procurava música dos vinhos como Tanzânia e África do sul. Mas, a moda recaia em Roberto Carlos e Erasmo Carlos.

A música local não perdia espaço, porém, eram poucos os que o conseguiam gravar e fazer furor. Foi a oportunidade para os ouvintes do Norte, numa rádio quase sem potência de difusão e em versão analógica, abriu as brechas para outros músicos moçambicanos como Fany Pfumo, Alexandre Langa, Pedro Ben, Wazimbo e Salimo Muhammad, nosso Simeão que Deus decidiu chamar para os shows no palco superior.
Mas, Nampula tinha as suas bandas e desfilavam em diferentes palcos e casas de pasto. Os dois Jaimitos, incluindo Jaimito Matapa, ainda estudantes, já revistavam o cancioneiro angolano e imitavam Rui Mingas e o famoso Duo Ouro Negro e o Djambo da marrabenta. Copiavam Roberto Carlos. Esta era uma nova forma de olhar para a música, já com instrumentos mais modernos e com amplificação sonora. Gimo Remane se associa a Salvador Maurício e sai em busca do seu espaço. Leva na bagagem seu repertório e acha que outros ritmos como djarimane, namahandga, e o masepua, poderiam fazer furor. Esta veia cultural o distingue dos músicos da cidade. A simplifica e vai às raízes cultivar seu talento.

Salvador Maurício era um etnomusicólogo e se dividia entre a música e uma posição no funcionalismo público da nova e revista máquina administrativa. Tinha a vantagem de estar próximo dos círculos do poder. Gimo Remane equacionou, muito bem, que essa seria uma oportunidade de ouro para se associar a Salvador Maurício, bem conhecido na praça, e, assim, propor essa mistura de sons entre a sua base musical, Tufo, Nsope e Nigungo e musicar esse substrato com instrumentos de percussão modernos, gerando então esse swing africano mais moderno e nem por isso sem raiz cultural. Propôs, então, que o seu repertório tivesse como substrato a língua emakhuwa, apenas, numa época em que a língua local ainda tinha limitações, mas, nem por isso, auditório garantido.

Na realidade, apesar de a língua portuguesa ser conhecida, nunca serviu como factor comunicativo para a grande maioria das pessoas. Cantar em emakhuwa era por demais vantajoso e expressava a força de uma ideologia cultural subjugada. Os músicos do sul do País, igualmente, faziam essa opção.

Não admira, por conseguinte, que esta proposta tenha sido ousada no começo, todavia, muito bem aceite por largos sectores da população que congregava um número significativo de chumbo, Maconde e outros. Essa obsessão pela língua materna pode ter gerado alguma incompreensão. Não obstante, persistiu e com o seu parceiro de ocasião, Salvador Maurício, seguiu em frente e formou a sua primeira banda, o Eyuphuro e gravaram as suas primeiras músicas. No começo, até para os jovens de Nampula, esta era uma banda da Ilha de Moçambique e não da cidade. Depois, pelo sucesso, passou a ser a grande banda de Nampula.

Já decidido e pronto para mostrar seu potencial Gimo Remane, nome pelo qual melhor o identifica, compõe a sua primeira música de sucesso, a famosa Amuara a N’Raki, traduzido como a esposa do Senhor Raqui. Uma senhora que se aproveitava da ausência do esposo para pintar a cara de Mussiro e sair para a rua. Letra simples, mas que tocou os corações de todos. Virou sucesso e teve uma aceitação tremenda. A meio de tantos géneros musicais aquela proposta musical vincava e marcava o seu pedaço e espaço. Decorria o ano de 1981 e iniciava uma carreira sem precedentes e arrasadora.

No mesmo ano Gimo Remane sente que poderia explorar outros limites em outras geografias. Numa aventura e achando que tudo seria fácil viaja para o Maputo. Tenta a sua sorte junto da RM e da EME de Eduardo Mondlane Júnior, o grande promotor musical da época, com equipamentos de ponta e que era responsável pela promoção de um vasto conjunto de jovens músicos. Moçambique começava a passar por um período de carências. Faltava de tudo num pouco. Era o preço de se ter optado por políticas comunistas, e por se ter ajudado o Zimbabwe na sua luta de libertação. No Maputo tem colosso para enfrentar e um naipe de bandas que não abriam os espaços de forma facilitada.

A RM era sempre quem mais ajudava a divulgar e passava o sucesso do norte de Gimo Remane como esse cartão de visitas inquestionável e indubitável. Não se consegue firmar e regressa a sua cidade de Nampula. Por alguma razão, nem sempre bem compreendida, entra, igualmente, em rota de colisão com Salvador Maurício. Mas, nessa altura já tem outros integrantes de peso para a sua banda Eyuphuro. Esse remoinho capta Omar Issa, um talentoso guitarrista de enorme tarimba e com muita criatividade, que havia tocado em outras bandas de Nampula, e era dos mais serenos e ponderados e exímio conciliador. A experiência de Omar Issa, já falecido, e a criatividade de Gimo Remane assentam como uma luva. Era o ponto certo e o catalisador de uma nova e auspicia realização. Para gáudio dos seguidores, Nampula ganhava uma bandas que tinha estrelas e reputação.

Não tardou, por conseguinte, que esse remoinho tivesse efeitos demolidores. Gimo Remane, eventualmente, continuava fazendo essa incessante busca por novos talentos. Surgiram Mussa Abdala, Chico Ventura e Belarmino Monteiro. Estes dois já na eternidade. Nesta safra, surge Zena Bacar e Aida Humberto. Zena com a voz mais sensual, que não precisou de um segundo convite para provar seus dotes. Se firmou como a voz feminina do Eyuphuro e autêntica estrela nacional. Cantava deslaça, qual diva, e isso ajudou a popularizar o seu talento. A aposta se manteve em maquetizar ritmos do litoral e buscar temas sociais relevantes. Nampula ganhava, quiçá a sua melhor banda dos tempos modernos, um veículo promotor da cultura local, e o remoinho que parecia não ter fim. Saíram de um espaço de conforto e conquistaram o mundo.

As carências trouxeram as organizações não-governamentais e outros expatriados para todo o país. Nampula não foi excepção. Recebeu vários, de entre russos e vietnamitas, escandinavos e holandeses. A cidade tem algo que atrai estrangeiros. Deve ser a forma liberal de estar e viver. Entretanto, para Gimo Mendes e sua banda Eyuphuro sobreviver de música virou tarefa árdua e quase impossível. Os patrocínios sumiram, o Estado descapitalizado era a solução, e só mesmo os shows geravam alguma limitada receita. Nem os direitos de propriedade eram respeitados. Era música do povo e todos poderiam usufruir.

Gimo Remane se apaixona na época por uma jovem que, mais tarde, virou sua esposa. Charlotte original da Dinamarca. A esposa cedo entendeu que deveria apoiar a veia criadora do esposo. Redobram as suas responsabilidades na continuidade do Eyuphuro. Fazem algumas campanhas para angariar apoios. Era a forma que a esposa Charlotte encontrava para ajudar o Homem de seu coração e o grande amor de sua vida. Ajudava de forma directa, primeiro, seu namorado, e depois esposo, a financiar o grupo e minimizar as limitações financeiras graves. Na sua rede de contactos permitiu que o grupo chegasse aos festivais de Verão na Europa e, mais tarde ao tão desejado World Music project, de quem o Eyuphuro foi um dos grandes representantes de Moçambique, a semelhança dos Ghorwane.

O mundo clamava por novos sons e estas propostas de Moçambique agradaram a equipa de Peter Gabriel. Eyuphuro ganhava nova vida e embarcava para um rumo que parceria ser de arco-íris e sem final a vista.
O World Music era nada mais e nada menos que a música de origem e circulação não ocidental. Eram as canções das minorias, de outras latitudes, dentro desse mundo musical tão complexo e dominado pelo pop, rock and roll e a musical country.

Nos shows na Europa o Eyuphuro ganha notoriedade e visibilidade. Tocavam os corações pela ligeireza de suas canções, seus trajes religiosos e uma Zena que encantava com sua voz de ouro. Começam com shows arrebatadores na Escandinávia e logo chegam ao coração da Europa. Gravam seu primeiro disco entre 1989 e 1991 nos estúdios de gravação Mama Mosambik, ainda hoje temos como um dos trabalhos musicais mais tecnicamente irrepreensíveis. Esta possibilidade abre espaço para eles incorporem outros sons da província, tais como o djarimane, namahandga, e o masepua. Estes ritmos são requintados com outro dinamismo harmónico como são os casos do swing africano e esse híbrido latino e árabe.

Para a Europa era um outro pop vestido de outras harmonia e sonoridade. Peter Gabriel que foi o vocalista do Genesis e enveredou por uma carreira a solo, tendo-se afirmou como um dos mais carismáticos artistas da época, aproveita este potencial da música africana e como produtor de vídeos ajuda a divulgar a música do Eyuphuro e o remoinho é reconhecido em toda a Europa.

Na primeira digressão para a Europa eles permanecem cerca de seis meses em tournée. Visitam a Holanda, Dinamarca, Bélgica e Suécia. Foram gravados dois álbuns, nessa longa digressão e as dinâmicas do grupo, sem reservas, passou a ser entre Moçambique, que pouco tinha para oferecer, financeiramente, e o ocidente de onde vinham o grosso de receitas da banda. Gimo Remane recorda esse momento e fala do apoio imensurável da sua esposa, que não sendo das lides musicais, procurou formas de patrocinar a banda no começo. Charlotte tem, por conseguinte, o seu mérito na afirmação da identidade do Eyuphuro, e nas apostas ousadas que foram efectuadas noutros continentes. Aliás, os primeiros instrumentos que a banda usou foram produto da generosidade de amigos e de alguns expatriados da esposa de Gimo Remane. Gimo recorda, também, que tudo isto permitiu que criasse diversas composições, porém, muitas delas ficaram por gravar.

Gimo Remane era o baluarte do grupo. Fazia os arranjos e compunha. Mas era, igualmente, o produtor, pois, ele próprio, assoberbado, cuidava de organizar as digressões e a venda dos álbuns. Eyuphuro já era uma grande certeza no panorama musical nacional e isso exigia robustez, coordenação e musculatura financeira mais ajustada. A economia de guerra e o início de um processo de democratização do país criaram, ainda, mais problemas de sustentabilidade do grupo. A existência do público crescia intra e extra muros. Mas, existia algo mais profundo e grave. A pirataria musical. Todos os seus CDs apareceram no mercado negro. Internamente, pouco ou quase nada conseguiam lucrar, porque num mercado musical desregrado e instável nunca tiraram proveitos. Então, a base de sustento eram sempre as digressões e os proveitos dos discos vendidos além-fronteiras.

Em 1992, Gimo Mendes opta pelo mais difícil na sua vida e carreira musical. Vai viver com a esposa Charlotte para a Dinamarca, na cidade de Aarhus, na costa este da península de Jutlândia. Esta a segunda mais importante cidade da Dinamarca. Desde, então, aqui se radicou e trabalha. Trinta e três (33) anos de uma residência condicionada pelo amor e matrimónio, e que ditaram a prolongada ausência das lides musicais moçambicanas. O cenário musical moçambicano passou a dispor de Gimo Romane esporadicamente. A sua banda Eyuphuro, qual remoinho que perdia a força, foi sobrevivendo de esporádicos convites, até desaparecer do cenário musical de forma física. Assim são os remoinhos, concentram sua máxima forma no epicentro e depois, só a cauda faz os últimos estragos, até que enfraquece para que novos remoinhos possam surgir. Esses sons das profundezas do mar se enfraqueceram de forma irremediável. Zena Bacar continuou cantando no Maputo, emprestada à diferentes grupos e actuações quase oficiais; o resto da banda se desfez para a tristeza da cidade e província de Nampula. Eyuphuro virou memória, mas seu inigualável repertório musical perdura para sempre.

Na Dinamarca Gimo Remane estudou música a nível superior e criou um estúdio próprio. Recorre aos amigos e estudantes para a produção de suas músicas, além de realizar concertos um pouco pela Dinamarca e outros países. O melhor, ainda, tem sido o facto de ter começado a leccionar em algumas escolas de música no continente africano. Pai de dois filhos, ele os influencia para a música igualmente. Todos os filhos de peixe sabem nadar e os naturais de Mossuril entendem de música.

Nas poucas conversas que temos mantido, ele fala da Artist Take Action, uma associação de carácter cultural e humanitário que, de entre outros, procura congregar diferentes sensibilidades culturais e liberais para estimular esta ligação com a cultura e o seu Moçambique que não sai do Horizonte. Consegue apoios para aparições em Moçambique, porém, sente que essa forma esporádica de dar corpo a sua criatividade musical é insuficiente e ineficaz. Mas, dá os passos certos, sem nunca querer exagerar e dar um passo maior que a perna.

Gimo já saiu de Nampula como um Rastafarian. Manteve essa tradição até aos dias que correm. Convicto e com fé de gigante. Rastafarianismo por vezes tido como uma designação ofensiva, longe de nos querer injuriar, equivale, então, a essa religião judaico-cristã com origens afrocêntricas. Está convencionado que surgiu na Jamaica, na década de 1930, entre negros descendentes de africanos escravizados. A sua legião está espalhada um pouco por todo o mundo e Gimo, de forma consciente, mantém os traços de uma longa juventude da qual ele não quer se excluir.

A sua produção continua profícua. Mais se assemelha a um imperativo de consciência. Recebo músicas que ele produz e que, certamente, deve estar preparando um novo álbum. O último álbum que lançou em Moçambique, data já de 2014 ou 2015, e se designava raízes da minha terra. Uma crítica ao que tem sido vinculado no ocidente sobre o continente africano, colocando como local de guerras, epidemias e fome.
Mas, igualmente, surgiu como um tributo à Nelson Mandela. Pode ser que o álbum não tenha feito tanto furor, num momento em que o país experimenta novos cordões, época de modernidade, ritmos como Pandza e Amapiano, com exuberante influência sul-africana, para não mencionar os sons dançantes de Angola. Mas, diga-se, de passagem e em abono de verdade, que o novo naipe de músicos, mais jovens e com recursos tecnologia, oferecem linguagem ajustada à juventude, comunicam melhor, fascinam as mentes com repetições e batidas repetidas. Cada época transporta suas as aspirações. Gimo ainda teria muito para oferecer ao seu país.

Na sua longa estadia na Europa, Gimo Mendes continua ganhando prémios e diferentes menções honrosas. Já foi outorgado e laureado como melhor artista africano do ano na Dinamarca, no longínquo 2009. Antes, fora distinguido com o prémio Danish World Music, em 2007. Mais recentemente gravou o CD Melo, que significa amanhã, em Emakhuwa. Ele próprio define esta nova obra como pertencendo aos espaços e épocas onde os seres humanos se reencontram, as ideias florescem, e se recriam na intersecção e na compreensão. Assim se criam os laços de fraternidade e comunhão. Esta atmosfera de que a vida carece, para que, sejamos todos parte desta humanidade sem distinções de raça, credo e traços culturais.

Nas diversas entrevistas e blogs onde se podem ler entrevistas que o artista, amiúde, providencia, sem dúvidas, vale recordar sua apreciação sobre o estágio actual da música. Na sua opinião, grande parte dessa música espelha uma certa apatia da nova vaga de músicos em investigar ou mesmo recriar o património rítmico moçambicano. “Não tenho nada contra ninguém que compra um computador e programar os sons que o japonês fez para começar a cantar. Aliás, muitos nem cantam, só falam com uma certa musicalidade. O que não aprecio é isso estar a passar como identidade musical moçambicana, porque não é”. Assim desabafa Gimo Remane ao mesmo tempo que faz um apelo para que a nova geração preste mais atenção às suas raízes culturais. Na prática, Gimo Remane vive com algum descrédito sobre a evolução da criação cultural mais aturada. A tecnologia, aqui e em toda a parte, começa a colocar essa pesquisa etnológica e cultural, como parte de uma história distante.

Quando as estrelas reluzirem e o crepúsculo se der por vencido, porque o arco-íris intercala as tardes e noites, deslumbrarão as emoções deste povo saudoso e inconformado, que não pretende esquecer as suas estrelas que ecoaram pelos vários cantos desde mundo. Gimo Remane é um deles e devemos essa gratidão pelo que fez pela música local, mas, o que continua fazendo na formação de jovens na Europa e, de certa forma, noutros quadrantes. Enquanto, não chega aos 70, cuja cerimónia será realizada aqui na pátria que o viu nascer, a sua carreira musical será, eternamente, feita de encontros e desencontros, porem, com as esperanças e certezas de que, o seu talento, perdurara para todo o sempre.

 

Numa tarde ensolarada, o vento fresco dançava suavemente, entrando pela janela da minha sala como um sussurro sedutor. Eu estava reclinada no sofá, imersa num filme, mas o calor era tão intenso que o meu corpo parecia afundar na superfície, pesado como se não tivesse descansado a noite inteira. Os meus olhos, por sua vez, tornaram-se pesados como se fossem depósitos do mundo, lutando contra o chamado do sono que crescia a cada instante. O vento, que antes era apenas uma brisa leve, começava a assumir um propósito contrário. Entrava no meu espaço, carregando consigo uma paz inquietante, como se me convidasse a mergulhar num poço de tranquilidade. A cada carícia da brisa no meu rosto, a resistência tornava-se mais difícil; deixava-me levar, presa numa teia de sonolência crescente.

Finalmente, a inevitável rendição chegou. Fechei os olhos, e a linha entre a vigília e o sonho desfazia-se. Não sabia se realmente adormecera ou se tinha sido transportada para um mundo além da compreensão. Uma sensação de confusão envolvia-me, enquanto imagens começavam a fluir diante de mim. Acima de tudo, o que eu realmente sabia era que havia algo ali, nas profundezas do que contemplava, algo que pulsava com uma energia misteriosa e intrigante. O que seria aquilo? Um sonho premonitório ou um vislumbre de outra realidade? Sombras dançavam à periferia da minha mente, e a cada instante, a curiosidade tornava-se ainda mais intensa. O enigma estava apenas a começar a revelar-se.

Foi então que me apareceu um homem, envolto em lágrimas, o seu semblante transparecendo uma angústia profunda. A dor interna que o consumia era tão intensa, tão opressiva, que senti as lágrimas surgirem nos meus próprios olhos, sem sequer compreender o porquê. A expressão dele falava por si, revelando que o peso da tristeza e do desespero que carregava era colossal, como se ele fosse o portador de toda a dor do mundo ao qual pertencia. Sem pensar, abracei-o, unindo as nossas almas naquele instante de desespero compartilhado. Juntos, chorámos numa sinfonia de lamentos que ecoava na vastidão daquela realidade. O seu sofrimento ressoava em mim e com cada lágrima que caía, uma parte do seu fardo parecia transferir-se para mim.

À medida que a sua tristeza se acalmava e permitia que me aproximasse ainda mais, aproveitei a oportunidade e com a voz ainda trémula perguntei-lhe o que havia acontecido. Que tormento o trazia até ali a partilhar o seu fardo comigo? A expectativa enchia o ar e eu sabia que a resposta iria desvendar segredos ocultos e histórias de dor que precisavam ser contadas.

Nesse instante, ele perguntou-me: “De que vale o direito à liberdade de expressão num mundo onde não podemos efetivamente exercê-la?” O seu olhar penetrante refletia um desespero profundo e ele não se ficou por ali. Prosseguiu: “Por que consagramos esse direito no documento mais importante do nosso mundo se no final somos obrigados a falar aquilo que se chama ‘o politicamente correto’?” Fiquei sem palavras. As suas questões reverberavam em mim como ecos dolorosos, desafiando as certezas que eu trazia comigo.

No mundo de onde eu vinha, a liberdade de expressão era um direito inalienável e um pilar da nossa sociedade. Ali podíamos exercê-la sem amarras; éramos fiscais das políticas públicas e responsáveis por garantir que os interesses da coletividade fossem sempre respeitados. O confronto das nossas realidades era avassalador. Ele falava de um mundo onde as vozes eram silenciadas e onde o medo da retaliação transformava as palavras em correntes.

Perguntas sem resposta enchessem o ar entre nós: O que acontece quando o direito à liberdade de expressão e outros direitos fundamentais se tornam meros ideais? Conceitos bonitos em papel mas distantes da vivência quotidiana? O silêncio que se seguiu foi pesado e repleto de um entendimento mútuo. Cada um de nós trazia fardos invisíveis; máculas de um mundo que muitas vezes nega a verdadeira essência do ser humano.

Um diálogo formava-se não apenas sobre palavras não ditas mas sobre o próprio significado de sermos humanos. Cheia de curiosidade e questionamentos, aprofundei a conversa ansiosa por compreender melhor aquele mundo oposto ao meu. Pedi-lhe para me falar mais sobre a sua realidade e ele começou a narrar um relato atingindo o âmago do seu ser – uma história sobre o próprio filho.

Contou-me que em meio a um conflito feroz onde as vozes da maioria lutavam por interesses diversos, o seu filho abraçou uma causa em defesa dos que não tinham voz. Dotado de conhecimentos científicos que lhe conferiam uma posição privilegiada para desafiar os opressores, decidiu usar esse poder para lutar por justiça. Era um jovem corajoso; alguém que ousou confrontar o sistema. Mas essa bravura não levou à recompensa; muito pelo contrário.

O choque profundo veio quando ele revelou: foi assassinado e tratado como um indigente; como se nunca tivesse sido filho ou amigo de alguém. Fiquei horrorizada. No mundo de onde eu vinha aqueles que demonstravam tal coragem eram celebrados como herois; recebiam medalhas e reconhecimento.

A imagem desse jovem morto sem alarde e esquecido era dolorosa demais para suportar. As perguntas começaram a fluir em minha mente como um rio tumultuoso: Que mundo era aquele? Como podiam existir realidades tão distintas onde o valor da vida e a coragem eram reconhecidos de formas tão opostas? O seu relato deixou-me assombrada; empatia pelo seu sofrimento brotava em mim criando uma conexão intensa.

 

Desabei em lágrimas incapaz de suportar aquele relato devastador quando ele disse: “Não chores ainda porque eu tenho mais a relatar…” Explicou que o filho se envolveu naquela luta com o objetivo de tornar o seu mundo um lugar melhor para viver mas também tinha a história da sua filha por contar… Um frio na espinha percorreu-me ao ouvir aquelas palavras.

Começou então a narrar outra história aprofundando-se num tema perplexo: a injustiça sofrida pela sua filha. O sofrimento dela era um dano permanente, pois naquele mundo horrível o dinheiro era mais valorizado do que a saúde de alguém da sua cor.

Confusa, interpelei-o: “Cor? Como assim?” Ele respondeu afirmativamente; sim, em seu mundo a cor da pele determinava como se era tratado. No ambiente corporativo essa característica tornava-se decisiva para numerosas questões; os negros eram vistos como meros instrumentos; mão-de-obra descartável.

Aquilo me indignou mas pedi-lhe para parar pois eu já não suportava ouvir mais sobre aquilo. Contudo ele implorou para continuar apenas para concluir sobre sua filha: “A minha filha“, disse ele com os olhos cheios de tristeza “que eu tive completa hoje está incompleta porque a sua cor não lhe foi favorável…”

As suas palavras pesavam no ar; um lamento reverberando em mim como grito por justiça. O sofrimento descrito era mais do que relato pessoal; era testemunho de uma realidade cruel e inaceitável.

A cada frase uma imagem vívida daquele mundo desafiador surgia… Eu sentia com ele angústia de quem luta contra o sistema opressor. O choque foi tão grande que joguei-me ao chão e depois de alguns minutos, apercebi-me que estava no chão em frente ao sofá onde estava reclinada, incapaz de levantar-me sem sequer entender a qual mundo pertenço.

Eu não sei qual mundo pertenço – se ao de dor e injustiça descrito por aquele homem ou ao de liberdade e igualdade que eu própria descrevi. Mas agora entendo: essas vozes precisam ser ouvidas; a luta pela verdade e pela justiça não deve ser silenciosa.

Cada lágrima derramada, cada história contada ecoa necessidade urgente mudarmos aquilo que nos divide. O que farei agora, caro leitor? Tornar-me emissora desses relatos; porta-voz da compaixão e da justiça para juntos transformarmos essa realidade garantindo que nenhuma vida, nenhuma luta seja esquecida? 

As liberdades exercem-se conquistando-as e conquistam-se exercendo-as, pacificamente ou em força…

Falamos de futuro, e de tudo que dela provém. Chega-me a imagem de um futuro sombrio, difícil, cheio de penumbras. As incertezas só tendem a aumentar a cada raiar do velho sol, que já presenciou tanto dos humanos. De várias posições e disposições em contrário com o renomado escritor Mia Couto, nada nem ninguém lhe pode tirar a razão no que disse à agência Lusa quando afirmou que o próximo governante irá governar ruínas, físicas como humanas. Com a crescente onda de violência, já começamos a ver marcas de futuras ruínas…

Escrevi que tudo nesse país tendia ao caos, em análise da obra “a pomba não pousou”, de P’fuka. Talvez, tudo não passava de um pequeno prenúncio de tempos em que o caos reina. No meio de fumo, de lágrimas, de dores, de opiniões e tudo que caracteriza Moçambique actualmente, a rapper Iveth Mafundza lançou, no último 23 de Outubro, a obra musical intitulada “em marcha”, como um guia para um futuro, em que pela situação actual, parece utópico, feito de liberdades.

“Em marcha seguiremos/ Em marcha alcançaremos liberdade/ Em marcha venceremos / Em marcha alcançaremos liberdade” (Coro, por Zezé Christ)

Iveth não foi diferente daquilo que já nos habituou, directa e pontual, mas, dessa vez, colocou em música os discursos que cada dia que passa se levantam de diferentes lugares sociais, ora são médicos em marcha, rogando que se pare com a matança do povo, ora são advogados pedindo justiça, ora são artistas que se juntam.

Iveth recoloca-se como mais uma voz que se levanta contra tudo que acontece, principalmente a ameaça da liberdade. Tudo move-se, talvez estejamos todos em marcha. Como nos lembrou Severino Ngoenha, conquistadas as independências, segue-se o caminho às liberdades, numa perspectiva filosófica. De todas as formas de liberdades, Severino Ngoenha imagina as liberdades ‘historicizadas’. Na dificuldade de explicar esse posicionamento, limito-me a relacionar a mesma com o verso de Iveth, em que [os novos governantes africanos] “Promovem boladas e magnitude; e aniquilam o então sonho da negritude”.

Iveth diz que o que outrora foi o sonho que conduziu as nações africanas com seus intelectuais, e sua ideologia de soberania e identidade própria (negritude), acompanhado de ideais de igualdade, liberdade e justiça, foi aniquilado. E isso, para Ngoenha, é um erro: “[…] é também errado não avaliar suficientemente ou destruir os vestígios do passado” (Ngoenha, 1993).

O país está em marcha, isso só não vê quem não quer ver. Mas, não sei se dou razão a Mia Couto ou a Iveth, a indecisão acompanha-me e não sei por onde passa o futuro cada vez mais arredio: Vitória ou ruínas? O que se sabe, até então, é que o país continua em marcha. Pegando os nossos vestígios do passado, não sabemos se é esse surge et ambula que o nosso Noronha tanto cantou para a África.

Iveth principia o segundo verso da seguinte forma: “Sonho de Nkrumah e os demais, que ficou nos anais, da história que olvidais”

O sonho de Nkrumah passava por unidade africana, cidadania comum (socialismo?), e uma África onde nenhum africano seria estrangeiro em qualquer parte de África. O que se fez com esse sonho de Nkrumah? Ficou apenas nos anais e enterrado, como a própria Iveth afirma, aniquilado. Parece que, aos olhos de Ngoenha, ainda cometemos os mesmos erros, como continente, e, em particular, como moçambicanos, quando enterramos o sonho de Samora Machel e, com ele, foi-se o sonho de uma república popular, sem desigualdade social.

Também escrevi que Moçambique tornou-se um novo campo de opiniões e cruzamento de pensamentos, reflectindo a dita democracia. Só havia me esquecido de afirmar que é um campo de forças, sangrento, e violento. Por exemplo, “se levantas, dizes o que não se diz, perdes emprego, família por dizer o que não se diz” (Iveth, Em marcha, 2024 mp3). E mais ainda, o emprego te perde, e a família acaba enterrando-te. É em nome de que todo mundo tem o direito de falar, de cantar, de pintar, de ilustrar, até de fazer o que agora faço, que é escrever, que me cresce o desespero de um país intolerante e aparências autoritárias, que abomino a morte de Elvino e Paulo. Acho que não deixaria passar, seria um auto engano se o fizesse, porque, mais do que para políticos, essa é uma ameaça ao artista, que cria e fala, sem se preocupar com a mentira ou verdade.

“Será que existe liberdade, se não tens liberdade de escolher em liberdade o que liberta? Quando optas por liberdade, libertam brutalidade, tamanha barbaridade fica alerta” (ibidem). É dessa forma que a rapper questiona um país que se diz estar blindado de liberdades fundamentais. E uma dessas liberdades que se tem hoje discutido é a dita liberdade de expressão, também não fica atrás a liberdade de reunião e manifestação, como também ressurge, aos poucos, o abuso da liberdade de circulação livre e incondicional do Moçambicano.

Parece que olhamos todos, calados, esse direito a ser arrancado nas nossas mãos quando nos é exigido uma guia de passagem. Na verdade sempre existiu, entre becos e outros lugares, as pessoas sempre foram interceptadas e questionadas o seu destino, a diferença é que hoje é feita ao céu aberto.

Em análise do discurso na linha francesa (AD), comunga-se da ideia de que uma formação discursiva é perpassada por outras formações discursivas, dentro de uma formação ideológica, acrescenta Pêcheux. Tomando essa canção como um corpo discursivo, ouvimos vários discursos que o perpassam, como o discurso de Nkrumah com a unidade africana, o discurso futurista (futurologia de Ngoenha, talvez) quando diz “para que os filhos dos meus filhos, e os filhos que tiverem os filhos dos meus filhos”.

Usando a ideia de filhos como referência do futuro, porque, naturalmente, um filho é sempre a próxima geração, então o filho do filho dela é um futuro ainda mais longínquo. Esse discurso futurista está dentro da ideologia de Azagaia. Não cá intenções de explicar o facto de eu considerar Azagaia como se fosse já uma ideologia.

Contudo, ao ver a notícia do lançamento dessa música, pensei, antes de tudo, em Azagaia. Talvez porque ele também tem uma canção intitulada marcha. Mas, também, deve-se ao facto de ele ser um guia de marcha em direção ao futuro, as suas músicas serem hinos de moralização dos que protestam. Mas, de um coisa eu tinha a certeza, ao longo da música ouvia um pouco de Azagaia, provando que todo discurso é perpassado por vários outros discursos. Em termos mais práticos, diria que o discurso de Iveth é perpassado pelo discurso de Azagaia, Nkrumah, por exemplo. Só no fim é que Iveth invoca Babalaze e Cubaliwa, quando dá o testemunho ao futuro (os filhos dos meus filhos) das batalhas travadas e que “[…] nós tombamos, levantámos, lá chegamos, nós marchamos” (Iveth, 2024).

Babalaze e Cubaliwa são álbuns discográficos do falecido Azagaia, e, lembra-se, que a causa da sua morte é epilepsia. Mais incrível ainda é que Iveth menciona a epilepsia como estudada na necropsia. Estando essa menção directamente com o verso “quando se diz o que não se diz”, levanta uma possibilidade de que a explicação da morte do Azagaia é fabricada, mas, na realidade, caiu mesmo por conta da sua verticalidade no pronunciar da morte.

Com essa música, Iveth manda uma mensagem para os que a ouvem de que as liberdades, se não existem, são condicionadas. E fica cada vez mais claro que uma liberdade condicionada não está pronta o suficiente para ser considerada liberdade.

Até então, Iveth dá imagens de um presente onde as pessoas, da liberdade, só tem apenas o sonho. E só sonho alimenta a estrada, como escreveu Mia Couto, “pois mais vale estar atrás das grades [com o sonho de liberdade], do que ser livre e se sentir atrás das grades” (Flash Enccy). Com sonhos ou outras coisas que não sei o que são, apenas sabe-se o que acontece actualmente, o país está em [grande] marcha.

Tenho estado a acompanhar o desenrolar da fita dos eventos que marcam a actualidade sociopolítica do país. Nela, sobressai nitidamente o papel da imprensa nacional, marcada pelo desempenho individual de jornalistas ou analistas políticos, que se perfilam nos painéis de debates televisivos e radiofónicos, quase todos em conformidade com as narrativas político-partidárias pelas quais nutrem simpatia ou militam. E, muito de forma “avulsa” nas redes sociais, como o Facebook e WhatsApp, engajam-se outros fazedores de opinião que, regra geral, também se alheiam à análise isenta dos fenómenos. Historicamente tal disposição vem herdeira do cenário criado logo após a assinatura dos Acordos de Roma, em 1992, ano igualmente do lançamento do primeiro jornal independente, MediaFAX, distribuído via fax. Em 1994 é lançado o semanário Savana e o Demos, surgindo daí muitos outros jornais independentes. Um cenário de proliferação dos media em Moçambique conduziu a um posicionamento dos jornais, de acordo com os interesses de cada bloco partidário. O Domingo, tendo a sua paternidade ligada ao partido no poder, Frelimo, direccionou a sua linha editorial a favor deste, em oposição ao semanário Savana, conotado com a oposição, de acordo com Juarez de Maia, citando um relatório da ONG Article 19, que acrescenta, enquanto o Savana pertencente a uma cooperativa de jornalistas da Mediacoop, representava o extremo oposto, anti-governo, de modo geral.

Hoje, a media electrónica também herda essa polarização, pois com a proliferação das televisões e rádios, o anterior cenário se clonaria, com a Televisão de Moçambique a pontificar num extremo, em oposição às televisões privadas, que recai aqui o interesse de tratar apenas dos seus painéis de debatedores que evoluem ao longo das suas edições semanais. O cenário se exacerba no favoritismo que se pode imputar a essas duas naturezas de órgãos. Em seus painéis, numa espécie de replicação dos meramente discursos partidarizados da Assembleia da República, neles não se discute o país, senão os posicionamentos de cada painelista, segundo a sua orientação partidária. Como consequência, esses debates partidarizados conduziram à castração de um sector da intelectualidade moçambicana, temerosa do simples exercício de pensar o país, longe da umbrela dos posicionamentos político-partidários. Não nos referimos aqui à acção castradora de grupos como G40 e outros milícias das redes sociais, disfarçados em historiadores e outras credenciais de natureza académica. Assim, não afastado o espectro dos problemas de cariz social que grassam o país, sobretudo naquilo que ao comum dos cidadãos constitui preocupação, habitação, educação, saúde, alimentação, transporte, o executivo relaxou, anestesiado, de certa forma, pelos argumentos de painelistas arregimentados, ou pela falta de vigor do principal partido da oposição, apanhado na teia da inépcia ou do conforto de benesses. A explosão de dupla deflagração apanhou, no dia 9 de Outubro em diante, a Renamo e o partido no poder nas urnas e nas manifestações contestatórias sem precedentes. Agora, o actual contexto pós-eleitoral evidencia a complexidade dos problemas que os fazedores de opinião andaram a camuflar ao longo dos tempos, a maquilhar, ou a policiar a sua discussão no seio dos diferentes círculos de pensamento na sociedade moçambicana.

As contestações que ganharam maior expressividade no dia 24 de Outubro, logo após a divulgação dos resultados pela CNE, remetem à ideia de que já não há necessidade de se continuar a dar ouvidos a esses fazedores de opinião de cariz propagandístico. A título de exemplo, choquei-me ontem com a publicação do jornalista e “analista político” Gustavo Mavie, que tende a continuar a infantilizar o cidadão moçambicano, induzindo que esteja simplesmente a ser manipulado pelo ocidente, tendendo a velha estratégia de seguir maquiando os problemas, procurando também vender a ideia de que SAIBA PORQUÊ AS MARCHAS DE VENÂNCIO MONDLANE SÃO MUITO TEMIDAS, MAS JÁ NÃO SÃO AS DA FRELIMO E DOS MADGERMANES, com a qual infunde que  “O que provou que as marchas convocadas por Venâncio Mondlane são temidas pelas pessoas, é que as que a FRELIMO convoca, como as que se realizaram no sábado último dia 26, não levaram as pessoas a ficarem em casa. As pessoas circularam à vontade, e as lojas estiveram abertas, como estiveram os mercados formais e informais”, mas todo aquele que pode ver com alguma equidade sabe que a manifestação do passado dia 21 foi pacífica até ao ápice em que a polícia desatou a açoitar os manifestantes com gás lacrimogéneo. A omissão aqui da acção que desencadeou a confusão visa, como sempre, maquilhar um problema, ora a traduzir-se não tão-somente na má actuação da polícia.

É de se entender que se Venâncio incita o povo à violência, antes esses pronunciamentos propagandísticos, ou lambebotícos, podem ter contribuído para que os sucessivos governos fossem cada mais insensíveis às aspirações populares. Este é o tempo preciso para que alguns “analistas”, pelo menos por alguns meses, observem um período sabático, de modo a dar lugar à lucidez, a fim de que esta possa conduzir o país, sem ruídos, ao caminho do entendimento e da paz.

Por outro lado, com a ascensão do PODEMOS à categoria de partido com assento parlamentar, novos ventos sopram e com eles novas vozes de candidatos a novos milícias, e parecem interessadas somente em mudar o sentido da propaganda e nisso iniciam o pré-interrogatório. Há dias publiquei, na minha conta do Facebook, o poema “FÁBULA DE FIM DO JOGO: Um irmão de vermelho por fora/Frenético dança vitória/Seu irmão de vermelho por dentro/Enérgico marcha mesma vitória / (…) / De prata a taça da vitória / E de ouro o sangue que irriga o brinde / Numa cruzada de fogos de artifício! E, para meu espanto, um amigo da plataforma foi logo interpelar-me com a questão: “De que lado da fábula estás encostado?”

Buscar saber de um escritor o seu posicionamento político-partidário é no mínimo inqualificável. Não pertencer a um partido político não significa passividade perante a violência contra terceiros. Por isso o meu poema e, como escritor, respondo agora: encosto-me à minha própria consciência, essa consciência que liberta o homem para interagir com o meio como cidadão, sem olhar as cores partidárias. Finalizo reafirmando que este não é tempo para discursos de anacrónicos comissários, venham eles de que partido for ou quadrante, pois agora, como se não nos bastassem os nossos próprios comissários políticos, interfere um Agualusa a afinar a voz ao canto bolsonarista. O nosso País atravessa uma grave crise, o momento requer serenidade e não distracções de malabaristas discursivos em busca da perenidade ou de lugar ao sol: Tirem já umas férias!

Terminou, na terça-feira, a odisseia da selecção nacional de futebol de praia no Campeonato Africano da modalidade, prova que decorre na turística cidade de Hurghada, no Egipto. Naquela que foi a sua terceira presença na elite do futebol de praia africano, Moçambique entrou com o pé direito na competição vencendo o Malawi, por 4-3.

Depois derrotou a Mauritânia por 4-3, resultado alcançado nas grandes penalidades depois do empate a três bolas no tempo regulamentar. Os resultados, diga-se, positivos contra o Malawi e Mauritânia colocavam Moçambique a tocar o céu e sonhando, naturalmente, com uma possível presença nas meias-finais da competição.

Havia, no entanto, uma selecção chamada Senegal pela frente, uma intransponível e autêntica muralha para o combinado nacional. E voltámos a cair! Desta vez, por 3-6. Moçambique vinha de um ciclo de três derrotas contra o Senegal, duas no CAN em 2021 e 2022 e uma na COSAFA, também em 2022.

A queda do país no “africano” não deve, de forma alguma, ser tratada como um mero assunto e algo que se circunscreve apenas na delegação que esteve no Egipto. É, para mim, um assunto de Estado.

Como nação, somos chamados a reflectir sobre o rumo que queremos dar ao nosso desporto, particularmente o futebol de praia. Há, neste momento, mais quedas que conquistas. Sempre terminamos no quase e nunca chegamos lá. E sempre esbarramos num muro de betão que se chama Senegal e nunca no muro da nossa vergonha.

Enquanto pessoas do bem e desportivamente cultas, há imperativas e inevitáveis perguntas que nos devemos fazer. De onde viemos e onde pretendemos chegar? Qual é projecto para o futebol de praia? Essas perguntas ajudar-nos-ão a reflectir sobre o quanto o caminho das vitórias precisa de planificação, diga-se, muito séria.

Temos de repensar a modalidade no país. É urgente! Não se justifica, por exemplo, que, num país com 2800 quilómetros de costa, o futebol de praia seja praticado apenas na Cidade de Maputo e, como senão bastasse, de forma amadora e fruto de iniciativas de algumas empresas que usam a modalidade para promover os seus produtos.

É, no mínimo, estapafúrdico. Já temos exemplos de fracasso do hóquei em patins, cuja modalidade é também praticada na capital do país, gravitando em quatro clubes, Estrela Vermelha, Académica, Desportivo e Ferroviário de Maputo.

A Federação Moçambicana de Futebol (FMF) sempre vendeu a ideia de que há um projecto de massificação do futebol de praia à escala nacional, algo que nunca passou da teoria à prática.

Enquanto isso não acontece, continuaremos a viver de conquistas esporádicas e continuaremos, acima de tudo, a ver os países da região a agigantar-se na modalidade, tal como o Malawi.

Em 2022, exibimo-nos à África, ao acolhermos o “africano”, em Vilankulo. Dois anos depois, a arena construída para sediar a competição virou um elefante branco. É mais um investimento subvalorizado no desporto. Ainda assim, a FMF pretende construir mais uma arena, em Maputo, com o argumento de piscar o olho às competições internacionais.

Parece-me que somos exímios em organizar competições e em estendermos o tapete vermelho para os outros brilharem. Essa é, se calhar, a única coisa que as futuras gerações poderão tirar da gaveta das memórias quando um corajoso mal-aventurado decidir falar da história do futebol de praia em Moçambique.

Repensemos o futebol de praia, meus senhores!

Com Elvino sem dia, Venâncio Mondlane voltou a paralisar o país e sem comunicado oficial do governo. Moçambique e suas instituições não acordaram esta segunda-feira. Desta vez não foi necessária aquela nota habitual da mãe Talapa, o povo respeitou a si mesmo e preferiu fazer de noite o dia de segunda-feira e continuou nas mantas.

Ninguém foi visto nos mercados e nem sequer nas barracas, as principais avenidas do país andaram nuas em pleno dia habitual de agitação. Os bêbados trancaram a sete chaves a ressaca do fim-de-semana, as senhoras vendedeiras de sopa nas esquinas não mexeram nas panelas, as padarias drenaram o pão da segunda na noite de domingo.

Por horas, Moçambique foi paredes de Hollywood e deu lugar a cenas de cinema. A famosa Avenida Eduardo Mondlane, na Cidade de Maputo, andou abandonada pelos seus praticantes, a OMM foi palco escolhido para o início da encenação. Os bairros da Mafalala, Urbanização e Maxaquene não permitiram que o dia fosse chamado de pacífico, os moradores lideram os pequenos tumultos registrados pelo menos na capital do país.

Se em Nampula a polícia andou sem emprego, durante o dia de segunda-feira, em Maputo o cenário foi contrário. Os agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) voltaram a usar as máscaras e lançaram a tonelagem que conseguiram de gás lacrimogêneo. Por seu turno, e munidos de armas AK-47, a polícia de protecção preencheu o vazio deixado pela ausência de gente nas principais praças de Maputo. Xiquelene apareceu no Comando Geral da PRM, ao avaliar pela quantidade de homens fardados e encapuzados.

Tal como ninguém guardou dinheiro nos bancos, que permaneceram lacrados e bem guarnecidos, as escolas não produziram conhecimento no primeiro dia útil da semana. Não houve tanta necessidade de combustível para abastecer, carros não pisaram as estradas, aliás, dos poucos que ousaram circular, foi para transportar os funcionários de sectores imprescindíveis e poucos destes dormiram nos gabinetes.

Para além de Elvino Dias e Paulo Guambe, mortos que ainda dormem na morgue do Hospital Central de Maputo, alguns dos mortos acordaram para ver o país paralisado. Azagaia foi um deles, as suas músicas fizeram coro em algumas passeatas em algumas avenidas do país. O povo pediu poder em todo local que passou.

Com as urnas fervilhando, o calor dos votos que esperam validação por parte dos órgãos eleitorais, após o escrutínio de 9 de Outubro, o país respeitou a voz de um homem ainda sem credenciais para governar. Venâncio Mondlane foi ouvido por todos. Ninguém saiu à rua para contrariar a voz de comando saído da boca de um engenheiro.

O país parou para pedir emprestado o poder, o que há muito está nas mãos de um grupo que diz ter ainda vontade de governar.

Pelo o que ouvi por aí, segunda-feira foi o início de vários dias de paralisação que Moçambique ainda vai fotografar. Situação é preocupante, o mundo não tira olhos da terra de Mondlane e Samora, afinal de contas o que está por vir?

Patriotismo, patriota, seja lá como for, ambos são termos tratados de uma forma muito estranha no seio da sociedade em que vivemos.

Na escola ensinam sobre estes conceitos? O que sei é que se recomenda aos professores e demais agentes engajados na luta pelas causas sociais e patrióticas, a falarem sobre o assunto, de modo a levar ao aluno, à criança e população em geral, o espírito de “amor à camisola.” Estes ensinamentos são prioritários para qualquer que seja a nação.

Hoje, os moçambicanos, do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico, vivem como se de abelhas se tratasse – só sobrevive quem for o primeiro a poisar na colmeia (de um mel, ora meio-docinho, ora muito amargo); uma colmeia que ninguém, antes, se preocupa em deixá-la em segurança ou com pouco de tal mel.

Hoje, os moçambicanos, negam-se entre si. Alguns dos nossos, filhos, primos, irmãos, sobrinhos, pais e avós, recusam-se, à todo o custo, de pertencerem à família, fazendo de tudo para que o famoso tecido nacional que, com pedra-à-pedra, construímos, caía num abismo de brasas ardentes. Tudo por nada. Absolutamente, nada. *Morre-se, mata-se e silencia-se, patrioticamente, o sentimento patriótico.*

Para não citar todos e me esgotar da pouca paciência que me resta, a ausência de valores é observada, por exemplo, no arrancar de almas humanas, assalto às instituições públicas, nas “corrupções” geradas sei lá por quem, já que existem acusações na busca dos culpados, na ausência de uma educação linear e na falência cultural da sociedade.

E por falar de instituições públicas, veio-me um dos prenúncios do saudoso Presidente da República Popular de Moçambique: “Para ser funcionário do aparelho de Estado, antes de tudo, é ser servidor do povo, os que revelem disciplina, competência, honestidade, sentido de responsabilidade, respeito e cortesia no trato com o público, pontualidade, espírito de aprender, o Estado, não pode ser o asilo dos incompetentes e dos inúteis, não pode ser o refúgio dos indisciplinados.”

Esta profecia do saudoso presidente, já nos é uma aula completa sobre o ser patriota – aquele que ama seu país e procura servi-lo da melhor forma possível. Então, o patriotismo vai se inclinar mais para um sentimento voluntário, unilateral, de amor e pertencimento. Revela a disposição de entrega à causa da pátria.

Entretanto, olhando para estas definições, fico nas lamúrias e nos escombros daquele tempo em que existiam realmente cidadãos dispostos a ver a sua nação unida.

Sinceramente, é uma lástima, ouvir nas conversas, por aí, que o país tem dono. Tudo é relegado aos que governam. Será mesmo porque acreditamos nisso ou são as nossas construções e experiências (negativas e/ou fracassadas) de um passado vivido de forma particular que nos ditam isso?

Analisemos com bom senso e, tomando em consideração os valores da nossa pessoa individual como membros desta pátria. Se generalizarmos as coisas, então, estragamos tudo.

Estragamos ainda mais quando fazemos da nossa pátria uma amante com intenções obscuras, individualistas e antissociais, ao invés de, pelo menos, acompanhá-la ao ritmo dos nossos passos. Ao invés de passarmos a gritar, de um lado para o outro, que a nossa Educação tá-se mal, mantermo-nos calados e trabalharmos em silêncio para reverter a situação com um espírito optimista e visão de um futuro promissor.

É certo, pelo menos para mim, que o país se tem dilatado cada vez mais, tem-se tornado um campo de opiniões divergentes e convergentes. Primeiro que o país é sempre feito de opiniões, isso não é de hoje. Contudo, essa possibilidade de divergência torna esse país já num campo de força, num lugar mais belicoso, para ser mais ou menos hiperbólico. E isso tem os seus motivos, desde a bem dita (ou a maldita para outros) democracia, a liberdade de imprensa, a liberdade de opinião, o direito à informação e outras coisas relacionadas, cujos moçambicanos lutaram e lutam para ter.

É nesse prisma em que percebo e interpreto o acrílico s/tela, 150 x 150 cm, do artista plástico Vovo’s. Com o título “Cruzamento de pensamentos”, além dessa mensagem político-social, resguarda também em si uma outra interpretação possível, talvez menos plausível por conta do contexto, que é a sua exposição “Vozes da inclusão”, que é uma proposta para se pensar artisticamente o desenvolvimento do país.

A interpretação ‘não plausível’ dá conta de uma personalidade desintegrada ou de uma alma em que o Eu não é o senhor da sua própria casa, como imaginado por Freud, e atacado por pensamentos com diferentes origens, entrecruzando-se. Essa perspectiva, sugere que a mente é um lugar onde a sua funcionalidade foge do controlo do Eu. O quadro oferece-nos esse lado interpretativo, “Um cruzamento de pensamentos”, onde as várias figuras de cabeças desenhadas não passam de metáforas de múltiplos “Eu’s” que compõem um sujeito. Cada Eu fala na sua própria voz, às vezes, desrespeitando os outros Eu’s e criando esse dumba-nengue de pensamentos na cabeça.

O quadro nos sugere também isso, que nós somos habitados por várias vozes, vários pensamentos e múltiplos Eu’s dentro de nós. “Eu sou vários. Há multidões em mim. Na mesa da minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles”, esse versículo, atribuído à Friedrich Nietzsche, mostra também, por um dado momento, essa fragmentação da personalidade. Um outro texto poético atribuído a Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, intitulado “Odes”, também mostra que o humano, talvez, tenha esse cruzamento de pensamentos. “Tenho mais alma que uma […]/ Sou somente o lugar / Onde se sente ou se pensa / Tenho mais almas que uma/ Há mais eus do que eu mesmo”. A própria figura de Fernando Pessoa é um dos exemplos dessa fragmentação da personalidade, em que se decompôs em vários heterónimos, cada um tendo a sua própria voz e estilo.

A psicologia, actualmente, chama isso de transtorno de personalidade múltipla (Transtorno de identidade dissociativa), em que um indivíduo apresenta duas ou mais identidades, basicamente. Acho que posso parar por aqui, pois sinto que vou na direcção contrária daquilo que o título e o primeiro parágrafo sugerem.

Na questão político-social, que é a interpretação mais provável e plausível da obra, o autor, ao meu ver, propõe duas perspectivas ligadas entre si: a inclusão de outras vozes para a construção do país e retrata a actualidade e/ou a realidade desse Moçambique, até porque o próprio quadro foi pintado em 2024.

Antes de muito, seria interessante dissecar um pouco a imagem. Vovo’s apenas pintando cabeças, não o faz, parece-me de uma forma vã e inconsequente. Pelo contrário, parece tratar-se de um puro linguista usando da pintura para explicar, implicitamente, a metonímia/ sinédoque (até para os próprios linguistas ainda há zonas de penumbras em que não se sabe bem onde uma termina e onde começa a outra).
As cabeças têm uma função referencial, numa primeira conotação. Ou seja, Vovo’s usa-as para tomar referência dos ‘pensamentos’. Não se trata de uma aula de figura de linguagens, mas acho imprescindível para desfazer essa interpretação. Entende-se por metonímia como uma parte pelo todo (essa definição é dada ao sinédoque, às vezes, mas Lakoff e Johnson tratam como se fossem a mesma coisa), isto é, nesse caso, toma-se cabeça por pessoas.

Contudo, há muitas partes que podem representar o todo. Por exemplo, poderia ter usado as mãos, as pernas, o peito, as costas, a barriga, mas usou as cabeças. Há uma razão para tal. Se usasse outras partes do todo além das cabeças, certamente teriam outras conotações porque “a parte seleccionada determina que aspectos do todo estamos enfatizando” (Lakoff e Johnson in metáforas da vida cotidiana, p. 93). Com isso diria que essa escolha das cabeças para representar as individualidades e singularidades traz aspectos como inteligência, erudição, raciocínio, ideias, opiniões ou, como sugere o autor, pensamentos.

Por aqui já se torna clara a intenção do autor com essa pintura, uma das duas: ou sugere ou retrata. Ou pode até ser as duas coisas em um. O importante a notar é que a obra pode retratar/sugerir um Moçambique que se torna, cada vez mais, um campo aberto de opiniões. Aqui, vou trocando opinião e pensamento indiscriminadamente, pois acho que um pensamento proferido já é uma opinião. As figuras, também, têm essas características, algumas figuras estão de oca aberta. Denunciando assim a fala, o discurso e o proferir, conferindo-me uma certa coerência. Contudo, outras figuras aparecem de bocas cerradas ou mesmo sem esse dispositivo que se parece com uma boca. Isso pode significar que alguns opinam e outros não. Isso pode parecer um tanto forçado, contudo há uma mensagem que conta da dualidade de critérios: uns podem falar e outros não.

Essa obra lembra-nos a democraticidade do nosso país, ou o que deveria ser (sugestão). Os novos democratas, não só reflectem esse termo etimologicamente, como demos (Povo) e Cratos (poder). Desde já, percebe-se que a música “Povo no poder”, do falecido Azagaia, é o ápice da insurgência artística contra um governo de poucos, que detém todos os privilégios. Esses novos democratas incluem no pacote o direito à informação (imprensa) e o direito à opinião. Essa luta de direito à opinião, em particular, faz-se opinando, e cria-se assim um ‘campo de forças opinativas’.

Não sei se deveria explicar isso, mas um jogo de opiniões nunca pode ser visto como neutro, há um jogo de poder, como fez crer Foucault. É por conta disso que vai sendo, para mim, sempre um campo de forças, onde cada um vai impondo a sua própria verdade, em forma de opinião. Como essa liberdade de opinião e democracia vai abrigando cada vez mais pessoas e seus pensamentos/opiniões, consecutivamente há esse cruzamento: opinião que vai a esquerda, que vai a direito, para cima, para baixo, para frente ou para trás. E esse facto nota-se na ‘não linearidade posicional’ das cabeças, cada cabeça parece que vai olhando para um único lado, criando essa confusão visual que significa miscelânea de opiniões.

As figuras são geométricas com ângulos e linhas de difícil definição, o que confere uma certa abstração (ou total abstração). Esse quadro lembra-nos o cubismo, cuja característica principal é a fragmentação das formas. Fragmentação da personalidade ou dispersão e miscelânea de opiniões? Ambos cabem, mas nos reservamos à fragmentação de opiniões no país. Também se revela uma sobreposição das formas cubistas patentes na pintura, apesar de ser característico do cubismo, se vestisse das analogias da Hermano diria que significam ou hierarquia das opiniões (num viés marxista na luta de classes) ou relações de poder/conhecimento (num viés “Foucaultiniano” na microfísica do poder). Em poucas palavras, a sobreposição de figuras cubistas ou significa que as opiniões nascem de classes sociais antagónicas (dominante – dominado), e que umas das classes possui a hegemonia, ou que há uma dispersão do poder que permeia todo o tecido social, cada um tendo um pouco para cada situação e momento. Sem tentar fazer um exorcismo filósofo, onde irei evocar espíritos dos mortos para me dar a luz nessa ensaio, digo que as duas linhas dão conta de um campo de forças opinativas.

Além dessa miscelânea de opiniões, na pintura vemos zonas de penumbra, de luz e de escuridão, representados por cores castanhas, brancas e negras, respectivamente. Isso vem reforçar essa miscelânea, onde as zonas brancas podem significar zonas de paz, ou acordos. Isto é, zonas onde as diferentes opiniões entram em convergência. E as zonas escuras mostram zonas de conflito e guerra, em que não há acordos possíveis, reflectindo a divergência que caracteriza esse actual Moçambique, principalmente no campo político.

Vovo’s traz-nos cá uma oportunidade ímpar de pensar o país. O seu quadro “Cruzamento de pensamentos”, com figuras cubistas, cores fortes e variadas, vermelho, azul, preto, branco, amarelo ou laranja, traz um movimento, ou um efeito visual dinâmico. Sente-se isso quando se olha por longo período o quadro. Mas também nos fica na mente a ideia de um país que é cruzado e atravessado por opiniões, convergentes e divergentes.

 

 

Avizinha-se o dia 12 de Outubro, o tão esperado Dia do Professor, como se um único dia fosse suficiente para celebrar uma profissão tão essencial. Este ano, a data caiu em um momento inoportuno, em meio às famosas eleições, e em meio ao desgaste das intermináveis horas extraordinárias. Enfim, já votamos, e cada um com sua escolha. Vale lembrar que escrevi este texto e o enviei à redacção deste jornal antes mesmo de começar a especulação sobre quem seria o próximo presidente. Portanto, não me coloquem em nenhuma posição política. Se não há critérios para isso, então, também sou um activista social.

Então, já chega! Cansei. Não quero mais viver de biscates. Esse não é o meu destino. Quero ser professor e viver dessa vocação. Mas, por que parece impossível aos olhos dos outros? Por que não acreditam que ensinar pode ser o alicerce de uma vida digna?

Tenho mesmo de viver de pequenas boladas, de tarefas esporádicas, para conseguir uma casa decente, pagar o transporte, manter a luz acesa, tal como fazem os ilustres doutores de outras áreas? Será que o valor de um professor se resume a migalhas, a sobras de um sistema que não reconhece o poder transformador da educação?

Olho para os profissionais que vivem de seus ofícios, médicos, advogados, engenheiros, e me pergunto: por que o meu trabalho não pode ter o mesmo respeito e reconhecimento? Por que a sociedade insiste em subestimar a importância do professor, aquele que molda mentes, que desperta sonhos e constrói o futuro?

Não quero mais essa vida de incertezas, de correr atrás de bicos para sobreviver. Quero viver do que amo fazer, do que sei fazer melhor: ensinar. Porque sei que a educação é a base de tudo, e o professor, o pilar que sustenta essa base. Não me contento em aceitar menos do que isso.

Chega de viver de biscates! Quero viver de professor. Porque sim, é possível. É mais do que possível, é necessário.

Os títulos, pouco parece, são laboriosos de se formarem, às vezes. Trabalha-se a gestação, e dá-se vida a um texto, e, depois, atrapalho-me no apelido. “Há festa de marrabenta” é um título com alguma história na cultura. Antes de partir desse mundo dos vivos, atestou Ndjindji que já há festa de marrabenta em Moçambique, e que poderia morrer.

É nesse estado anímico em que empresto essas palavras para apelidar o texto na qual irei falar do concerto ‘Noite de marrabenta’ com a banda Unsse, que teve lugar no dia 3 de Agosto de 2024, no Centro Cultural Municipal Ntsindya, em Xipamanine.

Como bons moçambicanos que somos, a direcção do concerto não se desfez, por horas, do traço ‘+ moçambicano’, no que se refere a atrasos. A festa demorou cerca de 45 minutos, quase uma hora, para dar partida. Isso já está tão enraizado no moçambicano que, de forma que não me surpreendeu, a sala começou a ser ocupada por almas, e não mais por mosquitos e moscas, depois do evento ter iniciado.

Ainda no rescaldo do Dia Internacional da Música (1/10), o Centro Cultural Municipal Ntsindya brindou-nos com mais uma noite de muita Marrabenta. Agora, espero que o meu título faça sentido, essas noites de marrabenta são recorrentes no Centro Cultural Municipal Ntsindya, dando um espaço, talvez fixo, para que fazedores e apreciadores desse ritmo tenham um lugar onde festejar o que são. Essa data, parece-me, foi meticulosamente escolhida para fazer ponte entre dois dias festivos: um mundial e outro nacional, que é o proeminente dia 4 de Outubro, o dia em que se assinaram os Acordo Geral de Paz, em Roma.
O evento deu partida com a actuação dos alunos do próprio Centro Cultural Municipal Ntsindya, saudando-nos e mostrando que, até para próximas gerações, a marrabenta ainda será festejada entre palcos desse belo Moçambique. Por ainda serem alunos, fizeram warm up (aquecimento) do palco e do dia, preparando-nos para o que estava ainda por vir, com uma miscelânea harmoniosa (contradição pensada) da velha guarda, e actuais vanguardas dessa arte, a Marrabenta.

Dentre eles, ouvimos a interpretação da música de Humberto Luís, intitulada “Pfumela”, ouvimos a interpretação da música “Elisa”, de Mingas, celebrou-se Mr. Bow e outros como Nordino Chambal, com a música “Mamana”, lembrando-nos, com essa, a honrar ainda mais as figuras maternas. Assim homenageavam-se todas as mães que cuidaram/cuidam dos filhos com muito amor. Desde já, talvez endereçar um obrigado por todos e todas as mães do mundo que, em condições adversas que caracterizam Moçambique, ergueram homens e mulheres. Com isso, joga-se uma nota de recordação, todo dia, é o dia da mãe.
Depois foi a vez da banda Unsse. Há quem disse que Unsse é festa, contudo ignoro se esse é a tradução de Unsse em português (nem sei qual é a língua de partida) ou se Unsse acabou tendo uma extensão semântica e passou a significar festa por conta do tipo de música que essa banda toca. Entre um ou outro, só uma certeza cresceu dentro de mim: houve festa de Marrabenta.

Além do arranque em falso do evento, quando a banda quis entrar e alegrar os que lá estavam, houve também (des)arranjos no momento da actuação. A maquinaria estava desafinada, cabos não conectados e outros inconvenientes que, infelizmente, sucedem.

Veio a música que tanto se esperava. A primeira nota musical da banda obriga-nos a pensar sobre a dualidade erro-perdão. “Nambi dzi hoxile, nambi ndzinga hoxanga” (mesmo se tivesse errado, ou não) alguma coisa que se parece com tolerância era cantada. No final, talvez seja isso uma coisa que poderíamos pegar e tentar repaginar o nosso dia 4 de Outubro. Sem tolerância para os pecados de outrem, não há paz que se aguente. A tolerância talvez seja um dos alicerces de um homem ético. Aqui ética, senhores, não é sinónimo de moral, apesar de se ter feito, por muito tempo, andar de mãos dadas e grudadas. A moral é mais ou menos algo de proibições e obrigações, enquanto a ética, segundo o professor brasileiro Clóvis de Barro Filho, é “a arte da convivência”. Talvez, também, a nossa sociedade necessite de mais tolerância de uns para com os outros, e também para connosco mesmo.

A segunda nota musical o Eu lírico argumenta que a “A lizandzo hi xilondza” (Trad. lit. Amor é uma ferida). Essa música retrata a dor que pode ser o amor, e todos os seus eventos que fazem sofrer quem o porta. Nessa canção, o Eu lírico narra uma história sofrida de amor, em que o seu amado/a fugiu para um lugar incerto. Ouvindo essa música, de longe, ouvia na minha mente o polonês Zigmunt Bauman, quando fala da modernidade líquida, amores líquidos que caracterizam nossos tempos. Umas das suas frases icónicas é a de “tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar” nem mesmo os relacionamentos. Principalmente estes, em que depois de passar a satisfação que trazia no período inicial, procura-se por uma outra relação que traga ainda mais satisfação.

Nessa sociedade líquida, hoje está-se numa relação e amanhã acorda-se com outro. Não estou cá a fazer apologias ao casamento forçado que caracterizou a idade média (na Europa) e a tradição moçambicana retratado, por exemplo, por Dany Wambire em “A mulher sobressalente”, em que as mulheres não possuem volição. Também não estou a retirar a liberdade que as pessoas têm de se separar e se juntar com quem quiserem. Só que as juras de amor são tão efémeras como pó que se dissipa com a ameaça do arejar.

As notas são riquíssimas de mensagens que refletem um tanto a realidade moçambicana, que é de precariedade generalizada. A quarta nota fala da condição da pobreza e pobres (Xisiwana). Primeiro que essa condição de pobreza é notada quando o Eu lírico diz que “a Nina papai, a nina mamana” (não tenho pai, nem mãe). Para os mais atentos percebem que os moçambicanos são, essencialmente, metafóricos. Acho que Lakoff e Johnson (em Metaphors we live by), se tivessem estudado as línguas bantu teriam provado facilmente a sua posição de que a metáfora (figuras de linguagem) não é um recurso restritivamente poético e extraordinário, mas que é de uso quotidiano e ordinário. O “não tenho pai, nem mãe” pode não significar que alguém seja órfão de pai e mãe, mas que essa pessoa é tão pobre que não tem para onde reclamar da sua condição precária porque os seus familiares também são pobres. Essa construção iguala-se a “a Nina munu, novha Xisiwana” (não tenho ninguém, sou um pobre). Não significa necessariamente que essa pessoa é/está sozinha no mundo, mas que, num mundo materialista e capitalista, não tem um parente com capital.

A canção ainda dá nota que um pobre “não reclama”, tem o que lhe ofertam, bom ou ruim, muitas das vezes péssimo, e agradece. Aliás, onde é que irá o pobre queixar? Essa nota musical também levanta questões pertinentes da nossa sociedade moçambicana, onde os pobres sentem-se abandonados, deixados à sua sorte para tantas injustiças que lhes acontecem no dia-a-dia. Não raro se ouve que a justiça (o sistema judicial) não está para os pobres, esses sem pais e mães. A ideia de sem pai e mãe reflecte perfeitamente o sentimento de abandono generalizado entre os pobres, principalmente numa colisão entre ricos e pobres.
Houve festa de marrabenta em Ntsindya. Os batuques, a bateria, as violas criavam ritmos dançantes, em que pessoas saíram das suas cadeiras e requebravam no festejo da música moçambicana. Reflectimos. Pensamos. Mesmo abandonados, tínhamos o sentimento de acolhimento. Além dos inconvenientes, como se diz por aí, foi a cena (agradou).

Queixam se muitos de pouco dinheiro, outros de pouca fortuna,
alguns de pouca memória, e nenhum de pouco juizo

Marques de Marica

 

Empreendedorismo e empregabilidade são, sem dúvida, temas bastante actuais na sociedade moçambicana, com muitos jovens enfrentando desafios no mercado de emprego e empresarial. Hélio Agostinho Mate é um jovem empreendedor especialista em Marketing digital e desenvolvimento Web, que escreveu o livro que tem como titulo “Maputo, o terror dos preguiçosos, o paraíso dos hustlers”, lançado em Agosto de 2024.

O trecho do título do livro “Maputo, o terror dos preguiçosos” possui uma dualidade de interpretações: A ideia de que em Maputo quem for preguiçoso viverá um terror, ou dificuldades para crescer e prosperar, o que é real e motiva os jovens para acção.

Por outro lado, existe uma visão antagónica que também é real. Em Maputo existem cidadãos que despertam ao alvorecer diário, e vão trabalhar. Alguns são operários, funcionários privados, etc., que não são preguiçosos, mas enfrentam terrores como salários atrasados, descontos injustos, terror do transporte, ou seja, existem outros factores que condicionam o crescimento económico do cidadão trabalhador fora a preguiça.

No trecho, “O paraiso dos hustlers”, a pergunta-chave seria: O que é um hustler? A palavra “hustler” é usada desde o título do livro até às últimas páginas do mesmo, porém, o autor não apresentou o seu conceito de hustler, que facilitaria o enquadramento do leitor.

Hustler é uma palavra inglesa, que possui significados distintos. Pode significar um vendedor massivo, pode significar alguém que faz negócios ilícitos. Por outro lado, também pode significar prostituta.
Dentro do contexto e música Hip Hop, hustler tem outro significado: Alguém que trabalha duro para obter dinheiro ou ser bem sucedido.

Julgando por ser o livro sobre empreendedorismo, o autor adopta o último conceito quando diz hustler. A dedicatória do livro é pertinente, uma vez que o autor o dedica a obra a todo jovem com fome de vencer, quer dizer que a juventude é o seu grupo alvo.

O autor emprega uma linguagem simples e próxima a dos jovens, para melhor aproximar as suas ideias à classe, daí a existência de termos como hustler, nhonga, nhonguista, termos do quotidiano juvenil.
Hélio Mate foi assertivo, ao citar que a maior guerra do mundo ocorre na nossa mente, pois é um campo autêntico de batalhas, entre a razão e emoção, o bem e o mal, daí atenta para a necessidade de se nutrir os pensamentos com fé e determinação para posteriormente agir positivamente.

Segundo (Martins, 2017), um pensamento gera uma emoção, uma emoção gera uma acção ou estagnação, para dizer que pensamento bom, origina acções boas e vice-versa.

O autor possui um subtítulo: “A ovelha negra da família”, no qual aborda uma realidade comum nos jovens desempregados: A falta de apoio, o desânimo, descrença em relação às suas ideias, o facto de serem ignorados e menosprezados por todos. Neste trecho, Mate cria empatia com os jovens e alerta-os para usarem isso como motor, de modo a concentrarem-se nos seus objectivos, eliminando distracções e as famosas más companhias.

Mate propõe-nos cinco soluções para mudança de paradigma rumo a uma mentalidade de sucesso: a autoconfiança, a quebra do medo de errar em público, não se importar com o que as pessoas falam, fazer o que tem que ser feito na hora que tem de ser feito e saber atrair o que deseja.

Mate detalha a importância de cada um destes elementos, que figuram no livro como um convite à redifinição da personalidade, à adopção de novas crenças e hábitos, com uma dose repleta de motivação à mistura, para que os hustlers (lutadores) não desistam.

Uma frase bastante cirúrgica, que pode resumir a mensagem do livro, é: Nada se pode negar ao Homem que tem fome de vencer. Esta é uma frase poderosa, que pode acender o nosso desejo e atitude para alcançar algo que parece impossível.

Hélio Mate investe no discurso de auto responsabilização, e auto conhecimento como um caminho que cada jovem deve percorrer para segurar as rédeas do próprio destino. Neste livro, o autor propõe elementos como foco nos objectivos, próposito, disciplina, sacrificio pessoal como virtudes para se tornar um hustler (bem sucedido).

O livro é introspectivo, conciliando o diálogo intelectual interno com desafios externos abordados pelo autor na pessoa do jovem nhonguista, do empreendedor iniciante ou trabalhador.

O livro serve como uma bussola capaz de iluminar na tomada de decisões empresariais e profissionais, possui também uma perspectiva didáctico-filosófica, capaz de dotar o jovem de novas aptidões, pensamentos, emoções e atitudes transformadoras no mundo do empreendedorismo.

O livro apresenta um número considerável de erros ortográficos e de semântica que carecem de melhoria. É importante clarificar neste tipo de abordagens que o perfil empreendedor não cabe a todo o jovem, outros podem ser bem sucedidos como técnicos, gestores e etc..

Ler este livro é uma experiência oportuna, que vale a pena.

Hélio Agostinho Mate é fundador da Mattilo, uma agência de marketing digital e fornecimento de material de visibilidade. Nasceu aos 26 de Abril de 1992, no Bairro Polana Caniço, em Maputo.

Espero que a minha saudação chegue à sua excelência como dose de brasa, para quebrar o gelo e o nervosismo que, com certeza, flui neste momento. Tens razão, presidente, o ambiente é de muita tensão após 45 dias da campanha eleitoral. As mentes não dormem e os corações não param de bater a ritmos anormais, afinal de contas, o país e o mundo estão ansiosos para saber se o senhor irá subir ao governo ou se será um dos seus oponentes.

Alô… Alô, senhor Presidente…

Ouço-lhe com alguns cortes, deixa procurar um sítio com melhor qualidade de rede, tenho muito que lhe falar antes que chegue à Ponta Vermelha. Diriam os jovens da minha idade, “são maningue cenas, presidente”. Então peço um pouco da sua atenção, excelência, creio que o “dejinha” que recareguei é suficiente para o que tenho a dizer.

Presidente…. Ouvi e li atentamente o seu manifesto como se de uma bíblia se tratasse e confesso que não há tanta diferença com o que os seus concorrentes directos foram dizendo no périplo pelo o país. As vossas promessas espelham o sonho de mudanças que os nacionais demandam desde que se conhece como independente, mas algo me inquieta, presidente.

A pobreza é moda em vários países africanos e não só, e a estratégia adotada para a sua irradiação passa por promover melhores políticas de estímulo à economia. Neste pacote, o senhor promete criar postos de emprego, dentre outras coisas. Ouvi as suas promessas por onde passou, e ficou claro que o seu plano para a melhoria da vida dos moçambicanos passa por melhorar a qualidade na educação, saúde, saneamento, ordem e tranquilidade, etc., mas nada ficou claro sobre a devolução da paz em Cabo Delgado.

Presidente, consegue me ouvir?

Sei muito sobre o senhor, mas juro não conhecer o seu partido. Talvez, seja este o momento ideal para pedir desculpas por esta minha repulsa. Mas, garanto ter ouvido atentamente as suas mensagens durante o período da campanha, talvez de forma similar que fiz com os seus opositores, afinal de contas havia necessidade de medir a qualidade nos planos de governação que espalharam pelos distritos do país.

Sobre poucas ideias que propõem, como plano para o combate ao terrorismo, em Cabo Delgado, muitas delas me soam como uma música vazia ou talvez um poema sem rimas. Dizer “caso seja eleito presidente, no dia 9 de Outubro, vou acabar com o terrorismo”, sem explicar de que forma e em quanto tempo pretende efectivar esse objetivo, é mesma coisa dizer que a criança que acaba de nascer vai crescer, sendo um facto lógico.

Alô, senhor Presidente…

Vejo que o senhor é paciente demais e obrigado por me ouvir. Espero que assim seja com o seu povo, que há anos vive desgovernado e com sinais de abandono feito filhos com pai ausente. Continua assim, quando chegar ao poder. Excelências, tem mais um minuto? creio que o meu “dejinha” ainda permite dizer mais alguma coisinha sobre o que o povo espera de si.

Excelência, vê lá o que faz assim que chegar à Ponta Vermelha. Seja executivo e que a indiferença com o sofrimento dos seus governados lhe seja incómodo. Proactividade na busca de soluções dos problemas da nação lhe faria diferente e revolucionário, excelência.

Falo de peito tremido. O povo carece de um líder. Não se viu mais nenhum desde o acidente fatídico, há um sentimento de revolta pelo abandono das políticas públicas, ninguém se responsabiliza pela má gestão das instituições públicas. O seu povo está com medo de perder a única coisa que lhe resta, a soberania, excelência.

Alô, Presidente, sei que o senhor precisa ir. Quarta-feira é dia de votação. Mas escuta aqui, excelência, tenta implementar, no mínimo, uma parcela das suas promessas, e verá com seus próprios olhos que este país lhe será um patrão e o senhor empregado de luxo.

 

“Um homem que foi traído pela vida perde para sempre o dom de sonhar”
In O bebedor de horizontes, Mia Couto.

Peregrinação, do latim, per agros, isto é, pelos campos, é uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião.

De acordo com “Fides Et Ratio” [fé e razão], carta do papa João Paulo II, o termo “Peregrino” aparece na primeira metade do século XIII, para denominar os cristãos que viajavam a Roma ou à Terra Santa [onde actualmente se encontra o Estado de Israel e os Territórios Palestinos], para visitar os lugares sagrados. Desses peregrinos surgiria mais tarde a ideia das Cruzadas, enviadas para “reconquistar” os lugares que os cristãos consideravam sagrados e que estavam em poder de povos de outras religiões.

Para peregrinar há que ter em conta que não se trata apenas do acto de caminhar ou executar um trajecto com um determinado número de quilómetros; é reconhecido que peregrinar carece de se caminhar motivado “por” ou “para algo”. Refere o documento acima citado no seu número 62. A peregrinação tem, assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada pessoa que a executa.

Para o caso em análise, “Os peregrinos da sobrevivência” é um romance de estreia do escritor Francisco Panguana Jr., distinguido com o Prémio Literário Fernando Leite Couto, para o ano de 2024.

O romance é dividido em três partes. Para quem gosta de novelas pode emprestar a designação “capítulos”, o que permite uma leitura prazerosa não só pela dimensão das páginas, mas, igualmente, pelo equilíbrio de páginas, ou seja, os “horários” de leitura são milimetricamente iguais, dependendo, seguramente, das estratégias de leitura que cada um adopta para si.

Afinal, quem são os Peregrinos da Sobrevivência ou peregrinos da desgraça?

O a gente narrativa apresenta-nos uma estória de um professor que decide abandonar a vila de Mutaratu e a sua categoria de funcionário de Estado para tentar a sorte em uma outra região. O professor reclama da estagnação na carreira, perseguição dos colegas que impedem a sua filha de ingressar no ensino primário, falta de reconhecimento dos políticos. Entretanto, entre a expectativa e a realidade, Francisco Panguana Jr. desafia o leitor para um passeio de 192 páginas de conversa, nas quais o ciúme e o conflito armado são cartões de visita para rumar neste passeio proposto pelo autor em um campo narrativo, onde a esperança cumpre o seu dever de ser a última a morrer, enquanto o sonho de Chico Albuquerque palpita nas veias de Mutaratu.

A imagem da capa do livro faz um resumo básico dos envolvidos no universo diegético da narração. Temos o Pai, a mãe e a filha caminhando de mãos dadas, segurando a sua riqueza, três malinhas cheias de nada, resultado dos rendimentos de tantos anos como Professor se resumem nestas malinhas que levam consigo.
Quantos professores em Moçambique não se escondem dentro desta malinha miserável? Esta colocação me faz recordar de um texto que li quando frequentava a sexta classe, não recordo do nome do autor, mas, sei que o texto tem como título “Do giz ao marcador: uma aposentadoria chamada tuberculose”, onde o autor narra uma história sofrida de um cidadão que toda a sua vida trabalhou como professor e na aposentadoria não tinha carro, casa, nem dinheiro de reforma, a sua única riqueza seria a tuberculose resultado do pó de giz que foi inalando ao longo dos 45 anos de trabalho.

O autor suspeitamente conhecedor da mecânica ou da arquitectura quântica do género narrativo mobiliza todos os recursos que prendem e soltam o leitor para divagações e preenchimento lacunar com a realidade do dia após dia, quer do que se vive, quer do que os órgãos de comunicação social e oral transmitem. Não é curioso que a História é contada por uma criança, Khensile, que não foi à escola, que não sabe ler nem escrever. O autor, de forma genial, revela e releva o Poder da Oratura na produção literária. Khensile, que literalmente significa agradecer no Passado, dá jus ao nome pelo papel que ela desempenha na família, sobretudo em momentos de aflição.
Mais do que teias de processos narrativos (prolepses, analepses, encaixes), o autor faz uma mescla lírica que se comprova em alguns excertos.

Trata-se de um romance típico que faz a radiografia e DNA de uma sociedade onde as conflitualidades e tensões situam -se em todos os níveis e extractos sociais. O eixo central da narrativa é uma personagem feminina, menor de idade e sem escolaridade (não conseguiu a vaga porque sendo de Outubro, a lei não permite que fosse matriculada antes de completar os 6 anos, porém, quando a mãe foi à escola no ano seguinte para a inscrição, os agentes da secretaria assumem-na com 7 anos, portanto, com 1 ano amais), mas com um Poder de memória contemplativa e reflexiva, sobretudo quanto acontece primeiro narrando as conversas que os pais têm em casa, as posições, as hierarquias destas conversas com uma masculinidade fazendo o domínio.

O eu dela confunde -se com narrador omnisciente que tem um domínio das outras personagens, quer do seu passado, quer do seu presente e ainda das suas angústias, alegrias e sonhos. A falta de escola permite à personagem a inobservância da moralidade. A personagem fala das suas aventuras sexuais, de forma livre, sem censura. A escola muitas vezes coloca freios em relação aquilo que se deve dizer.

Os dramas das longas filas às sextas-feiras, nas lojas dos que professam a religião islâmica, e aos campos de concentração dos deslocados de guerra, vítimas do terrorismo, as conflitualidades entre o dito tradicional e o modernismo, as práticas de curandeirismo, a religiosidade. O drama da avó Khanyisa, que, sendo cega, continua alimentando o seu filho juntamente com a sua esposa e neta que abandonara o emprego do magistério. Mais tarde é acometida por uma doença rara que a faz pendularmente entrar na medicina moderna, tradicional e caindo na religião sem sucesso. Os parcos recursos da família, fruto do trabalho infantil, incluindo a aceitação para a prostituição na pousada do ilustre Deputado Foraz, que é amigo do Pai (camaradas do mesmo Partido) da Khansile, são gastos na tentativa de recuperação da saúde de quem já não consegue andar a pedir esmola.

Como o azar tem perseguição, a Khensile acaba adquirindo doença do século à semelhança das outras garotas que trabalhavam na Pousada. Felizmente, ela aceita ficar internada no Hospital e mais tarde toma os medicamentos apropriados apesar de algumas amigas suas terem sucumbido e morrido devido à doença”.
A narradora nos convida a viajar para o passado apesar de estar a documentar algo que vê no seu dia a dia. Quando fala das grandes tensões nas filas sextas-feiras obriga, convida o leitor para aquelas longas filas de busca de pão, nas cooperativas de consumo e não de produção da primeira República de Moçambique, registado em “La Famba Bicha”, música do saudoso Jeremias Nguenha.

“La famba bicha? Vateca bicha? Ina, vateca kosse phambeni vanga kona”
[Sim, a bicha anda, mas somente lá à frente onde eles estão].
É que quer nestas filas das sextas ou filas de distribuição de alimentos para os deslocados de guerra também a bicha não anda, ou seja, só lá a frente onde estão os sofridos mais influentes. Nas bichas de acampamento dos deslocados de Cabo Delgado, há um duplo conflito, há aqueles que conseguem perfurar as filas, outros arrancam comida dos que conseguem.

O sentimento do pai da Khensile em ter de partir não é diferente do que se relata na música “Sala”, de Jeff Maluleke. Narrando todas as vicissitudes de um povo sofrido que muitas vezes passa por dificuldades da vida que obrigam a abandonar a sua família para ir a busca do pão em uma terra distante. Mas, diferente da estória cantada pelo Jeff Maluleke, o pai da Khensile pelo menos tinha emprego só que quis coisas a mais na Terra Prometida que só viu miséria, atrás de miséria para além da guerra. Aliás, viu sua mãe acometida por doença rara, viu sua única filha infectada por doença do século, viu seus parcos suínos entregues numa igreja na tentativa de salvar a sua mãe. Estas e outras peripécias são encontradas na obra “Os peregrinos da sobrevivência”.

Em suma, “Os Peregrinos da sobrevivência” é uma obra literária única e simbólica. Ela traz uma imagem forte de resiliência, jornada e superação de desafios, o que pode ser uma óptima metáfora para nos apoiarmos uns aos outros em situações de crise e para que possamos superar as dificuldades burocráticas e legais impostas pelas instituições e circunstâncias da vida.

 

Conheci Mélio Tinga por volta de 2010, quando estudava na Escola Secundária Kisse Mavota, arredores da cidade de Maputo, onde com um grupo de colegas criou uma associação de escritores e poetas. Anos antes, aquela escola fora conhecida pelo fenómeno dos desmaios. Estes que, curiosamente, ocorriam somente com as meninas, dividindo opiniões quanto às suas causas.

A versão popular _ fazendo jus ao nome da escola _ dizia que os desmaios resultavam do “beijo” dos espíritos. Aquilo era maquinação das almas dos zimpetos, os primeiros ocupantes do lugar, ofendidos com a implantação da escola no seu antigo khokholo (fortaleza) sem prévio pedido de licença. Não se sabe ao certo como se ultrapassou o imbróglio, que acordo se fez com os espíritos insurrectos. A verdade é que estes recolherem às sombras, e aquilo parou com a vida na escola voltando ao normal.

Tempos depois, Mélio me ligou. Convidava-me para padrinho da sua associação de escritores e poetas. Abracei a causa com todo o gosto. O entusiasmo daqueles jovens era do tamanho do Monte Binga, mas Mélio terá sido dos poucos, senão o único, a sobreviver àquela euforia. E em algum momento o seu caminho mostrou-se maduro. E como recomendam alguns dos personagens das suas obras, inspirando-se nas crenças que vem dos mais velhos, ele seguiu sem “olhar para trás”.

Pelo dito atrás, para quem partilhou o espaço com os duendes na Kisse Mavota, não admira que o fantástico seja o lado mais saliente da sua escrita, a qual inclui títulos como O voo dos fantasmas (2018), A engenharia da morte (2020), Marizza (2021), Objecto oblíquo (2022), Atravessar a pele (2022), Como sombras e cavalos a levitar (2023) e Névoa na sala (2024).

Mesmo reconhecendo que boa parte destas obras, duma ou doutra forma, já mereceu a atenção da crítica, em razão da cumplicidade com o autor antes aflorada, nos obrigamos a deixar registadas para o público leitor as nossas impressões.

O voo dos fantasmas, seu primeiro livro, inicia em Nélida e prossegue com os contos A casa dos fantasmas, Os gatos de Mhum, O pobre e os seus amores, O fantasma Baskeville, Fora dos trilhos, Chuva, A morte de Kheisho, Milagre e O hambúrguer que matou Jorge. A sua leitura ajuda a aflorar as características mais significantes na escrita de Tinga.

“Nélida era peluda como um cão”. Logo na frase inicial a força da hipérbole, esta que, aliada à prosa fantasiosa, será pedra angular no estilo do autor. As frases são elípticas, breves e dizem as coisas de forma crua. São cunhadas de modo a perdurar na mente do leitor.

Nélida serve de denúncia à criminalidade que grassa nos nossos bairros. A protagonista _ ”contracena” com aquele que parece ser o alter ego do autor _ que dá título ao conto tem um fim trágico: assaltada e violada na casa onde aparentemente vivia sozinha, morre no hospital.

O conto seguinte, A casa dos fantasmas destaca a capacidade de criar e manter uma atmosfera convincente, com o retrato das emoções duma família em luto após a morte do pai do narrador da estória. Este, a mãe e a avó _ à irmãnzinha de cinco anos a inocência parece isentar da dor _ vivem o momento com mágoa e resignação. Esta morte expõe a decadência da casa, “assombrada por maus espíritos”, a decadência que parece estender-se ao resto da comunidade (sociedade) e, quiçá, da nação à volta.

Em Os gatos de Mhum está-se perante uma escrita ágil, geradora duma atmosfera penumbrosa, onde os olhos dos gatos brilham intensamente. O ataque fatal dos animais, supostos serem de estimação, ao dono Mhum e seu parceiro do projecto de filme, não tem explicação. O sócio de Mhum e narrador desta estória ainda teve tempo de ligar à polícia, para que esta, sabe-se lá, fosse prender os homicidas, mas como em tudo que mete gatos, o conto acaba em mistério.

O pobre e os seus amores retoma o tema clássico em que o amor esbarra nas diferenças de classe social. Um rapaz de nome Bismeu, apaixonado por uma rapariga chamada Dimera, arranja uma forma de se aproximar dela: pede trabalho ao seu pai, um deputado, do qual “ninguém sabia como arranjara tanta riqueza, em tão pouco tempo, em terras pobres.” O tema do amor serve como pretexto para dar azo à denúncia do enriquecimento ilícito.

Em O fantasma Baskeville um homem é encontrado morto numa canoa. O morto que todos parecem desconhecer. E a quem as autoridades negam um enterro condigno, permanecerá balançando ao sabor das ondas. Este é o exemplo de como muitas das estórias de MT têm fim aberto.

Em Fora dos trilhos, um jovem repórter vai ao local dum acidente ferroviário. Após registar e publicar a notícia do trágico acontecimento, vem a saber que afinal tinha uma ligação de primeira ordem com uma das vítimas. Como diz ele: “Soubera momentos depois de minha mãe que o maquinista era meu pai.” Ora, isto roça a distopia _ fenómeno em que os factos se opõem ao que era suposto ser (ou não ser) _ uma característica também comum em Mélio Tinga.

No conto Chuva, um homem e uma mulher com dois filhos menores tentam escapar ao dilúvio. No fim só o homem sobrevive à calamidade. O desabafo que segue dá-nos a dimensão do seu trauma: “Tinha vontade de ser terra para comer a puta da chuva”.

Em A morte de Kheisho, a morte torna-se banal e matar, numa ciência com método. O conto lembra-nos um outro, Os Assassinos, do escritor norte-americano Ernest Heminguay. Naquele o alvo escapa por capricho do destino ao não se encontrar no lugar esperado. Kheisho não teve a mesma sorte. De manhã vestiu-se a contento, foi à igreja, falou animadamente com o padre, visitou um casal amigo e foi jantar ao restaurante, onde, à saída, foi baleado. Nada que pudesse ser feito para alterar esse desfecho brutal.

Milagre tem como protagonistas os habitantes duma certa aldeia que aguardam à beira-mar.

Diz o narrador: “Precisavam acreditar em algo. Escolheram deus.” E ali, ansiosos, aguardam pela visita de Deus que, supostamente, virá de barco. Ao fim de tanto tempo, um ser maltrapilho cruza a areia da praia. Aos olhos dos populares, esta criatura faz a vez a Deus. Ou melhor, é Deus. O conto procura ilustrar a ideia de quão o ser humano é incompleto e inseguro no seu âmago, carente de crenças e por isso desejoso de se agarrar a algo, sendo que a divindade não passa de uma utópica invenção dos Homens.

Em O hambúrguer que matou Jorge se retrata a crueldade sem explicação. Jorge vai ao lugar onde sempre come um hambúrguer. Em algum momento vai à casa de banho, onde sofre um ataque, ao que parece, à facada. Não se expõe no conto o momento do ataque, a não ser a referência a indivíduos de aparência duvidosa sentados na mesa atrás de Jorge, ficando a irónica conclusão de que foi o hambúrguer envenenado a matá-lo.

O livro A Engenharia da Morte é também de contos. No prefácio à edição brasileira, Ubiratã Souza fala de “uma recusa à narrativa linear” para se privilegiar “um intenso experimentalismo na fatura dos contos, o que revela a busca por uma prosa pessoal”. E que “em vários contos, o entrecho está desmontado como se fosse um móbile de ações desarticuladas e rearranjadas em ordens imprevisíveis”.

Este experimentalismo, intenso porque ancora-se na profusão do verbo, vem a ser transversal a toda a obra do autor. Na sua estreia no romance com Marizza, a transfiguração discursiva vai mais longe e chega a reflectir-se na imprecisão (deliberada) de como se refere o sujeito ou a coisa adjectivada. Tem-se como exemplo, a seguinte passagem:

“Estava pálido, neve branca e opaca, resistente, incapaz de estilhaçar-se na queda, o vapor frio a subir como um animal para o espaço vazio do cosmo”.

Observa-se também no mesmo romance a sobreposição dos sujeitos sujeito(s) da acção e do(s) agente(s) da narração, obrigando o leitor a passar do simples exercício de leitura a uma rearrumação do sentido, como se vê a seguir:

“A mulher falava e recuava. Eu em tropeços contínuos, a voz em colisões inesperadas, a voz à maneira de um cão velho a latir mais ou menos inconsistente. A mão muito húmida, o celular ao ouvido, a queimar com impaciência, a queimar rumo a uma inesperada explosão”.

A escrita de Marizza é cosmopolita (espaço e personagens podem pertencer a qualquer lugar do planeta), os símbolos evocados são universais. Pouco comum em autores moçambicanos de gerações anteriores é a forma bastante arrojada com que se aborda cenas íntimas, como se vê no exemplo que segue:

“Beijei-a no peito, e a cada instante o coração se movia para uma parte diferente, parecia. Perseguia-o com a língua molhada; do abdómen atravessei para umbigo e depois o cálice. A sensação de remorso perseguia-me incessante. Quando afastei a cabeça, ela segurou–me com força, pela nuca. Acariciou-me o sexo. Falou coisas obscenas ao ouvido.”

Ou, ainda em Marizza, temas sociais sensíveis, como no caso da religião. A partir duma citação de Osho, pode ler-se:

“Os animais não precisam de Deus e são perfeitamente felizes _ não vejo que Deus lhes faça falta. Nem um só animal, nem uma só árvore, sente a falta de Deus. Todos eles gozam a vida na mais completa beleza e simplicidade, sem qualquer medo do inferno nem qualquer avidez pelo Céu.”

O romance Como cavalos e sombras a levitar, assemelha-se na sua elaboração a Marizza. A estratégia narrativa usada em ambos privilegia a construção de personagens irreverentes, envolvidos em actos desconcertantes, com as metáforas usadas no texto buscando causar estranheza e produzir imagens surpreendentes. – Também se nota e o despudor nas falas, talvez para revelar a situação de desespero em que vivem os personagens.

Atravessar a pele tem a particularidade de ser um livro de entrevistas aos escritores (mais velhos) co-organizado com David Bene. Embora comum no meio literário, parece-nos uma ideia com algo de sublime: usando o método da pesquisa académica, Tinga e Bene procuram com este trabalho fazer com que os entrevistados, ao contrário do que aconteceria num bate papo normal, se abram, baixem a guarda e falem de forma “generosa”. Então, aí é possível, aos entrevistadores assim como aos leitores, “beber” das ideias e experiências daqueles. Trata-se dum frutuoso diálogo entre gerações.

Névoa na Sala, o último livro de Tinga, constitui uma proposta ainda mais arrojada. Sua estrutura algo fragmentada, obriga o leitor a ter de juntar os cacos dum conteúdo algo marginal, como também o é o escopo dos personagens. Estes, dois homens e uma mulher, estão num hospital para doentes mentais. Os homens, para cura do stress pós-traumático da guerra da qual participaram. E ela, também do stress, após o cancro que lhe devorou o útero e o filho que estava em gestação.

António Cabrita, na apresentação deste romance, caracterizou-o da seguinte forma: “É um livro às vezes duro, rude, que não se isenta de descrições violentas. E que não oferece soluções, não aponta saídas, modos salvíficos. E neste sentido seria um livro falho, contaminado em si mesmo por uma negatividade peculiar… isto, se a sua escrita não fosse o contrário do que relata, sumarenta, numa torrente lírica que divaga, em contínua centrifugação, e buscando nexos e ligações entre os corpos e a natureza, novas ressoantes formas de diálogo e de intimidade; a escrita faz suceder nesta novela um fluxo que torna visível como a natureza se conduz numa espécie de pulsão incessante, em contínuas metamorfoses, e onde o que se gera é mais poderoso do que aquilo que destrói”.

Ao parecer de Cabrita, pode-se acrescentar que neste romance o absurdo constitui nota dominante, sobretudo, na pungente inocência dos personagens quando falam da morte, do amor e do sexo. Nisso ficando próximos a alguns dos personagens do escritor mexicano Juan Rulfo, no seu livro O Planalto em Chamas, quanto à desarmante inocência perante a gravidade dos actos que cometeram. O leitor os iliba. Pois, os seus excessos são justificados pela atmosfera que o autor soube criar, e com a qual estão em conformidade.

Esta peça termina com Ubiratã Souza; quando diz que “é particularmente significativo observar em Mélio Tinga indícios de que ele está a lutar com palavras, vezes ganhando e vezes perdendo”. Sim. Ou melhor: pode ser que sim. Pois, na busca de caminho fresco, no lugar de lutar simplesmente com as palavras, Tinga, como acontece à semente na terra, lança-as obsessivamente no espaço branco da página, consciente ele próprio de que nem todas darão em rebentos. Isto porque o seu ideal literário parece implicado com o perpétuo garimpo dos signos no afã de trazer ao mesmo armário todos os sinais do mundo.

Num breve soslaio, o velho escultor reparou na mancha que se desvelava ao longe e escurecia o chão. Estranhou, mas não deu importância. Poderia ser a sombra furtiva de uma nuvem distraída. Prosseguiu com a aula:

– A arte é feminina – disse ao neto, seu pupilo, enquanto esculpia –, por isso deve ser tratada com a mesma delicadeza que as mulheres: duras, mas frágeis e preciosas – acariciou o tronco áspero.

De cócoras, sobre o poeirento chão maconde, os músculos contraiam-se e saltavam ao ritmo das marteladas. Falava e respirava no mesmo compasso, como se as esculpidas comandassem a cadência do seu fôlego.

– Fazer escultura, meu neto, é como desvendar mistérios de uma mulher – continuou limpando com as costas da mão, no rosto suado, salpicos de madeira. Voltou a olhar para o horizonte e percebeu que a mancha escura estava maior, sinal inquietante de que estava a mover-se na sua direcção. Mas voltou à aula:

– A madeira, antes de despi-la tens de mimá-la até amolecer – acariciou novamente o tronco áspero –, depois segura com firmeza o cinzel e, sem magoá-la… – completou a frase com uma martelada seca. Lascas soltaram-se e caíram, como peças de roupa feminina, despidas à pressa.

– A escultura maconde é exigente. Ela tem de te aceitar – fez outra pausa em respeito ao vento que, com um remoinho inofensivo, acariciava as lascas caídas.

– Assim como as mulheres, tens de seduzi-la. Quando estiveres a esculpir fala com a madeira – acariciou-lhe novamente a superfície áspera.

– Mas fala na nossa língua, maconde, não em línguas importadas, para que ela te perceba. Faz-lhe promessas e conta-lhe as histórias ao ouvido. Então ela vai sorrindo e essas histórias vão ganhando vida, dando forma à escultura.

Parou de falar quando percebeu que o miúdo não prestava atenção. Olhava, com o sobrolho franzido, para mancha que escurecia o chão. O velho pestanejou e voltou o olhar desfocado para o fenómeno, alarmantemente mais próxima. O neto, com as lentes da visão melhor calibradas percebeu, pelo revérbero subtil, que aquilo era humidade.

– O chão está molhado, avô.

O velho calou-se, como a experiência ensina que se deve fazer diante do desconhecido. A mancha era escura. O escuro e o desconhecido despertam temores inexplicáveis. As sombras estão cheias de fantasmas. Levantou-se, por precaução, porque o instinto ensina que a ter de enfrentar ou fugir, que seja de pé.

– São cheias? São cheias, avô?
– Não! – respondeu sem tirar os olhos da humidade.
– Este rio – virou a cabeça para o rio Rovuma – não é como os rios do sul. Quando se zanga, não enche. Seca.

De tão perto já se percebia o chão molhado a borbotar e no ar um cheiro forte, metálico:

– Sangue! É sangue avô! O chão esta a sangrar.

O velho viu, para além do sangue e areia, pedras reluzentes e gotas de óleo negro. Começou a desconfiar que os mitos contados ao redor da fogueira sobre as pedras e os óleos daquele solo fossem verdadeiros, e temeu que por esses óleos e pedras tivessem ferido a terra até fazê-la sangrar, como dizem as lendas.

– A escultura maconde carrega a nossa história, sonhos e esperanças. Não pode molhar. Vamos!

O velho levou a escultura, com o cuidado e ternura que se leva um filho ao colo. Assim ao colo, o neto percebeu que a escultura tinha forma delicada de uma pomba. Recolheu as ferramentas e correu para alcançar os passos trêmulos, mas largos, do avô.

– Corre!

Com o coração acelerado, fugindo do desconhecido com a escultura ao colo, o velho ofegava. Os calcanhares batiam na secura do chão maconde e ressoavam como um tambor aflito. À medida que as pernas impotentes falhavam, sentia aquela humidade a alcançá-lo: o chão frio e pastoso, os dedos a atolarem. Escorregou.

– Corre avô.

Caído, o avô esbracejava como um nadador desesperado. Os braços debatiam num esforço inútil. O chão de sangue e areia o engolia como areia movediça.

– Não a deixes morrer – gritava agoniado o velho, apontando para a escultura.

Entre a necessidade de se salvar e a impotência para salvar o avô, o miúdo abraçou a escultura e correu. Os pés afundavam no chão lamacento. A cada rápido olhar para trás via o avô cada vez mais distante, agonizando últimas braçadas contra o chão viscoso. Chorava. Soluços desesperados misturavam-se ao cheiro metálico do sangue e ao eco dos seus passos empapados. Parou de chorar, para não inundar ainda mais o chão com as suas lágrimas.

Quando o cansaço e a força da lama já limitavam os seus passos, olhou para trás pela última vez, já não viu o avô. Era só chão e sangue. Olhou para a escultura que lhe escorregava dos braços e teve a impressão que a vida era uma escultura maconde inacabada.

– Voa! – gritou em vão, para a pomba esculpida, quando começou a sentir-se envolvido num abraço frio, sombrio. Era a terra húmida de sangue, que o engolia lentamente.

“A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido”
in Steve Biko, Pretória, 12 de Setembro de 1977.

 

Na contabilidade, o termo protesto é uma expressão usada para formalidade legal que ocorre quando uma dívida não é paga. Nesse processo, o credor leva um título de crédito, como um cheque ou uma nota promissória, a um cartório, que registra a inadimplência. Após esse registo, uma intimação é enviada ao devedor, alertando sobre a dívida. Se o devedor não quitar o valor devido, este acto, pode afectar a sua reputação financeira e dificultar a obtenção de crédito. É importante conhecer os seus direitos, pois é possível contestar ou negociar a dívida antes que se torne um protesto formal. O protesto muitas vezes está relacionado com desentendimento entre duas partes, resulta da falha do contrato, escrito ou verbal.

É do contrato social e formalidade que, na filosofia, Thomas Hobbes propõe “o contrato social”. Para Hobbes, “os homens precisavam de um Estado forte que os proteja, a ausência de um poder superior resultava na guerra. O ser humano, que é egoísta, se submetia a um poder maior, somente para que pudesse viver em paz e também ter condição de prosperar”. No entanto, ao longo da História da Humanidade, sempre que a sociedade se sente injustiçada ou lesada recorre ao “protesto” para junto do Governo revindicar os seus direitos, mas, para o caso de Moçambique, a lei do direito à greve carece de revisão. Pois não se define ao certo a fronteira entre o protesto/manifestação e vandalismo, bem como os limites da carga policial em casos de restabelecimento da ordem pública.

Como rever uma lei cuja aplicação incomoda alguns?

A Lei do direito à manifestação foi aprovada em 1991, ou seja, antes da assinatura do Acordo Geral de Paz e logo após a revisão da Constituição de 1990, que introduziu profundas transformações no panorama político nacional, incluindo um novo pacote de direitos, liberdades e garantias fundamentais.

É, sem dúvidas, uma lei inovadora e progressista para o tempo em que foi aprovada, desde o seu âmbito de aplicação, com limitações objectivas, até às garantias dos cidadãos, incluindo o acesso aos tribunais para impugnar proibições ilegais. Infelizmente, a evolução da mentalidade política regrediu nos últimos tempos, o que evidencia através da amputação do espaço cívico e a consequente proibição ilegal do exercício de manifestações que visem exprimir insatisfação ou discordância com o status quo.

(Direito à liberdade de reunião e de manifestação) “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de reunião, protesto e manifestação nos termos da lei”. ARTIGO 52 (Liberdade de associação).
Por sua vez, o sociólogo e professor catedrático, Elísio Macamo, entende que, protesto, também chamado de manifestação, é uma reacção solitária ou em grupo, de carácter público, contra ou a favor de um determinado evento ou pensamento.

É na tentativa de representar em arte esta reacção de carácter público que as artes, em forma de teatro, reflectem sobre os problemas dos resultados eleitorais. O problema é de natureza político, mas a melhor forma de descrever as emoções é através da representação [teatro] onde, acena central está à volta da captura do sentimento de revolta, por isso a peça teatral é intitulada “o protesto”.

A peça teatral “O protesto”, dirigida por Maholele, está inserida nas actividades da Fundação Fernando Leite Couto, (FFLC), e foi apresentada no dia 18 de Setembro, pelas 18h, em um espectáculo realizado fora de casa, no espaço recreativo, Makhal´Artes, localizado no Bairro Polana Caniço B.

Inspirada pelas manifestações ocorridas em Maputo, no ano passado, devido à indignação face aos resultados eleitorais autárquicas, o encenador da obra utiliza o corpo como instrumento de resistência, visto que, na sociedade moçambicana, as vozes dos cidadãos são frequentemente silenciadas.

Nesse sentido, a peça explora o conflito entre o poder colectivo e o sistema (governo), bem como a luta por direitos e as emoções que surgem em momentos de protesto. Além disso, o espectáculo constrói sua narrativa sem o uso de uma linguagem verbal, apostando em elementos visuais, sonoros e corporais para transmitir a sua mensagem.

A peça teatral é caracterizada pelo cenário minimalista [uso de poucos objectos no palco], recria o ambiente urbano onde ocorrem as manifestações. Assim, as folhas espalhadas pelo chão do palco ajudam a caracterizar o espaço como um local de protesto, representando a volatilidade e imprevisibilidade desse tipo de evento. Ademais, a iluminação contribui de forma significativa para a atmosfera da peça, uma vez que utiliza cores quentes, como vermelho e laranja, para reflectir o estado emocional dos personagens.

Diferente do habitual, nesta peça teatral, a cor vermelha não representa o amor, mas, sim, é símbolo de dor e raiva. Ao longo do espectáculo, é possível perceber que a cor vermelha é um símbolo categórico do fogo e de sangue.

A cor laranja significa alegria, vitalidade, prosperidade e sucesso. É uma cor quente resultado da mistura das cores primárias vermelho e amarelo. Está associada à criatividade, pois o seu uso desperta a mente e auxilia no processo de assimilação de novas ideias. Também está associada à amizade, energia e confiança. O laranja também é uma cor intensa, porém menos agressiva que o vermelho e mais agradável aos olhos.
Dessa forma, ao longo do espectáculo, a luz acompanha os movimentos dos actores, ajustando-se tanto aos momentos de calmaria quanto aos de maior intensidade.

Por outro lado, a trilha sonora desempenha um papel fundamental na construção da narrativa, cria o ritmo das manifestações e conecta o público ao contexto sociopolítico retratado. Onde as batidas fortes suscitam a ideia de perseguição, os gritos revelam o momento de caos, dor nos olhos devido à irritação na pupila causada por monóxido de carbono [substância altamente venenosa contida em gás lacrimogéneo, que é frequentemente usada pela polícia em situações de greve ou manifestações]. Do mesmo modo, o figurino contribui para a caracterização das personagens, o tecido farpado, gasto sem cor e com vários furos representa trabalhadores cansados e frustrados com o sistema. Assim, o vestuário complementa o cenário e a trilha sonora, ajudando a criar uma harmonia entre os diversos elementos da peça.

Além disso, a coreografia é outro aspecto essencial para a construção da narrativa, visto que, simboliza a força do colectivo. As batidas fortes e simultâneo no chão remetem a uma ideia de marcha militar, como quem está decidido a lutar pelos seus direitos e defender a pátria que muitas vezes é lesada. Desse modo, os movimentos dos actores, que mesclam caos e ordem, reflectem a dinâmica imprevisível de um protesto. Por fim, as personagens trazem à tona diferentes facetas da sociedade, já que cada um simboliza uma posição dentro do movimento social retratado. Consequentemente, a diversidade de perspectivas enriquece a narrativa e contribui para o envolvimento do público com a obra.

Em suma, “O Protesto” é uma peça teatral que, por meio de uma combinação harmoniosa de cenário, iluminação, trilha sonora, figurino, coreografia e personagens, oferece uma experiência sensorial e imersiva. Assim, o espectáculo consegue transmitir, de maneira impactante, as complexidades e emoções que envolvem uma manifestação popular, convidando o público a reflectir sobre questões sociais e políticas.

Homem não chora!!!

Diziam as minhas avós, Carolina e Penina, que já gozam de sono profundo há alguns anos. Serenas e convictas, típico de quem detinha todo ensinamento para a vida, as velhas repetiam o mesmo discurso sempre que me ouviam a choramingar, impelido pelas chatices da infância.

“Lágrimas de um homem são e devem ser escassas, não devem ser vistas por qualquer um.” Costuravam com dizeres como estes, discurso convincente sobre a necessidade de um homem ter que evitar derramar lágrimas por qualquer motivo à vista de todos.

Almocei e jantei esta doutrina por longo período, e realmente a minha geração foi crescendo menos chorão até na extremidade da dor. Fomos moldados a viver como feras insensíveis a qualquer situação da vida. Fomos doutrinados a mantermo-nos firmes sem bambolear até na pior das hipóteses. Não choramos pela falta de pão, não lacrimejamos após perda de lutas na infância, não fomos vistos em prantos até na morte dos nossos mais próximos. E assim crescemos.

Enfim, como dizem, quem não chora de forma normal, de algum modo alivia a sua angústia e daí a grande questão. De que forma os homens aliviam a dor se não podem chorar ou se querem gritar em momentos tensos e típicos, uma vez que não devem ser vistos em prantos?

Cresci faz algumas décadas, e no meu exercício de vasculhar cidades e campos à procura da vida, fui vendo que há locais para tudo nesta vida. Há lugares definidos para fumantes em quase todas instituições públicas e privadas, grandes e pequenas. Há salas predefinidas para orações de todas as religiões. Não faltam casas de câmbio para venda e compra de moedas nacionais e estrangeiras. Há sítios próprios para leituras nas suas diversas facetas como também existem lugares propensos para a prática de sexo esporádico em cada quarteirão, mas juro que nunca vi nenhum banquinho ajeitado e encostado a um sinal de aviso, anunciando local próprio para quem tiver vontade de chorar.

E se os homens chorassem?

Questiona a minha mente, estupefata e assustada com tamanha brutalidade cometida pelos homens nos dias que correm. Homens grandes e pequenos estão cada vez mais terroristas nos seus aposentos. Enquanto alguns tiram a vida das suas cônjuges de formas mais brutal possível, outros inovam, jogam-se nas pontes e rios, só para não se falar dos que se banham com combustíveis para depois enxugar com as chamas.
Há muito homem a chorar e nenhum ouvido, muito menos socorrido na sociedade. A busca das melhores formas de se aliviar de dores sem lacrimejar, tem sido um factor que aniquila os “machos” que seguem mortos vivos no seu anagrama.

Hoje choram sem lágrimas, lhes foi vedado o ensinamento de controlo da dor. Com certeza se gabam as mulheres que em uma sessão de fofoca desanuviam e buscam forças para encarar os desafios da vida. Os homens deviam ser mulheres e passarem pelos encontros entre tias e sobrinhas só para aprender a chorar.

Afinal de contas, que importância têm os ritos de iniciação masculina se os seus intervenientes saem sem tácticas para fazer face a algumas tempestades deste mundo.

Os templos perdem sentido em manter-se conservadoras até para atender questões sociais como educação sentimental do homem. Os homens continuam chorando de formas mais desabridas possíveis, enquanto que os ginásios das esquinas continuam a moldar músculos e não mentes para suportar o peso das adversidades.

E se os homens chorassem?

Dest Arte é o nome do musical concebido e dirigido pelo músico Zé Pires, que eternizou a trajectória da justiça em Moçambique até aos 30 anos da Ordem dos Advogados.

A cerimónia decorreu no Centro Cultural Moçambique-China, no passado dia 19 de Setembro. A cerimónia, que esteve concorrida desde o inicio, registou um número ímpar de advogados e estágiários que se fizeram presentes em traje de gala, conforme requeria o seu protocolo.

Logo à entrada do Centro Cultural, perfilavam, no local, ternos e gravatas, e vestidos exuberantes que incitavam à vaidade feminina ao evento.

A sala era espaçosa e, logo de início, deram-se boas-vindas ao Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Carlos Martins, que, de seguida, deixou ficar o seu discurso, onde exaltou o exercício de advogacia em Moçambique, citou as dificuldades que o País teve e tem para ter um sistema de justiça compatível com a demanda. E, por fim, sublinhou que o dever número um dos advogados é efectivamente trazer justiça ao povo, acima de quaisquer interesses monetários.

De seguida, iniciou o musical de Zé Pires com um misto de musica clássica e contemporanêa, milimetricamente coreografada por bailarinos jovens, que passaram a sua classe ao evento. Minutos depois, foi a vez de entrarem em cena algumas das principais atracções do evento, tratava-se dos actores: Mário Mabjaia, Isabel Jorge, Horácio Guiamba e Dénio Pelembe.

Estes experientes actores tinham a missão de retratar a história da justiça em Moçambique, desde o período pós-colonial até aos 30 anos da Ordem dos Advogados, com recurso à encenação. Na encenação, o grupo de actores era uma família em que Mário Mabjaia era Pai, Isabel Jorge e Horácio Guiamba Filhos, e Daniel Pelembe o neto, em diferentes momentos do musical a família se debruçava sobre o estado da justiça em Moçambique.

Uma das figuras imortalizadas no primeiro momento da encenação foi o senhor Domingos António Mascarenhas Arouca. Domingos Arouca concluiu a Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, em 1960, tornando-se, assim, no primeiro advogado negro em Moçambique. Em 1965, foi eleito Presidente do Centro Associativo dos Negros em Moçambique.
Teve a oportunidade de exercer a advogacia, no período monopartidário, mas recusou-se por discordar com algumas práticas sociais. Foi crítico ao modelo de governação autoritário da época, devido ao desrespeito dos direitos humanos. Mas voltando ao show…

Onésia Muholove deu o pontapé de saída ao reluzir a sua jovem e bela voz, interpretando temas relacionados à ocasião, como Mbava Juiz,” de Lourena Nhate, que abrilhantou o show não só com o seu canto, mas também com o seu figurino misterioso. Para quem duvidava da grandeza e alegria da música moçambicana, ficou boquiaberto, e com algum cuidado não deixou nenhum insecto entrar. A música moçambicana esteve em destaque total, o elenco era assombroso: Zé Pires comandante do teclado, a orquestra juvenil melodiava os saxofones, Ebenezer Sengo na artilharia solo da guitarra, e Luís Gonzaga na infantaria da guitarra baixo.

O som era potente, e os instrumentos namoravam as notas musicais entre si produzindo um som bombástico e refinado.

No palco fez-se presente mais uma atracção do evento, a cantora Juliana de Sousa, que interpretou Didácia com o tema “Ndhaneta”, enchendo a sala de alegria e nostalgia, o público vibrou e maravilhou-se da sua música.

No Palco os actores estrategicamente assaltavam algo raro à classe dos advogados: Os seus sorrisos encarceirados no exercício de suas profissões. Nesta etapa, a família de actores debruçou-se sobre o período pós-independência, em que Moçambique possuia tribunais comunitários, tendo evoluido depois para SNJ (Serviço Nacional de Apoio Jurídico) até ao momento em que efectivamente criou-se a constituição, em 1990, para garantir os direitos e as liberdades fundamentais do Homem.

Após uma dose de suspense, o musical ganhou um contorno transcendente e metafísico. Era ela, a cantora das vestes angelicais quem segurava o microfone, as vestes eram angelicais porque em seu corpo a faziam parecer um anjo. Os executores então deixaram o depoimento dos instrumentos ressoar e eclodir, como se a música estivesse a ser inventada pela primeira vez.

E já não era apenas música moçambicana, já não era Jazz, Onésia ergueu o seu canto a um tom celestial, os rapazes da orquestra a acompanhavam com coros magistrais, como se do céu projectassem a sua voz, a sensação era de estar diante do criador em suprema paz.

Mais uma surpresa surgiu no evento, o carismático Salimo Mohamed entrou em palco, sim, era ele, era Salimo, sim, encarnado no corpo e voz de Pauleta Muholove. Trazia o seu chapéu característico, o seu estilo meio aéreo, e a sua voz bass motora. Foi com o tema “Gungula Nyautomi”, que choveram nostalgias do tio Salimo no público. Pauleta arrepiou o público, com a exploração do palco, voz e movimentos à moda Salimo. A ausência de luzes no público não denunciou quem se marejou. Salimo foi homenageado e lembrado com carinho e estima.

De seguida, entrou em palco Ivânia, ou simplesmente Dama do Bling, com o tema “Desabafo do recluso”, ao seu estilo característico rimou, acompanhada por um elenco especial: As reclusas trajadas a rigor, a fazer os backing vocals da música. Este tema serve como um auto exame de consciência e socialização do recluso, o público foi surpreendido de emoção e acarinhou a vibrante actuação que a Dama do Bling levou à noite da Ordem dos Advogados.

O elenco de actores destacou o papel do IPAJ na facilitação do acesso jurídico a pessoas arentes, e a criação da ordem dos advogados para intervir em caso de irregularidades e ilícitos eleitorais.

Foram lembradas e homenageadas várias figuras que contribuiram para a história da Ordem, da democracia e do Conselho Constitucional como Rui Baltazar, Carlos Alberto, Gilberto Correia,Tomás Timbane, Alice Mabota, Albano Silva, Maximo Dias e vários outros.

Yolanda Kakana, com o tema “Mufolhe”, encerrou a cerimónia com chave de ouro.

Começar por saudar o inconformismo e perseverança dos dois autores que, mesmo que colocados na periferia de quase tudo – talvez, muitos não tenham a devida dimensão do que significa existir e procurar afirmar-se fora de Maputo – muito têm feito, não só enquanto poetas e ficcionistas, mas muito particularmente através do seu activismo cultural e intelectual, na Associação Xitende.
“Ars Poetica” é um dos poemas mais conhecidos do poeta norte-americano, Archibald MaCleish que termina com dois dos versos mais invocados na literatura moderna:
A poem should not mean
But be
À medida que lia a obra Metamiserismo, Uma nova escola literária foram os versos acima que me vieram à mente, e curiosamente, por uma parte significativa dos arremedos poéticos de Deusa d’África e D. Midó das Dores caminhar no sentido contrário do que nos é proposto no poema de MacLeish. Isto é, o que o exercício de escrita da obra que temos agora nas mãos mais faz é procurar mostrar, significar, interpelar como se de um texto-manifesto se tratasse, à imagem dos manifestos futuristas das primeiras décadas do século XX.
A ideia de manifesto é, aliás, reforçada com a afirmação categórica, talvez provocadora, de que estamos, com esta obra, a inaugurar uma nova escola literária que significa, na óptica dos autores, que a “arte metamiserista se constitui como algo que deve ir para além da diversão e da informação, devendo ser um acto de atormentamento  das verdades falsas que a sociedade foi criando ou aceitando” (Prólogo, p. 12).
Só a leitura da obra e das que, eventualmente, lhe seguirão nos permitirá aferir até ponto esta pretensão é válida e efectiva. O que realmente a obra propõe, em termos estéticos, estruturais e semióticos, para se considerar o que o subtítulo, por exemplo, reivindica: uma nova escola literária? E a questão que fica subentendida é que existe uma velha escola. O que não se consegue discernir é: o que a caracteriza?
Metamiserismo, uma nova escola literária é uma obra de dupla autoria, porém traduzindo duas sensibilidades e duas formulações estéticas distintas, mas que convergem na intencionalidade de mostrar, dizer e significar. Ou não será, ressignificar? Se o primeiro, Dom Midó se atém a uma escrita dominantemente provocativa, a segunda, Deusa de África, sem deixar de ser interpelativa e aguerrida, esteia o seu verbo num assumido investimento formal e estético, como podemos observar num poema como, por exemplo, “Poesia é fechadura”:
Poesia é fechadura
com a autenticidade da chave
de dentro para fora (p. 58),
Ou, em “Texto”
À mesa serve-se em bandejas o quente e
olente texto
delicioso manjar com diversidade de iguarias
verbais (p. 62).
Sintomaticamente, percebemos que existe, aqui, uma indisfarçável consciência do labor da escrita enquanto compromisso essencial com a linguagem que se faz poesia. Mas é no compromisso com a vida vivida todos os dias que a poesia dos dois não só converge como se reveste de uma espécie de missão, como nos revela Dom Midó das Dores, em “A propósito do meu aniversário”:
mas eu já disse, não quero morrer
não quero ser o vento que passa como se
não passasse
gostava de ser o dinossauro deste e doutro
milénio
e a minha pegada continuasse firme e forte
na luta contra os tempos (p. 26)
Aliás, à partida, temos esse indicador antecipatório que a leitura de qualquer obra nos reserva: o título. Como podemos verificar, o título desta obra resulta da união programática, por um lado, do prefixo de origem grega, meta, que significa mudança, algo posterior ou transcendente, e uma palavra emprestada do espanhol, miserismo, que significa miséria. Criativamente, do antigo se formou um neologismo.
Podemos perceber aqui a centelha vanguardista desta poesia, portadora de um estandarte identificado com uma ou várias causas, entre outras, combater a miséria, a inércia, a insensibilidade, o conformismo, a degradação moral, social e política. Causas que, como sabemos, não são novidade na nossa literatura, e que desfilam aos olhos do leitor, em que assumidamente o sentido de missão se conecta com um intenso apelo da realidade envolvente. Isto é, nesse pendor, ela não faz mais do que vincar aquela que é uma das maiores vocações da arte africana: o seu profundo e estruturante diálogo com o meio de onde ela emerge. Exemplos:
é a rua parada na vida
é a estátua ferida
no poema de gás de Pande
movendo a miséria que se expande. (p. 36) (D. Midó, “A vida”)
… para que se reconheça a sua tenacidade
não se luta pelo trono como se de lixo se tra-
tasse na lixeira de Hulene vitimando um povo
que mata a sede a lágrimas de sangue. (Deusa d’África, “Fechadura”)
E naquilo que aos dois os irmana poeticamente, não se trata de deformar artisticamente a realidade, mas sim de procurar, nessa mesma realidade o que ela tem de perverso e inaceitável e, sem filtros, deixá-lo a mercê do universo de recepção dos leitores, como reiteradamente encontramos nas referências às prostitutas. Estamos, pois, diante de uma percepção utilitária e instrumental da arte, da poesia, neste caso.
Não interessa o que ela é, como defende MacLeish, mas o que ela faz ou pode fazer. Isto é, a legitimação da poesia decorre de uma função na qual ela é deliberadamente investida. Neste caso, alinhada com uma determinada ideia ou causa, de combater os vícios da sociedade, o que, de uma ou de outra forma, esteve sempre presente na literatura, seja ela nacional, africana ou universal. E, como sabemos, são variadas as funções que a arte pode assumir, incluindo uma função política. Só que, como nos ensina o filósofo alemão, Walter Benjamin, uma obra de arte só é politicamente se for esteticamente correcta.
Não é nenhuma novidade, na literatura, o recurso e a reiteração da obscenidade, da linguagem desbocada e indecorosa, como estratégias de afirmação, de irreverência ou de questionamento de uma determinada ordem instituída. O que, talvez, seja questionável, do nosso ponto de vista, é se a ênfase, a recorrência e o excesso, nesse sentido, são garantia de qualquer eficácia do que se pretende atingir. Sobretudo, em termos estéticos.
A estética do feio, segundo Umberto Eco, ou a carnavalização do grotesco, do mal, do imoral, do obsceno, do decadente, da indecência, nunca deverão eximir-se do serviço que prestam à própria poesia. Afinal, o que é a poesia, a literatura? Esta é uma questão que atravessa a história multissecular da literatura. No nosso modesto e redutor entendimento, trata-se simplesmente de um recurso da linguagem, de expressão e de comunicação, que nos permite dizer e nomear o que só desse modo podemos nomear, exprimir e comunicar. Sem banalizações nem reducionismos, cruzando sensibilidade, razão e emoção. E sobretudo uma ânsia inesgotável de transcendência dos nossos limites pessoais.
Este tem sido, aliás, um dos grandes desafios da história da arte: como tornar estético, espaço de fruição e de sublimação o que é imoral, horrível, feio, trágico e monstruoso? O que faz, por exemplo, da “Guernica”, de Pablo Picasso, uma obra sublime? O que faz de Babalaze das Hienas, de José Craveirinha, uma das maiores realizações poéticas da nossa literatura? Ou o aterrador “Saturno devorando seu filho” do também espanhol, Francisco de Goya?
Até que ponto o excesso da causa não pode concorrer para a escassez do verbo, do estético? Craveirinha, nos longínquos anos 60, em “Uma cantiga em 3 tempos” deixara já o mote: “A dificuldade / da verdadeira poesia não são as ideias. São as palavras”.
Se com o poema “A propósito do meu aniversário”, Dom Midó das Dores percebe o quanto esta sugestão do Poeta da Mafalala se institui como lei fundamental do fazer poético, Deusa de África mostra já uma apreciável destreza  e maturidade na forma como  a sua escrita se impõe em poemas como “Poesia é fechadura”, “Ai”, “Quantas vezes morremos, meu amor”, “Coro na Catedral”, “Céu nublado”, “Vinho na Toalha de Mesa” ou “Nada”.
Afinal, o dizer da poesia não é, por mais bem-intencionada que ela seja, a interpelação directa, é sem dúvida a sugestão, como muito bem nos mostra Deusa d’África”, em “Coro na Catedral”. Seria interessante explorar, nesta autora, a sua relação poderosamente ambígua com a religião, entre uma espécie de fascínio, por um lado, e a dessacralização, por outro, dos símbolos e dos rituais do cristianismo. É, pois, muito respaldados na arte da sugestão que encontramos:
pulsa dolorosamente o coração do que se
perde
ganha-se a desgraça humana no mundo
imundo
ardente a canção que ecoa a dor incendiada
pelo infortúnio
parte sem destino a moção ardente de um
país em alto mar… (Deusa, “Coro na Catedral”, p. 63)
A poesia, afinal, é muito mais do que a arrumação de palavras numa determinada disposição e com uma intencionalidade que a trespassa. Ela é uma disponibilidade interior sem limites. Que nos preenche e que nos faz invadir os espaços dos que estão distantes de nós, isto é, os que nos vão ler. Ela é, afinal, o reino infinito do espírito, como explicava Hegel.
Talvez eu seja alguém petrificado no tempo, prisioneiro, ainda, de uma percepção eventualmente ultrapassada, anacrónica e bolorenta da literatura, por ainda acreditar, idealisticamente, que a arte, a literatura, em particular, é um espaço de elevação, de edificação intelectual, de sofisticação da linguagem que se faz ambiguidade, sugestão, e que, em última instância, desafia a sensibilidade e a inteligência do leitor. Mesmo, ou sobretudo, quando há um combate em curso, cada vez mais incontornável, de corrigir as enfermidades da sociedade, de melhorar a condição humana e de transformar o mundo.
Termino, felicitando os dois autores re-irmanados em Metamiserismo, uma nova escola literária e incentivando-os a que não desarmem quer no sacerdócio da poesia quer nas causas que os movem. O país, a poesia, a literatura e a arte agradecem.
Maputo, 8 Agosto 2024

Já há festa de Marrabenta. Estou feliz. Posso morrer.
Dilon Ndjindji (2023)

 

Vai o homem e fica a obra. Todo mundo, nessa vida, cai, mas outros caem de pé, sustentados pelas suas obras. A voz do mestre da Marrabenta afinava-se aos poucos e bocados, enquanto combatia a doença que o internou no Hospital Central de Maputo (HCM), e agora se cala de vez.

Dilon Ndjindji, nascido em 1927, antes mesmo de se sonhar com a independência nacional, escreveu a sua história com as notas de violas. Na verdade, a sua história confunde-se com a história da Marrabenta.
Como se diz nesses lados de África, uma pessoa não morre, mas dorme na esteira da eternidade. Não resistiu ao sono eterno o auto-intitulado rei da Marrabenta. Dorme a escassos dias para se festejar os que combatem (Dia das Forças Armadas), um indivíduo singular que se entregou à Marrabenta e aos seus desafios, cujas lutas sempre combateu com afinco.

1927-2024, ver-se-á esses números na sua lápide, mas, entre um e o outro ano, há rastos de marcos e feitos para a cultura moçambicana. Uma história sem igual, que nos obriga a abaixar a nossa cabeça de rendição e vénia, mais do que de qualquer outra coisa.

Aos 12 anos de idade, Ndjindji começava a rebentar as suas guitarras de lata, ensaiando uma vida que se dedicaria, toda ela, à música na sua terra natal, Marracuene. Essa parte do mundo sempre fez parte do seu coração, imagino que a cada batimento seu lá ouvia-se uma sílaba de Marracuene. Parou o coração de bombear sangue a sabor de ngoma (música), e silencia-se Marracuene, com choros. Mas não só Marracuene, pois foi um homem de Moçambique inteiro e África, também, com entrevista até na Music Time in Africa (MTIA), em 2019.

Nos arredores de 1960, com a banda Estrelas de Marracuene, Ndjindji trouxe outra dinâmica com a sua energia contagiante. Com essa mesma banda cantou e encantou em muitos cantos desse Moçambique, e fez até tours pela Europa, cantando em sua língua. Presenteou-nos com vários clássicos e álbuns que marcam tanto a sua vida musical como a própria vida da Marrabenta. Estreou-se com “Xiguindlana”, lançou também outros álbuns intitulados “Dilon”, “O rei da Marrabenta”, etc.

É no álbum “O rei da Marrabenta” em que alcança o seu auge como artista. Esse álbum conta com vinte composições diferentes, mas com um único denominador comum: a guitarra acompanhado de xi-ronga (sua língua nativa). As músicas que mudam entre melodias calmas e agitadas, mostra muito do Dilon Waka Ndjindji, e suas simbologias desse seu lado energético e aconselhador, paternal e confiante.
É nesse grande álbum que se autointitula “Hosi ya Marrabenta” (Rei da Marrabenta), dando esse título a uma música. É esse mesmo título que empresta o nome ao álbum. Depois mergulhamos na composição “Yinguelana” (Escutem), onde ele, “Diloni Waka Ndjindji”, se apresenta.

Nas suas composições nunca faltou a temática morte. Na música “Utafa usiya ulombi” (Lit. Morrerás e deixarás açúcar), fala do partir de uma outra forma, pois a morte sempre requer uma forma para ser falada e acontecer. De forma pragmática e típica, apenas repete as mesmas palavras deixando as interpretações em aberto, até onde conseguimos divagar? Quando nos canta que iremos morrer e deixar açúcar, que açúcar? Pela sua natureza doce, ocorre-nos na cabeça que esteja a trocar papéis com sua metáfora.

Porque a metáfora nos ajuda a compreender um conceito em detrimento do outro, como sugere Lakoff e Johnson, Dilon Ndjindji explica o prazer, a libido Freudiana, por meio do açúcar. Apesar de mencionar nomes de mulheres na canção, o que nos leva a pensar em prazer sexual (para Freud se trata de maior manifestação da líbido), sente-se que fala também de outros prazeres que as pessoas têm. Essa música é uma lembrança de que todos os prazeres serão cá deixados, na terra. Uma lembrança, como quem diria, difícil num país caracterizado por cristianismo, pelo menos na zona Sul. Afirmando que morrerá e deixará para trás todos os prazeres, choca um pouco com o conhecimento cristão asceta, em que preza uma vida de sacrifício, uma vida de luta contra os desejos do corpo, como diria Nietzsche, uma negação da vida.

Ainda sim, lembramos com essa canção que não devemos esquecer de aproveitar o nosso presente, e pararmos, por segundos, de sonhar com uma felicidade transcendental. Nessa canção, o sujeito lírico confunde-se com o autor da própria canção. Aliás, para Dilon, a linha que separa essas duas entidades é muito ténue, parecendo até não haver.

Na música Marracuene, uma das mais céleres do artista a par de “Podina”, que também consta desse álbum, diz que Dilon se vai, e Marracuene chora a sua morte. A verdade disso é que nos chega, sim, a sua já há anos anunciada morte, e também banha-se de lágrimas Marracuene.

Na canção em alusão, também avisa o sujeito lírico, dizendo “Mu ta ti Vhonela”, ou seja, estaremos por conta própria. Entende-se que iria partir, na altura, com alguma dor no coração porque ninguém se interessava com a música tradicional moçambicana, em particular a sua Marrabenta. Se ele estava na vanguarda da cultura moçambicana, com quem iremos ficar com a sua partida? Era essa a questão que colocava há duas décadas.

Naquela que foi, quiçá, a sua última entrevista, em 2023, no dia em que vários artistas e amigos fizeram a homenagem, depois de ter recebido a alta hospitalar, disse: “Já tem festa de Marrabenta, estou feliz. Posso morrer”.

Dorme na cama dos reis, Dilon. Parte com um sentimento de dever cumprido na luta para a valorização da música e ritmos moçambicanos, também de toda a cultura moçambicana. Ndjindji é uma referência, um ícone para todos. Nesse Moçambique que é sufocado pela globalização, remou contra as ondas e venceu. Andávamos globalizados quando Dilon estava bem localizado. Diga-se, é no fim que se fazem as contas. Agora só nos resta uma vénia e um adeus ao mestre da Marrabenta…

Ao F. Noa,

pela visão

 

Estive na Ilha. Na Ilha de Moçambique, esse paraíso histórico,  espaço de pedra que tem encantado Poetas, estudiosos e turistas. Estive lá há uns meses, Junho precisamente, com os Professores de Literatura, o decano Lourenço de Rosário, encantando e decantando Camões,  afirmando, no alto da sua merecida cátedra,  que a ilha dos amores nos Lusíadas é a nossa ilha de Moçambique, e o incontornável Professor Francisco Noa, ex-reitor da UniLúrio, escalpelizando Poetas que aportaram, física e imaginariamente, a Ilha de Próspero, titulo de um dos mais belos livros do nosso grande Poeta Rui Knopfli, de quem retiro, com o devido respeito, o poema Muipiti:

“Ilha, velha ilha, metal remanchado,/ minha paixão  adolescente, / que doloridas lembranças   do/ tempo/ em que, do alto do minarete, / Alah -grande sacana! – sorria/ aos tímidos  versos bem/ comportados/ que eu te fazia./  Eis-te, cartaz, convertida  em puta/ histórica,/ minha pachacha pseudo-oriental/ a rescender a canela e açafrão,/ maquilhada de espesso m’siro/ e a mimar, pró turismo labrego, /trejeitos torpes de cortesã/ decrépita. /  Meu Sitting Bull de carapinha e/  cofió,/têm-te de cócoras na sopa/ melancólica/ de uma arena limosa e marinha,/ gaivota tonta a adejar  inutilmente/ ao lume  de água contra  a amarra/ que te cinge  para sempre/ ao bojo ventrudo do continente. /  De teu, cultivam-te a vénia e a/submissão/ solícitas, trazidas nos pangaios/ lá  do distante Katiavar, / expondo-te  apenas  no que tens de / vil,/ razão talvez para que ao longe, de/ troça,/ piquem  mortiças  as luzes  do/ Mossuril / ou sangre no meu peito esta/ mágoa incurável./ Mas retorno devagarinho as tuas/ ruas vagarosas,/ caminhos  sempre abertos para o/ mar,/ brancos e amarelos filigranados/ de tempo e sal, uma lentura / brâmane (ou mussulmana?)/ durando  no ar,/ no sangue, ou no modo oblíquo/ como o sol/   tomba sobre as coisas ferindo-as/ de mansinho/ com a luz da eternidade./   Primeiro a ternura da mão  que/ modelou/ esta parede emprestando-lhe  a/ curva hesitante/ de uma carícia  tosca mas/ porfiada,/ logo o cheiro a sândalo, o/ madeiramento/ corroído da porta  súbito/ entreaberta,/ o refulgir da prata na sombra  mais/ densa:assim descubro, subtil e cúmplice,/ que a dura linha do teu perfil/  autêntico/ te vai, aos poucos, fissurando a/ máscara.”

A Ilha nunca fora,  desde a minha iniciação literária, lá  vão  trinta e tal anos, preocupação  maior. Dito de outra forma: nunca me preocupei, como muitos, em conhece-la com estrepitosa ansiedade. Sempre soube que a ilha não  soçobraria, não se perderia, tal como a mítica Atlântida, nas profundezas do Índico, em resultado, nos hodiernos tempos, das mudanças climáticas. Sabia que quando a visitasse as pedras estariam lá, falando com outros personagens, desafiando outros tempos históricos,  mesmo que a encontrasse no estado que Rui Knopfli descreveu no poema Padrão: “ Uma humidade escura e pegajosa/ alastrará  de novo/ sobre o teu dorso de brancos e/ amarelos, desenhando/ nele estranhos, esquálidos/ arquipélagos fantásticos. / A gangrena e a lepra do tempo/ minarão/ encarniçadamente o teu/ arcaboiço  atarracado,/ modelando-se à  imagem e/semelhança do bizarro/ solo osteoporoso em que-/ memória  cristalizada/-repousas entorpecida de mar e ausência,/ esmerilado e exato monumento/ à  vã  cobiça,/ aos erros graves e à grandeza/ desmedida que os gerou./ Sob a metálica indiferença de um/ céu anil,/porto de olvido  na rota perdida/ das Índias, / volverás  assim um ressentimento de areia,/ soluço de pedra ao sabor da/ monção.”

A minha preocupação  esteve num outro Moçambique, o Moçambique  profundo. Sabia que lá  não  encontraria as pedras que carregam a memória  dos tempos, mas um espaço volátil  ao tempo e a memória  presente. Sabia que precisava beber essa multiplicidade de vozes e culturas que se entrelaçam no espaço nação. E deixei-me, simultaneamente, deslumbrar e assombrar com o culto nyau, da longínqua Angónia, com a graciosidade da dança Nganda, executada pelos nyanjas, em vistosas vestes brancas, lembrando marinheiros de outros tempos, cortando as águas do grandioso lago Niassa; deixei-me levar pelo encanto do tufo, maravilhosamente  executado pelas sensuais macuas, vestidas  com o rigor que a capulana exige perante a ocasião, e o atemorizante mapiko dos macondes, executado com energia e elegância. E, mais a sul, nas vastas planuras de Gaza,  assisti o vigor do xigubo, dança guerreira, lembrando os áureos tempos do Mfecane – a diáspora nguni, movimento guerreiro que redefiniu o mapa geográfico e politico da África austral no primeiro quartel do século XIX. E depois a culinária, os sabores de Inhambane com a sua característica matapa, a xima branca dos senas, acompanhada do  thépwé (camarão  miúdo), o cabrito de tete, nobremente   chamado, num dos  seus singulares pratos, de khongué, a internacional galinha à zambeziana, e outros sabores como a xiguinha, preparado à  base de mandioca ou batata doce, e a mboa, à base das folhas de abóbora, meu caril predilecto. Interessei-me por este Moçambique, por estes valores, e pelo modo de estar  e ser do makonde, ajaua, lomué, nhungué,  matsua,  chope e ronga, entre outros  grupos etnolinguísticos. De longe ouvia falar da ilha, do dinheiro doado à sua conservação, da elevação a património mundial da Unesco, em 1991, do delírio de estrangeiros e nacionais que a visitavam, e do espanto de todos quando eu dizia, com certa ironia, que nunca a visitara. Senti, com certa desolação, na infundada incredulidade dos que me questionavam, que o Moçambique real, o território profundo, pouco os preocupava, pois preferiam ater-se ao património edificado, ao legado colonial, às seculares pedras, à parte visível, à superfície facilmente tragável, olvidando o que de significativo existe à identidade nacional. Tal perspetiva teve o respaldo da UNESCO, quando, em 1972, adoptou a Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural – o património  edificado. As grandes políticas de conservação centraram-se no património  edificado. De 1978 até  aos tempos de hoje, várias somas de dinheiro foram drenadas para a conservação do património edificado da Ilha de Moçambique. Os cultores de Direito têm uma expressão  traduzida do latim que diz: “se é  lícito o mais, será lícito o menos.” O menos que é o mais na nossa realidade cultural foi obliterado.

E só em 2003, a 17 de Outubro, é que a UNESCO aprovou a convenção para a salvaguarda do Património Cultural Imaterial, entendido como “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões, bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhe estão associados.”

É o que o continente africano sempre precisou: a salvaguarda do imenso património cultural imaterial. Foi esse património que me impeliu (impulso mais emotivo que consciente, pois esta, a consciência, foi emergindo paulatinamente) a afastar-me das pedras que falam e a  imergir  no Moçambique profundo, procurando conhecer e assumir a diversidade cultural deste vasto país.

E só neste ano de 2024, e a propósito dos 500 anos de nascimento do poeta  Camões, Luiz Vaz, de nome, aceitei visitar a Ilha. Sabia que nada abalaria as minhas raízes, alicerçadas no vasto património imaterial, ao me confrontar com as seculares vozes  árabes, indianas e cristãs, impregnadas nas  pedras  e muros e frontarias e pórticos corroídos pelo tempo. Daí não  me ter  espantado com a  sonolenta beleza da ilha, e muito menos com o distanciamento dos naturais da mesma, em relação ao  património  de pedra, pois estes mantêm-se, há  séculos, no seu makuti (casas maticadas – hoje muitas delas cimentadas -, com cobertura de folhas de palmeira), em bairros circundantes aos edifícios de pedra. Ao passear por esses populosos bairros, apinhados de crianças  carentes, choros inquietantes, rostos expectantes, veio-me à  mente  o incontornável poema de Knopfli:  Canção de Ariel – “ esquálidos  vultos aracnídeos,/ escorre-lhes a condoída  mágoa / ao longo dos magros ombros./ Assim imóveis e mudos, cravados/nos muros, nas pedras, na paisagem/ dão costas  à Terra Firme,/ cujo rumor, surdos, ignoram./ Perde-se-lhes no longo do mar,/ entre irisados reflexos e sugestões da areia,/ o melancólico resignado olhar./ Que oculto fascínio, secreto ópio,/ da baixa  coralina os atrai?/ Que vozes entorpecentes surdidas/ do abismo estarão  ouvindo?/ O tumulto que sobe do continente/ não os inquieta ou contagia,/ em seus rostos não há  sinal,/ centelha ou fulgor do incêndio / que, no horizonte próximo, lavra./ Imóveis  e antigos, fitam o mar./ Não são  estes os filhos de Caliban.” E na verdade não são, pois a canção de Ariel não os faz sonhar porque distantes da realidade de pedra, das “vozes entorpecentes surdidas/ do abismo.” Preocupam-se com as carências  do dia a dia, com as ilusões difundidas da distante capital desconhecida. Mas por outro lado, na outra face da moeda, senti na ilha que visitei, a assumpção de outra  vibração, outra pulsação, às canções  de Ariel, surdindo, como diz o Poeta, das profundezas do mar.

Com a criação  da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em 2017, durante o consulado de Francisco Noa, como Reitor da Universidade de lúrio, a ilha começou  a mudar de paradigma. Hoje, por toda a ilha, estudantes universitários dão  outra vida ao espaço.  É impressionante a dinâmica  que se entranha  na zona de pedra. O nível de literacia tende a crescer.

E foi com agradável surpresa que depois de um sarau cultural no museu de S. Paulo, já  noite adentro, e meio perdidos no emaranhado de ruelas, um jovem indicou-nos as verdadeiras quelhas e travessas do nosso destino. E por entre a conversa sobre o dia cultural promovido pela Faculdade, perguntamos ao jovem estudante de 16 anos, de nome Esmel – fazendo lembrar esse fulgurante parágrafo inicial de Moby Dick, romance de Herman Melville: Call me Ishmael (suponhamos que me chamo Ismael)-, sobre perspectivas de futuro. E este, com uma serenidade desarmante, disse-nos:

– Quero ser Poeta!

– Poeta?, interrogamo-nos em silêncio.

– Sim, Poeta!

Entreolhamo-nos. Sabia que  por entre o silencioso sorriso no olhar esguio do antigo Reitor, estava  a certeza que a semente  lançada  na ilha  desabrochava: os filhos de Caliban estão  povoando a ilha.  Sonham com coisas belas, querem outra  geometria no traçado das travessas da Ilha. E o sinal da mudança reside tão somente naquilo que não queremos investir: educação.

A ilha quer outra perspectiva do poder Político. Senti, em muitos,  a ânsia de verem o edifício da Fortaleza de S. Sebastião a transformar-se num  espaço académico  e de lazer, onde os estudantes substituam o capim da incultura por livros e flores que indiciem um futuro que saiba reconciliar-se, sem mágoas, com o passado. Senti que os ilhéus  querem ser sujeitos e não objectos da sua História. E que  Ariel,  personagem da famosa peça de Shakespeare, a Tempestade, ganhe a verdadeira dimensão metafórica no memorável poema do grande e esquecido Rui Knopfli, Poeta que cantou, mais do que ninguém,  a Ilha de  Moçambique.

E de sabores, permitam-me que termine assim o texto, ficou-me o siri siri, prato típico da Ilha que rivaliza com os melhores da nossa rica culinária.

Maputo, 2024.

 

 

 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!
in Ensaio sobre a cegueira, José Saramago.

 

Quanto mais me aproximava, mais tudo ao redor se desvanecia. Era como se só nós dois existíssemos, presos em diálogo silencioso e misterioso. Senti uma presença que me puxava, uma força invisível que me mantinha atenta como se quisesse me contar algo. Eu não sabia o que estava prestes a descobrir, Eu não sabia o que aquele momento traria. O que eu sabia, porém, é que aquilo exigia meu olhar.
“Eu não sabia”! Este é o título da obra que agora ocupa a minha mente, desafiando-me a descobrir o que, afinal, eu ainda não sei!
Ao primeiro aspecto, o quadro de Titos Mucavele exibe uma verticalidade notável, em que as figuras dominam o espaço central e a composição parece compacta, como se a própria textura do quadro pressionasse as figuras para dentro de si.

Afinal, o que elas “não sabiam”? Talvez não soubessem o peso de carregar o desconhecido ou a falta de compreensão sobre as forças que moldam suas vidas.

Mucavele faz uso de uma paleta que combina tons terrosos e metálicos, entrelaçados com rosas pálidas e vermelhas, que surgem nos corpos das figuras. Esses tons rosados, que predominam nos corpos, suscitam uma sensação de fragilidade, como se a pele das personagens estivesse exposta ou ferida. É uma cor que remete à carne viva, ao sangue sob a pele, à própria essência da vida que pulsa por baixo da superfície. Por outro lado, a textura áspera do fundo da obra, de tons cinzas, sombreados e verdes sujos que envolvem as figuras formam um cenário quase sufocante, como se o ambiente ao redor delas estivesse comprimido, sem luz ou ar, enfatizando uma ideia de peso emocional. Por conseguinte, a oposição entre essas cores, isto é, rosa que sugere vida e cinza que sugere desgaste, gera uma tensão cromática que reflecte o estado emocional das imagens.

O pintor trabalha com um estilo muito expressionista, com uma tendência à deformação das figuras, não para afastar o espectador da humanidade das personagens, mas, sim, para intensificar a força emotiva.

Esse uso da deformação, com cabeças alongadas, pescoços finos e corpos estendidos, gera uma dissonância visual que nos faz perceber as personagens como figuras que carregam um fardo existencial pesado.

Ora, o vaso presente nas mãos de uma das figuras é outro aspecto com forte conotação. Na história da arte, vasos são frequentemente associados a símbolos femininos de nutrição, fertilidade e preservação.

Aqui, o vaso pode ser interpretado como um recipiente de memórias, segredos ou responsabilidades que a mulher carrega consigo, sem plena consciência de seu conteúdo.

No entanto, o gesto das mãos das duas figuras é suave, mas também possui uma firmeza inquieta. As mãos se tocam de forma que não se sabe ao certo se é um gesto de apoio ou de controlo. Será que uma das figuras tenta evitar que a outra derrame os segredos contidos no jarro?
Ou será que, ao contrário, a figura que segura o jarro é quem precisa de apoio para carregar esse fardo?

Esse gesto ambíguo entre as duas personagens nos faz questionar a natureza dos seus laços e o que realmente significa não saber, talvez ambas não saibam, mas a sensação de ignorância compartilhada cria uma dependência mútua, onde uma apoia a outra nesse estado de desconhecimento.

Adicionalmente, os cabelos dessas figuras não são apenas um adorno, mas revelam um diálogo oculto. O formato quase espinhoso, com pontas erectas e angulosas, pode simbolizar a rigidez ou a adaptação necessária para sobreviver em um ambiente hostil.

Os olhos semicerrados, que quase se fecham, parecem indicar uma rejeição ao que está diante delas, ou uma aceitação relutante do que não se pode mudar. Esses corpos “não sabem” porque não podem ou não querem ver o que as rodeia, ou seja, a sua alienação é tanto uma defesa quanto uma prisão. A maneira como os corpos se fundem em apoio sugere um vínculo inquebrável entre elas.

O uso da luz e da sombra é subtil, porém eficaz. As imagens emergem de um fundo sombrio e indefinido, como se fossem reveladas à medida que a luz as toca. A iluminação, não naturalista, mas simbólica, parece emanar de dentro, especialmente nos rostos, sugerindo uma energia em processo de manifestação.

Essa luz interna é um reflexo da complexa realidade do posto administrativo de Namanhumbir, no distrito de Montepuez, Sul de Cabo Delgado, onde a exploração de rubis deveria iluminar o caminho para o desenvolvimento comunitário. No entanto, o brilho prometido não se concretiza, pois os 2.75% das receitas destinadas aos projectos de desenvolvimento permanecem ausentes.

Assim, a promessa de progresso, que deveria ascender das sombras da exploração mineral, revela um panorama de optimismo não realizado, onde a luz inspiradora parece falhar em alcançar a verdadeira transformação esperada pela comunidade.

Eu não sabia que com óleo sobre tela, de 40×60 cm (2021), era possível transmitir tanta informação em um só quadro.

O trabalho de Titos Mucavele, que integra a exposição colectiva intitulada “Horizontes partilhados e múltiplos olhares”, na Fundação Fernando Leite Couto, até 4 de Outubro, exemplifica como a arte pode revelar dimensões significativas e provocar reflexão social.

Juntamente com obras dos artistas plásticos Famós, Júlio Xirinda, Markos P’Fuka, Pekiwa e Saranga, este quadro não só enriquece a nossa compreensão sobre a condição humana, mas também destaca a diversidade e a envergadura das perspectivas artísticas contemporâneas. Portanto, o impacto do quadro, e da exposição como um todo, é a capacidade de convidar o espectador a explorar novas formas de percepção e a reconhecer a arte como um meio vital para a comunicação e o diálogo. Com efeito, se retém que uma única obra pode oferecer um espelho para os níveis de vivência humana e expandir nossa visão.
Eu não sabia! E agora eu sei!

 

 

 

 

 

Joburg, Braamfontein, 16 de Setembro de 2024

Diz-se que os mortos pertencem a uma dimensão superior à nossa. Nós, os que ainda estamos à espera da morte, não passamos de vermes erectos, parasitas relativamente evoluídos. A civilização não é se não a expressão do nosso desejo de transcender a mesquinhez da existência mundana. Morrer não é apenas o nosso fatal destino, mas também o nosso mais ardente desejo. Todo Homem deseja a sua morte desde o dia que nasce. Uma morte gloriosa é o que andamos todos à procura.

Há uma semana, certas circunstâncias da vida levaram-me ao exílio voluntário, que vivo pela primeira vez na cidade de Joanesburgo, em Braamfontein. E ontem decidi transcender os recifes, ir para além das muralhas invisíveis que separam o centro da cidade à periferia, decidi atravessar a ponte aérea, o viaduto que liga Braamfontein à New Town. Do outro lado da cidade a realidade é mais dura, o comércio informal, a indigência e a violência formam a paisagem. Finalmente senti-me em casa.

Na rua, logo na entrada de New Town sou surpreendido com um concerto, dois jovens fazem uma dupla musical, um faz de DJ e de corista, o outro, o mais janota, vestido rigorosamente a la Michael Jackson de microfone na mão protagonizam um dos mais bonitos momentos artísticos que já testemunhei na minha vida. Joburg é uma aparição.

Regresso ao outro lado da cidade de cigarro na boca e a pensar. Maputo fica a cinco horas do futuro. Pelo caminho, de novo na ponte, encontro-me com um grupo de mendigos a fazer à cama, dou-lhes cigarros, como em Maputo, dois deles são moçambicanos, ambos mestiços, são simpáticos, oferecem-me tudo que têm, amo os mendigos de todos os lugares, neles a essência da liberdade e o verdadeiro rosto da nossa hipocrisia como sociedade.

Numa tarde chuvosa na cidade de Maputo, o sol ocultou o seu brilho, dando passagem a nuvens cinzentas que se espalharam pelo céu. As gotas de chuva inundaram as ruas, disfarçando os buracos que, normalmente, são visíveis quando a força das águas não encobre o solo. As pessoas apressavam-se a procurar abrigo, enquanto o som da chuva batia suavemente nas janelas, criando uma atmosfera melancólica, mas ao mesmo tempo reconfortante. 

A cidade, envolta num manto de águas, parecia ter entrado numa pausa, onde o tempo se arrastava lentamente, convidando à reflexão e ao abrigo. Foi nesta tarde que Josefina e Adolfo decidiram sair para comprar alguns materiais para a sua nova casa. A caminho da loja, Josefina conduzia o carro com normalidade, no entanto, não conseguiu prever a localização exata dos buracos daquela estrada. 

Foi quando, próximos a um centro comercial, um dos pneus do carro entrou num pequeno buraco criando congestionamento porque o carro terá ficado preso um alguns minutos… Todos à volta, esquecendo-se da chuva, começaram a dirigir palavras ofensivas a Josefina e ao seu marido.

 “Sai do volante, não vês que és mulher? Deixa o homem conduzir!” 

“Conduz lá, camarada, estamos a perder tempo aqui! Tira essa senhora daí”

“Se estás a ensinar-a a conduzir, faz isso noutro lugar, não aqui! Nós estamos com pressa.” 

Todas essas palavras dirigidas a Josefina e Adolfo eram motivadas pelo facto de ser Josefina a conduzir o carro e não Adolfo. Era inconcebível para aquelas pessoas que ela estivesse ao volante em detrimento do marido, subestimando as suas capacidades e a sua autonomia.

 

SÓ PELO FACTO DELA SER MULHER! 

Mas Adolfo não via problema algum em ser Josefina no volante, para ele até era melhor que ela conduzisse porque ela conduz melhor do que ele…! 

O caso de Josefina e Adolfo não é um grito isolado, mas uma chamada à reflexão profunda sobre a violência de género que permeia as nossas vidas. 

Recentemente, uma amiga partilhou comigo uma experiência que ecoa essa realidade dolorosa. Ela vivia com o marido e os filhos e, num dia que prometia ser especial, ele reuniu os amigos para assistir a um jogo de futebol na televisão. A minha amiga sempre foi apaixonada pelo desporto; conhecia os nomes dos jogadores, discutia as táticas com fervor e ansiava por sentir a emoção colectiva daquele momento. No entanto, ao perceber a expectativa dela de se juntar a eles, o olhar do marido transformou-se. Em vez de a acolher, ele afastou-a com um gesto brusco, sentenciando que “não ficaria bem” para ela assistir ao jogo com os homens. 

Ele condenou-a ao papel de mera servente, ordenando que permanecesse na cozinha, a improvisar petiscos enquanto eles vibravam na sala. Para ele, a ideia de que a sua esposa, mulher e mãe, poderia partilhar o mesmo entusiasmo que os homens parecia insuportável. Era uma prisão invisível, marcada por regras cruéis que desumanizavam a sua paixão. 

A mensagem era clara: ela não tinha permissão para ser quem realmente era. E assim, num dia que poderia ter sido de celebração, a paixão da minha amiga foi silenciada, como tantas outras vozes à volta do mundo. A cozinha tornou-se a sua cela e ela, uma espectadora da sua própria vida, enquanto o futebol, um símbolo de sonho e empolgação, se transformava num lembrete doloroso da liberdade que lhe foi negada. 

Esta história não é apenas uma anedota; é um eco da luta silenciosa de muitas mulheres que, assim como ela, se veem aprisionadas por normas e expectativas que as relegam ao segundo plano, sufocando as suas aspirações mais genuínas. 

Ainda outro relato é o de uma jovem que, ao perder uma oportunidade de promoção no trabalho, se deparou com a dura realidade da discriminação de género. O seu supervisor, avaliando-a apenas pela sua condição de mulher e pela sua juventude, afirmou que não era necessário que ela recebesse um aumento, uma vez que o provedor da família seria o marido e não ela. 

Este estigma não só desconsiderava o talento e a dedicação da jovem, como também perpetuava a ideia arcaica de que o lugar da mulher é, essencialmente, em segundo plano.

O director da empresa, reconhecendo o esforço e a competência dela, decidiu intervir e conversar com o supervisor sobre a sua promoção e um possível aumento salarial. No entanto, em vez de apoiar a jovem e facilitar o processo, foi o próprio supervisor quem bloqueou essa oportunidade, impedindo que ela obtivesse o reconhecimento que tanto merecia. 

Essa situação retrata um ciclo vicioso de injustiça que muitas mulheres enfrentam diariamente, onde as suas capacidades são subestimadas por questões de género. 

A frustração e a indignação que esta jovem sentiu são ecos de uma luta que ainda persiste em muitas esferas da sociedade, um lembrete de que a igualdade de oportunidades continua a ser uma batalha a ser travada.

No nosso dia a dia, frequentemente deparamo-nos com situações que nos desafiam a refletir sobre o quanto os estereótipos ainda permeiam as interações humanas. 

A história de Josefina e Adolfo, onde um simples acto de conduzir um carro se transforma num campo de batalha contra estereótipos de género, é apenas um exemplo de uma realidade que muitos enfrentam. 

Esta narrativa não é isolada; é o espelho de uma sociedade que, apesar dos avanços, ainda luta contra as correntes da violência baseada em género. Parar para refletir sobre a raiz da violência é um passo vital na luta por uma sociedade mais justa e equitativa. 

O que leva algumas pessoas a subestimar a capacidade de outra com base no seu género? Por que razão muitos ainda acreditam que papéis definidos são imutáveis e devem ser seguidos rigidamente? Estes questionamentos são essenciais para compreender que o preconceito, em suas mais diversas formas – seja por género ou raça– é um entrave à convivência pacífica.

Promover mudanças significativas exige coragem, disposição para aprender e a vontade de desconstruir ideias preconcebidas. Ao levantar a voz contra injustiças, ao educar outros sobre a importância da equidade e ao praticar a escuta activa, plantamos sementes de mudança. 

O apoio mútuo entre os géneros feminino e masculino, e o não olhar para a cor, raça e origens é um poderoso catalisador que pode transformar as nossas comunidades. É importante lembrar que a luta pela erradicação da violência, em suas várias formas, está intrinsecamente ligada à luta contra os estereótipos. 

Uma sociedade que respeita as suas diferenças e valoriza a dignidade de cada ser humano torna-se uma sociedade mais forte e resiliente. Vamos juntos desafiar as normas que perpetuam a violência e a discriminação, e construir um futuro onde todos possam viver em segurança, liberdade e respeito. 

Neste momento de reflexão, convido-vos a perguntar-se: Como posso contribuir para a construção de um mundo sem Bias? Que pequenas mudanças posso implementar na minha vida quotidiana para promover a equidade?

Eu, por outro lado, penso de forma diferente. Desde a infância, o nosso pai educou-nos de maneira equitativa, enfatizando que todos nós deveríamos estudar e ter a educação como prioridade. O facto de ele nos incentivar de igual forma a mim e aos meus irmãos incutiu, de forma indirecta, a ideia de que não devem existir diferenças no tratamento entre homens e mulheres, especialmente no que diz respeito às oportunidades que surgem na vida. Acredito firmemente que não devemos privar as mulheres de oportunidades e do respeito que merecem apenas pelo simples facto de serem mulheres.

É fundamental que aprendamos, desde já, a apoiar-nos mutuamente, independentemente do género, da cor ou da origem. Devemos despir-nos dos estereótipos que, em tantas ocasiões, nos impedem de enxergar o potencial dos outros e, acima de tudo, cultivar um olhar empático e solidário. 

A verdadeira mudança começa quando começamos a valorizar cada pessoa pelo que é, quando abraçamos a pluralidade das experiências humanas e reconhecemos que, juntos, podemos construir um mundo mais justo. Afinal, o crescimento e o sucesso de cada indivíduo enriquecem não apenas a si mesmo, mas também toda a sociedade.

Vivemos num planisfério com políticas brilhantes de acesso à educação. A educação é consagrada como direito fundamental do cidadão quase em todas sociedades do globo. Porém, o acesso a uma educação de qualidade, muitas vezes é condicionado pela pertença da classe social do indivíduo. O receio de igualdade na aquisição de conhecimento, faz com que as sociedades tenham dois tipos de educação: Uma educação aprimorada, que preocupa-se em adoptar o indivíduo com conhecimento (habilidades técnicas, competências e o saber fazer com excelência) que o faz competir sem receio em qualquer mercado da vida; e a outra educação é aquela em que não há interesse em apetrechar o indivíduo com ferramentas educativas que o blindem para enfrentar e resistir às adversidades do mercado concorrencial.

É verdade que uma educação de qualidade melhora os índices de cidadania, e isso, pode ser visto como uma ameaça para alta sociedade. A oferta de uma educação classificada é dividida entre os membros da classe social qualificada, enquanto que os membros da periferia são submetidos a migalhas de educação que só servem para melhorar as estatísticas da política de educação formal.

É verdade que as condições sociais ainda determinam a qualidade de educação ofertada. A alta sociedade ainda continua com privilégio exclusivo em frequentar nos melhores ensinos do mundo, e a exclusão educativa de qualidade (falta de profissionais de educação especializados, ausência de bibliotecas e laboratórios, ambiente educativo desfavorável) ainda atinge os que já vem ao mundo com desvantagem económica. A educação devia ser uma luz que brilha as consciências de todas sociedades, independentemente da sua condição ou realidade social.

A condição de vida das sociedades que vivem na periferia é caracterizada por dificuldades imensas, resumidas em insuficiência de recursos que o torna frágil na competição social com os ditos da classe média ou alta. A oferta de uma educação com fraca qualidade, fragiliza de certa forma as sociedades periféricas. A realidade social, tem tanta influência na construção duma sociedade comum.

A educação desprezível fornecida as periferias não cria condições para a preparação do indivíduo que queira se integrar nos vários nichos do mercado competitivo, por ser uma educação “flatus Vocis” (voz vazia). Fornecer uma educação de excelência para todas as classes, e adoptar políticas que permitem modernizar a periferia, pode ser um caminho perfeito para diminuir a marginalidade social que sai da periferia para a alta sociedade ou metrópole, por conseguinte, aumenta as perspectivas para diminuição da pobreza de conhecimento e pobreza económica.
As classes subalternas precisam de estar representadas nos órgãos de tomada de decisão, mas para tal, a escolarização qualificada dessas classes é condição sine qua non. Não se torna competitivo sem conhecimento classificado suficiente. É sabido que o grosso da população em várias sociedades pertence à classe baixa, sendo os da periferia maioritária e menos escolarizados ou com uma educação frágil, o que acaba influenciando de forma significativa na construção ou manutenção do subdesenvolvimento das nações. Freitas (2018) elenca que “A educação baseada na formação e no desenvolvimento humano, que inclui a formação da personalidade cidadã: um antidoto ao comportamento corrupto e criminoso que impede o desenvolvimento socioeconómico, cultural e político das nações”.

A educação tem maior peso no desenvolvimento das nações. A actual realidade socioeducacional é discriminatória. As sociedades para serem justas e alcançarem o desenvolvimento socioeconómico, político e cultural, precisam de ter uma educação que atinge com o mesmo grau de excelência as várias classes sociais. “O conhecimento é indispensável para alcançar o sucesso. Mas vamos deixar claro o verdadeiro conhecimento, não, o falso”, conforme Julio Novoa Cisneros.

Quando a propaganda nazista usou os Media recém-criados, na primeira metade do século XX, para mobilizar a população alemã no apoio à sua guerra, serviu-se da arte (música, teatro, filmes, livros, pintura) para difundir inverdade com forte carga ideológica. Discursos elogiosos sobre si e cartazes com caricaturas que ridicularizavam os seus principais alvos (judeus) garantiam que a mensagem nazista chegasse às massas com sucesso para gerar lealdade política. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Media centram-se a questões comerciais para promover e vender bens culturais.

Parece-nos fazer sentido que alguns teóricos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, ao fundarem a teoria da Indústria Cultural, concebam a sua visão crítica sobre a arte que se estava a tornar cada vez mais enxuta, por conta da sua reprodução massiva e seriada, para acomodar interesses capitalistas dos agentes económicos da época. Foram precisamente dois anos após o término da Segunda Guerra que Adorno e Horkheimer publicaram a “Dialética do Esclarecimento”, onde afirmaram que a sociedade estava sendo manipulada através da popularização da arte e bens culturais por meio dos grandes Media, tendo em vista o lucro. E qual seria então o ponto crítico da produção acelerada de bens artísticos em larga escala? Tem que ver com o facto de serem produzidos somente para o entretenimento, sem possibilidade de gerarem reflexões ao consumidor. Esta foi uma visão celebrada por artistas renomados no planeta como é o caso de Nina Simone ao referir que “o papel do artista é reflectir o tempo em que vive” e a arte enxuta, infelizmente, não abre essa possibilidade.

Se a ascensão da rádio e televisão “pauperizou” a arte, então a Internet veio extinguir a ideia do milagre da unicidade e exclusividade na produção artística. Isso pressupõe que a padronização e a produção em série da arte tornaram-se realidades irreversíveis, o que significa que a Indústria Cultural veio para ficar, cabendo a cada nação como lidar com as suas manhas. Em outros quadrantes fora de África, por inerência da evolução, as abordagens sobre a Indústria Cultural já transcenderam o estágio de críticas ao conceito. A preocupação actual é com a robustez e hegemonia industrial. No caso particular de Moçambique, qualquer discussão que nos pareça fazer sentido seria sobre como o Estado concebe a Indústria Cultural a par de como o mundo a concebe centrando-se na competitividade.

Se concordamos que os bens culturais exógenos se revestem de um padrão universal sedutor que apreciamos, e por isso consumimos, parece-nos racional pensarmos em organizarmo-nos para ombrear com esses centros de produção de tais bens culturais e temos a prerrogativa de promover bens culturais exportáveis não enxutos, dada a larga diversidade cultural de Moçambique. Promover bens culturais exportáveis implica antes ter a capacidade de produzir para alimentar o ambiente interno, o que não é possível com políticas que colidem com a realidade local. Não se pode pensar a industrialização do livro enquanto este continuar menos acessível, sobretudo num contexto em que emergem cada vez mais autores e cada vez menos leitores. É uma contradição ao que prevê a política do livro. Significa que ainda não conseguimos estar próximos dos que seriam os piores exemplos da Europa, como é o caso de Portugal que está entre os países da União Europeia que apresenta baixos níveis de leitura, no entanto a edição anual de livros supera de muito longe as de Moçambique, agravado por baixas tiragens que revelam uma Indústria Gráfica local incipiente.

Não nos parece coerente pensar uma indústria de música moçambicana exportável em grande escala se não formos capazes de nos alimentarmos da própria música, a semelhança da África do Sul e Nigéria. Seria de todo estranho vender ao outro o que não consumimos. É mau sinal quando o tráfego congestiona e o Hotel Gloria fica abarrotado porque a Ana Joyce vai cantar e mesmo não ocorre quando um artista local se apresenta ao mesmo lugar. Isso impõe que a nossa política deve ser proteccionista à arte local. Depois de a Timbila ter sido proclamada Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que lhe garante grande destaque internacional e um crescente interesse sobre as suas origens, a preocupação de Moçambique não deve terminar em celebrações dessa façanha. Deve ser a de pensar como tirar proveito dessa conquista no mundo no âmbito da Indústria cultural. Não seria este o caminho para uma produção de Timbila em escala industrial para alimentação local e para exportação? Por outro lado, se a música nacional deve ser tomada como business, então a cadeia de produção e de valores deve ser repensada a partir do sistema nacional de educação. Privar crianças de educação artística e musical em particular, através do currículo do ensino público reducionista, para além de revelar a ausência do estado e incitar a não inclusão, elitiza a música e não promove a emergência artística musical que estaria em harmonia com a ideia de industrialização cultural. E a industrialização musical vai muito além do fazer música, compreende desenvolver uma capacidade de dependência interna de fabrico de instrumentos locais em grande escala para alimentar a escala maior. Tenhamos em conta que as sociedades são produto ideológico. Se a nossa noção de arte se centra no entendimento que coloca o ocidente como modelo de estética, significa que o ocidente foi suficientemente forte ao difundir sua carga ideológica. Cabe a nós invertermos a pirâmide para não estarmos na condição de subalternidade ao reproduzirmos a forma ocidental de arte – o que reduziria as chances de podermos ombrear com este no mercado global por não termos um diferencial a oferecer.

Não seria racional, por exemplo, contar com uma Indústria Gastronómica enquanto a visão de culinária se circunscrever a feiras, seminários públicos e não em criar “KFCs” e “McDonalds” tipicamente locais com visão expansionista internacional. Não é coerente pensar e materializar uma indústria do teatro e do cinema, com salas convertidas em templos, e o cinema visto como entretenimento e não como instrumento de mediação de valores moçambicanos capazes de seduzir o país e o mundo. Se o EUA exibe a sua pujança militar através do cinema, então nós podemos exibir os atractivos turísticos e outras potencialidades que geram receitas significativas ao estado. É, sobretudo, importante que haja muita clareza sobre como queremos nos posicionar enquanto Indústria Cultural com ascensão da Inteligência Artificial, atendendo os desafios muito básicos que temos com relação à internet.

Uma Indústria Cultural que se queira sólida num mercado global gera símbolos culturais através da sua arte. Se não somos capazes de firmar tais símbolos, pelo menos a nível da região, então a linha que separa o discurso da realidade ainda não é ténue. Se o que designamos indústria cultural ainda não escalou estágio de mercado consumidor de bens culturais, com altos níveis de consumo interno, e não gera receitas ao Estado, então estamos ao nível de discurso triunfalista e não de Indústria Cultural moçambicana.

“Nós não temos absolutamente nenhuma intenção de nos deixarmos guiar por qualquer que seja ideologia, nós temos a nossa própria ideologia, uma ideologia forte e nobre, que é a afirmação da personalidade” – Patrice Lumumba.

Armando Emílio Guebuza é uma figura de destaque, tanto na política, quer nos meandros literários. A sua obra literária, “Os Tambores Cantam”, reflecte uma profunda conexão com o seu passado e dos demais moçambicanos, em tempos de opressão colonial, sobretudo a partir de 1963 a 1974, anos que eternizaram as dores do seu povo através de um papel e uma caneta, igualmente fazendo um presságio de como será o país nos próximos anos se o continente pautar pela união para objectivos comuns: luta pela independência e liberdades.

Na verdade, “Os Tambores Cantam” trata-se de uma obra que testemunha a capacidade que a literatura tem de inspirar, educar, moldar o Homem e chamar a consciência das massas, com atitudes para galvanizar sua independência.

O título “Os Tambores Cantam” pode inicialmente sugerir um tom festivo, mas a profundidade dos poemas revela uma realidade dolorosa e angustiante. Ao explorar o conteúdo da obra, o leitor se depara com expressões de sofrimento, opressão e revolta contra a brutalidade colonial. Guebuza utiliza as suas poesias para denunciar as atrocidades cometidas pelos colonizadores portugueses e para evocar a memória dolorosa do povo moçambicano.

As poesias guebuzianas expõem, de forma evidente, cenários abomináveis de qualquer acção macabra. Em cada verso, o “poeta de combate” situa o leitor numa viagem em que se (re)vive as tremendas barbaridades perpetradas pelos portugueses em tempos de opressão, descrevendo, de forma minuciosa, cada episódio dos africanos entregues às mãos de bárbaros colonos.
Guebuza privilegia uma linguagem acessível, aliás, simples e directa para atingir todas classes sociais, retratando ao pormenor as memórias, os traumas, as sequelas enfrentadas pelos moçambicanos no passado.

O poeta não só expõe e descreve a dor do seu povo como também anuncia um movimento revolucionário urgente, ou seja, convida a todos os moçambicanos e africanos, em geral, a irem à luta em prol da sua independência, quer financeira e económica, quer cultural e política. Nos seus poemas, Guebuza ganha coragem e exterioriza-se “intimamente” com o mundo, exibindo todas suas feridas marcadas por aquele período opressor.

A escrita de Armando Guebuza, apesar de tamanha dor e desabafos, é também repleta de sonhos: conduzir Moçambique livre das amarras coloniais, e com a preservação das liberdades.
Para se alcançar a liberdade é imperios, recuar ao passado, tomar como inspiração algumas figuras que foram preponderantes na história de libertação de Moçambique, que, dentre vários, destacam-se “Maguiguana”, “Nwamatibjana”, “Ntumbuluku” e “Macombe”.

Em “Falavam Português”, por exemplo, o Poeta de combate descreve com evidências a estupidez dos colonos, que, por qualquer motivo, partiam para violência impiedosa, com a utilização de adjectivos pejorativos como “sacana, burro, selvagem”. A violência era tão tremenda que, por vezes, os escravizados perdiam voz, por conta de chicotes que rasgavam a pele e regava os solos com o sangue que jorrava.
Por conta desta realidade, em “As Tuas Dores”, o autor invoca a junção das forças quase que acabadas e quer as tornar sólidas para “estrangular a opressão”, por conta das dores que sentem. Por isso, foi “pegando em armas” que se venceu o “imperialismo”. Por outro lado, o sangue que outrora regava os solos, com a união, regou a “vitória” dos moçambicanos.

Embora “Os Tambores Cantam” concentre-se nas experiências da colonização, a obra também se relaciona com os desafios contemporâneos de Moçambique. A obra de Guebuza permite, através do passado colonial, iluminar questões actuais, como a instabilidade em Cabo Delgado e a dependência económica de ajuda externa. Esta conexão entre passado e presente reforça a necessidade de um movimento contínuo em direcção à verdadeira independência e auto-suficiência.

Por estes factos, Guebuza critica a dependência contínua de Moçambique e de outros países africanos em relação à ajuda externa. O poeta entende que essa dependência pode ser um meio de perpetuar o controlo sobre os recursos africanos, disfarçada de altruísmo. A sua preocupação, com a “ajuda” externa, é um convite à reflexão sobre as reais motivações por trás dessa assistência e os impactos duradouros sobre a autonomia africana.

Por outro lado, o Ocidente e outros continentes optam pela ajuda humanitária, nome de amizade e cooperação bilateral, para além de empréstimos financeiros como forma de “manipular” os africanos e, consequentemente, empobrecê-los, segundo conta em “Vi-te em sonhos como és” (p. 95).

No livro, o tambor referido, de modo geral, entende-se como um instrumento importante cuja finalidade é convidar diferentes actores sociais a manifestarem-se de acordo com a representação simbólica. Para alguns, é usado para fins rituais e religiosos. Para os outros, como forma de celebrar vários momentos de felicidade, que a vida oferece (festejos, diversões). Porém, o escritor usa a metáfora do tambor como um instrumento de luta e resistência, em vez de celebração.

“Os Tambores Cantam” é mais do que um relato da dor colonial; é um poderoso apelo à acção e à reflexão.

Armando Guebuza não apenas retrata as injustiças do passado, mas também convoca os africanos a persistirem na luta pela verdadeira independência e liberdade. Através de uma narrativa carregada de memória histórica e crítica social, a obra de Guebuza oferece um retrato inspirador da contínua luta pela justiça e autonomia.

Por: Domingos Mucambe

“Por tão amplamente que eu meneie a bandeira branca, por tanto que eu suplique um cessar-fogo, o quarto cavaleiro não me vem salvar” – Dulcineia das máculas (In Sem título 1, Done-se / revista literArte, 2024)

A existência, usando das mentes de Lakoff e Johnson, é um campo metafórico. Portanto, em mares que não expressam solubilidade, mas uma (in)certa volubilidade de metáforas, estagna-se, em concordâncias significantes, com a ideia de que nela, a existência, tudo é entrópico. Pego em empréstimo esse termo da física quântica, que é uma medida da desordem ou aleatoriedade em um sistema. Parece-me um tanto poético e científico, em simultâneo. E ela é, no final, isso: tudo, parece, tende ao incessante caos.

É um estado anímico de caos, turbulência ou motim, com pinceladas carregadas de fatalidade, que cresce em mim, quando ponho os olhos no quadro de Marcos P’fuka, intitulado “A pomba não pousou”. O óleo sobre tela, nas suas dimensões 100 x 75 cm, traz, em nós, esse discurso em cores de violência e destruição: esperança estilhaçada, desespero espalhado, e, acima de tudo, um sentido de paz que está em fragmentos pelos ares, e esvaece ainda no casamento com o terno firmamento.

Vermelho e preto: o prelúdio da ruína. O pano de fundo da imagem aliado ao vermelho vão além de cores convencionais. Esse além é o recesso dos artistas, onde, com o seu pincel, carrega-nos acima das convenções ordinárias, quando nos coloca o fundo preto como simbolização de incertezas, destruição e falta de perspectiva ou horizontes. O vermelho, aqui sinónimo de preto no simbolizar do cessar da crença num futuro cada vez mais sombrio, lembra-nos a violência, morte e sofrimento, ou tudo num sentimento profundo e confundido.

O quadro brilha pelo contraste. Um serviço mínimo, quanto às cores. Apenas preto, vermelho, branco, azul e dourado, que nos oferecem uma simbologia profunda sobre a actual condição humana, ou do moçambicano, em particular, que vive em um contexto de instabilidade mental, financeira, cultural e até política, em uma palavra, um caos existencial.

O branco é mesmo sugestivo, e aliado a penas distribuídas pela pintura, só lhe resta ter ares de paz. O que me ocorre, é que não se trata de distribuição das penas, mas de um estilhaçar violento e sangrento delas. “A pomba não pousou”, o que, na verdade, significa a paz [é que] não pousou, aliás chegou. Fala-nos da paz, mas não nos apresenta um pombo, apenas estilhaços e fragmentos do mesmo, penas e sangue, jorrando, gota à gota, até o findar da ave anunciadora de paz. Também nos retrata a paz como algo ainda por chegar, ou algo oferecido por algo ou alguém, talvez, se tenha a paz como algo sobrenatural, em que é consequência de forças que estão além do poderio humano.

Os desvarios, que nascem nas várias variáveis incontroláveis do existir, minam o florescimento e a manutenção da paz, então a humanidade revisita-se nesse quadro quando se coloca patente, não a paz, mas os seus estilhaços em formas de penas. Essa imagem só nos retrata e lembra confusão, no geral, de tudo e sobre o mundo. Fica nas nossas memórias um cenário tumultuoso, consequência de um estrondo, um conflito, ou um acidente violento, um descarrilar da vida que coloca todos os sentidos atrapalhados, tudo de pernas para o ar, e um cenário “terrorístico” inefável, que só uma paleta de cores, pincel e imaginação podem expressar.

Esses desvarios impossibilitaram, como bem o sabem, o pouso do quarto cavaleiro. Pelo contrário, ele foi estilhaçado ainda no ar, ainda sonhando com o poso, ainda sendo um promessa de um futuro banhado de serenidade e beatitude. Talvez, esse fragmentar da pomba signifique que a paz é sempre uma eterna promessa futurísticas, mas, como diz um personagem em “Mar me quer”, de Mia Couto, “o futuro é um tempo que, existindo, nunca chega a haver”. Por aqui toda paciência que nos “mingua” desvanece em pingos desengonçados nesse paradoxo abismal e tão actual. Contudo, com essa paleta de cores que cheira à destruição, caos e violência, esse presente, infelizmente, não nos “suficienta”, pelo contrário, desfola-nos (expressão usada pela minha mãe quando se refere a tirar pele duma galinha, no lugar de depenar, um processo violento) por dentro.

Além disso, talvez sussurra-nos bem baixinho o que seria um tormento para o Homem: ela é como felicidade, qualquer coisa intimida-lhe a sua meiga coragem. Copiando do mestre, a paz talvez seja algo que, existindo, nunca chega de haver. Sempre algo a adoece e aborrece. Ela esboroa-se como pedaços de fumos que desaparecem na atmosfera.

Na parte inferior esquerda do quadro, P’fuka pendura um objecto ambivalente com uma coloração dourada. Numa primeira vista se parece um crucifixo incompleto. Mas, prestando mais atenção vê-se uma outra coisa, uma espada longa, que atravessa as penas, o ponto central do caos. Talvez seja esse o desvario, o conflito desse enredo que nos contam sem nenhuma palavra dita ou escrita. Com olhos ainda atentos, vê-se sangue deslizando da espada, e um pouco por trás dela. O que a espada representa?

Por muitos anos, a espada foi um instrumento de luta e guerra. Talvez, esteja a falar-nos da guerra, que adia o pouso da pomba. Um apelo à paz que já vai tarde em Cabo Delgado, por ora, é o que me passa pela cabeça. Um cenário de destruição, violência, sangrento e de morte.

O artista funde esses dois objectos simbólicos, tanto na história humana como na ideologia, valores e crenças moçambicanas. Por um lado, a espada, e, por outro, a cruz. Seria a cruz a representação da prevalência da fé como um elemento que explica ainda a permanência do moçambicano no meio de um lugar desprovido de ordem e tranquilidade? Quiçá ela represente que os moçambicanos agarram-se à fé para ainda sonhar com o eterno porvir da paz, e sobreviver num mundo em ruínas, que cai em (des)pedaços.

A obra comunica-se com cada um de formas particular e subjectiva. Qual Moçambique? Essas cores são muito mais íntimas que ressoam dentro da alma. Um mundo interior em destruição, tudo caindo nas mãos do abismo, ou pombas de paz caindo em buracos negros, uma região da existência em que nada, nem mesmo o luzir da esperança, escapa. Mergulhamos dentro da obra, evocando fortes emoções porque, até ao nível psicológico, parece que tudo tende a ir para a anarquia, o que nos leva, de forma generalizada, a dizer que “são maning cenas”. Expressão essa que explica, resumidamente, o desespero, o desabamento, o cabisbaixar, a depressão, a desordem, descarrilo da vida, caos de tudo. Parece que ninguém, nessa geração, tem nada no controle. Como Hernâni da Silva mencionou em “Pressure” (2021), estamos todos a viver essa depressão.

Essa pintura é de 2022, um ano em que se intensificaram os apertos do terrorismo. Também propagou-se a campanha que iniciou em 2020, com a frase “Cabo Delgado também é Moçambique”. É uma mostra da exposição colectiva “Horizontes partilhados e Múltiplos olhares”, na Fundação Fernando Leite Couto, inaugurada no dia 4 de Setembro, com duração de um mês.

Marcos P’fuka, um experiente artista plástico, com várias exposições e premiações, propõe-nos nessa obra cheia de significados profundos a penosa condição do mundo, de Moçambique, em particular, e seus de indivíduos. Um mundo de conflito, onde a existência gira na batalha entre guerra (também internas) e paz, esperança e a falta dela. Tudo abeira-se a um colapso.

Antes, felicitar o autor, por mais esta obra. Gostaria de dividir a minha apresentação em 4 tópicos, sem necessariamente fechar outras possibilidades interpretativas que ela oferece. Afinal, a função de um apresentador é de despertar o interesse dos outros leitores e não de inviabilizá-lo como muitas vezes acontece. Espero, muito honestamente, que este não seja o caso.

O primeiro tópico: para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
O segundo tópico é sobre a autoria: quem é o autor desta obra? Musumbuluku Nhuvu? Narciso Matos? Ou Cisito? (Devido à sua profunda e incontornável interligação, alguns dos aspectos que afloro nesta apresentação incluem também elementos retirados da obra anterior Ndangu Wa Txindi na Musumbuluku (2022));
O terceiro tópico incide sobre algumas daquelas que considero as grandes questões levantadas por Mishu;
Finalmente, o quarto tópico: a quem esta narrativa é dirigida?

1) Para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
A biografia, à partida, é um espaço de ambiguidade, em termos de género e de pertença: é ou não literatura? Apesar de ser uma narrativa, até que ponto pode ser assumida como ficção? Nos casos em que temos biografias ficcionalizadas, hoje fala-se muito em autoficção, e onde a imaginação do autor prevalece, fica, aparentemente, tudo mais fácil. Por outro lado, toda a biografia, ou autobiografia, levanta, de uma ou de outra forma, suspeição: devemos assumir como verdade tudo o que ali nos é revelado? Onde reside, afinal, a especificidade deste género? E o que o faz oscilar entre o fascínio, por um lado, e a desconfiança, por outro, que provoca em diferentes pessoas?
Freud não hesitou, por exemplo, em afirmar que “Para ser biógrafo é preciso enredar-se em mentiras, dissimulações, hipocrisias”, (carta a Arnold Zweig, em 1936). Por sua vez, o renomado escritor norte-americano, George Orwell, autor das emblemáticas obras-primas, Animal Farm (O Triunfo dos Porcos) e 1984, observou, um dia, referindo-se à autobiografia, que “só se pode confiar nela quando revela algo vergonhoso”. Não tendo, pelo menos na minha leitura, achado nada de indecoroso em Mishu de Musumbuluku, podemos, ou não, confiar nesta autobiografia, seguindo o entendimento provocador de Orwell?
Uma das razões que justifica esta suspeição, diria mesmo retracção, em relação aos escritos biográficos, mais concretamente à autobiografia, é o facto de esta, em particular, ter como principal suporte a memória do autor, portanto, a sua própria subjectividade. E o grande mérito de Mishu reside, para mim, na forma inteligente como o autor (questão que irei abordar adiante), não só ter recorrido ao pseudónimo, melhor, ao seu nome tradicional – como sabemos estes nomes foram negados pelo sistema colonial -, mas também ter evitado, ao longo da obra, cair no fácil apelo à emoção. Além do mais, foi também extremamente cauteloso na revelação de qualquer forma de intimidade, facto que é sublinhado pelas precauções tomadas no distanciamento calculado do narrador em relação ao protagonista, no fundo, ele próprio. E, de imediato, nos interrogamos: qual o efeito sobre o leitor desta afectividade controlada, deste intimismo mitigado?
E, regresso, à questão de fundo: afinal, para que serve uma autobiografia? Muitas são as respostas possíveis:
a) preservação de uma determinada memória individual e colectiva;
b) função pedagógica: deixar uma lição de vida a partir da história contada;
c) necessidade de legitimação de um passado ou de um percurso;
d) reivindicação de um legado pessoal, familiar, sociocultural, histórico;
e) partilha, de forma despretensiosa, de uma história que lavra dentro de cada um de nós e que nos pede para sair;
f) preocupações apologéticas, em relação a um ideal ou a si próprio (casos cada mais comuns de puro pedantismo ou auto-exibicionismo);
g) partilha de inquietações existenciais: afinal, quem sou eu e de onde venho?
h) uma função desmistificadora: um dos grandes exemplos é Conversations with myself (2010), um texto intimista de Nelson Mandela, em que ele próprio confessa que escreveu aquelas memórias para mostrar que era um ser humano como qualquer outro, e não um santo, como muitos o tentavam apresentar.

2) Quem é o autor desta obra?
Já nos referimos ao facto de, em Mishu, estarmos diante de um caso desafiador em termos de autoria. O autor empírico (o de carne e osso que está aqui connosco e que todos conhecemos como Narciso Matos) recorre ao seu alter ego (neste caso, que é mais do que um pseudónimo), seu nome tradicional, que assume, nesta obra, um triplo papel: primeiro, o de autor textual, portanto, que dá o nome à autoria da obra, bem expressa na capa; segundo, o de narrador: quantas vezes ao longo do texto se refere a si próprio como o narrador; e finalmente, o de protagonista. Protagonista que, nas primeiras páginas, é apenas tratado por “menino”, até que, na entrevista para iniciar as aulas no ensino oficial, na escola pública, em pleno período colonial, ao lhe ser perguntado o nome, o menino responde, sendo obrigado a repetir perante a perplexidade dos professores: Musumbukuku Nhuvu.
Como sabemos, vivemos tempos extremamente conturbados e desconcertantes, em que assistimos, um pouco por todo o lado, ao desfile interminável de egos inflamados (há quem fale na hipertrofia do ego), tal é a desmesurada exposição do nome e da própria imagem, numa compulsiva e despudorada demonstração de soberba e de pretensa autoconsagração. Contrariando esta tendência, ocorrem-me duas experiências bem contemporâneas: uma, a de Banksy, artista de rua e o mais famoso grafitista britânico; outra, a da escritora italiana Elena Ferrante, autora de A Amiga Genial, recentemente considerado, pelo New York Times, o melhor romance do século XXI. Ninguém sabe quem eles são efectivamente, isto é, qual a verdadeira identidade de Banksy e de Ferrante. A ideia do pseudónimo, aqui, como cobertura do nome e da real identidade dos autores, adquire com estes dois casos, uma dimensão verdadeiramente edificante e transcendente.
Entretanto, no caso particular de Musumbuluku Nhuvu, a questão adquire outra complexidade, pois estamos assumidamente diante de uma busca, de uma aparente tentativa de recuperação de uma identidade transviada, ou roubada. Numa altura em que tanto se fala de reparações dos danos coloniais, Musumbuluku, através do nome que assume e deste exercício memorialista, mais não faz, e de forma honesta, modesta e simbólica, do que procurar reaver o que lhe foi negado. Daí outra hipótese de título: Musumbuluku Nhuvu: em busca da identidade usurpada.

3) Algumas das grandes questões levantadas por esta obra
Já vimos que uma das principais questões levantadas por Mishu e a obra que a antecede passa pela questão da autoria, que se prende com o problema moderno do sujeito. Ou não deveríamos dizer, o problema do sujeito moderno. Afinal, quem somos nós, enquanto sujeitos produtos da colonização? Na p. 11, encontramos esta passagem elucidativa:
Os filhos e filhas de moçambicanos aderiam a esta acção civilizadora. Viam que os seus filhos, feitos catequistas enfermeiros nas missões, ou intérpretes nas administrações coloniais ascendiam, de facto, a um estatuto mais elevado. Calçavam sapatos, vestiam fatos e usavam chapéus ocidentalizados, diziam-se afastados das crenças e costumes (embora os praticassem no segredo por todos conhecido), construíam casas melhoradas, plantavam árvores de fruta, construíam moageiras e furos de água, enfim, assemelhavam-se, passo a passo, mais aos colonizadores do que aos seus. A sua vida melhorava. Eram a prova viva de que a educação e a fé (do colonizador) eram a escada da vida.

Esta é uma discussão incandescente num campo de estudos, hoje em voga, mas de uma riqueza teórica inquestionável: os post-colonial studies, onde se procura, entre outros aspectos, perceber os sujeitos problemáticos, complexos e contraditórios emergentes da longa noite colonial, enquanto produtos de dois ou mais mundos. A propósito, o tunisino Albert Memmi escreveria um dia: um homem a cavalo sobre duas culturas, raramente estará bem montado.
Associada à questão do sujeito, temos a da própria memória: privada e colectiva, em contraponto às inquietantes e cada vez mais frequentes manifestações de amnésia, de descaso com o passado ou, mesmo da sua manipulação, de que o nosso tempo é tão fértil. Destacando-se, cada vez mais, como uma sociedade do esquecimento, percebe-se porque é tão precário e tão volátil o quadro de referências que nos guia, e de um modo ostensivamente imoral. São muitas as evidências de que está a ser promovida no país, há já vários anos, de forma deliberada e sistemática, uma cultura do esquecimento. Para todos os efeitos, a memória é a suprema ordenadora das nossas consciências, sejam elas privadas, sejam elas colectivas. Daí que o “dever de memória” como o antropólogo francês, Marc Augé, um dia definiu, nunca se tornou tão imperativo como agora, num contexto em que a amnésia colectiva e uma espécie de demissão em relação a essa mesma memória se tornaram tão pronunciados.
Muito a propósito, socorro-me de um provérbio africano que reza: Trate bem a terra. Ela não lhe foi doada por seus pais. Ela foi-lhe emprestada pelos seus filhos. E a pergunta que assoma: afinal, que terra, dada a forma como todos dias pontapeamos a memória, vamos, pois, devolver aos nossos filhos? Não resisto, aqui, a invocar o que se passou no Chile, em que milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e mortas, e para que perdurasse na memória de todos a trágica experiência da ditadura de Pinochet, decidiram colocar uma faixa no Estádio Nacional, em Santiago, que se mantém até hoje e onde se lê: um povo sem memória é um povo sem futuro.
Parece inegável que a memória é, eventualmente, o tema transversal, das duas obras de Musumbuluku (Ndangu Wa Txindi Na Musumbuluku e Mishu), sem que se percam de vista os seus fundamentos: as distantes origens familiares, a infância, as vivências (urbanas e suburbanas; o campo é residual), os choques culturais, a questão linguística, os processos assimilatórios, a arquitectura das alianças das famílias do sul de Moçambique, sobretudo, nos subúrbios e arredores de Lourenço Marques. Neste particular, pode ser um exercício interessante cruzar as duas obras com outras obras, como, por exemplo, Memórias (1989) de Raul Bernardo Honwana; Zedequias Manganhela, (org. Teresa Cruz e Silva); Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade (2018), de Nely Nyaka; A Cadeira de Caniço, Daniel Gabriel Tembe, Geração da Transição, de Iolanda Macamo (2023), entre outras.
Alinhada com a questão do sujeito e da memória, temos igualmente, o próprio título, Mishu, que quer dizer manhã, alvorada, em ronga, que nos remete para a ideia do despertar, neste caso, de uma consciência colectiva, sobretudo entre os jovens assimilados, que o pós-25 de Abril iria provocar (pp. 87, 88):

As campanhas de alfabetização e educação de adultos nos bairros suburbanos de Lourenço Marques revelaram a Musumbuluku e a muitos outros jovens universitários e estudantes de escolas secundárias […] a face nua da exclusão e das carências económicas e sociais criadas pelo colonialismo. Fê-los ver, de perto, com olhos novos e em primeira mão…Viram a pobreza e o abandono em que viviam milhares de crianças….Viram os índices elevadíssimos de analfabetismo nos subúrbios….Viram a quase ausência de postos e de cuidados de saúde primários….Viram as casas de caniço cobertas de zinco, e os seus maus serviços sanitários e incerto abastecimento de água…

Esta é uma passagem que nos prova que o colonialismo, com todos os seus mecanismos ao serviço da conquista e da submissão, tinha conseguido normalizar o que não deveria ser normalizável, ao conduzir os próprios africanos, sobretudo os jovens, a um estado de alienação e cegueira estrutural em relação à precariedade do seu próprio quotidiano e da realidade circundante, como se se tratasse da ordem natural das coisas. Temos, a propósito, que prestar atenção à incidência na visão, traduzida na repetição do pretérito do verbo ver: viram.
Daí, esta ideia de despertar, talvez mesmo de renascimento, que a revolução iria perseguir. Por outro lado, podemos, a partir daqui, registar o importante facto de como as biografias, mesmo privilegiando o percurso de um indivíduo, ou de uma família, nos permitem retratos amplos de uma época, com parte significativa das suas dinâmicas sociais, políticas, económicas e culturais.

Quem são os destinatários desta narrativa, isto é, o leitor ideal de Mishu?
Tendo em conta o que atrás dissemos, em relação àquelas que consideramos as questões-charneira desta autobiografia (autoria, memória, despertar da consciência colectiva), podemos afirmar que são vários os possíveis destinatários desta obra:
Contemporâneos do autor/narrador/protagonista: como se a obra nos dissesse: não vamos esquecer o tempo que passou. Como muitos de nós estamos lembrados, esta era uma das canções preferidas do Presidente Samora Machel. Hoje, percebemos não só porque insistia tanto com esta canção, como também a quem ele a direccionava;
Os jovens de hoje e os de amanhã: afinal, eles sabem de onde vieram? Alguém lhes tem explicado isso? Existe um passado histórico, antropológico e social que nos continua a interpelar e que está ancorado, por mais que o neguemos, nos nossos destinos individuais e colectivos. Repito: Um povo sem memória é um povo sem futuro. Para que isso faça algum sentido, tentemos socorrer-nos de experiências de países um pouco por esse mundo fora, como, por outro lado, e a título privado, tentar conduzir uma viatura sem nenhum espelho retrovisor. É muito provável que cheguemos ao nosso destino incólumes, mas o exercício será simplesmente devastador. Para nós e para os outros.
Termino saudando, uma vez mais o autor, este doublé de Narciso e Musumbuluku, que mostra, nesta segunda obra, um assinalável salto qualitativo, ao mesmo tempo auspicioso, e como promessa não declarada de que a próxima obra poderá ser a confirmação de uma veia que o próprio deveria desconhecer.

Maputo, 6 de Agosto de 2024

Na imensidão do cosmos, onde cada estrela carrega um segredo e cada constelação desenha um caminho, as mãos humanas actuam como pincéis, unindo essas partículas em um conjunto harmônico.

Às vezes, o pincel vai além da beleza visível, transformando-se em uma ferramenta que desvela os mistérios mais íntimos da existência. Nessas manifestações artísticas, somos convidados a explorar as profundezas do inconsciente colectivo e a emergir revitalizados.
Foi sob este signo de revelação e transformação que um encontro singular aconteceu, no sábado último (31/08/2024), na Casa do Professor, na Matola, onde vozes de diversas esferas do saber e da criação se uniram em torno de uma visão comum: desenhar novas narrativas para Moçambique.

Neste ambiente, onde o diálogo entre a palavra e a imagem se faz tão natural quanto a respiração, destacou-se a obra de Marcos Mpfuka, um artista cuja visão atravessa o visível para tocar o intangível, revelando verdades universais por meio de cores e formas enigmáticas.

Neste contexto, a obra exposta por Mpfuka não se limita a ser contemplada, com efeito, se oferece como uma chave para decifrar o presente, para reinterpretar os símbolos e os mitos que moldam o espírito de uma nação. Assim, ao examinarmos as subtilezas das cores e das texturas, somos chamados a refletir sobre a intersecção entre arte e realidade, e a questionar: Como podemos, através da arte, tecer os fios do futuro de Moçambique?

Logo à primeira vista, a obra cativa pela vivacidade de suas cores e pela riqueza de suas texturas, oferecendo uma imersão sensorial que demanda uma apreciação prolongada.

A composição do quadro é dominada por formas abstratas, que evocam tanto o movimento quanto a tensão. As linhas que se mesclam e se dobram parecem representar caminhos ou jornadas que, apesar de tortuosas, encontram um ponto de convergência. Este traço sugere uma analogia potente sobre a necessidade de encontrar unidade na diversidade, de reconectar peças dispersas em uma narrativa coerente para o país.

O vermelho e o preto dominam a paleta de cores, destacando uma oposição que pode ser interpretada de várias maneiras. Ora, o vermelho, por um lado, pode ser visto como uma cor de vitalidade, paixão e até de sacrifício, ou seja, aspectos que são centrais na história e cultura moçambicana.

Por outro lado, o preto adiciona uma potência que parece puxar o espectador para dentro do quadro, sugerindo tanto o mistério quanto o luto. Esse jogo de cores pode ser lido como uma representação do passado doloroso do país, mas também como um impulso vital para superar essas sombras e criar novas narrativas.

A textura da pintura é sólida e refinada, quase palpável, o que confere à obra uma tridimensionalidade que chama a atenção.

No entanto, a maneira como a tinta foi aplicada, em camadas espessas, por vezes com traços que parecem rasgos, evidentemente, reforça a ideia de um tecido desgastado, que precisa ser remendado. Isso pode ser interpretado como uma crítica às feridas ainda abertas na sociedade moçambicana, que requerem cura e atenção para que se possa avançar.

Ademais, bem no centro da obra, há uma sugestão de formas que podem ser decifradas como mãos ou figuras envoltas em movimento. Esta ambiguidade é, na verdade, uma força do quadro, pois permite múltiplas interpretações. As mãos, que são frequentemente sinais de trabalho e criação, poderiam representar o esforço colectivo necessário para construir novas narrativas para Moçambique.

Ao mesmo tempo, essas formas em movimento podem simbolizar a fluidez e a incerteza dos tempos actuais, um lembrete de que o futuro é moldado pela acção no presente, “em nome dos povos hoje nós gritamos, liberdade”, como ressoa na música da Iveth Mafundza & Hot Blaze, intitulada “Leave no one behind”.

Dessa forma, o Sarau na Casa do Professor revelou a arte como um meio de transformação impactante. E a obra de Marcos Mpfuka, com suas cores intensas e texturas marcantes, não se limita a uma simples exibição, mas serve como uma ponte para novas interpretações e reflexões sobre o futuro de Moçambique. Como bem observa a escritora Virgília Ferrão, “O facto de poder partilhar a escrita com o leitor é motivador”, efectivamente, este sentimento se aplica igualmente à arte. Portanto, compartilhar a visão artística de Mpfuka com o público é como lançar sementes em solo fértil, que podem germinar em novas ideias e inspirações. O evento demonstrou que a arte tem o poder de envolver e desafiar, incentivando todos a tornarem-se co-autores de uma nova narrativa para o país.

“Eu vos digo que o não sentir os poetas é uma das maneiras mais baixas de ser pobre”
in: Giovanni Papini

 

A poesia se estrutura através da fragmentação da vida, espaços, pedaços, estilhaços. O poeta, para construir a sua realidade, precisa eliminar a realidade que o antecede, destruir e reconstruir. Entretanto, Léo Cote, ao invés de destruir a realidade que o antecede, prefere agregar, incorporar, e, com isso, cria camadas de percepções que fazem de cada poema um universo misterioso e encantador.

Na sua obra literária, instalação do corpo, lançada no Camões, em Maputo, o olhar de vários poetas mencionados no livro percorrem caminhos não lineares onde as partes e o todo se reencontram na poesia.

Em anatomia, um corpo é o conjunto das várias partes que compõem um animal. A palavra, instalação é, frequentemente, usada nas ciências exactas, construção civil, refere a uma das primeiras providências tomadas para que uma obra [casa ou edifício], possa iniciar, como a demarcação do canteiro de trabalho ou a construção do depósito, por exemplo: abrange o conjunto das instalações eléctricas, hidráulicas, de gás ou de ar condicionado.

Segundo Priberam, dicionário online de língua portuguesa, a palavra instalação é junção de duas palavras, instalar + acção, é um substantivo feminino, que, no sentido literal, quer dizer “Acção de instalar, se estabelecer algo ou alguém em determinado lugar”. Assim sendo, este livro propõe uma reflexão profunda sobre a existência, o amor, a poesia e um lugar chamado “Ilha”.

Como diria Mia Couto, em “Venenos de Deus, Remédios do Diabo”, “Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.”

Na presente obra, em diferentes poemas, é possível sentir esta vontade do poeta de devolver o riso, recuperar o mundo sobretudo no poema da página 11: “comer pulgas é um divertimento inteligente. Uma bolha de inteligência que migra”.

Ora, quem come pulgas? Se por ventura alguém comesse, este acto seria inteligente? Afinal, a que pulgas o poeta se refere?

Tudo, aqui, conspira na busca incessante de uma reflexão sobre o dia-a-dia, situações aparentemente antagónicas. Relatando alguns poemas de passado, mas com uma mensagem actual. Ademais, o passado, para Cote, é a ferramenta que projecta o futuro. Por isso, a sua escrita abraça e acaricia todos poetas, entre os vivos e mortos.

Cote escreve o mundo e concilia a clareza modernista com a atenção e ironia típica das artes e suas derivações definem a escrita contemporânea. Pela generosidade, humildade e clareza no processo criativo dos seus textos, versos e estrofes, “ no livro”, o poeta, ressuscita vozes emblemáticas na literatura, poesia moçambicana, como Virgílio de Lemos; Rui Knopfli; Luís Carlos Patraquim, Sangare Okapi. Desta forma, torna-se referência obrigatória no cenário poético de Moçambique.

O poeta explora o corpo como um espaço de experiências e emoções, uma instalação, uma obra de arte. Transformando-o num ponto de partida para reflexões sobre a condição humana, como demonstra nos cadernos “Mitografia” e “A Geografia do Afecto”.

“Instalação do corpo” é uma obra misteriosa e mágica que revela o que temos de mais belo e encantador em Moçambique: a capacidade de amar e sonhar. Por isso, engana-se quem pensa que o gás, o carvão, rubins, a madeira são as maiores riquezas desta terra.

A poesia moçambicana, ao longo dos anos, reverberou a complexa existência humana. Em nome dessa tradição, silenciosamente, Léo Cote e um pequeno grupo de escritores permaneceram fiel à sua própria história, consciente da fundamental importância da prática de espalhar o quotidiano na poesia.

É possível verificar esta vontade incessante de espelhar o quotidiano na seguinte passagem: “Bargalha para três e moelas para dois como um poema pós-moderno…”. In: Poema “vocábulo das chaves”, p. 12.

A escrita de Cote ilumina toda uma geração de poetas e define o futuro da nossa literatura. Na poesia, Léo e Álvaro Taruma são, hoje, ícones do nosso tempo e do território. Reencontrá-lo é sempre um reencontro com o que temos de melhor. Como se pode ver na capa, a obra “Instalação do corpo” é um farol e a sua luz ilumina a noite e silencia o dia.

Agora, na vertente semiológica, temos primeridade e secundidade. Na imagem em análise, a Primeridade é o título do texto, visto que, em tamanho, está mais destacado quando comparado com os demais elementos da capa.

Como secundidade, nesta temos a cor azul claro, a lua, quatro sombras e ondas do mar que anunciam a tentativa de um poeta, Léo Cote, instalar a poesia no corpo humano.

A capa apresenta uma imagem mista, que é junção da linguagem verbal e não verbal.

Desfigurando a linguagem verbal, aquela que é feita de forma oral e também de forma escrita, na capa pode-se encontrar os seguintes elementos: Léo Cote; Instalação do corpo; Gala-gala edições.

Para o primeiro ponto, “Léo Cote”, é possível perceber que se trata de nome do autor da obra, é uma forma de informar do imediato ao leitor, apreciador sobre o autor do livro. Por isso fica no topo e centralizado.

A segunda descrição “Instalação do corpo”, serve para preparar o leitor sobre o conteúdo a ser abordado. Também, através do título, é possível perceber que é um livro de poesia.

De seguida, está patente uma linguagem não verbal, aquela que é feita por meio de sinais e gestos. E, na capa, pode-se ver a lua, o mar, e quatro sombras de pessoas carregando e segurando alguns objectos. A lua entre as nuvens, surge como um sinal de esperança, uma possível vontade de clarear a vida e despertar o amor no leitor. Às sombras dos quatro homens à beira-mar transmite uma ideia de tristeza.

Também é possível buscar compreender o próprio significado das corres que predominam na imagem [a cor de fundo da capa] azul claro e azul escuro, onde podemos entender que o azul claro vem junto com a espiritualidade de tranquilidade e harmonia e nos remete a um futuro de esperança, enquanto que o azul escuro faz-nos perceber sobre as dificuldades que habitam nos nossos corações.

Na vertente semiótica, quanto ao tipo de linguagem, vamos ver que ela trás consigo uma linguagem figurada porque nem todos têm o mesmo entendimento sobre a mesma coisa [imagem, capa do livro].

Apesar do grande crescimento dos adeptos à leitura em dispositivos digitais, ainda existem muitas pessoas que não dispensam o prazer de pegar no livro impresso, sentir o cheirinho do papel e folhear as páginas. Por isso, é preciso ter em mente que o tipo de papel usado para impressão, nas tiragens, ganhou muito mais importância nos últimos anos.

É preciso levar em conta que, se a apresentação do livro não for bem-feita, com acabamentos e papéis de boa qualidade, o leitor de hoje tem a opção de comprar a versão digital. O que o leva a comprar a versão impressa é o capricho que a torna especial.

O mais importante para impressão do miolo de um livro é a sua gramatura, já que dela dependerá a facilidade do manuseio. No livro “instalação do corpo” foi usado papel “creamy bulk de 70 gramas”, foi bem acertada, por ser um tipo de papel que não recebe ácido para seu branqueamento. Por isso, não reflecte a luz, o que torna a leitura muito mais confortável e o leitor dificilmente vai sentir a sensação de coceira nos olhos durante a leitura.

Agora, escrevo com reservas porque não sei ao certo a quem coube a função da escolha do tipo de papel para o livro, mas, o cheiro do papel é convidativo e tem um aroma agradável e doce de se sentir.

“Instalação do corpo” tem cerca de 100 páginas e é composto por três cadernos: Mitografia; O Ciclo da Ilha e A Geografia do Afecto. Mitografia contém 14 poemas, ciclo da Ilha 15 e A geografia do afecto 35.

 

 

Entre o silêncio das paredes e o som das memórias,
a arte revela o entrelaço do passado e do presente.

 

Ao cruzar o limiar da Galeria Kulungwana da Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, este espaço, tradicionalmente dedicado ao movimento incessante dos passageiros, transforma-se em um palco onde as obras se tornam compassos de uma sinfonia visual e funcionam como trilhos para uma jornada sensorial, em que o passado e o presente se encontram e a arte se torna um veículo para explorar novas dimensões da experiência humana.

A exposição “Nanquim Preto sobre Fundo Branco”, curadoria de Natxo Checa (Portugal) e Alda Costa (Moçambique), é uma retrospectiva que destaca a relevância histórica e artística do pintor no contexto do modernismo em Moçambique.

João Ayres, com seu domínio sobre o traço e o uso deliberado da monocromia, nos convida a uma reflexão sobre a condição humana e os cenários socioeconómicos.

Como diria Jean-Paul Sartre, “a existência precede a essência”. De facto, as obras revelam como a existência com suas lutas e experiências molda a essência da identidade e do ser, criando uma narrativa que desafia a simplicidade visual para revelar as nuances da condição humana.

Através de suas pinturas, propõe-nos um diálogo com as correntes intercontinentais vigentes na época, como o neorrealismo, concretismo e expressionismo.

Ao observar as quatro obras, somos apresentados uma paisagem que transita entre o movimento colectivo e a introspecção individual. A escolha do preto sobre o fundo branco traça um contraste que acentua a dualidade entre a luz e sombra, presença e ausência, vida e vazio.
Em termos técnicos, a preferência do nanquim sobre fundo branco é particularmente significativa. Diante desse cenário, a austeridade e a pureza do fundo branco discrepam de forma evidente com as linhas escuras do nanquim, enfatizando as emoções e as tensões presentes nas figuras retratadas.

Essa técnica minimalista, mas ao mesmo tempo dominante, retém a essência dos temas abordados por Ayres: o esforço humano, a opressão e a busca por identidade num mundo em constante transformação.

Naturalmente, a primeira imagem, acima, à esquerda, sugere uma procissão ou uma marcha, em que a massa de figuras parece avançar para além dos limites do quadro. Este movimento colectivo pode ser interpretado como uma alusão à história de resistência e às jornadas de luta que marcam o povo moçambicano.

Há uma sensação de anonimato entre as figuras, que, apesar de estarem unidas, mantêm suas individualidades ocultas pelo jogo de luz e sombra, algo que mostra as dificuldades das interacções sociais em contextos de servidão e aspiração.

Sob outro ângulo, o quadro acima, à direita, desvia-se substancialmente dos outros, ao apresentar um cenário mais vazio, possivelmente uma paisagem ou um espaço natural desprovido de figuras humanas.

Este espaço, que parece ser um momento de pausa ou reflexão, rompe com a concentração das outras obras e nos convida a contemplar a vastidão e o silêncio. Este vazio pode ser visto como uma metáfora para os momentos de solidão ou perda, ou talvez a vastidão de possibilidades e incertezas que permeiam a vida.

Surpreendentemente, as duas imagens, no quadro, em baixo, voltam a introduzir figuras humanas, mas em contextos que sugerem cenas de vida cotidiana.

Na imagem à esquerda, em baixo, as figuras parecem estar envolvidas em algum tipo de actividade comunitária, talvez um mercado ou uma reunião social, onde os corpos se cruzam e se conectam, criando um dinamismo que contrasta com o isolamento da obra em cima, à direita.

A luz desses factos, na imagem à direita, em cima, a intimidade entre as figuras sugere uma cena de cuidado ou ensinamento, onde a transmissão de saberes ou afectos é central. Aqui, o pintor comentava sobre a importância dos laços familiares e comunitários na construção da identidade e na resistência cultural.

O traço de Ayres, solto e expressivo, suporta um peso emocional que transcende a simples representação visual.

Há uma crueza e uma urgência em suas pinceladas, que dialogam com a história de Moçambique, marcada por lutas de libertação e processos de reconstrução nacional.

As obras não documentam apenas, também questionam e subvertem as narrativas dominantes, oferecendo uma visão que é ao mesmo tempo universal e consideravelmente enraizada no moçambicano.

Além disso, a exposição resgata séries de pinturas e desenhos neo-expressionistas dos anos 50, criados para serem exibidos em importantes instituições de arte, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a galeria do Ministério de Educação e Cultura do Rio de Janeiro.

O resgate proporciona ao público de Maputo a oportunidade de redescobrir uma obra que, por muitos anos, esteve esquecida e distanciada de sua terra de origem.

A apresentação das obras, apesar de cuidadosa, pode deixar a desejar em termos de contextualização histórica. Algumas peças carecem de explicações mais detalhadas que ajudem o público a compreender melhor o contexto em que foram criadas e como se relacionam com o momento social e político de Moçambique à época.

Contudo, o carácter de “regresso a casa” desta exposição é, portanto, um marco essencial na preservação do património artístico moçambicano, demonstrando o poder da arte em suscitar autoanálises e críticas sobre nossa identidade colectiva.

Como Vladimir Maiakovski observou, “A arte não é um espelho para reflectir o mundo, mas um martelo para moldá-lo.” Esta mostra, aberta ao público na galeria de artes Kulungwana, até o dia 27 de Setembro, oferece uma oportunidade única para explorar o legado singular de um dos grandes precursores do modernismo em Moçambique, revelando, como disse Albert Camus, “A resposta ao absurdo da condição humana.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Hoje olho para trás, vejo a fila de milhares de homens que passaram pelas minhas camas, e daria a alma para ter ficado com um, mesmo que fosse o pior”
in Memórias de minhas putas tristes, Gabriel Garcia Márquez.

 

Hoje, decidi reflectir sobre a música mais bonita, emotiva, profunda e dolorida que a História de Moçambique já registou: a música de Mingas, intitulada “Mamana”.
A letra foi composta por Zeca Tcheco, o grande baterista da Banda RM, o pai do cantor Denny OG. O baterista compôs a música e ofereceu a Mingas, que a interpretou.
A música tem duas personagens, a mãe e a sua filha. Não se sabe ao certo como tudo começa [a conversa], mas o certo é: a música inicia com a filha chorando.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, Andante-moderado, rock-solo, mas não muito agitada. A tonalidade está na escala de Fá. Escutando a música, é possível perceber que, para a produção do instrumental, usou-se bateria, piano e duas guitarras.

Na música, o piano serve como um instrumento de base. Para além de criar harmonia entre os instrumentos, também auxilia a bateria na marcação do compasso, o rufar das baquetas sobre a caixa de Ré, um dos instrumentos que compõem a bateria, em diferentes momentos na música, serve para enfatizar o sentido da mensagem cantada, bem como gerar pausas melódicas, a fim de proporcionar um bom “Groove”.

A primeira guitarra faz solo. A que tem som mais agudo e a outra toca baixo, som mais grave, e juntas produzem uma melodia muito rica, que serve de base para a voz principal. A guitarra baixo também cria contratempos na instrumental, gerando um ritmo mais rico sob ponto de vista acústico.

O que é incrível, nesta música, na história da música moçambicana, todas as canções que falam sobre a mãe [mamana] tecem rasgados elogios às mães, que o diga Pedro Bene na música “mamana”, que o diga também o João Cabaço na música “mamana wanga”. São músicas muito bonitas e profundas, que falam sobre as mães, desde já recomendo que escutem.

As músicas acima mencionadas tecem elogios as mães, hora, nesta música, a Mingas faz o contrário. Trata-se de uma música que não é para tecer elogios à mãe, mas, sim, é para afrontar a mãe, encostar a mãe à parede. é isto que é incrível nesta canção.

“Por mais que eu veja alguém que me encante, alegre meu coração, o coração bate forte só de lembrar a ti, mamã”. Portanto, trata-se de uma experiência amarga do passado. Uma experiência muito dolorosa. Dá uma impressão de que, no passado, terá ocorrido uma situação de a jovem se envolver com alguém e a mãe tomar uma posição no sentido de afastar a filha do seu parceiro ou pretendente.

A certa altura, a filha afirma: “Lava hinkwavo valanguiwike hi mbilu yanga Akwaku ava lunganga mamana”, isto é, “todos aqueles que foram eleitos pelo meu coração, para ti, não prestam, e lá está o grito: “Oh hiyo io io io io”.

Num dos momentos, na música, talvez o momento mais alto, sobe de tom para questionar: “o que você quer de mim, mamã? Essa maneira de empurrar-me como se de um plástico eu me tratasse, essa maneira de entregar-me como se eu me tratasse de papel, até vendes-me como se de roupa, eu me tratasse”.

Na citação acima, a cantora usa figuras de estilos, comparação, para enfatizar a mensagem. Segundo Infopédia, dicionário online da Porto Editora, comparação é uma figura de linguagem caracterizada pela analogia explícita entre termos de um enunciado. E, para expressar a dor da desvalorização pela mãe, a artista faz perfeitamente uso da comparação entre a jovem, o papel e a roupa.

Num tom de ousadia, a personagem, com toda coragem do mundo, diz: “Nili vona hi wene mamana”, como quem diz, mãe, se põe no meu lugar.

O que é mais incrível na canção é o direito de contraditório da mãe. A mãe não se pronuncia sobre esse grito, a afronta da filha. Depois da mãe ter ouvido as reclamações da filha, simplesmente cai em lágrimas. Cai em lágrimas e de joelhos chora.

Esta música não é para simplesmente ouvir, mas, sim, escutar, sentir e meditar. Na verdade, esta canção fala da vida de muitos jovens que estão em idade de lar, mas, constantemente estão em casa das suas mães ou vivem sozinhas em casas de renda e a sociedade lá aponta o dedo, certamente não sabem qual é a história destas pessoas.

O nível de divórcio que se assiste, hoje em dia, em Moçambique, do modo particular em Maputo, não será resultado de casamentos por encomenda feito pelos pais? E as jovens que vivem sozinhas, não será que em algum momento é fruto dessa dor de certos constrangimentos, de serem “chavissadas” pelos seus progenitores? Provavelmente, a saudosa cantora Elsa Mangue tenha razão: “ sortudas são às pessoas que se casam e conseguem manter o casamento”.

Não é tarefa dos pais definir com quem os filhos devem ficar. O papel dos pais é um papel paternal, isto é, de aconselhar e não decidir.

A Mingas está de parabéns pela belíssima canção, parabéns também para o Zeca Tcheco, pela belíssima composição, e o saxofonista, pelo sopro de rasgar o coração e massagear a mente. Ele deixa a música mais bonita e profunda, faz com que a música ganhe uma certa melancolia e gere um ambiente propício para uma bela reflexão.

 

Artista: Mingas
Título: Mamana

 

Pente é um objecto usado para alisar e organizar o cabelo, de modo a ter uma apresentação agradável. Quanto mais fino o pente é, mais rigorosa é a sua organização aos fios de cabelo. Este objecto de beleza é usado, igualmente, para elaborar diversidade de tranças e penteados, sobretudo quando se trata do cabelo de homens e mulheres negras.

” A pente fino” foi a metáfora que Filipe Branquinho encontrou para nomear a sua mais recente exposição no Centro Cultural Franco-Moçambicano, inaugurada no dia 20 de Agosto e que pode ser apreciada até 5 de Outubro.

Filipe Branquinho, com a clara intenção de passar um pente fino nos olhos da sociedade, trouxe duas séries da mesma exposição: In gold we trust e B(l)ack, a série que aqui nos interessa tratar.

B(l)ack é uma homenagem estética e estilística ao cabelo natural crespo como há muito não se contemplava. O quadro Black XXX é apresentado ao observador essencialmente com um fundo branco e um padrão verde claro que faz a base do quadro. As laterais do quadro são caracterizadas por colagens de várias figuras ilustradas, dentre as quais: bandeiras, um soldado, uma máquina e dactilografar.

Na figura central do quadro, está uma beldade negra, preta de ébano, com cabelo crespo, bem trançado, uma trança longa, que desce pelas suas costas adentro.

As linhas do quadro são finas e regulares, uma vez que representam figuras reais. As formas das figuras são essencialmente humanas, soltando um olhar, ou um sorriso desenfteado que carrega um forte simbolismo na retrospectiva que o autor pretende trazer.

A forte presença de símbolos, como bandeira, foto de soldado em tempo colonial, traz ao quadro um regresso ao tempo socialista. Aliás, a série B(l)ack, como escreve o autor, com o L entre parêntesis, pode ser lida Back to Black, o que em português seria: de volta ao preto, ou, figuradamente, de volta à cultura preta.

As cores foram estetizadas como um halo, que usurpa a atenção do espectador para o centro do quadro e, depois, para as laterais. As cores ao fundo do quadro acendem o seu brilho, porém, deixando máximo protagonismo para a cor preta e laranja, que são o sol do quadro.

O preto carregado, que ilustra a mulher no centro, tem uma função narrativa inequívoca, de que o autor se dirige a este grupo de mulheres em especial, a trança tecida caprichadamente a cor de laranja cintila no quadro como uma gaveta de memórias que diz: Ainda lembras te como eras bela naturalmente? Ou já te esqueceste?

Os contornos da mulher negra no quadro, incluindo do cabelo, não só sensibilizam para a diversidade de usos ao cabelo natural, mas fazem um forte apelo ao bem-estar, a auto estima, ao sorriso da mulher negra. Apesar de estar de costas, ela está em overdose de beleza no quadro, uma pintada no mamilo esquerdo, acrescentou-lhe um toque de voluptuosidade.

Se a mulher negra é bela,nauralmente, sem betumes ou perucas, como ilustra a exposição, porquê, então, ela importa beleza ocidental e oriental? Possivelmente, o autor deseja que cada mulher consiga responder para si o porquê da importação de beleza estrangeira?

Além fronteiras, no Brasil, outros cantos do mundo, em filmes de Holywood, sobretudo históricos, a mulher negra é distinguida pelo cabelo crespo natural, tranças e afro.

Mais que um manifesto, o quadro Black XXX é uma busca cultural de valores e princípios. É um exercício de regresso no tempo, para ir buscar o que éramos e trazer ao quotidiano.

A máquina de dactilografar, as colagens sobre desporto, o rosto negro ao estilo dos anos 80 no canto supeior direito, e os dois casais de dança que figuram abaixo do seio da mulher, mostram que o autor conduz aos espectadores, a um resgate de valores, princípios e práticas que existiam e nos tornavam seres felizes na simplicidade, hoje, práticas esquecidas.

Olhando para a nossa actualidade, a mulher negra tem sido escrava da indústria estética ocidental, e quase do vestuário também. Quando nos perdemos pelo caminho, precisamos regressar ao ponto de partida para nos encontrarmos. Com esta exposição,série “B(l)ack”, Filipe Branquinho faz uma intervenção social pertinente, ao mesmo tempo que “A pente fino” alisa o seu talento e diáloga profundamente com a sociedade.

B(l)ack é um grito profundo de chamada de atenção à sociedade, sobretudo à mulher negra em relação à beleza estética importada. Se a mulher negra moçambicana esteve “cega” à sua beleza natural, nesta exposição, com certeza, encontrará a luz que precisa para cintilar essa beleza e cabelo natural.

O quadro Black XXX é uma obra em aguarela, acrílico, colagem, caneta fineliner e posca sobre impressão a jacto de tinta em papel breathing color, Elegance Velvet, 300 GSM, 100% cotton rag, Bright white matte 110 X 90cm.

 

a revolta

“amada
a revolta é um poema escangalhado
alojado na boca do medo”.

[MBATE, 2009: 44]

 

“No Fundo dos Olhos” é o título do segundo livro da poetisa Águida Tumbo Alexandre. Lembre-se que esta poetisa se estreou com “Mar de Sentimentos”, em Junho de 2022.

Este livro tem 46 poemas. A temática predominante é a de intervenção social. Mas também, trabalha outros temas como, por exemplo, os que abordam o valor da mulher; textos que salientam a sua beleza física, as suas alegrias, a sua simplicidade, SENHORA NATURAL: “Muito bem cedo/ Exibe o seu sorriso de mulala [ênfase acrescentada]/ lábios vermelhos pintados com mulala [idem]// A tornam especial e única […]”. A mulala é uma raiz que é usada para a higienização oral. Pinta os lábios, deixando-os purpúreos. A mulher africana, particularmente, a mulher moçambicana, encontra um lugar de relevo na poesia de Águida Tumbo Alexandre. A sua beleza, a sua originalidade: “[…] com seus cabelos crespos/ Faz tranças de xindlandlalatani/ Sua pele natural e macia/ Inspira olhares da natureza”. Na terceira estância deste poema, a autora introduz novos elementos de carácter e de axiologia: simplicidade, auto-estima: “Com seus pés nas sabrinas/ Sente-se grande rainha/ Com seu corpo sem alterações/ Alegra-se pelo seu ser natural”. A autora seleciona, cuidadosamente, as palavras; sabe dar-lhes o seu sentido real: natural que combina, perfeitamente, com a expressão corpo sem alterações; estas duas expressões soam como um elogio, por um lado e, como uma crítica – por outro – à própria mulher que, vezes sem conta, desvaloriza-se; deita abaixo a sua beleza natural, em detrimento de aplicação de diversos produtos cosméticos para alterar a sua pele, estranhamente. E a palavra sabrinas, nome de calçado feminino, geralmente, de material de napa fina, todavia, é este calçado que o nosso sujeito poético – feminino – calça. Atenta a este verso: “Sente-se grande rainha”. É, exactamente, neste verso em que o sujeito poético exalta a auto-estima da mulher. Não se rebaixa perante a sua condição social. As sabrinas podem ser uma marca de carência. Mas também, de simplicidade. Esta desigualdade social é visível, em AMOR RARO, em que se descreve a situação de uma senhorita nascida numa família rica, entretanto, esta apaixona-se por um rapaz pobre e analfabeto: “[…] sou uma senhorita distinta/ a minha vida está no tapete vermelho/ não tenho identidade fora da passarela/ Fui concebida no ouro puro/ gerada no berço de ouro/ amo desesperadamente um analfabeto/ o empregado da casa/ é o amor da minha vida”. Nos dois poemas, nota-se: menina que calça as sabrinas [versus] senhorita concebida no ouro; sou senhorita distinta [versus] ele é uma poeira no meu salto; e é impressionante o seguinte verso: sou igual a um peixe/ que fora da água não vive; é uma metáfora, aqui, a autora faz alusão à riqueza – uma vida abastada – e à pobreza – uma vida de extrema carência.

Outras temáticas desenvolvidas, na poesia de Tumbo, são: sofrimento que traduz a dor, angústia, visível, também, em LÁGRIMA SECA, aliás, neste poema, a autora continua com o uso de contrastes, vistos nos poemas anteriores: frio e sol agressivos: “Na tarde de muita chuva/ O frio agredia as pernas/ O sol agressivo em meio a chuva/ O chão quente rachava as pernas// Meu corpo inchado pela dor/ A pele soltando fumaça de dor/ Alma minha desfalecida pela dor/ Coxeando nos cantos sem suor// No rosto da lágrima seca/ Ouvia-se grito sem voz/ Um som desafinado/ Sem voz”.

Neste texto, a autora pretende evidenciar o sofrimento. O desemprego. A ausência de suor, simbolizando a falta de emprego, (a partir de uma prática coloquial comum). E, recorrendo ao contraste: “Ouvia-se grito sem voz […]”, para trazer a grande contestação e aborrecimento, senão mesmo a manifestação da revolta, mas também, pode revelar-se uma agonia; o cansaço, não um cansaço físico, mas psicológico; a desesperança. Há, neste verso, a criação de uma imagem que se vai vislumbrar, na imaginação do leitor, de uma forma subtil.

O sujeito poético, na poesia de Águida Tumbo Alexandre, é um sujeito activo, que observa, que questiona, que clama pela justiça; uma justiça que – existindo – tal como ele a anseia, projectá-lo-á para a felicidade plena: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […] por que atropelam o meu futuro? […]// deixem-me sonhar com um castelo!” Aqui, o sujeito poético indaga, aflito, preocupado; e faz um apelo, na esperança de que seja ouvido. É condenação aos casamentos prematuros. No verso: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […]”. A palavra crescer revela, exactamente, uma roptura abrupta da sua idade pueril para assumir – entre aspas – uma responsabilidade de uma mãe. Responsável pelo lar. Ele começa, tão cedo e, forçosamente, a cuidar dos seus filhos. A palavra castelo trazida, no verso acima, não será nada mais que uma metáfora; não se trata dessas construções fortificadas e muito grande da Idade Média e que serviam de residência real ou feudal. Os castelos serviam de protecção e não de um lugar glamoroso como os palácios. Ora, o castelo a que se refere o nosso sujeito poético é, sem dúvida, a escola, o crescer com saúde, a sua formação; a formação é a chave de tudo. É este castelo que alvitra que não se lhe destrua.

Este poema tem alguma relação de significado com os seguintes: SONO INTERROMPIDO (pág.: 12) e MINHA INFÂNCIA (pág.: 35). Os versos como: “[…] o seu sexo tesouro/ Deus guardou como seguro”. Também se fala da formação e da protecção. Na verdade, a autora trabalha nesta perspectiva, cruzando os versos, fazendo o paralelismo, quer temático, quer estrutural, quer semântico. Um outro exemplo que o posso trazer, aqui, é o dos poemas SOU MOÇAMBICANA: “[…] Dizem que sou moçambicana/ nem sequer conheço o meu país/ também não conheço a História do meu país/ confundo sempre os meus líderes […]”, e estes versos do poema A ESTRANGEIRA: “[…] Sou turista/ da minha terra/ terra que me viu nascer/ a mesma viu-me a crescer […]”.
Nos dois poemas, a autora levanta uma questão ligada à falta da educação patriótica, a perda de valores; a autora não procura o culpado; ela, simplesmente, levanta o problema, cabendo a outras entidades a sua consideração/ponderação.

Em MINHA INFÂNCIA: “[…] roubada/ agredida/ sequestrada […]// queria muito saber ler/ e tinha que buscar água no poço// Muita roupa para as mãozinhas […]”; aborda a temática da intervenção social: a denúncia e o trabalho infantil. Aliás, esta temática é continuada em DENTRO DE MIM, em que retrata casos de violência, agressão, solidão, fome.

Se a poesia é considerada, também, um instrumento de luta, de revendição, de revolta, como é a poesia de José Craveirinha, de Noémia de Sousa, de Rui de Noronha, os textos de João Dias, entre outros que retratavam o que a dominação colonial portuguesa fazia aos negros; sim, a poesia de Águida Tumbo Alexandre resgata essa intencionalidade poética desse período histórico, para gritar, lutar, revindicar pelo bem-estar das raparigas e das crianças órfãs. É esta a temática tónica que marca a poesia, claro, não deixar de lado a do amor; um amor demonstrado pela mãe para um filho, poema QUERO SER CRIANÇA.

“No Fundo dos Olhos” projecta-nos para uma temática diversificada, isto, já, tinha sido dito. De entre ela, a que está ligada à família, a família como centro onde se adquire os valores, como se lê em A FAMÍLIA: “É a nossa identidade/ É a nossa originalidade/ É a nossa tradição […]// […] é o amor com o próximo/ É convívio e união/ É um grande propósito de Deus// […]”.
Estes valores são os que constroem uma sociedade sã e educada.

Em poemas, MÃE, a autora faz uma homenagem à mãe, o que José Craveirinha chamá-la-ia de Hino às mães,

– a descrição da dor:
[…] nesta vida
das entranhas em que se move
um embrião de gritos
nascem-te os filhos com renúncias
sangue e dor a mistura
Mãe! […]
(CRAVEIRINHA, 1974: 134)

– e, nestes versos, a descrição física de uma mulher em estado de gravidez e, por entre linhas, a irmandade:

[…] Ah!
mas desde o idílio
ao gâmetas fecundo
e da seiva plasma do mesmo sangue
ao primeiro beijo na face da menina que nasceu
salve-mulher da ternura que se não vende
o arfar do teu inchado ventre liso
curva inestética de beleza única
ao ângulo inobsceno das coxas
na invenção do nono mês
que ficou da primeira vida
na fêmea transformada
na técnica de nos fazer vivos. […]
(idem)

Águida Tumbo Alexandre explora versos livres. Os seus textos não apresentam vocábulos rebuscados. É o seu estilo. A sua poesia é incisiva na temática. Aborda a temática que tem que ver com a dor, morte, agressão, violência, amor: “[…] Despertou sorriso resplandecente/ com o seu olhar fascinante/ sempre despia e beijava mesmo distante”; mas também, ciúme: “[…] é veneno da alma/ sangra e chora sem motivo/ grita e briga por nenhum motivo// é uma arma fatal/ é uma poeira que entupe os ouvidos/ cega os olhos com tolice […]”; guerra: “[…] nesse derramamento de sangue/ no coração de Moça e Mbique/ terrível e violenta maldade/ ensanguentou Cabo Delgado, eternamente”.

Este livro que tem nas suas mãos, depois de tanto sofrimento, a autora abraça-nos com a alguma esperança, como que para fazer jus à temática de crença em Deus, a religiosidade, também, trabalhadas pela autora nesta obra. A esperança alivia a dor, o sofrimento. Dá-nos a confiança para enfrentarmos novos horizontes. Encararmos a vida com fé de que tudo muda.
Em FLORES, parece patente esta belíssima visão da poetisa “[…] Transmitem confiança/ Alimentam esperança/ Produzem a paciência/ desenvolvem a tolerância// O dia é lindo sempre com as flores […]”.

À guisa de conclusão:

“No Fundo dos Olhos” é um apelo ao leitor para fazer um exercício de (re)buscar a verdade, a honestidade, a sinceridade, a certeza, etc., etc., etc., nos olhos de cada um de nós. Os olhos são espelho do nosso interior.

Tudo isto vai resumir-se a uma única palavra: amor com o próximo.

Ferroviário, 8 de Julho de 2023

**ensaísta literário e escritor.

 

 

 

 

 

*Prefácio ao livro da Aguda Tumbo Alexandre; o livro foi publicado, no dia 8 de Agosto de 2024, na sala nobre da Associação do Escritores Moçambicanos, AEMO, e apresentada por Natércia Manhenje, ensaísta, docente universitária e linguista.

Titos Pelembe aventurou-se pelo mundo das artes, como um astronauta que se aventura pelo espaço. É artista, curador e pesquisador no campo das artes visuais. A busca de significados existenciais, e simbolismos sociais profundos, dão corpo à sua última exposição, intitulada Fragmentos da vida II.

E como um artista visual em diálogo psicossocial, através duma instalação, de moldagem em pasta de papel, com variadas dimensões, apresentou “A captura do Estado”.
Uma parede esbranquiçada, com figuras de distintas dimensões, os corpos mais humanos contrastando com algumas cabeças animalescas, traduzem a leitura visual da instalação “A captura do estado”.

Um Estado é uma maquina, constituida por um grupo de pessoas, regras e decisões que tem impacto na vida do cidadão comum.

A captura do estado remete-nos à ideia de quebra do poder estatal, e de tudo a isso conectado.

O autor parece propor que as figuras da instalação são representantes desse mesmo Estado capturado. Os reflexos e as posições emitidas por essas figuras são enigmáticas e misteriosas. Parecem gritar sem nada dizer, parecem fugir sem mudar de lugar, e parecem estar presas, sem algemas nas mãos.

A percepção de movimento é dominante, sobretudo devido às sombras das figuras, e as diferentes direcções em que elas estão posicionadas. As figuras parecem vir dum passado comum, mais ameno, no entanto algo obrigou a sua fuga e dispersão – a “captura”.

A captura do Estado é simbolizada pelo único elemento comum em todas as figuras, a corrente que prende cada representante do Estado.

As correntes são o centro das metáforas da instalação. Podem representar as leis do Estado, que são ignoradas, as regras de trânsito, pontapeadas quotidianamente, a postura urbana, vendida ao preço do desmazelo, o descredito, que é ter uma boa lei, mas que não funciona, devido à mesma captura do Estado.

As correntes podem também personificar a grande corrupção, que, de uma forma geral, captura o Estado nos diversos sectores: Na saúde, na educação e nos serviços públicos, locais onde, particularmente, se encontram estes representantes do Estado.

As figuras da instalação apresentam vários perfis de servidores públicos. Nota-se, por exemplo, uma figura de homem, com face de tigre, que pode simbolizar um mau servidor público, que, como um caçador, se serve do Estado com uma ganância animal, olhando apenas para interesses individuais.

A figura central da exposição também faz parte da instalação, assemelha-se a um líder corpulento, em posição de liderança no Estado, com a cabeça recheada de dois chifres, que, simbolicamente, traduz que está a ser traido, ou feito de parvo, pelos seus colegas de trabalho, ou por interesses obscuros provenientes do estrangeiro, que o obrigam a trocar ouro por ferro.

Uma outra figura apresenta-se vestida de roupa executiva e palitó. Com forte perfil dum especialista financeiro, tem as mãos estendidas para cima, no entanto, a sua cabeça está endada. A figura pode representar um alto funcionário do Estado, tentando estabilizar as finanças públicas da nação, mas sem controlo dos esquemas, dos branqueamentos de capital, do roubo institucional, e, por isso, apresenta-se de cabeça vendada, pois não pode controlar todo o sistema, ou então não tem poder para travar a máfia que capturou o Estado.

A instalação de Pelembe transmite mais do que a captura do Estado, consegue, visualmente, captar algumas consequências de um Estado capturado, um dos figurantes na instalação por exemplo, é achado completamente em queda e de rastos, que pode significar mais um funcionário com seis meses de atraso salarial. E desta forma, o Estado perde o seu poder e a sua capacidade operativa.
A captura do Estado é visivel no nosso quotidiano, pela incapacidade de se pagar salários aos funcionários públicos, professores, médicos, polícias, e etc, a incapacidade da polícia de controlar os raptos, a morosidade recorde dos tribunais e o turismo frequente dos infractores.

Como impedir que o Estado seja capturado? Esta é uma pergunta que a instalação de Pelembe deixa para a sociedade, num ano eleitoral.

A captura do Estado é uma instalação que faz parte da exposição Fragmentos da vida II, de Titos Pelembe, patente na Fundação Fernando Leite Couto até 31 deste mês de Agosto.

Sou Filomena Matusse, nasci em Moçambique, sendo assim, moçambicana e negra, com a pele muito escura, marcada pelo sol cuja intensidade aumenta a cada dia. A exposição solar é inevitável, agravando a minha negritude, uma vez que tenho de ficar exposta a ele para garantir sustento para a minha família; e não posso arcar com os custos dos protectores solares, que já ouvi falar por aí, pois são caros demais para o nível em que me encontro, pois, minha situação financeira não é boa.

Nasci em meio à pobreza, um facto que procuro aceitar diariamente, mas que não me impede de sonhar com um futuro diferente. Entretanto, não quero falar no momento da minha pobreza, pois não é culpa minha ter nascido nesta condição, quero falar de outra questão que me inquieta e é ainda pior que a pobreza a mau ver…

Desde jovem, fui testemunha da pressão imposta às mulheres da minha comunidade, província e país, que tentam clarear a pele. Eu própria, num determinado momento, sucumbi a essa tendência, utilizando cremes clareadores acessíveis, disponíveis inclusive nos mercados locais por 100 meticais. Inicialmente, julgava e condenava essas práticas, pois não compreendia a motivação por trás delas. Contudo, após reflexões e experiências pessoais, a minha visão mudou.

Moçambique é um país africano e a raça que predomina é a negra, entretanto não tenho paz na minha própria terra onde tenho o direito de ser negra e deveria viver à vontade…

Uma experiência dolorosa foi a de uma gestora sénior negra de certa empresa, que, embora competente, foi substituída por uma colega de pele branca, revelando uma hierarquia baseada na cor da pele. Estas situações evidenciam a desigualdade e discriminação persistentes, influenciando até mesmo o crescimento profissional e pessoal. Passo a expor: Uma jovem altamente capacitada foi contratada por empresários asiáticos em Moçambique para actuar como gestora sénior na sua empresa, onde os funcionários eram maioritariamente moçambicanos e negros. A convivência inicial entre todos era harmoniosa e produtiva. Todavia, tudo mudou quando o chefe da jovem decidiu contratar duas raparigas também asiáticas para a mesma empresa. Embora as novas funcionárias fossem fluentes em português e simpáticas, o chefe começou a introduzir divisões entre os colaboradores, separando-os pela cor da pele. Ele instituiu regras segregacionistas, tais como direccionar os negros para um lado e os brancos para outro, inclusive designando utensílios diferentes para uso de acordo com a cor da pele. Esta atitude discriminatória gerou desconforto no ambiente de trabalho.

A gestora, injustamente, foi removida do cargo sem motivo aparente para que uma das novas funcionárias brancas assumisse a posição, embora a gestora negra fosse mais competente. Esta era responsável por treinar as novas funcionárias e ensinar o sistema de contabilidade e gestão da empresa, inclusive as duas raparigas asiáticas foram instruídas por ela. Esta situação levou a jovem negra a concluir que, infelizmente, naquele contexto, a cor da pele parecia determinar a hierarquização e as oportunidades de trabalho, acima das qualificações e competências académicas. Este triste desfecho levanta a questão de como as desigualdades e preconceitos raciais ainda influenciam significativamente o ambiente profissional, mostrando que, para algumas pessoas, a pigmentação da pele pode influenciar injustamente as suas carreiras e oportunidades.

Este foi apenas um relato de muitos que poderíamos trazer, porque a discriminação racial é uma realidade na nossa sociedade, é fácil de ver as varias manifestações no nosso dia a dia, desde o acesso às oportunidades, até as suas formas mais graves.

O preconceito baseados na cor da pele e a discriminação geram divisões e desigualdades profundas na sociedade. Observa-se que, mesmo dentro da comunidade negra, a tonalidade da pele frequentemente determina a hierarquia e o tratamento recebido, perpetuando padrões de opressão. Estas experiências reflectem a complexidade e as feridas causadas pela discriminação racial, questionando se a opressão vivenciada resulta, em alguns casos, na perpetuação do ciclo de discriminação e divisão entre os próprios indivíduos de uma mesma comunidade.

A discriminação racial é uma realidade insidiosa que permeia a sociedade de forma profunda, criando divisões e desigualdades que prejudicam a todos. É imperioso reconhecer e confrontar activamente o racismo em todas as suas formas, desde os actos mais evidentes até as estruturas institucionais que perpetuam a injustiça. Apenas com consciência, empatia e acção conjunta podemos construir um mundo mais justo e inclusivo, onde a cor da pele não determine o valor ou as oportunidades de um indivíduo. Façamos a nossa parte para promover a igualdade e a diversidade e lutemos juntos contra o racismo em todas as suas manifestações!

“O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe” (Jean-Jacques Rousseau). 

É assim que decidimos iniciar a crónica de hoje, trazendo à tona o célebre pensamento de um dos filósofos mais renomados do Iluminismo. Nessa linha, urge-lhe um convite de reflexão sobre a bondade natural do ser humano e como as estruturas sociais podem corromper essa essência. Vale ressaltar que qualquer semelhança com factos reais é, de certeza, pura coincidência.

Vemo-nos em um mundo onde a posse material é mais valorizada do que o valor moral da sociedade. Aqui, as pessoas não reclamam pela injustiça, mas sim pelo que os outros ganham, sentindo-se prejudicadas por isso. Até parece que não sabemos o que, realmente, queremos ou precisamos. Parece até que o que desejamos é que os outros não desfrutem de seus momentos. Queremos que eles sejam meros espectadores do nosso sucesso, pois acreditamos que só nós merecemos ter oportunidades, quantas vezes forem possíveis, mas apenas as nossas oportunidades. Nunca as dos outros.

Mas aí vem a questão: de que sociedade estamos a tratar quando falamos “normal”? Aquela que vive de novos talentos? “One, Two, Three, Let’s go!”? Ou o que mais importa é acreditarmos ser o que pensamos ser e descontarmos o que realmente nos interessa devido às dificuldades de circunstâncias? Não há condições para uma sanidade mental. Então, conformemo-nos e pronto. Vamos normalizar o que temos, por mais podre e doentio que seja. 

Alguns dos poucos analistas e intelectuais que temos dentro destas quatro paredes da pátria defendem, com seus A’s + B’s, que é a sociedade que está corrompida por ser aliada do sistema, e, portanto, a culpada pela existência de todo o mal na face da Terra. E mais, os legisladores saem dela. Mas quem quer ser bom num mundo onde a pobreza afia suas unhas e garras? Então, dizem que é daqui que se origina o ciclo de vez-vez.

É de admirar como, em tempos de fome e necessidade, os bons samaritanos se destacam como nobres santos da Idade Média. Nesses momentos, a humildade torna-se uma virtude sagrada, elevando o espírito humano a um patamar quase intocável, onde até uma mosca não pode ser morta.

Aqui, estamos naquele tempo em que muitos ainda se apresentam de uma maneira em palavras, mas suas acções revelam outra verdade. Vivemos uma era de dissonância entre o discurso e a prática, onde a retórica de bondade e integridade é frequentemente desmentida por comportamentos que contradizem essas virtudes.

O que dizer sobre a corrupção? Todos os dias, as pessoas reclamam, são vigilantes e críticos da moral alheia, mas, quando são promovidas, esquecem que antes eram aquelas que sofreram e sonhavam com uma sociedade justa. Quando assumem posições de poder, acabam também se envolvendo em práticas corruptas. O que é mais lamentável é que poucos realmente pensam no bem comum.

‟Phoole-phoole”, há muito que se anda em contra-mão, pisca-se para a esquerda e segue-se para a direita. Agora, o lema é “vano timi”. Chegou a minha vez.

Está doente, muito doente,
O meu país,
Acamado às costas
Das terras e perlíferas águas do Índico!

Quando peguei o livro mais recente do Bucuane a que decidiu dar-lhe um nome sugestivo: Celebrar a Vida, Poemas de recesso e de esperança, tinha a plena certeza daquilo que me esperava, isto é, antes de folheá-lo, muito antes de ler os poemas que o compõe, sabia que estava perante escritos que pretendiam exaltar a vida. Não me enganei. Tal como acontece na vida, em cada folha, em cada página, chorei, ri, fiquei triste, fiquei com saudades, fiquei com nostalgia, alegrei-me, a minha vontade de viver e de amar renovou-se. Morri e ressuscitei quão segunda chance de voltar a ver o sol e sorrir todos os sorrisos que desperdiçara na outra vida, na outra encarnação.

Não é de admirar, Bucuane, o poeta depois de enfrentar o grande flagelo que foi Corona Vírus. Depois de com ele lutar. Sobreviver pegou na caneta e deixou o coração derramar no papel todas as lágrimas choradas pela perda de familiares, amigos, vizinhos, pela morte de compatriotas, pela morte de muitas pessoas ao longo do Mundo cujos números faziam questão de invadir o silêncio e o desassossego dos nossos isolamentos. A contrastar com o fica em casa, as notícias levavam-nos para viver o luto em terras distantes, numa altura em que nem podíamos enterrar os nossos entes queridos.

Bucuane derramou no papel também as lágrimas choradas por toda a prosperidade frustrada por causa da clausura geral roubando emprego de muitos, inviabilizando negócios de outros. Com a sua caneta, Bucuane vingava a morte daqueles que não tiveram a mesma sorte. Daqueles que morreram e ainda morriam. Enquanto essa desgraça se propagava por todos os lados, Juvenal Bucuane, como forma de enfrentar esse pesadelo, escrevia poemas sobre aquilo que estava a acontecer. E como alguém muito bem o disse, trata-se de: “Poemas escritos com dor advinda de muitas incertezas, que de crescendo em crescendo se iam alteando no retiro forçado a que a humanidade estava sujeita: em quarentenas uns, em convalescença outros, e ainda outros, apropriados pelo avassalador medo.” Quando a desgraça terminou o livro já estava pronto.

No meio dessa dor e, como não podia deixar de ser, Bucuane também deixou o seu coração transbordar uma ode à vida, kulunguela a vida por ele mesmo ter sobrevivido e por todos aqueles que como ele venceram a doença e convida-nos a perceber a doçura de reaprender a apertar a mão, a dar um abraço, a deketar, a dar dois beijinhos, a celebrar a vida, solidarizando-nos, na alegria e na tristeza. A amarmo-nos. É isso que eu aprendi, reaprendi.

Hoje, agora e aqui,
Corre,
Neste corpo físico
Que nos faz presentes,
A vida,
A vida que quer ser celebrada,
A vida que deve ser celebrada!

Com uma obra bastante extensa, o poeta não deixa de nos surpreender com a sua vitalidade e publicações regulares, o que nos leva a concluir que para o Bucuane, escrever não é apenas um acto de afirmação, mas sim, de militância, duma afeição pelas palavras, dessa quase obsessiva vontade de estar presente, de intervir, de utilizar a poesia como sua forma de expressão e, sobretudo, de contribuição no meio social onde ele se encontra inserido. E fá-lo com essa elegância narrativa que sempre o caracterizou, sem ser demasiadamente eclético e também sem entrar numa escrita simplória ou simplista. Confesso que em algum momento me senti perdido, sem saber se estava a ler uma crónica ou um poema despretensioso. Não sabia situar estes textos do Bucuane, não sabia como designa-los sentia-me a ler, simultaneamente, uma crónica, uma saga do Corona Vírus e poemas sobre o verdeiro valor da vida.

Enfim, concordo com as palavras da ensaísta Luísa Fresta no interessante posfácio dedicado ao livro Celebrar a Vida, quando afirma que estamos diante de textos que “oscilam entre a prosa poética, o poema em prosa e o verso livre”, sendo que, no seu ponto de vista, esses textos não carecem necessariamente de rótulos; eles existem e reverberam no leitor tanto pelo seu conteúdo quanto pela forma – uma escrita escorreita, objectiva e aberta – sem que com isso prescinda de uma estética muito cara ao autor, sempre indexada à clareza da expressão e à sua visão límpida das coisas deste mundo.

A verdade é que Bucuane, com as suas abordagens suaves e poéticas, sobreviveu, talvez com uma energia renovada, pronto para continuar a viver, a escrever, a celebrar a vida. Talvez seja por esta razão que Celebrar a Vida, de acordo com a posfaciadora deste livro, Luísa Fresta, o Bucuane” deixa transparecer uma postura de integridade, responsabilidade e fé, plasmadas em cada texto e em cada uma das ideias explanadas com coerência e habilidade. Como se o autor e o sujeito poético tivessem uma convicção inabalável num futuro melhor, mais sereno, com mais fraternidade e soluções para os problemas da espécie humana.”

Apesar do seu cronicar, da sua clareza em nos descrever a ocorrência dos factos covidianos, o livro que temos nas nossas mãos não deixa de ser um poemário onde nos cruzamos com a morte, o medo, o espectro do nada, a rendição, a trombose económica, a revolta, a luz, a esperança, a “celebração da vida”. E é exactamente esta que Juvenal Bucuane, afinal, vem celebrando. Desde sempre. Em cada livro que escreveu, Bucuane glorifica a vida. Desde “A Raiz e o Canto”, passando pela obra “Meu Mar”, até os livros mais recentes, Bucuane celebra a vida, com essa turbulenta vontade de falar sobre as coisas, de contar, de explicar, de justificar, de fazer poesia. E para isso Juvenal, independentemente de qualquer influência ou experiências que possa ter, atrevo-me a afirmar, que Bucuane, é ele próprio, tem uma identidade, uma linha própria, única, inconfundível, caracterizada pela espontaneidade da linguagem e pela pureza que facilmente se evidencia.

Chamou-me sempre atenção a forma como Bucuane milita a palavra, ou seja, o modo como ele a cristaliza, o modo como ele não a subverte e não a torna inatingível. Ele sabe que tem um objectivo a alcançar, sabe que tem leitores que esperam por uma mensagem que lhes seja perceptível, que lhes possa interessar e mostrar outros caminhos. Estamos, pois, a falar da forma. E assim sendo, talvez importe recordar as palavras do sociólogo e poeta Filimone Meigos, ao explicar que “ao falarmos de forma na literatura, referimo-nos à maneira como se diz, como se escreve, como se veicula o discurso. Tal forma não é isenta, ela revela uma certa maneira de estar, ética e estética. Na verdade, a forma do discurso revela uma certa forma de pensar, agir e sentir”. Já que estamos aqui, talvez possa aproveitar a oportunidade que o texto me oferece para dizer que sempre me chamou atenção a forma declaradamente saudável de Juvenal Bucuane estar na literatura, que se aproxima, sem dúvida nenhuma, à forma como o poeta se movimenta na vida.

Juvenal Bucuane é um poeta de todas circunstâncias. É um cidadão atento aos acontecimentos do seu país. Nada se lhe escapa, o que significa, por outras palavras, que os seus livros (um acervo de mais de vinte livros em poesia e prosa), que o fazem ser um dos escritores mais profícuos desta pátria amada acompanharam o crescimento do país e da própria sociedade. Os tempos da pandemia fizeram-no compreender que estamos no Mundo por pouco tempo, por esta razão são desnecessárias as guerras que movemos uns contra os outros. Precisamos de modificar tudo. De entrar no “novo normal”.

É quase tudo mudar,
Ser outra coisa
Sendo o mesmo ser!
……………………………
É uma nova forma
De ser e estar
Sem o desvio do que se é
Na essência!

A poesia do Juvenal Bucuane que aqui encontro não se restringe apenas ao vírus, ela se espalha para outras direcções com a abordagem de temas universais que constituem a preocupação da nossa sociedade. Bucuane fala de muitas coisas. Do medo “de algo que não vemos”, mas cuja dimensão destrutiva é assustadora. Faz apelo aos deuses de África para que estes “lancem sobre nós todos os fumos que se libertam dos grandes potes onde, nas florestas sagradas em que habitam cozinham os remédios que ora nos faltam”. Fala da chuva, para que ao cair sobre a terra e os homens aconteça o milagre da purificação. Fala também da terapia da luz do sol. Da nova ordem mundial. Do valor da solidariedade. Mas que este não venha a qualquer preço, por isso o poeta não se esquece de recordar: Ajudem-nos, sim, mas deixem-nos ser quem somos, “África, da cabeça aos pés”.

Estamos na corrida
da salvação do mundo
temos uma palavra a dizer!
Não somos animais no redil
à espera de engorda
para abate
somos participantes do jogo global.

Num momento particularmente difícil, quando o vírus devastava por todos os lados e tudo parecia perdido, a voz do poeta se erguia e dizia que ainda havia um caminho de esperança a percorrer. Num dos poemas mais eloquentes do livro Bucuane indica uma rota para os que pretendem sobreviver. Para ele a única possível: A caminhada para o mar. Para a purificação. Para a eternidade. E por essa razão escreveria o poeta Juvenal Bucuane:

Somos água,
Que toma a forma do seu curso,
Líquidos…
Corremos dentro de um leito,
Ganhando a sua forma,
À procura do nosso destino.

Nestes poemas de recesso e de esperança, Juvenal Bucuane foi buscar os traços do pintor Noel Langa, seu contemporâneo e ilustre habitante do Bairro Indígena, para ilustrar a capa do livro. A escolha não podia ter sido melhor, Noel Langa trouxe as suas cores vivas, luminosas, vibrantes, trouxe a solidariedade e amizade que os dois comungam desde tempos remotos e dessa lembrança que ainda os faz prisioneiros desses tempos inesquecíveis do Bairro indígena.

O livro está aqui e a sua mensagem é clara: não nos esqueçamos de celebrar a vida! Para juvenal Bucuane “estes poemas de Recesso e de Esperança tentam sugerir a quem os lê, a Celebrar a Vida constante e convictamente, como elemento útil das mudanças que a sobrevivência colectiva nos exige.”
E é tudo.

Maputo, 13 de Agosto, 2024

Desde a primeira alvorada de terça-feira, quando ouvi o comentário de Isidro Amade sobre a falta de fundos para viabilizar a participação da selecção nacional de basquetebol sénior feminino no torneio de pré-qualificação para o Mundial, senti que o dia não ia terminar bem!

Estamo-nos a focar no desporto, mas a conjuntura estrutural do país, em todas as vertentes, está em colapso. Desde os juízes, médicos e passando pelos professores que reclamam por melhores condições de trabalho e salários. Vou, no caso particular, cingir-me apenas no desporto sem, no entanto, elencar se é basquetebol, boxe ou mesmo atletismo.

No desporto, pecamos pela falta de apoio do sector privado e, por outro lado, de uma fraca intervenção do Estado, aliado a má gestão ou uma gestao que é feita em função das “lombrigas” que lhes roem os estomâgos. Elenco, a seguir, alguns pontos:

1.Financiamento Insuficiente

Sem o apoio do sector privado, muitas instituições desportivas e atletas não conseguem obter o financiamento necessário para treinamento e competições. Isso pode levar à deterioração das infraestruturas e à falta de equipamentos adequados. A pergunta que faço é: qual o investimento de relevo que foi feito ao nível desportivo? Como esperar resultados diferentes se não apostas e não investes? É como plantar milho e esperar colher cajú…

2 .Falta de programas de formação:

A ausência de investimento pode resultar na falta de programas de formação e desenvolvimento para os jovens atletas, o que limita o processo de surgimento de novos talentos. No basquetebol, os treinadores consagrados são os mesmos de há 20 anos, com a excepção de Leonel Manhique (Mabê) que “rasgou o véu” e uma nova lava de treinadores jovens que se destacam. Na verdade, isto mostra que nada mais evoluiu e paramos no tempo. É preciso reconhecer e olhar para base.

 

3. Menos oportunidades para os atletas:

Atletas que dependem de patrocínios podem encontrar dificuldades em competir em níveis mais altos, o que pode impactar o desempenho do país em competições internacionais. Rimos do atleta Steven Sabino pela falsa partida na segunda série da primeira eliminatória dos 100 metros inserida no torneio de atletismo dos Jogos Olímpicos 2024 ao invés de o acarinhar, um comportamento que mostra quão pequenos somos. Fazemos barulho, mas somos todos cobardes e merecemos os governantes que temos.

 

4. Perda de talentos:

Sem o suporte necessário, muitos atletas podem optar por abandonar o desporto em busca de oportunidades em outras áreas, resultando em uma perda significativa de talentos. Vamos continuar a naturalizar jogadores velhos. Não pensamos a longo prazo.

 

5. Desigualdade nas oportunidades:

A falta de apoio pode acentuar a desigualdade, onde apenas atletas de classes sociais mais altas conseguem acesso às melhores condições de treinamento e competições. A selecção nacional de Tang Soo Do é presença constante nos mundiais que se realizam em todos quadrantes do Mundo, e os atletas trazem resultados positivos para o país. Mas, diga-se, não se enganem porque é tudo custeado com fundos proprios. É um valor que vem do bolso dos pais e encarregados de educação. Por isso, o Tang Soo Do ainda é uma modalidade elite apesar de ser aberta a todos.

 

6. Diminuição do Interesse público:

Sem o investimento e o apoio do Estado, as iniciativas desportivas podem se tornar menos atraentes, levando a uma diminuição do interesse do público. Quem se vai interessar em apoiar o nosso desporto com as “lutas de comadres” que se propala nos bastidores. A única boa excepção à esta regra é a nova direcção da Comissão de Gestão da Associação de Basquetebol da Cidade de Maputo, agremiação que é dirigida por jovens que mostra(r)am que, com interesse e vontade, pode-se resgatar a modalidade porque o desporto tem valor. O desporto tem brilho. O que precisamos é de profissionalismo e comprometimento. Mais velhos, saiam e deixem os jovens trabalhar.

 

7. Dificuldade em oganizar eventos:

A falta de apoio financeiro e logístico pode dificultar a organização de eventos desportivos, que são importantes tanto para o desenvolvimento do desporto quanto para a promoção turística. Os Jogos Desportivos Escolares que deviam ser uma montra acontecem e, depois, o que é feito dessas estrelas que nascem no evento? Porque não se pensar em parcerias com os clubes e devolver a formação de algumas modalidades para as escolas? Seria interessante adoptar modelos como o “Basket Show” e desafios entre escolas. “Ops”, esqueci que nas escolas públicas as horas dedicadas à educação fisica diminuíram…

 

8. Impacto na saúde pública:

A falta de apoio ao desporto pode levar a um estilo de vida menos activo na população, aumentando problemas de saúde relacionados com sedentarismo.

Num caos social em que estamos a viver, queremos legalizar o consumo da suruma. Essa cortina de fumo que nos querem impingir é mesmo para levar Moçambique ao abismo.

A combinação entre o sector privado e do Estado é crucial para promover um ambiente desportivo saudável e sustentável, que beneficie tanto os atletas quanto a comunidade em geral.

Ergueram-se vozes atordoadas de mulheres que ousaram viver, e na sua jornada, beijaram várias formas de morte, morte sentimental, morte espiritual, morte de esperança e morte até de um pouco de suas vidas, mas como ainda as possuiam, juntaram os seus gritos de coragem fazendo “Ecos”.

Ecos é o docudrama que traz a vista depoimentos corajosos de mulheres que foram vítimas de violência baseada no género, incluindo a física, económica, e psicológica.

O roteiro tem o merito de seleccionar um grupo de mulheres das quais a sociedade quase desconhece, e pouco vê, as reclusas. Na primeira voz, as reclusas fazem-se conhecer, e expressam o que tem de mais forte para a sociedade, os seus sentimentos, suas marcas profundas.

O documentário inicia com uma narração sobre o papel que a sociedade reserva a mulher, o de cuidar do lar. Quitéria Guirrengane, activista dos direitos humanos, participa questionando a representatividade, de que forma mulheres em posições de liderança podem ser actores sérios na defesa dos direitos humanos e na prevenção da violência baseada no género. Reflecte-se, portanto, sobre a vulnerabilidade socioeconómica a que a mulher está sujeita, o dificil acesso às oportunidades, e o facto de a violência ser maioritariamente cometida por membros da sua própria familia.

A trilha sonora inicia com a música da rapper Iveth Mafundza, com um verso apelativo que cita: “Tudo começou com a maçã do Eden”, referindo-se ao início do tormento feminino, a música em causa é também uma introspecção sobre a realidade social da mulher. Os sons dramáticos e de suspense harmonizaram com as cenas sombrias retratadas.

A fotografia é executada na cadeia civil, local onde os gritos femininos se cruzam, gritos de mães, filhas, tias, gritos de mulheres que suportaram as bofetadas da vida. A fotografia torna-se dramática, colorindo a imagem daqueles depoimentos atormentados. O espectador é transportado para um submundo de horrores e terrores vividos pelas reclusas.

O nível de violência vivido por estas mulheres é do exponencial ao infinito das suas almas, desde Odete Caetano, que flagrou o seu esposo com sua irmã adolescente na cama, e, por conseguinte, recebeu uma proposta de casamento poligâmico, onde a segunda esposa seria sua irmã mais nova outrora violada por seu esposo. Que estado psicológico teria esta menor para assumir um lar?
Intrigante também foi o testemunho de Joaquina Niquice, que tinha de pedir dinheiro todos os dias para a escola dos seus filhos e estava proibida de pôr mexas, devido ao ciúme do esposo. O mais intrigante não era o ciúme, nem as pernas partidas pela violência, eram as próprias mexas, que eram arrancadas da sua cabeça, uma por uma, deixando cicatrizes e dor.

A partir deste documentário, é possivel radiografar fragilidades sociais, por exemplo: a deficiente preparação da rapariga, a cumplicidade dos familiares, o desconhecimento de linhas de denúncia.
Olga Muthambe, activista dos direitos humanos, acrescenta outras formas de violência contra a mulher: No acesso ao emprego, no acesso à terra. A violência baseada no género afecta as mulheres, sobretudo na perda de património, basta lembrar quantas mulheres são despejadas das suas casas quando o seu marido perde a vida. A decisão de permitir que adolescentes de 13, 14 anos estudem de noite, é um factor que aumenta a vulnerabilidade da rapariga a violência.

As vítimas são muitas vezes crianças e adolescentes, aterrorizadas pelos pais, irmãos e tios com quem vivem, o silêncio e medo das vítimas só favorece aos predadores sexuais.

No caso de Nompulelo Mpulampula, ainda em idade escolar, sua família era um exemplo local de uma família feliz, até sua irmã mais velha ser estuprada pelo seu pai, a ponto de engravidar, e ter filho. Tempos depois tornou se a família dos segredos, sua irmã engravidava quase todos os anos dentro de casa, e perdeu-se a conta do número de abortos que cometeu.

E porque filho de peixe aprende a nadar, seu irmão reproduziu a experiência consigo. Esta violência subverteu o seu carácter, tornou-a uma menina confusa na escola, que não podia ser tocada. Passou a odiar os homens, a sua casa era uma prisão de horrores sexuais de tal modo que já não suportava viver na sua família, sendo vítima. As ruas eram seu único lugar de liberdade, e foi lá onde libertou-se, e fugiu em busca de refúgio com apenas 17 anos de idade.

E que dizer da mulher que pariu um filho surdo e mudo, e foi culpada por ter parido um macaco?

Porventura teria feito o “macaco” sozinha? Culpada por ter nascido um filho com deficiência, Lafissa levou porrada e teve que abandonar o lar com o seu filho às costas.

Que dizer duma criança com pai branco, que não foi criada pela sua mãe por ser mulata, pois sua mãe negra não podia criar bebé mulato no bairro? Nontombi Victória foi vítima de racismo, um dia após seu nascimento, foi deixada em Kwazulu Natal pela sua mãe, para ser criada por pessoas estranhas. Cresceu sem o amor da mãe, sem ser amamentada, mas conheceu cedo o carinho animal dos dois irmãos do padrasto, que lhe estupravam quase todos os dias.

São várias atrocidades vividas por estas mulheres, cujo nível de crueldade, apenas o documentário pode revelar, levando-nos a concluir que a mulher é vista como objecto de prazer, e as suas aspirações são ignoradas, numa sociedade que está doente e precisa de cura.

Ecos desafia-nos a contemplar nas vítimas os estragos da violência baseada no género, e as consequências dessa violência na sociedade. Após muita exposição, a violência, as vítimas podem se tornar protagonistas da mesma. O documentário convida-nos igualmente a pensar na impunidade dos predadores, na prevenção da violência e na educação da rapariga de hoje.

A educação precária da rapariga, a falta de informação, a exposição de adolescentes ao horário nocturno, a falta de procedimentos de detecção e resolução destes conflitos nas escolas primárias e secundárias, são vulnerabilidades gritantes que o filme nos intima a prestar atenção.

Ecos é uma obra cinematografica em formato de documentário, escrito e dirigido por Gigliola Zacara, com a duração de 81 minutos, lançado em 2023 no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

Passaram-se várias estações: aquela em que o sol brilha intensamente, trazendo alegria e esperança; a que se segue, em que o sol se esconde e o frio penetra até às entranhas; e ainda aquela em que as folhas caem no quintal, dançando ao sabor do vento. No entanto, as dúvidas que pairavam na minha mente não me deixavam em paz.

Sempre observei a forma enigmática como vivia aquela menina da minha idade no bairro. Sim, a menina linda, baixinha, com a pele negra como carvão e olhos tão escuros que pareciam poços profundos, que nunca refletiam emoção. Para ser honesta, posso afirmar categoricamente que nunca vi a cor dos dentes dela — se é que os tem!

Só sei que tem 14 anos, pois a minha mãe mencionou que era da mesma faixa etária que eu. E quando questionei uma vizinha mais próxima sobre ela, obtive apenas uma resposta evasiva, mas o que realmente me intrigava era por que ela não se juntava a nós nas nossas brincadeiras de rua.

Essa curiosidade despertava em mim uma vontade crescente de conhecê-la, de entender o que se passava na mente daquela menina tão distante. O contraste entre a nossa alegria e o seu aparente isolamento tornava-se cada vez mais angustiante.

Ficávamos tão empolgados durante os feriados e as férias, fazendo tanto barulho que até quem não queria brincar acabava por se juntar a nós, atraído pelos nossos gritos alegres que ecoavam pelo bairro. No entanto, aquela menina parecia viver num mundo à parte, imune à nossa alegria. Sempre que perguntei à minha mãe sobre ela, a resposta era a mesma: “Deixa-a em paz, minha filha. Brinca com quem quer brincar.” Mas como faria isso se a angústia não me deixava a mim? percebi que, mesmo de longe, ela nos espionava por um buraquinho entre o murro da sua casa, e eu poderia jurar que o seu coração pulsava de vontade de se juntar a nós, mas não sabia o que a impedia…

Decidi que queria entender mais sobre a sua vida e por que ela parecia tão distante. Na minha mente, vestia-me como uma detective e comecei a investigar a origem daquela menina que chegara recentemente ao nosso bairro. Contaram-me que ela vivia com o tio que a adotara como filha — à parte da sua família biológica, estava no distrito de Molevala, na província da Zambézia, cá mesmo em Moçambique. O que me intrigava era saber onde estava a mãe dela e se estava realmente doente, como me disseram — esse vazio só aumentava as minhas perguntas. O que teria acontecido à sua família? Como era a vida dela antes de vir para cà?

Mais intrusiva do que teria previsto, comecei a espreitar pelo buraco que ela usava para nos observar quando brincávamos na rua. Numa das minhas investigações, vi algo que me gelou o sangue: a cena brutal em que o seu tio a agredia fisicamente… a cada golpe parecia que também atingia o meu coração. Escutei os gritos desesperados dela, implorando por misericórdia, e a impotência tomou conta de mim. Ninguém fazia nada! 

Os vizinhos ouviam, mas permaneciam em silêncio, como se a dor dela não fosse a dor deles. Voltei para casa em prantos, contando à minha mãe o que vi, esperando que ela pudesse agir de alguma maneira. Porém, em vez disso, a raiva surgiu nela — zangou-se comigo por estar a ‘espiar’ a vida alheia. E eu? Também ficava zangada, porque não era a espionagem que me preocupava, mas sim a brutalidade do que acontecia diante dos meus olhos.

A cada dia, o meu desejo de ajudar aquela menina aumentava, mesmo após o seu tio ter sido o terror da sua vida. Decidi espreitar pelo buraquinho para ver como a minha amiga estava, e, para minha surpresa, percebi que o amor que ela sentia pelo seu irmãozinho de 1 ano de idade era profundo, quase avassalador. Para ela, ele não era apenas um irmão; era como uma das suas bonecas, à qual dedicava todo o carinho que possuía. Às vezes, via-a brincar com ele de forma ternurenta, oferecendo-lhe o peito para mamar, e ele aceitava o gesto com a naturalidade de um pequeno que confia incondicionalmente. A cena era ao mesmo tempo doce e dolorosa; a inocência daquela brincadeira contrastava com as sombras da sua realidade.

Pelo menos, fiquei aliviada ao ver que, de alguma forma, a menina encontrava alegria nas suas brincadeiras de amamentar o irmãozinho (como eu fazia com as minhas bonecas… ah, quem me dera também ter um irmãozinho para brincar de dar de mamar), mesmo que a vida lhe tivesse imposto fardos tão pesados. 

O que me deixava inquieta era a suspeita de que ela tinha descoberto que eu andava a espioná-la, mas, estranhamente, parecia não se importar com isso. E, pela primeira vez, vi um sorriso genuíno iluminar o seu rosto. Era um sorriso lindo, com dentes branquíssimos que pareciam brilhar à luz do dia, um sorriso tão contagiante que me fez acreditar que talvez, só talvez, ela estivesse a começar a gostar de mim também como amiga.

Aquela reação positiva trouxe um misto de esperança e emoção ao meu coração, como se, naquelas pequenas interações, estivéssemos a desbravar um caminho para a verdadeira amizade, apesar das barreiras que nos separavam. Entretanto, os dias foram passando e a sombra do seu tio continuava a pairar como um lobo à espreita. A forma como ela reagia na presença dele mudava drasticamente; havia um medo que a fazia encolher. Pedi-lhe certa vez para me abrir a porta, mas a resposta foi diferente daquela que obtinha antes, e a certeza de que ela não desejava falar veio como um golpe. Os meus instintos diziam que o homem não era pai nem tio, e o mistério permaneceu. Mas foi através de uma conversa reveladora que finalmente soube a verdade: aquele homem era o seu marido e não seu tio ou pai.

Fiquei paralisada. Como poderia aquilo ser verdade? Ele parecia mais velho que o meu próprio pai! A história que se desenrolou diante de mim foi uma mistura de horror e tristeza. Ela foi oferecida em casamento quando a sua família passava fome e, agora, além de cuidar do que presumi ser seu irmão e não era, mas sim filho, ela tornara-se a propriedade desse homem cruel. O meu coração, de alguma maneira partido por ela, questionava o mundo à minha volta, e uma raiva profunda me invadia, ela so tem 14 anos, tal como eu!

Decidi que não poderia ficar de braços cruzados. Com o desejo de ajudá-la pulsando em meu peito, procurei formas de intervir. Mas as sombras do medo e das consequências recaíam sobre nós como nuvens ominosas. Não sabia como poderia ser a resposta do mundo, nem até onde iria por uma amiga que mal conhecia, mas algo em mim gritava que não poderia ficar inerte. O que poderia fazer? O que poderia realmente ajudar?

Estas perguntas também ecoam na minha mente como assobios do vento, e a cada resposta que tento encontrar, o labirinto de dúvidas tornava-se mais profundo. Como iremos acabar com as uniões prematuras, e a violência doméstica em Moçambique? 

À medida que refletimos sobre as histórias de vidas marcadas pela dor, pelo sacrifício e pela perda, somos confrontados com a dura realidade dos casamentos prematuros e da violência doméstica. Estas não são meras estatísticas, mas diálogos íntimos e silenciosos que ecoam nas vidas de adolescentes e crianças inocentes, como a pequena menina de que relatamos, e de tantas outras meninas e mulheres que têm os seus sonhos e esperanças desfeitos por tradições que perpetuam o sofrimento.

Cada união que se celebra sem a liberdade de escolha é uma vida que se arrisca a ser dilacerada pelas garras da opressão. Cada menina levada ao altar contra a sua vontade é uma promissora vida fechada dentro de quatro paredes, onde a violência se torna uma sombra que a acompanhará, dia após dia. A realidade é cruel, e a dor que estas meninas enfrentam não pode ser subestimada.

“Azarias a fanale ku dondza, ku fana ni vapfana hinkwavhu vha lomu”
(Avó Carolina, no filme “O dia em que explodiu mabata bata ”, 2017, no minuto 18:50)

 

As obras audiovisuais sempre nos trazem algo acrescido na narrativa, coisas que não seriam trazidas numa obra literária. Por exemplo, um conto. E é nesse exemplo que nasce o filme “O dia em que explodiu mabata bata”, de 2017, realizado por Sol de Carvalho. A obra de 52 minutos foi inspirada no conto com o mesmo título de Mia Couto, cujo texto está inserido na colectânea “Vozes anoitecidas”, publicado em 1986.

Esse texto abordará as infidelidades de Sol de Carvalho, em relação ao texto original, e a infidelidade com a produção convencional dos filmes baseados na linearidade cronológica e os três actos.
O anoitecer das vozes, no texto “O dia em que explodiu Mabata Bata” nos é apresentado aqui como um destroço, um vestígio sangrento da guerra dos 16 anos, trazido à superfície pelo “Ndlati”, que abocanha tanto o Mabata Bata como o Azarias, esse, se bem observado com os olhos de Mia Couto, ganhou esse nome devido à sua sina: órfão de pai e mãe, pastor de gado “obrigado”, e negado o lápis para desenhar os seus sonhos, tendo a sua existência reduzida no forjar e acautelar do sonho alheio, nesse caso do seu tio Raul, que era de “lobolar”.

Apesar de ser adaptado do conto de Mia Couto, esse filme não foi fiel ao mesmo. Para aquele que vira espectador, simplesmente por saber que se trata de uma adaptação de um tal texto, pode terminar os minutos frustrados por conta da tamanha “infidelidade” da produção. Esse, diria, seria aquilo em que se postula como o que foi menos conseguido em toda a obra vencedora de muitos prémios em várias categorias, como melhor filme, melhor director e melhor actor na “Garden Route International Film Festival”.

As premiações não deixam enganar. A obra teve uma direcção de encher o olho, desde a produção com Sol de Carvalho, a direção de fotografia com Jorge Quintela, o som com Dinis Henriques e outros. Também teve desde actores já consagrados nas telas nacionais, como Horácio Guiamba, o tio Raul, e o Mário Mabjaia, tendo actuado como espírito, e outros actores emergentes como o Emílio Billa, o Azarias, o protagonista.

O filme começa a “trair” o texto original logo no início. Contudo, percebe-se que, no contexto cinematográfico, não se trata de algo “amais”, o que se acrescentou, deu ainda mais aspecto realístico no enredo. A primeira separação está nos inícios: Mia Couto não nos traz cá uma fase de “introdução”, onde, geralmente, se estende o contexto em que a história irá se desenvolver. Contudo, Sol de Carvalho dá-nos esse precioso contexto. Ou seja, Mia Couto vai deixando ideias de espaço e tempo de forma estilhaçada ao longo do texto, e o filme apresenta-nos quase tudo do início.

Nos primeiros dois minutos, esquecendo por hora as falas do próprio Azarias, correndo até pisar a mina (o que será analisado mais a frente), vemos a paisagem verde, o rio, o gado, uma menina carregando água na cabeça, o que nos remete inequivocamente ao campo, áreas rurais, mas também, que prol lhe faça, a direcção de arte [que] coloca lá soldados a correr. A disposição da tropa envia uma mensagem clara: momento de conflito armado. Isso se pode notar, actualmente, em Cabo Delgado, onde a forte contingência armada dos militares significa que é uma zona de conflito armado.

A fotografia, essa direcção também merece os parabéns. Não é preto e branco, mas também não é a cores. A fotografia situa-se entre essas duas cores que nos permite tecer o tempo: não é o antigamente e, também, não é o actualmente. Talvez estejamos no meio dos dois; antes do agora (que deve ser longo) e depois da independência porque, em Moçambique, quando se conta histórias, “A khali, I Khali ka Wu Koloni” (O antigamente é o tempo do colonialismo). Também a trilha sonora é excelente: a música incidental inicial remete-nos a África, aquele som, de um instrumento africano, não engana.

A obra audiovisual é complexa. Ela dá-nos impressões, às vezes confusas, de que vai narrando duas histórias em simultâneo: a do Azarias e a do Raul. Há duas histórias sendo contadas em paralelo. A primeira narrativa é a frustração do sonho de Azarias, que é de estudar como outras criança. E o que frustra esse sonho é o seu tio Raul. Paralelamente, no início do filme, dão-nos a entender que há uma outra narrativa com um fim completamente diferente da primeira, apesar de estarem entrelaçadas. Nessa outra história, Azarias, esse já morto, frustra o casamento do seu tio Raul, fazendo exigências que somente espíritos sofridos o fazem, e isso foi bem adiantado no próprio filme, “Em África, quando na família acontece uma morte violenta, qualquer acto futuro exige uma consulta aos espíritos”.

É basicamente nessa questão de confusão narrativa causada por histórias paralelas em que Juliana Milheiro (in Narrativas não lineares e a estrutura de roteiro em filmes multiplot, 2020, online) disserta e as trata por “narrativas não lineares”. Hartner (2012, citado por Juliana Milheiro), diz que são “um modo de contar histórias em que pontos de vista múltiplos, e muitas vezes discrepantes, são empregados para a apresentação e avaliação de uma história e seu mundo”. E o mundo em que se fala aqui é bantufano: em que visões distintas fazem o tecido histórico que nos compõem.

No seu livro “The 21st century screenplay” (O roteiro do século XXI), Linda Aronson (2010:167) chama isso de “Narrativas paralelas”, definindo, pela forma, que “usam várias narrativas separadas em paralelo, muitas vezes envolvendo não linearidade, saltos de tempo, grandes elenco ou todos estes.” Aqui é onde esse filme situa-se teoricamente: não se trata de uma produção convencional em que está baseada na estrutura dos três actos, que se dividem em configuração, confronto e resolução. Aronson alerta que esse tipo de produção tanto é complexa, quanto paradoxa, o que leva à incompreensão do que é narrado. Logo, se é projectado num cinema, onde a pessoa não terá oportunidade de rever, pode criar uma confusão tremenda. Contrariamente, esse tipo de narrativa é bem recebido nos livros pelo facto de sempre ser possível retornar para entender bem a história.

É nesse manto de incompreensão que urge trazer uma sinopse longe da que dei antes, apenas da narrativa na “perspectiva” de Azarias.

Raul quer casar. Esse é o seu objectivo, mas o conflito, que trava esse acontecer, é o espírito de Azarias, que, já no final do filme, faz exigências, e, supridas essas, consente o lobolo para o regozijo de todos. Entre o início, o conflito, e a resolução desse conflito, que deveria ser clímax, existe lá uma outra história que explica o conflito que Raul enfrenta. Isso é o “flashback” ou “analepse”, um recuo no tempo discursivo. Falando já em alteração da ordem temporal dos actos, o filme, bem no início, quando corre e explode o Azarias, pode ser vista como “prolepse” ou “flashforward”, avanço no tempo discursivo.

Nos diferentes tipos de flashbacks estipulados por Aronson (2010:175), o filme adequa-se no “Bookend flashback”, que seria, quando “uma cena ou sequência no presente, aparece no início e no final do filme”. No roteiro, a cena presente é o pedido aos mortos, intermediado pelos curandeiros, que está no início e no fim, quando já dançam, no tardar da lua.

Além dessa forma de produção que rompe com a forma convencional e “Hollywoodiana” de fazer filmes, a produção, como disse antes, acrescentou mais matéria que enriquece o filme. Nesse caso, estaríamos a referirmo-nos aos curandeiros, que simbolizam a tradição e folclores africanos. Trajados bem a rigor, capulanas com cores pretas e vermelhas. A primeira cor lembra-nos que os curandeiros lidam com o lado escuro da vida (no sentido de invisível) que só pode ser enxergada com os que são “iluminados”, e a segunda cor expressa, para nós, que esses lidam com a vida, nas analogias com sangue. Aqui também se felicita a Guarda roupa, que também meticulosamente vestiu o espírito da mesma roupa com a que Azariana (como é tratado no filme) é apresentado: camisa branca e calções verdes já esfarrapados. Enquanto no início do filme é difícil conectar o espírito ao Azaria, que são a mesma entidade em dimensões diferentes (um é espírito e outro é corpo físico), mas paralelas (como se compreende a existência em África), as vestimentas vão clarificando essas ambiguidades, principalmente porque os dois são apresentados de forma “não linear”, mostrando-nos o futuro de Azarias, quando já está morto e rancoroso, e antigo Azarias numa sentada (prolepse ou flashforwards).

Um dado interessante no filme, também nota-se esse intercâmbio cultural na dimensão das crenças. No mesmo instante nota-se o chamar dos curandeiros para lidar com certos assuntos, mas também vê-se a avó Carolina rezando, dentro de casa, por um “Hosi” (palavra que designa rei), que concluo ser Deus judaico-cristão. Essa ambiguidade cultural e tradicional, numa altura, já se dissipava antes dos discursos de ódio que (re)nascem entre cristãos (que apesar de serem evangélicos e protestantes têm atitudes ortodoxas) e os defensores de folclores africanos, uns diabolizando os outros, como o último caso público de Paulina Chiziane, que foi agredida por crentes de uma igreja em Maputo.
O que salta à vista nessa obra é a língua usada: Changana. A obra torna-se ainda mais original. Também, penso, possa ser uma forma de revitalização linguística, quando se usa no contexto artístico. Aliado a isso, temos a questão das falas dos personagens, que não passam despercebidas. Toda intervenção discursiva dos personagens ajuda a criar um sentido cada vez mais histórico e contextual, ora falas que reflectem o texto original ora não. É a partir das falas que se percebem questões como ‘mulher-objecto’ na sociedade, quando o pai da Helena a diz que ela está “prometida”.

No filme, nota-se Azarias, esse que tem o sonho de ir à escola, a trabalhar duro fazendo pastorícia enquanto outras crianças estudam em baixo das árvores. Aqui o realizador traz-nos o contexto completo desse tempo e lugar quando as crianças sentam-se no chão ou nas pedras para poderem estudar. Mas é a fotografia do contraste entre a realidade degradante do Azarias e das outras crianças que nos sobra na memória, fazendo-nos reflectir sobre a questão de privar as crianças de estudar e sonhar. Esse sonho frustrado é visível no semblante cabisbaixo do Azarias, profunda melancolia, que em toda história não esboça nenhum sorriso no rosto, mesmo que de mentira. Se o riso é uma língua, então diria Mia Couto que Azarias “foi perdendo [essa língua] à medida que o mundo foi deixando de ser dele”.

Na narrativa audiovisual, Azarias é apresentado mais um pouco com ares de criança, o que o texto não nos traz nunca. Isso mostra que, apesar de ser impedido de ser criança, em momentos, encontra algum descansar do tempo em que podia jogar xindire (o brinquedo que José e Azarias jogam momentos antes da vaca explodir) com o José, que não é muito bem apresentada a relação com Azarias, mas parece que é amigo. Ou mesmo para espreitar a menina, de longe, quando faz banho.

As tropas, a trilha sonora, e a fotografia revela-nos, sinto, que se trata de dos anos da guerra civil que durou aproximadamente 16 anos, desde 1977 até 1992. Numa análise mais profunda, percebe-se que além de tudo sobre o casamento, tradição e estudar, estão os destroços da guerra. A guerra, pelo que a história traz, nunca acaba quando se calam as armas. O ser órfão, os conflitos familiares que surgem das almas aterrorizadas pela mesma, os sonhos frustrados, o vazio nas famílias, a antipatia que se nutre, e os refugiados, o que sempre causa fome, são consequências profundas que ela pode trazer.

Vendo bem as consequências da guerra civil nas costas do pequeno Azarias, encontramo-nos a questionar: quantas almas vagando entre tiros e granadas em cabo delegado não vestirão, num futuro inimaginável, os andrajos com as quais é fadado a cobrir a sua infância para evitar doenças tipo escravidão infantil, orfandade, a privação da educação e, mais crónico, a privação de sonhar? Essa, talvez, seja uma questão a ter em conta quando se for a falar da guerra, mas por agora, “Em tempos de guerra, o melhor plano é acabar com ela” (fala do personagem Espírito no filme “o dia em que mabata bata explodiu”, minuto 48).

Por aqui já é notório afirmar que Sol de Carvalho cometeu várias “infidelidades” tanto com o conto como com a forma em que os filmes são, geralmente, produzidos, principalmente no Ocidente. Mas, esse é o caso em que se diz que há males que vêm para o bem, e é esse um deles, indubitavelmente.

Moçambique e o mundo enfrentam novos desafios decorrentes das mudanças que ocorrem a nível demográfico, avanços na ciência bem como das mudanças climáticas. Estas mudanças têm impacto na forma como as politicas públicas são definidas e, acima de tudo, na forma de construir os problemas e as respectivas resoluções. É lugar comum afirmar-se que as elites definem as trajectórias das organizações bem como das nações. Naquelas sociedades quando elas, as elites, se seguram a dogmas e às mesmas formas de fazer e lidar com os problemas a inovação tenderá a ser nula, a resistência à mudança poderá ser prevalecente e as oligarquias que controlam e procuraram perpetuar-se no poder irão, com facilidade, afirmar-se. As oligarquias são pequenos grupos de interesse ou lobby que controlam as políticas sociais e económicas em benefício de interesses próprios. O termo é também aplicado a grupos sociais que monopolizam o mercado económico, político e cultural de um país, mesmo sendo a democracia o sistema político vigente. No contexto moçambicano entendemos por elites políticas oligárquicas os grupos de interesse ou lobby dos partidos poliíticos que procuram controlar o poder a autoridade em benefício próprio. Tendo presente este postulado, neste artigo analiso as elites políticas em Moçambique argumento que os partidos políticos moçambicanos devem encetar um processo de reforma das suas elites políticas. A reforma das elites dos partidos políticos moçambicanos contribuirá sobremaneira para a inovação no diagnóstico dos problemas, na maneira de estruturar o poder e a autoridade e na forma como se relacionam com o povo. Sobre a necessidade de reforma das elites há autores que eleições livres e justas realizadas periodicamente são a base rudimentar para a circulação qualitativa das elites políticas e da representação dos interesses públicos mediante as políticas públicas. Para estes autores as eleições são o mecanismo de renovação das elites. Ora ao focarem-se simplesmente na eleições, estes autores, negligenciam aspectos importante como os processos institucionais para a renovação das elites,às diferenças reais sobre a inovação das elites pelo tempo e espaço e a importância da liderança inovadora.

Em Moçambique, as elites oligárquicas tendem a construir modelos patrimonialistas de poder com a afirmação de castas dominadas por famílias. Esta estruturação das elites políticas dos partidos políticos moçambicanos não contribuiu para a sua inovação ideológica. Ademais as elites oligárquicas são nocivas ao fortalecimento da democracia interna uma vez que tendem a resistir ao debate instalando no seio dos partidos práticas para amordaçá-lo, tais como oculto a personalidade, invenção de factos e narrativas dissuasores de um debate aberto, grupos internos de ataque a figuras que estruturam um pensamento diferente e controlo dos processos de eleições internas através de escolhas definidas pelo topo fazendo das bases simples legitimadores de processos previamente definidos. Nos partidos onde se instalam grupos com tendência oligárquica há centralização do poder, não há debate porque este pode pôr em causa o “status quo”. Para passar a ideia de democraticidade interna estas elites acordam em controlar o debate, estabelecendo minutos para a intervenção dos seus militantes nas reuniões ou impondo a regra de intervenção nos orgãos internos. A escolha dos dirigentes dos partidos de nivel intermédio e de base são impostos pelo nível central pondo em causa a legitimidade de livre escolha dos militantes destes partidos. Este forma de actuar modifica a base política dos partidos porque é construida à imagem destas oligarquias e não reflecte os diferentes interesses no seio dos partidos. A composição dos órgãos dos partidos não é feita em função dos diferentes interesses dentro dos partidos mas à imagem dos “chefes”, entendendo por chefes os presidentes dos partidos.

As elites que se reproduzem perpetuando-se no poder, ostensivamente ou de modo subtil, têm a tendência em disvirtuar os processos políticos conforme temos assistido ciclicamente na contestação interna que os militantes fazem dos processos eleitorais internos. Esta parece a moda em todos os partidos políticos em Moçambique pela forma como as contestações são feitas e partilhadas na esfera pública. A disvirtuação de processos políticos é feita através do estabelecimento de normas para as eleições internas feitas à medida dos interesses das elites oligárquicas. Estas elites oligárquicas não têm interesse nenhum em estabelecer ou consolidar instituições e processos impessoais que fortaleçam a democracia interna. Pelo contrário, procuram estabelecer regras e processos que estejam sob o seu controlo agindo como árbitro e jogador.

Estas elites não reformam os partidos políticos muito menos ousam reproduzir o Estado. Elas não têm interesse em reformar o Estado uma vez que vivem das “tetas” do Estado. Elas não reformam os partidos políticos ajustando-os às dinâmicas da sociedade. Elas recusam-se a dar respostas ao clamor que os militantes fazem por reformas internas de maneira a impessoalizar os processos internos reforçando a democracia. Estas elites oligárquicas ignoram o clamor da sociedade pela mudança, investindo, pelo contrário, numa práxis discursiva desfasada da realidade. Elas apropriam-se de casos singulares e os generalizam com o argumento de que os números falam por si. Elas se outorgam donas da razão. Para elas a razão é mais importante que a razoabilidade.

A experiênca de 30 anos de democracia multipartidária permitiu-nos, hoje, afirmar que é preciso que os partidos tenham processos internos transparentes de reforma das suas elites. Estes processos devem permitir que em ciclos curtos e intermédios apareçam novas elites com idéias e praxis ajustadas à conjuntura e aos desafios que o país enfrente. Elites que não se fecham no sempre fizemos assim. Elites cuja autoridade radica do facto de estarem a longo tempo no centro do poder e não nas propostas que apresentam para dar respostas aos desafios que os partidos enfrentam. Mas só faz sentido reformar as elites oligárquicas dos partidos se: os partidos intitucionalizarem debates abertos no seu seio; os sistemas de eleição interna forem reformados por militantes que não estejam em conflito de interesse, isto é, que não tenham interesse pela eleição; for limitado o número de mandatos nos orgãos centrais dos partidos permitindo refrescar os partidos do ponto de vista de idéias e propostas políticas e estabelecer regras que evitem a “monarquização” dos órgãos dos partidos políticos. Ora, só faz sentido reformarmos as elites oligárquicas se os militantes dos partidos estiverem comprometidos em contruir uma sociedade aberta que propicia inovação e uma economia do conhecimento.

A crise que os partidos políticos atravessam resulta mais da recusa das elites oligárquicas em sair da cena política e do conformismo daqueles que têm condições políticas para empreender reformas. Só se reforma com coragem e ousadia. O facto é que, em Moçambique, os partidos polítios precisam reformar as suas elites.

Não advirá nada de novo com um actor novo e com centros de tomada de decisão nas mãos de elites oligárquicas. O compromisso destas elites com Moçambique, o seu patriotismo deveria revelar-se na tomada de decisão de criar condições para que as reformas aconteçam sem a sua interferência para que se evite a repetição dos mesmos processos com resultados iguais. O país só viverá novos tempos com novas idéias, novas forma de fazer e agir empreendido por novas lideranças que produzam novas elites. Novos tempos, novas idéias e formas de fazer fazem-se com liderança comprometida com mudança e não com alternância política. Há uma tese falaciosa de que novas idéias, novas formas de fazer e agir só se produzem com alternância política.

Para que o sitema político moçambicanos funcione mais efectivamente é necessários uma transformação necessária uma transformação na composição periódica das elites, em termos não somente quantitativo, renovação, como qualitativo, inovação, com competência e responsabilidade política dos seus membros. Novos tempos exigem novas idéias, novos actores e novas formas de fazer. É possível construir uma sociedade de conhecimento que leve a reestruturação da nossa economia, melhorando a vida dos moçambicanos. tudo isso feito com cooperação mas acima de tudo contando com as nossas próprias forças e a nossa inteligentsia.

Estamos aqui para reflectir sobre Moçambique. Para começarmos, gostaria que tivéssemos uma reflexão inicial focada nas seguintes perguntas: O que significa, realmente, pensar Moçambique? O que nos vem à mente quando nos propomos a esta reflexão? Será que temos refletido de forma suficiente sobre o país que queremos ou estamos a construir?
Quero propor que pensemos em Moçambique como um país não só de esperança, mas de realizações e concretizações:

Como podemos construir um Moçambique onde a educação não exclua nem discrimine? Um país onde a qualidade da educação seja um direito universal, independente do estrato social ou localização geográfica. As condições de ensino na cidade, no campo ou no posto administrativo mais remoto devem ser iguais e exemplares. Não deveríamos exigir que todas as crianças, em qualquer parte do país, tenham acesso a escolas de qualidade, ao invés de aprenderem debaixo de árvores ou sentadas no chão? Precisamos desenhar uma educação que forme cidadãos do mundo, onde o desenvolvimento das sociedades seja alicerçado numa educação de excelência.

Mas como podemos falar de qualidade na educação quando temos turmas superlotadas e professores que mal conhecem os seus alunos? Essa realidade reflete a transformação da educação em comércio, quando, na verdade, a educação é muito mais séria do que imaginamos. Quais são as consequências de uma educação de improviso ou de arranjo? Teremos parlamentos sem cérebros, onde a competência se mede pelo maior vibrar de palmas, uma saúde que não satisfaz nem as necessidades básicas, e gestores que não alcançam os resultados desejados. Então, como estamos a pensar Moçambique, é nosso dever, como povo moçambicano, questionar: Como podemos mudar essa realidade?

Precisamos da participação visível das universidades no desenvolvimento do país. Uma universidade que ofereça ao país estudantes com competências técnicas, capacidade crítica e cidadania ativa.

Pensar Moçambique também é refletir sobre uma política de transporte eficiente. Estamos a garantir uma mobilidade pública segura e acessível? Precisamos de estradas com ciclovias, passeios e pavimentação que favoreçam o transporte de pessoas e bens, pois melhorar a transitabilidade do país promove o crescimento econômico.

Será que as nossas instituições públicas e privadas têm a capacidade técnico-científica e ética para servir Moçambique? A ética manifesta-se no comportamento e na personalidade do nosso ser. Precisamos de mentes criativas e inovadoras nas instituições, que acompanhem as mudanças tecnológicas globais. Estamos a entrar num mundo de inovação tecnológica onde o homem está a ser substituído por robôs e/ou Inteligência Artificial (IA). Estamos preparados para essa realidade?

Um país que privilegia a inteligência pode se tornar um país “certo”. Queremos pensar num país com gestão pública próxima da perfeição, onde a soberania seja plena e total, mesmo nas regiões onde empresas internacionais, como a Total, exploram os nossos recursos. Como podemos assegurar que o prazer de viver se reflita na oferta de serviços públicos e privados de qualidade? Pensar Moçambique é imaginar um auditório como este, composto por moçambicanos e cidadãos engajados que não esperam as coisas acontecer, mas participam ativamente com seu saber no desenvolvimento social do país. Podemos transformar Moçambique num exemplo de resiliência e progresso, assim como o Japão, que superou os desafios após a Segunda Guerra Mundial?

Pensar Moçambique é também valorizar a competência em detrimento da confiança baseada em amizades ou critérios étnico-tribais. Queremos um Moçambique que pensa nas futuras gerações e cria as melhores condições para elas. Um Moçambique competente, que exporta não apenas recursos, mas também conhecimento e produtos acabados. Como podemos construir um país onde os serviços públicos de saúde são de qualidade, sem doentes a dormir nos corredores, e onde a educação produz conhecimento inovador?

Pensar Moçambique é também sonhar com um país onde as teorias “Changuisianas” não têm expressão, onde as autoridades públicas priorizam educar o cidadão antes de o multar. Um país que valorize a competência, que pense nas futuras gerações e crie as condições para que estas possam prosperar. Como podemos fazer com que o conhecimento seja a nossa maior riqueza, assim como o Japão fez, apesar das adversidades geográficas?

Queremos um Moçambique que utilize as tecnologias de comunicação para o bem da humanidade, como faz o Japão, que coloca a tecnologia no centro do seu desenvolvimento.
Podemos criar um Moçambique onde o turismo seja uma verdadeira força motriz da economia? Temos o sol, as praias e os recursos naturais incomparáveis, com extensões de praias de águas mornas e longos períodos de sol. Como podemos capitalizar essas vantagens comparativas para impulsionar o desenvolvimento e fazer com que o turismo e os mega projectos contribu de forma apreciável para o PIB do país?

Para terminar, pensar Moçambique é imaginar um país onde a desnutrição não tenha lugar, graças a políticas agrárias sérias e ao aproveitamento dos nossos recursos naturais. Estamos a usar as nossas terras férteis, como os vales do Zambeze, regadio de Chókwè, e outros regadios , de forma a eliminar a fome e a promover o bem-estar? Precisamos de capitalizar os recursos que temos, como os rios que atravessam o país e que vão abraçar as águas do Oceano Índico, para o benefício integral de todo o povo.

Estamos preparados para criar um Moçambique com valores que mostrem ao mundo que o povo africano está a conquistar a sua independência econômica? Um Moçambique com uma identidade própria, onde a consciência coletiva pense no bem-estar comum, e onde não haja espaço para greves ou reivindicações nas várias profissões do país.

Queremos, juntos, pensar num Moçambique melhor de todos os tempos.
Muito obrigado

A greve de Celso Cossa*

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força

A menina da Ronil

Por: Sara Nhabau   A menina da Ronil. Assim dizem, quando relatam a minha história. Afinal, quem é a menina que assombra o bairro? É

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