O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

Um Papa que a partir das ruas que fazem o dia a dia do nosso povo, ensinou-nos, acenando as mãos e com o rosto afável, a abraçar com os olhos, e a ser igreja caminhante, uma igreja viva e que a todos chama para sonhar juntos, sem se esquecer das nossas raízes, as bibliotecas do amor e da vida.

“Perante a crise de identidade …, talvez tenhamos que sair dos lugares importantes e solenes; temos de voltar aos lugares onde fomos chamados, onde era evidente que a iniciativa e o poder eram de Deus. Irmãos e irmãs, voltar a Nazaré, voltar à Galileia pode ser o caminho para enfrentar a crise de identidade. Depois da sua ressurreição, Jesus convida-nos a voltar à Galileia, para O encontrar. Voltar a Nazaré, à primeira chamada, voltar à Galileia para solucionar a crise de identidade, para nos renovarmos”. Papa Francisco.

Moçambique _ maningue nice, _ é como é carinhosamente tratada esta terra que, no assobio luminoso das águas do Índico, ganhou a mania de acordar sem vergar aos desafios de, aos poucos, ir consolidando-se Nação, onde cabemos todos e todos preenchemos. É Moçambique a mania nossa de ser, a certeza de que amanhã o sopro melancólico das casuarinas terão se diluído na sonoridade da timbila e dos tambores que os rasgões da alma nos ensinaram a tocar; primeiro em silêncio e sem nenhum gesto, depois, gritando e movendo o corpo, é Moçambique o sol que nos aquece as veias e nos faz nutrir a alegria de viver no “alegre canto das andorinhas” que por vezes somos quando nos deixamos ser a força do encontro.

É esse Moçambique que se moveu em 2019, no acenar das mãos do Papa Francisco e se dilatou enorme, chorou de emoção e soube, no abraço tenro do Papa, ser canção do tempo que vestiu a memória da “malta” de todas as idades que saiu à rua para viver a presença do Papa em solo moçambicano.

Quando em 2019 o Papa pisou o pavilhão do Maxaquene, um enorme frio foi ali gerado, o corpo e as vozes tremiam, gritava-se reconciliação, reconciliação, reconciliação, depois, ouviu-se em uníssono, um cantar que nos une sem limite das religiões, cantávamos e dizíamos arrepiados no caminhar lento e dócil do Papa Francisco, que somos os Jovens da Paz, que a nossa missão é a reconciliação, cantamos com alma, força e Moçambicanidade.

Quando os jovens Católicos subiram ao palco, para apresentar a sua mensagem ao Papa, num texto que viajou entre Idai, Kenneth e depois os ataques de Cabo Delgado, algo me veio a cabeça, conhecia aqueles jovens, aquelas vozes, aquele fluxo, o gesticular remetia-me aos festivais juvenis da Arquidiocese de Maputo; são bons no que fazem, têm vida e movimento. Senti que aquela apresentação era uma sutura, uma cirurgia social, e porquê não uma reconciliação com aqueles que sabem fazer bem o que fazem. A juventude não se “autodiminuiu” deu espaço aos melhores, e os melhores foram o eco da elevação de uma juventude que, no calor do Papa se faz enorme, madura e consciente, o texto vestido de alma partilhada foi escrito por jovens moçambicanos, tendo a sua representação feito o Papa Francisco, mover as mãos para um bater de palmas que nos arrefecia a alma e nos vestia de um espírito renovado, paz, esperança e reconciliação.

Quando o Papa falou, percorreu-nos de alma descalça um dos maiores exemplos da juventude, falou-nos da Lurdes Mutola, como poucos falamos sentimos e pensamos, falou da sua infância difícil, das suas conquistas e de como depois de ganhar tudo e ser referência nos 800m, não deixou de ser moçambicana e vestiu sempre as cores que corporizam o peito desta terra, o Papa elevou Lurdes ao nível de exemplo para juventude Moçambicana, e aconselhou-a a caminhar unida “juntos” sempre que pretenda chegar longe, a não desistir na primeira queda, que a juventude não perca a alegria de viver, e por fim pediu que se continuasse a rezar por Ele e que o Senhor nos abençoe.

Este foi e continuará sendo o Papa Francisco que se nos existe presente abraçando-nos a essência caminhante de uma igreja que quer sempre sonhar juntos.

Está marcada, em princípio para os próximos meses, a Assembleia-Geral da AEMO

(Associação dos Escritores Moçambicanos). É um marco importante para a agremiação, pois poderá culminar com a eleição dos novos corpos directivos, já que o actual elenco, que tem como secretário-geral Carlos Paradona, está em fim de mandato. Um ciclo que teve um primeiro mandato notável, tendo porém tido alguns problemas no segundo (foram dois mandatos), onde não teve o apoio de uma franja relevante dos membros, pela forma como o processo eleitoral foi conduzido, sem transparência, levantando clivagens internas.

A AEMO tem um histórico de eleições pacíficas desde a sua fundação. Com Rui Nogar a dar o mote, passando por Albino Magaia, Suleimane Cassamo, Lília Momplé, Armando Artur, Juvenal Bucuane, Jorge Oliveira, Ungulani Ba Ka Khosa e agora Carlos Paradona. Com este último há mudança de paradigma, ou seja, todos os outros secretários-gerais tiveram dois mandatos de dois anos cada. Porém, com a entrada do actual secretário, decidiu-se estender a vigência para três anos, e essa medida foi acordada por todos em Assembleia-geral. Pois chegou-se à conclusão de que dois anos não seriam suficientes para que se cumpra com os planos de actividades programadas.

É importante referir que o actual secretário-geral já cumpriu o seu segundo mandato de três anos. Tendo feito, como já fizemos referência, um brilhante trabalho no primeiro, mas no segundo pode ter experimentado algumas dificuldades, sobretudo na área financeira, que contribuíram no retraimento dos trabalhos da agremiação.

Ora, o que se propõe daqui para frente, contrariamente ao que vinha acontecendo – os membros votavam na pessoa do candidato – é que se vote no programa do concorrente, para que os apoiantes tenham conhecimento das linhas de orientação e evitarem-se prováveis  desenlaces durante o percurso. E pelo que se percebe a partir dos corredores, já há movimentações com os escritores a afiarem as facas com vista ao pleito. Apelando-se para que sejam realizadas eleições livres, justas e transparentes, pois as últimas não tiveram lisura. Outrossim, tomando em conta que Paradona está fora de mandato, espera-se que a demora que se verifica para a realização da Assembleia-Geral, tenha como resultado um escrutínio limpo.

A AEMO foi sempre uma instituição fervorosa, de debate e convívio. E respeito mútuo.

Então é preciso manter esse ritmo, esse modus vivendi para que a harmonia prevaleça.

Aquele que for a candidatar-se ao cargo de secretário-geral e ganhar, terá que reavivar esse equilíbrio, é isso que se espera. Mas antes cada um deverá nos dizer efectivamente o quê que vai fazer caso ganhe, para que os eleitores escolham o melhor programa. É preciso explicar aos potenciais votantes como é que vão implementar o que propõem, com que meios. E como é que vão trazer esses meios, aonde é que vão buscá-los. Não basta que os membros se simpatizem com o candidato, é preciso que o candidato lhes mostre o seu plano de forma clara e transparente.

Há uma grande expectativa e nervosismo nos corredores da AEMO, mas isso é bom. É vitalidade. O que se deseja é que a Associação retumbe e volte a brilhar. E todos os membros com quotas pagas têm o direito de se candidatar e todos eles estão de acordo que existe capacidade para trazer o comboio aos carris. Para o bem das artes e letras.

 

Esta coisa dos títulos tem das suas. Umas vezes esclarecedoras. Outras vezes desviantes.

Algumas, enfim, estão lá como a folha de louro está para alguns pratos: lá está, mas nem todos dão-se conta da sua presença ou ausência.

Dizer que os ghostwriters e os agentes literários são ausentes no nosso “sistema literário” pode-nos dividir imensamente. Por um lado, porque se se diz que estes são ausentes, por si só já denuncia que não temos um sistema. Daí o “amortecimento” do peso do termo através das aspas:

todo sistema literário que se prese tem de ter ghostwriters e agentes literários. Por outro, trata-se de uma colocação um tanto quanto acusatória, porque estas figuras existem no plano material, mas se escondem ou assumem outra identificação à semelhança dos críticos literários que se assumem como ensaístas e, por que não (?), dos escritores que se assumem como contadores de histórias. “Ya, são maningue cenas!”

Penso nestas figuras pelo bem que as mesmas fariam aos nossos escritores, quer emergentes, quer consagrados. São poucos os escritores que ganham a triste noção de que o “poço secou”, ou, na melhor das hipóteses, a água está cada vez mais escassa. É natural. É comum. Não é o fim.

Pode ser uma estação. Podem ser coisa da idade. Mas também pode ser uma sina. Cada um tem a sua, não é!? Não são raros os casos de “génios” que depois de terem produzido o seu Magnum Opus não se conseguiram superar. Rasgam os textos após duas linhas. É triste. É desolador.

Transtorna. Sobretudo quando se tem de responder à pergunta “para quando o teu próximo

livro?”

Muitos escritores (ou artistas, em geral) não têm consciência de que a criatividade é uma predisposição falível: tem momentos bons e maus. Os músicos, pela dimensão da representação do seu objecto de arte, convivem muito bem com as figuras de compositor, letrista, produtor e tantos outros que constituem uma verdadeira máquina por detrás da marca na qual o seu nome se tornou. A dúvida com a qual convivo é se os seus admiradores têm igual nível de compressão e cedência quanto a esse aspecto. É, em todo caso, matéria para outra conversa.

O nosso “sistema” em constante construção qual obra que nunca se assume como edifício acabado devido às constantes modificações, é permeado de revisitações (é o termo mais adequado que encontrei) de temáticas, de perfis de personagens, de descrições, etc., muitas vezes feitas pelo mesmo autor à semelhança de um arquitecto que faz diversos projectos no mesmo bairro e a diferença estivesse no tamanho dos compartimentos e nas escolhas dos proprietários na decoração dos edifícios.

Em situações deste género, mesmo que tal não signifique “crise de criatividade”, faz muito bem a figura de um ghostwriter ou de um agente:

  1. a) a primeira é, em muitas circunstâncias, admiradora senão seguidora do estilo de um certo autor. Estuda. Pesquisa. Imita e domina o estilo de tal autor muito melhor que o crítico literário que se dedica ao estudo de suas obras para fins académicos. É daquelas figuras que, geralmente, se for a publicar os seus próprios textos, haverá muita possibilidade de ser confundido com o autor que é objecto da sua imitação. Voltando à música, são vários “rumores” de artistas que cederam ao ímpeto de fazer a própria carreira para trabalhar nos bastidores de outro que já era uma marca. Bem analisada a questão, é uma relação contratual “win-win”. O público sai a ganhar e a “mídia cor-de-rosa” (hábito que, hoje, é coisa dos grupos de chat) perde a fofoca de “fulano é copista de fulano”.
  2. b) no caso do agente literário, além da dimensão “lobista” que este possa assumir, há um exercício de mentoria inicial que pode ser feito: nem todo livro deve ser, a priori, objecto de discussão com um editor. Este último tem um “mindset” corporativo que pode não ser o que o escritor precisa em primeira instância. Há um olhar que o agente tem que, na verdade, o editor também o tem, mas o segundo anda “contaminado” por certas pressões imediatistas que o podem impedir de dar valor a certas “aventuras” do escritor que, não raras vezes, estão adiantadas em relação ao seu tempo. E, curiosamente, é nesse tempo (presente) que o editor quer vender. Diga-se, porém, que esta disposição das funções só é válida onde há, efectivamente, um mercado.

Mas, pronto, vale a reflexão.

Em síntese e para o nosso agrado, temos estas figuras, mas ninguém as assume, conforme disse no início deste texto. Uns dizem-se revisores. Outros amigos (primeiros leitores do autor).

Alguns assumem-se como escritores experientes com amigos editores. Outros são jornalistas com lóbis nos corredores literários. Alguns, não poucos, são dinamizadores da leitura e escrita em clubes de leitura, agremiações culturais (literárias) e até professores. Com um pouco mais de interesse, organizamos o nosso dumbanengue literário e saímos todos a ganhar.

 

Resposta ao Texto “A Última Páscoa dos Moçambicanos”, de Severino Ngoenha

 

Professor Severino Ngoenha,

O seu texto é uma elegia poderosa. Uma convocação ética. Uma denúncia litúrgica.

Mas permita-me, com a devida raiva lúcida que a nossa pátria exige, ousar continuar onde o seu Domingo termina — ou talvez, onde já não há mais tempo para esperar por ele.

Uma amiga muito lúcida, Ângela Maria Serras Pires, ao ler o seu texto, sugeriu este título: “A Frelimo destruiu a alma da nação”. É um título, e ao mesmo tempo, uma frase de corte político.

Mas deixemos os títulos. Professor, li e reli o seu santo texto com muito thauma; senti gosto enorme nas entrelinhas e no seu jeito único de escrever. E, a partir disso, fiz minhas anotações anatômicas, que aqui partilho.

 

  1. “Há demasiado tempo que Moçambique vive entre a cruz e o túmulo…”

Professor, quer dizer que a nação moçambicana está presa num tempo litúrgico? Entre a Sexta-feira da crucificação e o Sábado do silêncio?

Mas será que Moçambique precisa dessa cronologia cristã para se pensar a si mesmo?

Não é essa metáfora já um cárcere simbólico? A cruz, o túmulo, o sofrimento — tudo isto não são heranças coloniais do imaginário europeu-cristão?

Penso que não vivemos entre a cruz e o túmulo. Vivemos, isso sim, num presente político morto-vivo, onde a cruz é um logotipo partidário e o túmulo é a urna eleitoral.

Aqui, não se ressuscita ninguém — nem sequer a esperança.

E se há uma “última Páscoa”, como escreve o Professor Ngoenha, então é porque todas as outras fracassaram.

Mas não basta poetizar o sofrimento, nem transformar a Sexta-feira Santa em metáfora política.

É preciso nomear o culpado. Não há redenção onde não há verdade.

 

E a verdade, professor, é esta: a Frelimo destruiu a alma da nação.

Carregamos um país crucificado, sim — mas foi crucificado pelo Estado, com a cumplicidade das igrejas.

Cristo não morreu por nós. Morreu connosco — no desemprego, na fome, no tribalismo.

E continua morrendo, todos os dias, com cada jovem assassinado no nascimento de sua consciência política.

  1. “A cultura da Sexta-feira tornou-se a estrutura invisível do nosso quotidiano.”

Será mesmo invisível? Ou estamos diante de uma estrutura escancaradamente visível, sustentada por um Estado que se alimenta do medo e da miséria?

Professor, não seria mais honesto dizer: a Sexta-feira foi institucionalizada — pelo partido, pela igreja, pela academia — e tornou-se estrutura visível, e legitimada?

Não é mais cultura do sofrimento.

É a indústria da opressão.

Professor, sua Sexta-feira é nobre, mas falta-lhe a denúncia.

Falta-lhe o nome do carrasco.

Falta-lhe o nome do deus que o povo adora enquanto é espoliado: o deus-Presidente, o deus-Pastor, o deus-General.

Essa é a cruz real.

A cruz da corrupção.

A cruz do silêncio comprado.

A cruz da esperança vencida.

  1. “Nessa Sexta-feira eterna, as crianças morrem de fome… o povo morre de silêncio.”

Mas quem é que construiu essa eternidade?

Quem sustentou os rituais do silêncio?

Quem ensinou o povo a jejuar pela salvação e votar pela opressão?

Professor, não foi a mesma igreja que abençoou as armas do colonizador, que agora abençoa os palanques da Frelimo?

 

Não foi a teologia da cruz que nos fez aceitar que o sofrimento redime?

Pois eu digo: o sofrimento embrutece, não redime.

A cruz não é metáfora — é mecanismo de dominação. E aqui professor a fé e política de um político é o sinônimo.

  1. “O Sábado é pior. Porque já não há grito — só ausência.”

E será que ainda há tempo para gritar, Professor?

O grito, aqui, tornou-se prova de crime.

Quem grita contra o sistema é terrorista.

Quem escreve contra a cruz, é herege.

Quem pensa diferente, é morto civil.

E a ausência?

Não é divina — é programada.

É a consequência da má-fé institucionalizada.

E depois… o Sábado.

Não o Sábado de espera — mas o Sábado de apatia.

Onde a religião se ajoelha ao lado do Estado para rezar pelo status quo.

Onde os intelectuais se prostituem em projectos financiados pelo Banco Mundial, FMI e os teólogos se calam por medo de perder a bênção presidencial.

A verdade é esta: a intelligentsia moçambicana perdeu a coragem de pensar fora do

sistema que a sustenta.

Peter Sloterdijk escreveu:

“Vivemos numa era de cínicos esclarecidos — sabem o que fazem, mas continuam a fazê-lo.”

 

Eis o retrato dos nossos dirigentes.

E dos nossos professores.

E dos nossos chefes religiosos.

 

É verdade, professor: vivemos um Sábado.

Mas é um Sábado sem sombra de Domingo.

Porque para ter Domingo é preciso um povo que diga basta.

E o nosso povo, cansado, jejuando por ignorância e votando por desespero, já nem distingue fé de propaganda.

  1. “Mas a história — a verdadeira história — não termina aí. Há uma outra cultura

possível: a cultura do Domingo.”

Aqui, Professor, permito-me discordar radicalmente.

A “cultura do Domingo” é uma esperança mística.

É o prolongamento da lógica cristã: após o sofrimento, a redenção.

Mas quem nos garante o Domingo?

Quem nos prometeu essa ressurreição?

Nietzsche já nos advertiu: o “Deus do Domingo” está morto.

E mais: em Moçambique, foi a Igreja que o sepultou — com dízimo, missa e a bênção presidencial.

  1. “É tempo — último tempo — de dizermos: ‘Basta!’”

Mas quem dirá esse “basta”, Professor? O povo ainda acredita.

Nos partidos.

Na igreja.

Na televisão.

No pastor.

No boletim de voto.

E quem não acredita, cala — com medo.

Então, esse “basta” só virá quando negarmos todas as estruturas que ainda sustentamos por hábito e fé.

Eu digo: não precisamos de um Domingo.

 

Precisamos de ateísmo político.

De raiva lúcida.

De ética niilista.

De um corte radical com os messianismos, tanto religiosos quanto partidários.

Nem Cristo. Nem Frelimisto. Moçambique não precisa de milagres.

Precisa de raiva lúcida. De revolta sem mística deísta nem messianismo frelimista.

De uma Páscoa sem Cristo — e sem Frelimisto. Não há redenção possível enquanto a mentira for o idioma nacional.

Páscoa significa passagem. Mas Moçambique não passa.

Está preso — Preso à nostalgia colonial, à incompetência dos “libertadores”, à ilusão infantil de que “Deus proverá”.

Mas Deus fugiu.

O Filho morreu.

E ninguém vem.

Georges Bataille disse:

“O ser humano só se realiza quando ultrapassa os seus próprios limites, na vertigem, no sacrifício, na negação de si.”

Mas aqui, ninguém ultrapassa nada.

Vivemos o mesmo ciclo, o mesmo trauma, a mesma mentira:

“Tudo vai melhorar”, dizem.

Mas não vai.

Melhorar é verbo interdito num país onde:

— pensar é crime,

— exigir justiça é terrorismo,

— falar verdade é provocação.

Não há mais espaço para profetas eleitorais.

 

Nem para messias de palanque.

A esperança morreu afogada na corrupção, e ninguém chorou o funeral.

O que temos são:

Igrejas-empresas institucionalizadas.

Partidos-seitas institucionalizados.

Pastores-vampiros institucionalizados.

É um povo anémico que confunde salvação com sobrevivência.

Que Páscoa pode haver num Estado que crucifica a juventude?

Que mata o sonho nas aldeias?

Que transforma o diploma em papel higiénico?

A nossa única esperança — se ainda existe — é a morte de todas as esperanças fáceis.

É o ateísmo político.

É o niilismo como método.

É a raiva transformada em ética.

Günther Anders disse:

“O mundo tornou-se tão monstruoso que o verdadeiro escândalo é suportá-lo.”

Pois que nos escandalizemos!

Que deixemos de aceitar!

Que sejamos heresia e incêndio — não liturgia, nem conformismo.

  1. “Se esta for a última Páscoa dos moçambicanos, que ao menos ela seja memorável…”

Pois que seja.

Mas não pelo cordeiro.

Pelo grito.

E o grito, hoje, não é oração e nem alelluia.

É confrontação.

 

É heresia.

É coragem de cuspir no altar da Frelimo e no púlpito dos vendilhões da fé.

Nietzsche matou Deus.

Mas em Moçambique professor, foi a igreja que O enterrou — com missa, incenso,

dízimo e bênção presidencial são eles que ditam as regras.

Professor, aqui a crucificação virou contrato público.

A ressurreição virou imposto.

E o inferno… é viver aqui, esperando um céu que nunca virá.

Professor Ngoenha,

O seu texto oferece um grande densidade simbólica e poética.

Mas a metáfora cristã — cruz, túmulo, sábado, domingo — já não serve como chave de leitura para uma nação que precisa, antes de tudo, descrer, decolonizar, destituir, e renascer.

Moçambique não precisa de um novo Domingo.

Precisa de um novo idioma.

Sem crucificados.

Sem redentores.

Sem Deus.

Sem partido uno.

Apenas um povo lúcido, insurgente, e sem medo.

Professor, a língua é o novo Domingo.

Se há algo que pode nos salvar — não será o Cristo, nem a Cruz e nem partidos Frelimo, Renamo, MDM, Podemos, Anamalala, Nova Democracia…

Será a língua.

Mas não essa — a língua do colonizador, da catequese, do partido.

 

Será a língua do povo. Do Shimakonde, do Kimuani, do xichangana, do echuwabo, do elomwe, do bitonga, do emakhuwa, do xindao, do xinyanja, do xisena, do ximanica, do xiyao, do xironga…Étcetera Étcetera.

Porque só se pensa com as palavras que se vivem.

E Moçambique vive em muitas línguas — mas governa-se em poucas.

A nossa salvação não está na ressurreição. Está na tradução do país para si mesmo.

Se esta for mesmo a Última Páscoa dos Moçambicanos, que ela não seja lembrada pelo cordeiro — mas pelo grito de um povo muito aturado e cansado.

Não pela fé.

Mas pela coragem de negar tudo o que nos mantém mortos.

Não pelo Domingo simbólico.

Mas pela escolha concreta de matar a mentira que nos crucifica há cinquenta anos.

A última Páscoa… talvez não precise de ressurreição.

Mas de ruptura.

O Fim da Páscoa

 

O sol ainda estava escondido no horizonte quando deixei a Vila de Inhassoro naquela madrugada fria. Eram cinco horas, e a brisa suave carregava o perfume da vegetação que cercava o pequeno cruzamento. Estávamos em missão: explorar o coração de Buchane, uma localidade quase mítica, onde o guano, o excremento de morcegos, é extraído e usado como fertilizante. Era trabalho para o programa MOZGROW, da STV, mas a viagem, como descobriríamos, era mais do que uma simples ida ao interior – era um mergulho num universo de mistérios.

Conduzia a viatura acompanhado pelo repórter cinematográfico Félix Jamisse e pelo nosso guia local. O carro cortava a estrada em silêncio, como se respeitasse a quietude daquela hora. O plano era simples: abastecer, seguir viagem e cumprir a pauta. Mas os planos têm o hábito estranho de se reinventarem.

Parei no cruzamento de Inhassoro para abastecer o carro. Era uma rotina sem surpresas: desligar o motor, encher o tanque, pagar e partir. Contudo, quando tentei ligar o carro novamente, o motor recusou-se a responder. Não fez sequer o som de tentativa.

– Parece que o carro perdeu a alma – murmurou Félix, a olhar para o painel inerte.

Liguei imediatamente para o mecânico. Do outro lado da linha, ele tentou tranquilizar-me, sugerindo que o problema fosse elétrico. A recomendação foi clara: chamar um eletricista auto. Segui o conselho e fiz a ligação. O eletricista garantiu que estaria connosco em breve. Contudo, meia hora depois, ao ligar novamente para confirmar, ele deu-me outra notícia:

– Hugo, o carro em que estou avariou. Vou ter de apanhar um Chapa 100. Peço só um pouco mais de paciência.

A paciência estava a ser testada quando o guia local, subitamente alarmado, exclamou:

– Esqueci-me de avisar o líder da comunidade!

Era um erro grave. Ele apressou-se a ligar, e algo mudou naquele instante. Enquanto desligava o telefone, Félix olhou para mim com um misto de convicção e intuição:

– Hugo, tenta ligar o carro outra vez. Algo diz-me que agora vai funcionar.

Não fazia sentido, mas fiz o que ele sugeriu. Rodei a chave, e o motor rugiu com vigor, como se nunca tivesse estado inoperante. Todos nos entreolhámos, sem explicações. Era apenas o início de uma série de acontecimentos que desafiaram a nossa compreensão.

Seguimos viagem, mas o guia trouxe-nos outro aviso, desta vez mais inquietante:

– O líder disse que devemos cobrir os espelhos do carro e não os abrir durante todo o percurso.

– Cobrir os espelhos? – perguntei, confuso.

– É tradição. Protege-nos, mas não posso explicar.

Cobri os espelhos. Durante os 30 quilómetros que se seguiram, o silêncio na viatura era quase palpável. As estradas pareciam mais longas, e o peso do desconhecido pairava sobre nós como uma nuvem densa.

Chegámos a Buchane e fomos recebidos pelo líder local, que nos conduziu até à gruta onde o guano é extraído. Enquanto Félix entrava na gruta com a câmara, fiquei do lado de fora, observando. Era um lugar de contrastes: a natureza exuberante parecia guardar um segredo antigo.

De repente, a vegetação moveu-se. Um movimento serpenteante e rápido chamou a atenção de alguns jovens locais, que murmuraram em citswa:

– Hi yona.

O coração disparou.

– O que é? – perguntei, tentando disfarçar o medo.

– É uma cobra – respondeu um deles, sorrindo. – Mas não se preocupe. Não vai fazer nada.

Eu, que sempre tive pavor de cobras, congelei. Aquele instante pareceu uma eternidade. Mas, seguindo o conselho do jovem, mantive a calma – ou pelo menos fingi. Quando Félix voltou, senti-me como se tivesse sido resgatado de um pesadelo.

Após concluirmos o trabalho, o líder local deu-nos uma orientação clara e firme:

– Não deem boleia a ninguém. Seja quem for.

Havia algo na sua voz que nos deixou sem argumentos. No regresso, passámos por várias pessoas à beira da estrada. Mães com crianças ao colo, jovens com olhares de súplica e até mulheres grávidas. Doeu-me no peito, mas obedeci. Algo maior parecia guiar aquele dia.

Quando finalmente chegámos a Inhassoro, o peso dos acontecimentos ainda pairava sobre nós. A viatura que não ligava, o aviso sobre os espelhos, a cobra e a ordem de não dar boleia – tudo isso parecia interligado de forma que a lógica não conseguia explicar.

Quando a tensão começava a dissipar-se, foi então que o guia decidiu partilhar uma história que nos arrepiou.

– A primeira vez que fui a Buchane, não recebi essa orientação. No regresso, demos boleia a uma senhora. Ela estava na parte de trás do camião de carga. Num certo ponto, o motorista olhou pelo espelho e não viu a senhora. Viu uma cobra
– O quê? – interrompeu Félix, espantado.

– Parámos imediatamente. Ligámos ao líder para contar o que aconteceu. Ele pediu que esperássemos. Poucos minutos depois, a cobra desceu do camião e desapareceu na mata. Desde então, nunca ignoramos as recomendações.

O silêncio voltou a tomar conta do ambiente. As palavras do guia ecoavam nas nossas mentes. Era difícil não ligar a história às nossas próprias experiências daquele dia – o carro que voltou a funcionar, os espelhos cobertos, os olhares de súplica ignorados na estrada

De volta à minha rotina, a história daquele dia não me abandonava. Seriam todos esses episódios mera coincidência? Ou será que há forças, crenças e tradições que transcendem o que a ciência explica?

Moçambique é um país de mistérios. Nas suas paisagens, tradições e silêncios, há verdades que não são ditas, mas vividas. Talvez, no coração de Buchane, tenhamos tocado um desses segredos – um que nos lembra que nem tudo precisa de explicação para ser real.

“A arte serve para consolar aqueles que foram quebrados pela vida.”
Vincent van Gogh

 

A imagem fotográfica é uma forma de preservação do que está condenado a desaparecer, revela-nos Roland Barthes. A verdade é que tudo está condenado a desaparecer – desde o que é físico até o que não se confina ao palpável. No final, tudo se esvai, esboroa-se. Tal como, filosoficamente, Heraclito de Éfeso (século VI a.C.) viu a vida como um rio em que “nenhum homem entra duas vezes”, as coisas não são estáticas. Ou seja, panta rhei (tudo flui) – até os nossos sentimentos, as nossas emoções, o nosso próprio “eu”, ao qual nos agarramos como se fosse algo pré-existente à nossa própria existência.

“Where do I land?” (Onde aterro? / Onde vou aterrar?) é um lugar onde se tenta preservar a efemeridade. Mas, se pararmos o tempo, nota-se a profundidade de tudo aquilo que passa depressa, que flui sem se perceber. Esta é a primeira exposição individual de Lillian Benny, e ela aproveita o espaço para interpelar o destino sobre o próprio destino: “Where do I land?”. A confusão é compreensível – o destino aqui não é geográfico, mas interno. São cidades mentais, sempre em dissolução, onde tudo, de facto, flui.

A beleza da exposição reside no que nos causa estranheza. Mas talvez isso seja o mais natural: tudo o que é reflexo da alma há-de causar espanto, porque a alma é como o espaço sideral – pouco se sabe dele e raramente se empreendem viagens de descoberta. Aos poucos, reconsidero o espaço do estranho na arte, porque parece que pode ser – e talvez deva ser – a sua essência.

“As legendas conferem direcção moral à imagem. São um meio de impor um significado, de canalizar a interpretação.” (Sontag, On Photography, 1977) A interpretação das fotografias foi, por momentos, difícil, pois os títulos das obras estão maioritariamente em inglês. Assim, a “interpretação” teve uma canalização algo apertada. Esta limitação interpretativa trouxe, no entanto, um certo requinte e elegância à exposição. O que certos títulos perdem na facilitação de leitura e imposição de sentido, ganham-no no sublime, no estético e no poético que emerge do misterioso e do estranho – como em “De nobilis ipsi silenums”, “Siegfried” ou mesmo “Erasure”.

É em “Erasure” que, mais do que ver ou traçar linhas interpretativas – porventura tortuosas –, sentimos a imensidão da vida. Quando se é criança, a vida parece caber toda na palma da mão.

Mas, à medida que crescemos, a vida cresce também – e fá-lo numa proporção muito superior à nossa. E o que nos resta? “São maningue cenas” parece ser a única forma possível de explicar o peso desta imensidão.

“Erasure” é um retrato da vida repleta de muitas vidas. O coqueiro representa a vida não orgânica – aquela que se desenvolve na convivência entre nós e os outros, misturada com sentimentos, emoções, lutas e corridas. Essa vida, embora fruto da nossa própria criação, cresce tanto que ganha vida própria, erguendo-se para além de nós. E nesse momento, instala-se a contrariedade:

já ninguém sabe o que fazer com essa vida que se impõe, pressiona (socialmente) e exige ser aceite. Tudo isto gira como uma bola de nove que rola montanha abaixo – ninguém a segura.

Esta vida cresce até se tornar um coqueiro, e vemo-nos, por vezes, desesperadamente pequenos – tal como o personagem na fotografia.

A vida, quanto mais cresce, mais nos torna pequenos e ínfimos. Esmaga-nos esta discrepância entre a sua robustez e a nossa fragilidade. E, assim, sentimo-nos cada vez mais diminuídos, mais apagados.

Outro aspecto relevante: toda a exposição é monocromática. Preto e branco – apenas – em todas as fotografias, o que adensa a atmosfera e intensifica a melancolia de quem observa. É um ambiente denso e profundo, que favorece a reflexão e a introspecção. Na fotografia em questão, a coloração cinzenta harmoniza-se com o céu nublado, remetendo para os meses que antecedem Junho, o prefácio do frio. A estação da vida que pede agasalho, recolhimento e, talvez, um abraço É algo digno de nota: em todas as fotografias há apenas uma figura humana e paisagens (muitas delas interiores), sugerindo uma viagem solitária em direcção ao destino. A obra “Erasure” segue essa mesma linha sugestiva. Aqui, ao contrário das outras, a fotógrafa parece querer dizer-nos que cada um, singularmente, sente o peso da vida. Ou que há viagens, na vida, cujo bilhete é só de ida e apenas para um. Como escreveu Dostoiévski, “Todos somos fadados a ser solitários, e passamos a vida a tentar não o ser.” (in Notas do Subsolo) A fotografia “Erasure” Integra a exposição “Where do I land?”, a estreia individual de Lillian Benny, patente até 30 de Maio. Nela, mergulhamos nas profundezas da alma humana – nesse lado escuro, no porão da casa, onde tudo está desorganizado e paira o cheiro a poeira.

 

Que desastre!

A Natureza pode estar doente e os ciclones, a seca extrema, inundações que têm assolado o nosso país, ceifando vidas e destruindo a esperança das comunidades podem ser sinais e sintomas que resultam desta doença, chamada mudanças climáticas. Este problema mexe não só com os moçambicanos, mas com todos e exige uma resposta à altura. Não se trata de quem polui menos ou mais, não se trata de ser um país desenvolvimento ou em desenvolvimento, o problema é de todo o planeta.

Com recurso à escrita, imaginação e criatividade, os autores de Crónicas de Desastres unem-se para despertar a consciência de todos nós sobre as mudanças climáticas, transmitindo o seu ponto de vista, bem como apresentando estratégias ou acções concretas como forma a mitigar os problemas que surgem em consequência dos desastres naturais, um mal que frequentemente têm assolado o país.  

Moçambique tem mais de três meses para se preparar para época chuvosa, porém, durante esse tempo, o Governo fica invisível, nada faz e nada fala. E quando a época chuvosa chega, o Governo só aparece 48 horas depois do desastre ter acontecido e, mesmo assim, nada faz, a não ser desfilar a sua classe e apreciar o cenário para, depois, falar com a imprensa. Quem socorre a população são os voluntários.

Na primeira crónica do livro, “Crepúsculo Sombrio”, o Governo é convidado a reflectir sobre o seu papel na redução dos impactos dos riscos causados pelos desastres naturais. Exige-se desse mesmo Governo, que cobra impostos à população, a construção de infra-estruturas resilientes de forma antecipada, bem como ter uma intervenção activa, sobretudo no apoia às vítimas das enxurradas que vêem as suas casas, machambas, animais e outros bens a serem engolidas pelas águas da chuva. 

Enquanto uns reclamam da chuva, outros choram por conta da seca causada pelas mudanças climáticas. Os rios e lagos secam por falta de chuva, o gado fica esqueleto pois a fúria do sol queima o capim. Tudo mudou com as mudanças climáticas e nem podemos contar com a ajuda do Pangolim, que antigamente, tinha a missão de trazer de volta a chuva (esse mamífero tem sido raro nos dias de hoje). 

Por isso, na crónica “Sequestrador da Chuva”, a ciência é vista como uma ferramenta a ser usada para resolver os problemas que afectam as comunidades, e todos nós somos chamados a envolvermo-nos em campanhas ecológicas de adaptação e resiliência climática, a plantar árvores e outras plantas imunes ao sal, à volta da costa para que a terra não seja engolida pelo mar, evitar caçar, usando fogo que destrói a floresta e empobrece o solo. 

Deve-se buscar uma harmonia entre a humanidade e o clima. A força e coragem de um povo moçambicano não são suficientes para lidar com a magnitude das mudanças climáticas. Todos temos que caminhar em direcção à redução das emissões de gases de efeito estufa e implementar estratégias de adaptação. 

É com a crónica “Dança do Clima” que somos lembrados da necessidade do mundo unir-se para salvar a nossa biodiversidade, conservar o ecossistema para evitar a degradação da camada do ozono, e a garantir um futuro sustentável para as gerações vindouras antes que a vida se torne insustentável na terra.

O problema do planeta terra não só afecta o ser humano, os animais também sofrem a cada abate de árvore, que transforma a sua casa e o seu  alimento, num simples troco para o fabrico de objecto para o Homem, sem sequer se importar com a vida do animal e da própria árvore. 

“A Sombra Derrubada” mostra-nos que a falta de consciência ambiental e priorização do lucro, em detrimento do bem-estar do planeta, faz com que a humanidade explore de forma irresponsável os recursos naturais, visando apenas benefícios financeiros sem levar em consideração possíveis impactos das suas acções para o ambiente. 

O abate indiscriminado de árvores sem substituição, assim como as queimadas descontroladas associadas à caça, leva ao desflorestamento, reduzindo deste modo, tudo a deserto. Sem as árvores, sem a chuva, e o sol intenso, só resistem dúzia de árvores, com destaque para embondeiros e arbustos. 

Na crónica “Seca em Kanhemba” e “As cheias em Ndziluene”, este cenário cria a necessidade de se traçarem medidas para o reflorestamento, a reposição das espécies de árvores em extinção, mostrando, deste modo, a importância do Homem cuidar bem das florestas e a caçar de forma racional. A construção de casas em zonas baixas, nos cursos de drenagem da água de chuva, é também uma outra realidade apresentada ainda naquela crónica. De forma a evitar a perda de bens, a crónica faz-nos repensar a possibilidade de habitar em zonas altas e seguras, longe dos cursos de drenagem da água de chuva.

Sobre as drenagens, que quase não existem, em “Para a água Desalgemanda”, o Governo  é convocado a assumir o seu papel em projectos ambientais, assim como nas construções de reservas de águas das chuvas que inundam as casas, machambas e arrastam o gados todos os anos, por não terem um caminho por onde passar. Assim como são feitas estradas para os carros circularem, devem ser construídas estradas (valas) para as águas passarem. 

O nosso mau hábito de deitar frequentemente o lixo em qualquer lugar, faz com que o lixo também se apoderam dos caminhos das águas, constituindo um obstáculo para a sua passagem. 

Em “Lixotoleles”, o maluco da lixeira de Hulene chama atenção aos estudos e letrados para a gestão dos resíduos sólidos, sendo que, a falta da gestão do lixo acumulado à beira da estrada, chega a parecer uma autêntica biblioteca, com plásticos, papel, vidro ou até mesmo chega a parecer um supermercado de ratos, moscas e cães vadios.

Na crónica “Pensem Comigo”, vemos que o ser humano é a maior fonte de desgraça que assola o meio onde ele mesmo vive. O seu desrespeito e a sua negligência com o meio onde vivemos faz-lhe  poluir onde vive. Precisamos de criar uma cultura de protecção do meio, o que implica cuidar e respeitar o meio ambiente. Não é por falta de leis ambientais que os país têm ficado mais doente e mais sensível e quase nada se faz para o curar. Em Moçambique, as leis ambientais apenas servem para minimizar os estragos. 

A necessidade de deixar a Natureza respirar, e não substituir os lugares verdes, o habitat do mangal pelos prédios de betão, é também invocada em “Memória de um sonho”, quando o homem, usando a sua coragem, invade uma zona que não lhe pertence e retira o mangal do seu habitat para, em seu lugar, erguer casas, sem pensar no impacto desta acção. 

Tempos depois, a água invade a casa que o homem considera como proprietário em busca do que lhe pertence por natureza, e, consequentemente, ventos fortes, chuvas, ciclones são respostas da Natureza aos actos cometidos pelo próprio homem. A conservação do mangal não é apenas uma questão ambiental, mas uma questão de sobrevivência para variedade de espécies marinhas, aves e muitas comunidades costeiras. Para além de serem essenciais para combater as mudanças climáticas. 

A ambição do Homem levou-o ao abate de árvores, para fornecer matéria-prima às indústrias nacionais e estrangeiras que poluem o ambiente, mas isso não bastou, o seu egoísmo o levou à extração de recursos naturais, até de areias pesadas. Todas essas acções têm impacto, são casas, estradas destruídas por terramoto, ciclone, tsunamis, aquecimento global, chuvas intensas e erosão. 

“A Esposa Corajosa” convida-nos a pensar sobre a preservação da vegetação, respeitar as zonas impróprias para a exploração, incentivando o plantio de árvores. 

A ganância do ser humano transcende também para a exploração de gás, levando ao enriquecimento do Homem, deixando o alto mar poluído. Vemos essa narrativa em “O Ngoza Tombou”, onde o Homem tem a sua vida facilitada, mas a emissão de gases nocivos que lesionam a camada de ozono é maior, com o uso de máquinas que funcionam dos motores a combustível. E como forma de vingança, o mar cospe de volta o lixo depositado nele, com as suas ondas engole os barcos e navios no alto mar, e a terra estremece causando a ocorrência dos ciclones.  

Em nome do desenvolvimento e da melhoria da vida humana, o Homem violenta a terra até ao extremo. 

A crónica “E Depois de Marte?” revela que a liberdade do Homem mostra a sua irresponsabilidade para com a terra. Uma vez que o Homem, a partir de actividades industriais,  faz a libertação de gases tóxicos à terra e envenena o ambiente com os resíduos industriais, tudo isso contamina o solo, causando aquecimentos globais, ciclones, vulcões e sismos. 

Apesar de estamos no século dominado pela tecnologia, a terra não pode ser restaurada como um smartphone, mas pode-se melhorar o que lhe resta.  E há necessidade de se resgatar no Homem o espírito do ECO 92, COP 27 e o cumprimento da agenda-2030, pois as cicatrizes deixadas pelas mudanças climáticas são muitas.

Ainda vivenciamos catástrofes naturais e doenças. Os desastres naturais ocorrem com maior incidência em África e a sua economia não é tão robusta como a dos países desenvolvidos, mas isso é um ponto de partida, pois, neste mundo onde tudo se resume em negócio,  os países desenvolvidos aproveitam-se disso e, de forma camuflada, mostram solidariedade aos países em desenvolvimento, como Moçambique.

Em  “Redução de Riscos de Desastres”, somos alertados sobre a solidariedade dos países em desenvolvimento, o que sai muito caro aos países em desenvolvimento, pois os investidores encontram meios de explorar as riquezas dos países em desenvolvimento, e, de seguida, dão migalhas em nome de ajuda às populações. Em contrapartida, as suas fábricas de plásticos destroem a natureza. Os mecanismos de gestão dos desastres naturais são uma vantagem para os líderes encherem os seus bolsos. 

Os eventos climáticos extremos continuaram a acontecer, mas temos que ter sabedoria e acção rápida em prol da redução dos riscos de desastres naturais, se quisermos vivenciar “O renascer da cidade de Idai”. Não devemos nos acomodar, temos que buscar novas soluções, pois a natureza é dinâmica e imprevisível, e a resiliência exige constante aprimoramento. A solidariedade e a união são pilares fundamentais na busca pela resiliência.

A redução dos riscos de desastre não se limita apenas aos aspectos técnicos. Todos, desde  o Governo, engenheiros, arquitectos, líderes comunitários e a população em geral, somos chamados, na crónica “O renascer da cidade de Idai”, ao compromisso com a resiliência e sustentabilidade, para actuar em situação de emergência. Para isso, há necessidade de criação de sistemas de alerta precoce sobre a incidência de alguns desastres naturais.

“A ortotanásia da pureza de Muhira” também retrata a necessidade de a comunidade abandonar as suas casas em zonas baixas e pedir abrigo em casas seguras e situadas em altitudes. Isso só é possível quando os ciclones são anunciados antecipadamente. Ter conhecimento da ocorrência de desastres naturais com antecedência, dá tempo às pessoas para se prepararem. Com a informação as  pessoas saberão o que devem e o que não devem fazer. É certo que os ventos arrastam os pertences das famílias, mas as suas vidas estarão salvas.

Muitas vezes, a falta de informação sobre as zonas propensas a inundações faz-nos sofrer. Abandonamos os locais inseguros à procura de melhores condições e acabamos por nos abrir novamente em zonas com as mesmas características. Uma Situação retratada em  “Sofrimento por ignorância”, onde somos convidados a procurar junto com um especialista por zonas seguras e fazer construções resilientes. 

E que tal se fizermos o mapeamento das áreas de risco susceptíveis a ciclones, cheias e outros desastres e transformá-las em parques e reservas naturais de modo que não sejam ocupadas inadequadamente? A transformação não acontece de noite para o dia, mas, com o tempo, com a perseverança e crença de que a acção contribui para a construção de um futuro onde a convivência com a Natureza é harmônica e segura. 

Ainda há muito trabalho a ser feito para alcançar um futuro sustentável.  A biodiversidade foi afectada e até a saúde da população foi comprometida, pois com as temperaturas elevadas cada vez mais preocupantes, as doenças tropicais aumentaram. Enfrentar os obstáculos impostos pela resistência do sector económico sobre o ambiente, assim como superar obstáculos políticos e burocráticos, é a missão de todos nós.

Por isso, em  “A Guardiã do Clima” somos atribuídos a missão de proteger o meio ambiente dos desequilíbrios causados pelas mudanças climáticas, assim como, consciencializados a  tomar medidas de reflorestamento, protecção do ecossistema, investimento em energias renováveis para redução da emissão de gases de efeito estufa.

A preservação da vegetação, assim com o respeito às zonas impróprias para a exploração, incentivando o plantio de árvores, são também apontados em “A esposa corajosa”, onde, através de uma narrativa, reparamos que a ambição do Homem levou-o ao abate de árvores, para fornecer matéria-prima às indústrias nacionais e internacionais que poluem o ambiente, mas isso não bastou, o seu egoísmo levou-o à extracção de recursos naturais, até de areias pesadas. 

Com essas acções, a Natureza se zanga, e para mostrar o quão grandiosa e majestosa é, causa   terremoto, ciclone, tsunamis, chuvas intensas, erosão e invoca a camada de ozono para queimar o ser humano com o sol, aquecimento global.

As mudanças de temperaturas fazem parecer que Deus está zangado com o planeta e estamos no fim do mundo. Se não aquece de forma excessiva, faz frio, se não é ciclone, são terramotos ou cheia. Há sempre algo complicado a acontecer. É com  “Deus não fritou o mundo”, que percebemos que Deus não é culpado por isso, o Homem é que é o causador das queimadas descontroladas, emissão de gases produzido pelas fábricas e queimadura de plásticos, é que é o diabo da Natureza, o inimigo da Natureza.

O desastre, na maioria das vezes, é causado por nós próprios. Para acabar com o desabamento, cheias e outros desastres naturais, a população é convidada, na crónica “O renascimento da minha terra”, a assinar um acordo de paz com a natureza, pois um depende do outro para a sua sobrevivência. A natureza acompanha-nos até à morte e nós devemos cuidar dela para que ela nos dê o que tem de melhor. 

É importante que o Homem cuide da Natureza. Para isso, é fundamental que ele tenha conhecimento sobre as mudanças climáticas. 

A crónica “E se soubéssemos” faz-nos reflectir em torno da prevenção, planeamento, preparação, alerta, resposta, resiliência, sustentabilidade, mitigação e educação ambiental, para lidar com as mudanças climáticas e o aumento de ocorrências dos desastres naturais.

Com esta viagem que acontece dentro das 115 páginas e vinte crónicas, conduzida por 20 estudantes de vários pontos do país, o leitor é convidado a uma reflexão sobre a importância da redução dos riscos causados pelos desastres naturais. 

A colectânea “Crónicas de Desastres” mostra ainda que precisamos aprender com os erros e buscar novas soluções, porque a jornada da redução dos riscos de desastre não tem fim, mas um começo.

* Texto escrito na sequência da apresentação do livro “Crónicas de Desastres”, no Instituto Guimarães Rosa, em Maputo. 

Nascem de um projecto, Boa Coisa, uma associação sem fins lucrativos que promove a arte e cultura moçambicana, e afirmam-se como parte das recomendações do governo no sector da cultura em Moçambique, que é transformar a cultura em actividades de renda e auto-sustento para os artistas e as comunidades moçambicanas.

Quiosques artesanais, patentes na Feira de Artesanato, Flores e Gastronomia de Maputo, inaugurados na presença da Secretária das Artes e Cultura, contém um espaço palco para eventos músicas, teatro, conversas, com uma cobertura ao céu, arquitectónica em madeira pinus, dando passagem do ar para o alívio dos fumadores e do público. 

Um design de construção que voltou a transformar a FEIMA, o projecto vem mostrando e oferecendo aos munícipes, mas um espaço de lazer e divulgação cultural.  Matilde Muocha ficou impressionada com o projecto tento reforçado que o mesmo deve ser abrangente e divulgado aos demais fazedores culturais, como um espaço aberto para a utilização de todos.

Um espaço aos custos projectado pela associação, é possível à venda de diversos produtos artesanais, de pintura, bijuteria, alimentares. Para os amantes da moda, o espaço dá este privilégio a um desfile encantador das marcas de roupa, de alta costura a iniciantes. Dentro da cidade das acácias, os quiosques artesanais são uma realidade, não emprestam o cenário elitista, mas sim de divulgação cultural. É um espaço aberto ao turismo.

São quiosques simples. Mas com adornos. São artesanais porque foram feitos com recursos a técnicas industriais, com atenção aos detalhes, valorização da qualidade e autenticidade, usaram-se contentores para os fabricar, mas os detalhes das pinturas, dos embelezamentos tem toques da nossa forma de viver entre os povos e culturas, com uma ode à arte, inspira, degusta-se metaforicamente os nossos apetites de transcendermos.

 

Como comecei a gostar de livros 

Geralmente, a memória da infância, onde as primeiras sementes da imaginação são lançadas, guarda os rastros luminosos dos primeiros encontros com a palavra escrita. Para mim, este despertar ocorreu ao som das histórias contadas pelo meu avô, um contador de palavras que transformava o quotidiano em aventura e o passado em lição. A estas narrativas fundadoras, acrescentaram-se as cores vibrantes e as personagens singulares dos livros da “Rua Sésamo” e a banda desenhada, onde a imagem e a palavra fundiam-se, revelando a gramática secreta da narrativa visual.

Nessa fase inicial, a apreensão do livro não se limitava ao seu conteúdo semântico; antes, estava centrada na sua materialidade, na sua presença física como objecto. Cada volume, com o seu característico cheiro, a textura das suas páginas e o peso específico na mão, despertava uma atmosfera de mistério. Na verdade, para a criança que lê um livro, todos eles são, na sua essência, “objectos enfeitiçados”, portais para dimensões desconhecidas, uma promessa de mundos ocultos sob as suas capas.

 

Como me iniciei na escrita?

O passo seguinte, quase inevitável para os que se deixam envolver pela magia das histórias, foi o desejo de participar [activamente] desse processo de criação de mundos. Inicialmente, essa participação começou de maneira mais simples: a criação das minhas próprias narrativas, contadas com a mesma vivacidade com que ouvia as do meu avô, numa tentativa de prolongar o encantamento e oferecer, em troca, outras paisagens.

Com o decorrer do tempo, esta vontade de contar evoluiu (gosto de pensar que sim) para a poesia, um exercício de condensação da emoção e da ideia num ritmo e numa melodia próprios. Depois, a participação em concursos literários, ainda que com a insegurança típica da juventude, foi uma primeira tentativa de lançar as minhas próprias criações ao encontro de outros olhares, de testar o seu valor (venceria, assim, o 3.º lugar no Concurso de Ficção Narrativa João Dias, em 2009).

Descobri, assim, que a escrita não somente era como uma forma de expressão individual, mas uma ponte para o outro, uma maneira de estabelecer uma comunhão de sentimentos e de experiências. Escrever é, sobretudo, uma forma de estar com os outros, de partilhar fragmentos da nossa essência, de oferecer ao mundo a nossa própria interpretação da realidade. É, em última instância, a concretização das nossas crenças e a projecção da nossa visão do mundo, um acto de ousadia de querer brincar de Deus.

 

Por que é importante ler?

A questão da relevância da leitura é fundamentada por uma série de razões, cada uma delas a iluminar uma faceta essencial do seu impacto na formação do indivíduo e da sociedade.

(a) Em primeiro lugar, a leitura é uma das formas de acesso à cidadania plena. Através do contacto com a palavra escrita, o homem aprende a compreender o mundo, analisar criticamente a informação, formar opiniões e participar no debate público. A leitura emancipa o cidadão, munindo-o das ferramentas intelectuais necessárias para exercer os seus direitos e deveres de forma consciente e responsável.

(b) A leitura é, de certa forma, um acto de libertação. Permite-nos transcender os limites do quotidiano, viajar por tempos e espaços distantes e experimentar vidas e perspectivas distintas. Ao mergulharmos nas páginas de um livro, libertamo-nos das amarras da nossa realidade imediata, expandindo os nossos horizontes e enriquecendo a compreensão da condição humana. A leitura também desenvolve a capacidade de expressão livre, permitindo-nos reconhecer na escrita de terceiros a legitimidade das nossas próprias palavras e incentivando-nos a expressar as nossas ideias e sentimentos.

O hábito de ler, sem importar o género ou o tema, é de importância inquestionável. Não me refiro aqui à leitura fragmentada e superficial das mensagens instantâneas ou dos posts. Falo da imersão profunda nos contos, romances, poesias, etc., aventuras que expandem a imaginação. É esta leitura consistente e absorvente que nutre o intelecto e a sensibilidade.

(c) A leitura tem algo de misterioso em si, uma alquimia peculiar que transforma a palavra escrita em experiência viva. Como evoca uma imagem poética, a leitura acontece quando “uma palavra que faz cócegas nos ouvidos”, despertando em nós ressonâncias inesperadas, emoções subtis e novas formas de compreender o mundo.

(d) Por fim, a leitura não se limita à aquisição de informações ou ao entretenimento passivo.

“É preciso ler para ser”, para nos construirmos como pessoas (sujeitas de direitos e deveres), capazes de pensar, de empatia e de compreender a nossa própria humanidade. A leitura é crucial para a contínua construção do ser.

 

O livro é importante?

A importância do livro, enquanto objecto físico que transporta consigo séculos de conhecimento e de imaginação, permanece inabalável (“os dinossauros não sabiam ler e estão extintos, será coincidência?”). Da mesma forma, as bibliotecas, esses “templos do saber e da imaginação”, continuam a desempenhar um papel crucial na democratização do acesso à cultura e à informação.

A relevância da literatura infantil para o desenvolvimento da criança é indiscutível, estudada e documentada. Os livros bem concebidos estimulam o gosto pela leitura, a imaginação, a criatividade e oferecem ferramentas para compreender o mundo e formar o carácter. Um bom livro infantil transcende a sua aparente simplicidade e desafia as crianças e os adultos a reflectir sobre questões profundas e universais.

Num mundo cada vez mais digital, a biblioteca física, por sua vez, preserva a importância do encontro com o livro enquanto objecto tangível e promove um ambiente propício à concentração e à imersão no universo da leitura.

Para concluir, na semana em que se celebra mundialmente o livro e os direitos do autor, é crucial reconhecer a relevância do livro e da leitura, reforçando os pilares que sustentam o seu acesso, uma vez que é na “palavra enfeitiçada” que reside uma das mais poderosas ferramentas para a formação de indivíduos mais livres, críticos e humanos.

* É professor, escritor e editor. O presente texto é uma versão escrita de uma palestra apresentada no Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, 23 de Abril de 2017, na Escola Secundária das Acácias, Maputo.

 

Em “História secreta de um romance”, o genial escritor peruano, Mario Vargas Llosa, que abandonou o mundo dos vivos no domingo, ao relatar como redigiu um dos seus mais belos e pungentes romances, intitulado “A Casa Verde”, diz o seguinte e eu cito: “Escrever um romance é uma cerimónia parecida com o “strip-tease”. Como a rapariga que, sob impudicos reflectores, despe as suas roupas e mostra, um por um, os seus encantos secretos, também o romancista desnuda em público a sua intimidade através dos seus romances. Há, evidentemente, diferenças. Aquilo que o romancista exibe de si mesmo não são os seus encantos secretos, como a rapariga desenvolta, mas demônios que o atormentam e obcecam, a parte mais feia de si mesmo: as suas nostalgias, as suas culpas e os seus rancores. Outra diferença é que, num “strip-tease”, a rapariga começa vestida e acaba despida. No caso do romance, a trajectória é inversa: o romancista começa por estar despido e acaba vestido. As experiências pessoais (vividas, sonhadas, ouvidas, lidas) que constituíram o principal estímulo para escrever a história mantêm-se tão maliciosamente disfarçadas durante o processo de criação que, uma vez terminado o romance, ninguém, muitas vezes nem o próprio romancista, consegue escutar facilmente esse coração autobiográfico que palpita fatalmente em toda a ficção. Escrever um romance é um “strip-tease” invertido e todos os romancistas são exibicionistas discretos.”

Mario Vargas Llosa, para além de ser um extraordinário fabulador, era também um brilhante ensaísta. Ao contar a história como escreveu, entre 1962 e 1965, “A Casa Verde”, uma história secreta, na qual ele desvenda o processo que o levou à criação desse belo livro, complexo e imaginativo, que se situa em dois lugares e planos diferentes – Piura, no extremo norte da costa e Andes – dois lugares e dois mundos históricos, sociais e geográficos, opostos e antagónicos de certo modo, há o gênio, o talento, e, sobretudo, a grande arte narrativa de Vargas Llosa.

Lembrei-me, esta noite, deste livrinho quase melancólico – “História secreta de um romance” -, que recolhe uma conferência, proferida na Washignton State University (Pullman, Washingtom, em 11 de dezembro de 1968) e escrita, como o escritor acautela, originalmente, num inglês rudimentar, mas que este haveria de reescrever em 1971. É fascinante ler este pequeno livro e habitar o universo, os demônios, as incertezas, as dúvidas, as nostalgias e as culpas do romancista. Nele, Vargas Llosa demonstra cabalmente a sua tese e o faz esplendidamente.  

Mario Vargas Llosa é o último grande vulto do chamado “boom” latino-americano. Escreveu livros notáveis e recebeu inúmeros prémios, entre os quais o Nobel, que chegou em 2010 quando, provavelmente, ele já não o esperava. Desde “A Cidade e os Cães” (1962) a “Cinco Esquinas” (2016) escreveu livros inolvidáveis. Para mim, para além de “A Casa Verde”, que motivou aquela história bela e secreta, destacaria “A Conversa na Catedral” (1969), “A Tia Júlia e o Escrevedor” (1977), “A Festa do Chibo” (2000). Bastaria ele ter escrito “A Conversa na Catedral” e “A Festa do Chibo” para entrar no meu panteão. Mas devo-lhe, devemos-lhe muito mais.

Quando lhe deram o Nobel, “por sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens pungentes sobre a resistência, revolta e derrota dos indivíduos” (Academia Sueca dixit), lembrei-me, inevitavelmente, de um outro romancista, latino-americano, que o tivera em 1982, de quem fora grande amigo, sobre quem escrevera inclusive um livro culto e notável – “História de um Deicídio” – e com quem rompera em 1976: Gabriel García Márquez.

Em Julho de 2017, numa conversa sobre o colombiano que falecera três anos antes, Vargas falou de García Márquez e da amizade literária mais mítica da América Latina. Durante anos declinara comentar sobre o fim dessa amizade. Quem conhece Vargas Llosa e os seus escritos não encontrou, provavelmente, novidade nesse momento nostálgico. Lá estão os anos 50/60 de Paris, onde se descobrira como latino-americanos (a sua obra “História Afectiva da América Latina” é uma extraordinária evocação desse tempo e das suas personagens), lá estão as leituras, a influência de Sartre, o amor comum por Faulkner, a influência de Virgínia Woolf sobre o colombiano, o tempo de Barcelona (onde foram todos parar por influência de Carmen Balcells, a agente literária que os lançou), lá está a conversa sobre Cuba e as contradições que a revolução, Fidel e o caso Padilla incendiaram, o terramoto (termo meu) que o livro “Cem Anos de Solidão” provocou, entre outros.

Surpreendeu-me – e isso foi uma novidade para mim – a opinião dele sobre “O Outono do Patriarca”. Quando li este livro fascinou-me essa cartografia de poder que García Márquez fez, também é um grande mestre. Mario Vargas Llosa afirma sobre aquela obra: “Não gostei. Talvez seja um pouco exagerado dizer assim, mas achei a caricatura de García Márquez, como se estivesse imitando a si mesmo. O personagem não me parece nada verosímil. Os personagens de “Cem Anos de Solidão”, ao mesmo tempo que são desenfreados e além do possível, são sempre verosímeis, o romance tem a capacidade de torná-los verosímeis dentro do seu exagero. Ao contrário, o personagem do ditador me pareceu muito caricatural, um personagem que era como uma caricatura de García Márquez. Além disso, acho que que a prosa não funcionai, que nesse romance ele tentou um tipo de linguagem muito diferente da que tinha utilizado nos romances anteriores e não deu certo. Não era uma prosa que dava verosimilhança e persuasão à história que contava. De todos os romances que ele escreveu acho esse o mais fraco.”

Plinio Apuleyo de Mendonza sobre o “O Outono do Patriarca” perguntara a Gabriel García Márquez: “Disseste sobre “O Outono do Patriarca” coisas bastante paradoxais. Primeiro que é o mais popular de todos os teus livros do ponto de vista da linguagem, quando na realidade pareceria o mais barroco, o mais difícil…”

Gabriel García Márquez responderia: “Não, está escrito utilizando uma grande quantidade de expressões e refrãos populares de toda a zona do Caribe. Os tradutores às vezes ficam loucos tentando encontrar o sentido de frases que os motoristas de táxi de Barranquilla entenderiam de imediato, e com uma risada. É um livro raivosamente caribenho, costeño, um luxo que se permite o autor de “Cem Anos de Solidão” quando decide por fim escrever o que quer.”

A conversa, em “O Aroma da Goiaba” prossegue. Não importa transcrevê-la por inteiro. A opinião do Vargas Llosa, no entanto, desassossegou-me.

Tenho que reler “O Outono do Patriarca”. Li-o demasiado jovem. Há meses reli “Ninguém Escreve ao Coronel” e exultei. Tinha-o o lido antes dos 20 anos. Para além desse livro sou um devoto de “O Amor nos Tempos de Cólera”, dos contos de “Os Funerais da Mamã Grande”, dos “Cem Anos de Solidão”, ou da “Crónica de uma Morte Anunciada”. Li com emoção a autobiografia “Viver para Contá-la”.

A amizade entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, que nascera de uma admiração mútua, cartografada antes por correspondência, antes de ambos se encontrarem, em 1967, no aeroporto de Caracas, foi interrompida em 1976. Um manto cobre as razões. Vargas escusa-se a falar disso. Nenhum deles esclareceu. Diz-se que quando Vargas ganhou o Nobel, Márquez terá admitido: “Cuentas iguales”. Como quem diz: estamos empatados. Verdade ou mito?

Alguém disse algures: durante anos se dizia que Mario era muito bom, mas o verdadeiro génio era Gabo (García Márquez). O seu Nobel, em 1982, assinalou essa ligeira superioridade. Entretanto, em 2010, ficaram empatados. Nunca mais se viram desde o rompimento. Como recebeu a notícia da morte de García Márquez? – quis saber Carlos Granés numa conversa recentíssima.

Mario Vargas Llosa respondeu: “Com pena certamente. É uma época que acaba, como com a morte de Cortázar ou de Carlos Fuentes. Eram escritores magníficos, mas também foram grandes amigos, e o foram num momento no qual a América Latina chamou a atenção do mundo inteiro.

Como escritores, vivemos um período em que a literatura latino-americana era uma credencial positiva. Descobrir que, de repente, sou o último sobrevivente dessa geração e o último que pode falar em primeira pessoa dessa experiência é algo triste.”

Seja como for, ao ler esta revelação melancólica, assinalo que tanto um como o outro são dois notabilíssimos escritores. Pessoalmente, sinto-me dividido entre ambos, entre a perícia técnica e a capacidade fabular do peruano e a exuberante e torrencial narrativa do colombiano. Um era mais cerebral e o outro mais poético. Mas ambos praticavam o mesmo exercício de “strip-tease” de que falava Vargas Llosa na sua história secreta de “A Casa Verde”, que era curiosamente, uma casa de alterne.  

Termino, este breve elogio ao peruano agora desaparecido, citando parte desta entrevista onde Mario Vargas Llosa traça o perfil literário de Gabriel García Márquez, sobre o qual não tenho resistência nem dificuldade em aceitar. Vargas Llosa: “Era extraordinariamente divertido, um óptimo contador de casos, mas não era um intelectual, funcionava mais como um artista, como um poeta, não estava em condições de explicar intelectualmente o enorme talento que tinha para escrever. Funcionava à base de intuição, instinto, palpite. Essa disposição tão extraordinária que tinha para com os adjectivos, com os advérbios e sobretudo com a trama e a matéria narrativa não passava pelo conceitual. Naqueles anos em que fomos tão amigos eu tinha a sensação de que muitas vezes ele não era consciente das coisas mágicas, milagrosas que fazia ao compor as suas histórias.”

Não sei, quando de Lima se noticia o seu declínio, o que pensar: se numa rapariga desenvolta, perante os impudicos reflectores, enquanto se despe, peça a peça, revelando os seus secretos encantos, ou, pelo contrário, se cogito no destino do último resistente do “boom” latino-americano, se me indago se temos a noção da magia, do milagre e do espanto que a sua extensíssima obra provoca, se penso nos seus demónios, nas suas incertezas e contradições, nas dúvidas e nostalgias, se penso no homem que defendia intransigentemente a liberdade, ou, simplesmente, se fico detido naquela imagem poderosa, lembrando a sua actuação longa e extraordinária, genial e incontornável, do contador de histórias, esse mestre imortal, subscrita no “strip-tease” do romancista que acontece inversamente.

 

Cidade do Cabo, 15 de Abril de 2025

 

A savana política de Moçambique nunca dorme, mas a Girafa quer descansar. Com o seu longo pescoço, ela enxerga de longe os perigos e os aliados, mas não vê o que está bem debaixo do seu nariz. Para dormir em paz, precisa garantir que ninguém faça barulho, que os ventos da contestação não soprem forte o bastante para balançar a sua estabilidade.

A Girafa já não fazia coito há tempos. Não porque não queria, mas porque simplesmente não conseguia. O barulho da floresta, as esquinas cheias de vozes, as imagens que saltam da televisão, os debates sem nexo na internet — tudo isso lhe tirava o desejo, apagava-lhe o apetite. A comida não descia no estômago, a cabeça pesava, o corpo reclamava. Não há espaço para prazer quando a floresta inteira se contorce na agonia de uma governação que, em vez de soluções, só oferece reuniões fúteis com animais desnecessários, discursos tardios e sorrisos forçados.

Foi por isso que, em plena noite, chamou a Raposa para um encontro. Mas a Raposa, astuta e perspicaz, como sempre, sabia que não fora convidada para um banquete nem para discutir o destino da savana. O que a Girafa queria era simples: domesticá-la, torná-la inofensiva, fazê-la parte do sistema. Porque uma Raposa solta na floresta pode ser um grande problema — ela sabe onde estão os rastros dos predadores, conhece os atalhos do poder e, acima de tudo, pode ensinar os outros animais a não caírem nas armadilhas da Girafa.

Os Girafinhos, pequenos, mas vorazes, inquietaram-se. Durante muito tempo, reinaram absolutos, negociando tudo que podiam – da carne dos búfalos ao próprio destino dos filhotes indefesos. A savana era deles, e ninguém ousava contestar a sua autoridade. Mas, de repente, o inesperado aconteceu, houve barulho. A floresta agitou-se, os ventos mudaram de direcção. As hienas ficaram alertas, os elefantes trombetearam desconfortáveis, e até os abutres interromperam o seu banquete para observar a movimentação. Algo estava fora do controlo. O tumulto era perigoso. O que aconteceria se o tumulto continuasse? O tráfico de presas e ossos corria o risco de parar. O comércio dos órgãos, das caças clandestinas, das riquezas da floresta, tudo poderia ser afectado e, os negócios poderiam parar e, com isso, os Girafinhos perderiam a sua fonte de alimento.

A Girafa, sentindo a perturbação no ar, precisava agir rápido. Mas como? Os seus aliados já não conseguiam mais conter os rumores. Os tambores da floresta batiam cada vez mais forte.
Ela tentou acalmar os animais com discursos de unidade, prometeu mudanças, ofereceu lugares na mesa do poder. Mas todos sabiam que era apenas teatro. Foi então que a Girafa decidiu agir. A solução parecia óbvia: selar um acordo com a Raposa. Mas como convencer um animal astuto a fazer parte de um jogo que sempre o excluiu?

A floresta inteira estava em alvoroço, e a Girafa, desesperada por silêncio, já não conseguia fazer coito. Porque, no fundo, a política e a vida se entrelaçam de formas inesperadas.

Quando uma floresta está doente, quando a esperança evapora, quando tudo cheira à podridão e conluio, nem mesmo os corpos respondem como deveriam. Não há prazer onde a fome se impõe, onde a incerteza paralisa, onde o futuro parece ser apenas uma repetição do passado.

Foi nesse contexto que chamou a Raposa para um encontro privado. Propôs-lhe um lugar especial na Assembleia dos Animais, onde poderia estar perto dos poderosos e longe dos perigos. Afinal, a Constituição dos Animais exigia que a Raposa tivesse um assento entre os conselheiros do reino. Mas a pergunta era: ela aceitaria esse papel ou continuaria sendo uma ameaça?

A Raposa hesitou. Aceitou o encontro, sim. Mas sabia que se sentar à mesa da Girafa significava perder parte de sua astúcia. Ser vigiada. Ser controlada. Por outro lado, recusar poderia significar continuar lutando sozinha, cercada, correndo riscos imprevisíveis. O que fazer?

Mas a verdadeira questão não é apenas o que a Raposa fará. A questão é: o que os outros animais — os que realmente vivem da terra, bebem dos rios e caminham sobre o chão árido — iriam fazer diante desse grande teatro onde poucos se alimentam enquanto muitos apenas assistem?

Os Leões dissidentes, rugiam nos bastidores: “Esse encontro não é sobre o futuro da floresta. É sobre a Girafa tentar pacificar a Raposa, antes que ela cause estragos.” Mas seria a Raposa tão facilmente domesticada?

A política da savana não se decide em debates públicos, mas nos bastidores, onde os animais de pescoço longo tramam longe dos olhares da alcateia.
Enquanto isso, a floresta inteira observava.

Os babuínos, que riam nos bastidores.

Os abutres, que esperavam ver quem cairia primeiro.

Os elefantes, que fingiam neutralidade, mas nunca esqueciam.

E, claro, os simples habitantes da terra, que só queriam viver as suas vidas sem que a grande política os sufocasse.

No final do dia, a Girafa só quer dormir bem, fazer coito com a sua fêmea, gozar da tranquilidade do poder, cuidar dos seus filhotes e garantir que os Girafinhos continuassem seus negócios escusos sem perturbações.

Mas a Raposa aceitaria a proposta?

Ou manteria sua astúcia e continuaria a desafiar a ordem imposta pelos pescoços longos da savana?

Na política da savana, a paz nunca é real — é apenas um intervalo entre os próximos movimentos do jogo.

Talvez um dia o sono volte, talvez até o coito do Girafa aconteça.

Mas só quando as ruas estiverem realmente livres — e não apenas silenciosas porque todos aprenderam a temer.

Parte II

Acordar em Gurué deve ser uma das coisas mais maravilhosas que já me aconteceu na vida.

Depois de uma viagem cheia de solavancos, traições e desilusões, acordo com a vista de uma montanha larga, que se encontrava a namorar com uma nuvem gigante e cinzenta, tornando o seu cume invisível. À volta desta montanha, estendem-se verdes campos exuberantes, conectando-a a outras montanhas vizinhas, inspirando paz e tranquilidade ao meu coração.

Olhar aquelas colinas dava-me uma sensação terapêutica, porém, o melhor ainda estava por vir no longo dia que me esperava.

A fresca temperatura que se fazia sentir, o cantar dos pássaros que competia com o roncar de algumas motos, as vozes dos transeuntes, carregados de produtos agrícolas à cabeça ou às costas, que se apressavam em “ganhar” o mercado, foram as primeiras sensações que senti de Gurué.

A minha primeira aventura é, sem dúvida, conhecer e escalar o monte Namúli. Paulina Chiziane apresenta os montes Namúli como o centro da sua narrativa e da história de vários povos oriundos daquela região do país. É a esta história, que traz consigo traços de ancestralidade, que ambiciono me conectar. O trajecto entre a vila de Gurué até ao local a partir de onde se pode escalar o monte Namúli é de cerca de 15 quilómetros e o trajecto só pode ser feito, em segurança, de mota.

Durante os 90 minutos do nosso trajecto, em cima de uma moto-táxi, aos saltitões, descidas e subidas, navego dentro de uma parte do universo dos povos desta região da Zambézia. Perto do centro da cidade, encontramos verdes campos de chá e, dentro deles, várias pessoas.

Algumas destas colectavam o chá e outras podavam as plantações do chá, para que, em breve, novas folhas surgissem. São essas, as novas folhas, que são úteis para a produção de chá.

Para a minha surpresa, diferentemente das culturas comuns como o amendoim, o milho, o feijão, e etc., as plantações do chá não se removem para voltar a plantar novas. As plantas do chá que eu vi, são exactamente as mesmas que foram plantadas no início da década 40, pelo então governo português. Hoje, mais de 80 anos passados, as plantas continuam a produzir e a alimentar a indústria do chá, principal referência desta cidade. O tapete das plantações de chá estendem-se por quilómetros e quilómetros, percorrendo vales e colinas, até a vista não mais alcançar. É qualquer coisa incrível contemplar aquelas paisagens verdes.

Ainda no trajecto, cruzamo-nos com vários agricultores e moto-táxis que, entre montanhas, transportavam diversos produtos agrícolas para venderem no centro da cidade. O principal produto destes meses de Março e Abril é o feijão boer. Por cima das motas, vejo sacos e sacos de feijão sendo levados até à cidade para que de lá sigam em grandes camiões para Nampula, Quelimane e Maputo. “Este feijão daqui de Gurué é diferente dos outros feijões porque este não precisa de remédios para crescer, ele cresce sozinho. Basta a chuva daqui para ele crescer, aqui chove todos os dias, não tem hora para chover, tudo germina aqui” – Diz o motoqueiro da moto-táxi, que, além de piloto, é um guia muito conhecedor da região. 

Encontramos também peregrinos que se dirigiam a um local de culto, que se situa em uma das montanhas à volta, conhecido como “a santinha”. É um local criado há não mais de duas décadas pela missão católica Dohoniana, que está presente em Gurué desde 1947. Este local de culto é dedicado à santinha que permite com que haja quedas de água entre as montanhas. Um local muito aconchegante que inspira a reflexão e conexão divina.

Outros agricultores, simplesmente, caminhavam, conectando as suas montanhas “mãe” com outras montanhas vizinhas para realizar diversas actividades sociais. Subir e descer colinas parece não assustar nenhum morador desta região. Neste momento compreendo que o meu amor por Gurué não era platónico, era real. O amor e o cuidado com a natureza que pude testemunhar neste trajecto, os caminhos verdes entre montanhas, árvores enfileiradas como se abrissem caminhos para os transeuntes, as plantações de banana, milho, cana-de-açúcar, mandioca, inhame, ananás, beringela… etc. que se estendem entre as colinas, a visão que se pode ter de um horizonte montanhoso que, como disse o meu guia, alcança até aos distritos de Namarroi e Milange, na Zambézia, e o distrito de Malema, em Nampula, fizeram-me voltar a sonhar com um mundo verde e sustentável onde a natureza é bem cuidada por se entender que esta faz parte e é indispensável para a existência humana. Eu estava realmente apaixonado por Gurué.

Depois de 90 minutos, chegamos ao local por onde poderíamos escalar o monte Namúli. Antes de escalarmos, é preciso respeitar as exigências da tradição. Só se escala a montanha mediante a autorização de uma Rainha que reside ao pé da montanha. Para obter essa autorização, é preciso levar oferendas a ela e, por seu turno, ela deve realizar uma cerimónia de comunicação com os ancestrais a informar-lhes que viajantes vão escalar o monte. Caso algum “escalador” decida ignorar este ritual, a sanção prevista é severa: escalar a montanha será a última coisa que essa pessoa vai fazer na vida, pois de lá não vai regressar.

Para o meu azar, a Rainha não estava presente. Ela encontrava-se a conduzir as cerimónias fúnebres do seu sobrinho, que havia falecido recentemente. E agora, o que faço? Nada!

Simplesmente nada, pois a Rainha não tem substituto e a sua ausência era imprevisível. Além disso, a região onde reside é remota, situada a uma altitude considerável, sem rede de telefonia móvel que permitisse uma chamada para avisar da nossa chegada.

Tradição é tradição e tem de se respeitar. Dei meia volta com alguma decepção na alma, mas com a mente e o coração em paz. O monte Namúli pode até ser apenas um monte que gera curiosidade exótica para mim, porém, para aquele povo ao redor da montanha, aquele é um local sagrado, é um local de conexão com a ancestralidade, é ali onde eles invocam os seus deuses. Respeitar as tradições por eles impostas é aceitar que o país em que vivemos é laico e que cada povo tem direito de viver e exercer as suas crenças dentro do seu território. A minha paixão por Gurué só crescia.

Ao retornar à sede da cidade, pude conhecer uma cidade tranquila, com maior parte das suas construções datadas da época colonial (como todas as cidades moçambicanas), limpa, ordeira e com um ar muito peculiar. Surpreendeu-me pela positiva saber que o cinema da cidade (construído no tempo colonial) ainda é casa de transmissão de filmes aos finais de semana.

Nunca tinha encontrado algo do género em nenhuma das cidades moçambicanas que visitei.

Tive ainda a oportunidade de, mais uma vez, entre solavancos e pedregulhos, subir até à nascente do gigante Licungo. Água fria sobressai à grande pressão das montanhas algures em Gurué e dá vida a um dos maiores rios da região Centro do país que, todos os dias, dá e sustenta a existência de centenas de comunidades ao longo dos seus 350 quilómetros que o separam da sua nascente, em Gurué, até a sua foz no Oceano Índico.

É na nascente do Rio Licungo que paro, observo as colinas, as árvores, o verde, ouço o som das águas a caírem pela primeira vez sobre as pedras, ouço o chilrear dos pássaros, fecho os olhos, sinto o som da natureza, sinto a origem da humanidade, e pergunto-me: onde e quando é que o homem se perdeu na natureza e passou a venerar as cidades? É aqui onde termina a minha aventura por esta linda e mística cidade que, de certeza, ainda guarda muitos segredos por revelar. Talvez seja o prelúdio de uma paixão que transcende um final de semana. Quem sabe, um dia, escreveremos juntos novos capítulos desta história. Um romance? Quem sabe?

 

No dia 4 de Abril de 2025, realizou-se, no Núcleo d’Arte, uma exposição colectiva de artistas do sexo feminino, intitulada “Mulheres, Arte e Cura”, em homenagem ao 7 de Abril, Dia da Mulher Moçambicana. 

A exposição teve como lema principal “Arte como cura colectiva”, explorando subtemas como: A resiliência, a união, e a luta contra a violência, com técnicas de expressão como pintura, reciclagem, etc.

Participaram da exposição as artistas Sakitifa, Sandra Pizura, Bena Filipe, Emília, Fernanda Lima, Carina Unisse, Capitine, Melice Massongani, Farida, Lizie Ana e Cristina Gonzalez (a exposição foi concebida sob curadoria de Raquel Vedor). 

O público aderiu em massa à exposição, e as artistas libertaram o seu grito artístico e sobretudo de mulher, através dos seus discursos sob o lema da exposição e também das suas obras de arte.

O evento iniciou com olhares espevitados do público sobre as várias obras artísticas no local, a miscelânea com um cocktail servido ao público, para melhor degustação da exposição.

Um detalhe interessante da exposição foi um quadro situado à frente e à esquerda do Núcleo, que dizia: “Faz a tua Arte”. 

O público foi convidado a fazer arte de acordo com a sua imaginação e percepção, à sua disposição estavam tecidos de capulana, tesoura, cola, cartolinas brancas, lápis de cor, marcador e outros materiais para que cada um se expressasse conforme o seu tino.

Tornou-se assim uma exposição inclusiva, com artes e mensagens igualmente interessantes vindas do público. A fotografia do evento também esteve a cargo duma mulher, a fotógrafa Dádiva Abrantes, que, através das suas lentes, gravou a simbiose dos sorrisos da exposição.

A pintura deve ser uma poesia muda, e a poesia uma pintura que fale (Plutarco).

Um momento paradoxal do evento, foi exactamente o momento da poesia. O ambiente vivido no Núcleo d’Arte já era poético em si, mas nada seria melhor que ouvir a poesia em palavras e elevar as almas ao êxtase. 

No meio da exposição, com as emoções ao rubro, a poetisa Naty foi convidada a dizer versos de cura em forma de poesia.

Para o meu espanto, e de alguns amantes deste tipo de expressão, infelizmente, os versos nada tinham de poesia, foram três poemas ao total, e quanto mais os poemas eram recitados, mais a poesia se distanciava deles, o último texto praticamente era narrativo.

A poesia não é apenas um conjunto de palavras em versos, existe uma construção trabalhosa até que um poema se torne poesia, como disse Plutarco, deve haver uma pintura de palavras, e nos três textos não houve qualquer poesia.

O lema da exposição é mais profundo do que aparenta, arte como cura colectiva é uma porta que se abre a cada artista e espectador, para curar-se dos dias turbulentos em que vivemos, com a crise afectiva nos relacionamentos, a arte surge como uma das raras fontes de manifestação do amor, fraternidade e conexão de pessoas independentemente de classe social, raça, status quo etc.

O quadro com o título “Love and dream”, de Sakitifa, feito com recurso à técnica de oléo sobre tela, e com as dimensões 110x78cm, é um dos símbolos da exposição.

No quadro em apreço, um conjunto de mulheres figura num espaço central, de mãos dadas e unidas caminhando juntas.

As linhas da obra são finas, e as figuras possuem formas corporais femininas.

A primeira atenção do espectador vai para o centro do quadro, o gesto de mãos dadas entre as mulheres. O lado central inferior do quadro transmite uma ilusão óptica ao espectador, dando a sensação de movimento ou marcha das mulheres.

O quadro é colorido, com sobreposição de cores tanto primárias quanto secundárias, por exemplo o vermelho destaca-se na linha do horizonte das mulheres, enquanto o amarelo destaca-se acima da linha do horizonte, o azul e o verde foram mais empregados na forma das personagens do quadro.

Sakitifa, ao colorir o quadro, trouxe com o seu talento uma representação da terra, da flora que cerca os seres vivos, normalmente repleta de cores que significam vida.

O gesto de mãos dadas entre as mulheres simboliza a união que as mulheres tanto necessitam no seu quotidiano. São vários desafios enfrentados pela mulher moçambicana, o baixo nível de escolaridade, em comparação com o homem, a violência a que é submetida, dentre outros flagelos.

No quadro em causa, Sakitifa traz recursos visuais para mostrar a própria mulher como seria um mundo em que a mulher é unida e anda de mãos dadas. O espaço geográfico do quadro representa o universo inteiro, a linha do horizonte provavelmente quer dizer que a artista sonha que todas as mulheres do universo sejam unidas.

Da esquerda para a direita, a penúltima mulher olha para a outra à direita como quem diz: Estás bem? Estou aqui para te apoiar. Este simples gesto visual significa que as mulheres devem cuidar umas das outras, não importando as circunstâncias difíceis. No nosso país, são várias as mulheres jovens e adolescentes, abandonadas pelos pais para viver com as avós, ou com terceiros, sendo que os pais estão em vida.

A sensação de movimento na parte inferior do quadro, mostra, inclusive, a flora abanando a um possível vento, que se levanta ao redor das mulheres enquanto elas marcham para frente, este vento ao redor representa as dificuldades que as mulheres enfrentam, mas que, apesar disso, não podem abandonar a marcha, rumo as sua emancipação e ao seu desenvolvimento.

A cura, de facto, foi colectiva. 

Naquela tarde quente de domingo em novembro de 2020, o sol brilhava com uma intensidade quase abençoada. Em Malova, distrito de Massinga, Nomsa e Sílvina, primas inseparáveis, regressavam da praia, onde haviam passado o dia a rir, a correr e a sonhar. O mar, testemunha silenciosa da alegria delas, despedira-se sem saber que seria pela última vez. Jovens, com apenas 16 e 17 anos, carregavam o mesmo sonho: tornarem-se catequistas, servir a Deus e ajudar a comunidade com a fé e a esperança que emanavam. Era como se cada passo delas fosse guiado por um propósito maior, um chamamento divino. Mas aquele domingo guardava uma reviravolta cruel.

O regresso para casa, que deveria ser tranquilo, foi interrompido por uma tragédia. O som de pneus a derrapar sobre o asfalto seco, seguido por um estrondo ensurdecedor, silenciou para sempre os risos das duas. O carro, conduzido por um jovem sem carta de condução, despistou e capotou. A violência do impacto foi tamanha que não lhes deu tempo para reagir. No local, o silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor que o próprio acidente. O motorista fugiu, deixando para trás não apenas os corpos, mas uma comunidade inteira mergulhada em dor e incredulidade.

Quando cheguei ao local como jornalista, o cenário era desolador. A terra revolvida pelo impacto, sapatos abandonados no acostamento e manchas que contavam uma história de dor irreparável. A pequena comunidade de Malova parecia paralisada. As pessoas murmuravam entre si, tentando compreender como algo tão devastador podia acontecer num dia que começara com tanta alegria.

Dias depois, o funeral das primas tornou-se um marco de tristeza na aldeia. Foi ali, diante daqueles dois caixões, que vi o peso insuportável do luto. A mãe de Nomsa, sentada numa esteira, não tinha mais lágrimas para chorar. Em suas mãos, segurava um rosário e uma fotografia antiga das filhas. Cada prece que murmurava era acompanhada por soluços que ecoavam na alma de todos os presentes. Ao seu lado, a avó de Sílvina, de cabelos brancos e olhar perdido, repetia apenas uma frase: “Por quê, meu Deus? Por quê?”

O ambiente era sufocante. O cheiro da terra molhada pelas chuvas recentes misturava-se ao incenso que queimava ao lado dos caixões. O som dos tambores era cadenciado, mas cada batida parecia amplificar a dor. Os cantos de lamento das mulheres ecoavam pelo quintal, e as crianças, sem entenderem a dimensão do que acontecia, choravam ao verem os adultos desmoronarem. Nomsa e Sílvina não eram apenas duas jovens; eram a esperança de duas famílias, dois pilares de sonhos que foram brutalmente derrubados.

Para quem fica, o vazio é uma presença constante. As mães ainda mantêm os quartos das filhas intactos. As roupas, os livros, os sapatos – tudo permanece como estava, como se, de alguma forma, isso pudesse trazer as meninas de volta. Mas a vida nunca mais foi a mesma. Cada vez que o sol se põe, ele leva consigo um pedaço da esperança de que o futuro seja menos doloroso. É impossível apagar as memórias de domingos felizes, das brincadeiras, dos sonhos partilhados ao redor de uma fogueira.

E então, surge a questão da responsabilidade. A estrada, que deveria ser um lugar de ligação, tornou-se um campo de despedidas. O jovem motorista que causou o acidente carregava consigo a irresponsabilidade de quem nunca deveria estar ao volante. A sua fuga foi um acto de covardia que simboliza a negligência tão comum nas nossas estradas. Quantas vidas mais precisam ser perdidas para que aprendamos a respeitar a vida alheia? A estrada não é apenas asfalto; é palco de histórias que podem ser transformadas em tragédias irreparáveis.

Quando passo por Malova, vejo mais do que uma aldeia. Vejo as marcas de um acidente que não deveria ter acontecido. Vejo uma mãe que nunca mais sorrirá da mesma forma. Vejo amigos que nunca mais ouvirão as risadas de Nomsa e Sílvina. Vejo um lembrete constante de que a vida é frágil e que cada decisão que tomamos pode ter consequências imensuráveis.

Nomsa e Sílvina não voltarão, mas as suas memórias continuam a iluminar aqueles que as conheceram. Que a história delas nos ensine a valorizar cada instante, a respeitar a vida e a transformar as estradas em caminhos de encontros, não de despedidas. Que cada motorista lembre que, ao volante, carrega não apenas o seu destino, mas também os sonhos e as vidas de tantos outros. Porque não há perda maior do que aquela que poderia ter sido evitada.

“Dizem que sonhar é um crime atrás das grades. Mas prefiro apodrecer numa cadeia de sonhos, do que viver em liberdade e sentir-me atrás das grades” Flash Enccy (Em liberdade de sonhar)

Que a existência da mulher nunca foi algo fácil, isso é de conhecimento geral. É uma “verdade”. A razão das aspas é justificável, pois Foucault discute o sentido da verdade (e seus regimes) e morreu com uma perspectiva produtiva: a verdade tem a sua história. Ou seja, o que para uns, num determinado lugar e tempo, constituía verdade, para outros, num outro momento do tecido histórico, pode não ser. Esse é o caso da mulher, como papel social.

Ao longo do tempo, muitas grades e correntes foram forjadas e celas erguidas. As mulheres são e foram confinadas, por exemplo, ao espaço doméstico, privadas de circular livremente, estudar ou trabalhar. “Lugar da mulher é na cozinha”, é comum ouvir isso. Ao todo, não é completamente um erro, mas começa a ter aparências de violência quando são cortadas as asas e só podem se confinar naquele espaço, longe do mundo e de todos. Não é ao de todo um erro porque mulher querendo se confinar e cozinhar, não porque foi ensinada que “o lugar da mulher é na cozinha”, é livre de o fazer. Até porque já ensinou Mia Couto, cozinhar nem é um trabalho, mas uma forma de amar os outros porque na comida verte-se ódio ou amor.

As grades não só foram visíveis, como as paredes domésticas, mas também invisíveis. Por exemplo, a obrigação em ter que casar e fazer filhos. O controlo do corpo e da sexualidade feminina. E outras prisões que possam existir pelo mundo, e que somente as mulheres possam relatar na pele e no sangue.

Mas, enquanto presas, a primeira forma de resistência é, provavelmente, sonhar. E elas vão sonhando com a liberdade. Essa é a proposta artística de Bena Filipe, com o seu 80×90 cm.

O quadro, com a técnica acrílico sobre tela, tem uma textura que oferece a possibilidade de sentir o quadro pelo tato. Também, olhando para a paleta de cores, o contraste não é uma força vital da obra, contudo não é por aí onde a obra não é bem conseguida. A falta de contraste proporciona uma sensação de ‘quentura’ por conta da cor meio quente usada, e isso lembra um pouco o inferno, que nos vai lembrar o sofrimento perpétuo.

A autora projecta tanto correntes nos pulsos e grades. Ambos objectos representam o aprisionamento, o cárcere. E esses objectos vão além da prisão formal, mas representam a limitação, as grades colocadas para mulheres ficarem num único mundo, uma única realidade. Atrás das mesmas grades aparecem figuras difíceis de definir a forma. Isso dá-se pelo facto de ser um abstracionismo parcial, pois há uma mistura do reconhecível e o irreconhecível. Há um equilíbrio do real e o imaginário. Esse jogo entre o concreto e o subjectivo sugere camadas de profundidade. Partindo da suposição de que o abstracto representa o subjectivo, a personalidade das mulheres no quadro encontra-se dilacerada e derretida.

O conteúdo da obra é instigante, pois traz à tona o debate. Até onde a mulher quer a liberdade, e até onde considera algo prisão? Pois no contexto moçambicano, em particular, tudo que é tipicamente africano pode ser visto como culturalmente degradante, mas o de outros quadrantes não. E caso alguém prove que Deus é machista, libertar-se-ão dele, ou acharão uma pergunta que conduz ao pecado e, consecutivamente, ao inferno?

O que, de facto, seria uma prisão, se as pessoas, às vezes, escolhem estar em lugares que para outros são prisões? Talvez, a palavra chave esteja na escolha, pois para escolher é preciso liberdade. Chego até aqui com uma acepção: um lugar só é uma prisão quando se é impedido de sair, e limitado a circular, e outros direitos proibidos. Por exemplo, uma casa e um relacionamento podem ser prisões, caso há impedimentos, limitações, direitos suprimidos.

É importante também saber que isso vai depender também de perspectivas, porque “a melhor maneira de manter alguém prisioneiro é tendo certeza que ele nunca saiba que está na prisão” (citação atribuída a Dostoievsky). E a única forma de fazer isso, talvez seja negar educação, por isso o verdadeiro empoderamento da mulher (e de todos) é a educação e colocar um livro na mão. 

No filme “O conde de monte Cristo” (2002) há um encontro de dois prisioneiros numa prisão, um deles é padre, que promete ensinar a ler e escrever:

– Em troca da sua ajuda, oferece-te algo inestimável.

– A minha liberdade?

– A liberdade pode ser tirada, como você bem sabe. Eu te ofereço o meu conhecimento.

A temática liberdade é muito abrangente e pertinente. E ressoa em toda a exposição colectiva de mulheres sobre mulheres, no núcleo de arte. E, porque é sobre mulheres, então é sobre vida. Entre artes visuais e literatura, há algo diferenciado, em que todos os visitantes podem também, por algum momento, criar algo e expressar a sua dor para a cura colectiva através da arte.

Como Flash Enccy cantou, sonhos são lembranças, sonhos são troféus. E mesmo atrás das grades, a Bena mostra que as mulheres lembram a liberdade. E mais do que lembrar, as mulheres, unidas, movem montanhas.

 

Quando me lembro do isolamento ou afastamento da consciência humana nos problemas que afectam ou assolam o bem comum, abraço-me ao pensamento de Vanessa Aguiare, que refere: “Há sempre uma guerra, mesmo que não seja no seu quintal; em algum lugar, alguém está a lutar por comida, por religião, por política ou pela própria sanidade mental”.

Quando o mundo domina a consciência com pensamentos e emoções em forma de monólogo e observa de forma passiva os fenómenos que influenciam o comportamento nocivo humano, pode-se associar a vida a uma imagem que se assemelha à dos tempos da antiga Babilónia, caracterizada pela corrupção espiritual, como as práticas idólatras, a decadência moral e a rejeição dos mandamentos de Deus. Ou mesmo, pode-se compará-la às atrocidades morais, que marcaram Sodoma e Gomorra. O mundo, assim desenhado, sofrerá sempre com escassez de Maná, privando-se do alimento espiritual e social necessário para suprir os estômagos tímidos e calados, que apenas aguardam a chegada do dia da Ceia do Céu, celebrado ao som e ritmo da orquestra dos Anjos.

Virar as costas ao sofrimento do pobre e multiplicar afecto e abraços nos ombros do rico já saciado anima o falso de consciência ou mendigo social, que desvia o pincel que carrega as cores do bem comum – cores essas que poderiam embelezar as asas da borboleta da vida, soprando um futuro melhor para todos os não eternos, que lutam pela preservação do dom mais precioso: a vida.

O mundo precisa participar activamente na busca de soluções que respondam às questões que ferem a veia social. O mundo precisa se levantar para orientar a locomotiva que puxa vagões carregados de esperança, modificando o prazer de viver e o conceito de vida dos mais necessitados. O mundo precisa pensar em soluções que erradiquem o sofrimento.

O mundo dos ricos precisa unir-se ao espírito sofrido dos pobres para sentir a dor da guerra que arranca almas inocentes, deixando uma sociedade desprovida de segurança. O mundo precisa enxergar as lágrimas da criança sem colo de esperança, sem um feixe de luz que a guie, para que possa navegar no oceano do futuro, onde as ondas absorvem as lágrimas e o vento fresco seca o sofrimento.

O mundo precisa unir-se pela preservação da natureza e preparar condições necessárias para as futuras gerações. Precisa de uma educação ambiental que valorize a natureza como a única casa com condições de sustentar a vida. A responsabilidade de cuidar do meio ambiente cabe a todos os seus habitantes. A convivência com a natureza deve ocorrer respeitando o futuro das futuras gerações.

O medo de se envolver em problemas que não afectam directamente a nossa vida sempre fez parte da natureza humana. Pedro negou 3X conhecer o Mestre Jesus, mesmo caminhando diariamente ao seu lado. Assistir ao sofrimento alheio sem agir, apesar de ter condições para ajudar, sempre fez parte do lado egoísta do ser humano, que ignora sua consciência social. A luta e a culpa foram sempre individualizadas.

O mundo precisa participar da construção de uma nova Arca da Aliança, onde se conservará a santidade de um compromisso eterno, depositando nela os valores essenciais da vida, que guiarão o mundo rumo a uma convivência social harmoniosa, num lounge de solidariedade, sem medo nem receio.

Não sei se alguém já abordou esta questão, mas, por mim, nunca li nem ouvi nada a respeito. E, sim, precisamos de falar dele. Precisamos de falar de Gilberto Mendes.

Precisamos de falar sobre a forma como ele conseguiu preservar a sua essência, manter-se fiel a si mesmo, mesmo depois de ocupar um cargo político de grande relevância no último mandato. Gilberto não se perdeu nos corredores do poder, não se diluiu na vaidade nem se afastou do homem que sempre foi. Manteve a sua rotina, a sua presença nos palcos, a sua escrita. E, depois de sair do cargo, a vida prosseguiu sem rupturas, sem teatros de grandeza: ele continuou a fazer o que sempre fez, como se a política tivesse sido apenas um capítulo – importante, sim –, mas não definidor da sua existência.

Quantas histórias ouvimos de políticos que, ao não conseguirem renovar os seus mandatos, mergulharam na irrelevância e na miséria? Quantos se viram incapazes de se reinserir na sociedade, como se o cargo tivesse sido não apenas um emprego, mas a única âncora das suas vidas? E quantos não foram os que, mesmo sem méritos visíveis, se agarraram a bens públicos, imóveis e privilégios, com a justificação de que nada tinham construído durante os anos de mandato?

É urgente falarmos disso.

É urgente reflectirmos sobre a excepção que Gilberto Mendes representa. Um homem que, mesmo dentro da engrenagem política, continuou a escrever, a representar, a dar corpo e alma ao teatro. E mais do que isso: a sua figura política, o seu lugar nas estruturas do poder, por vezes misturava-se nas personagens, invadia os palcos e servia de matéria-prima para novas obras. Ele levou a política ao teatro e não o contrário. Trouxe humanidade para os dois mundos.

Na nossa realidade, quando muitos dos nossos políticos conseguem finalmente um lugar à mesa do bolo, a primeira coisa que fazem é afastar-se das suas raízes, das suas comunidades, dos seus próprios espelhos. Agem como se nunca tivessem vindo de onde vieram, como se a proximidade com o povo fosse uma doença contagiosa. Lembram os antigos judeus a evitarem os leprosos, não por maldade apenas, mas por medo de serem novamente confundidos com aquilo que um dia foram.

Gilberto Mendes, porém, permanece inteiro. Consegue, com uma naturalidade desconcertante, estar em qualquer lugar, com qualquer pessoa, sem exibir desconforto ou arrogância. Ele não se desfigurou com o poder, não se blindou com títulos, não se afastou da sua humanidade. E isso, por si só, já é um feito.

Precisamos de falar disso. Urgentemente.

Dito isto, importa sublinhar que estas palavras nascem de alguém que testemunhou tudo de longe. É o olhar de quem acompanhou, com atenção e respeito, mas sem proximidade directa, o trajecto de Gilberto Mendes por entre as luzes da ribalta e as sombras da política. É possível – e até natural – que existam outras leituras, visões diferentes, percepções menos generosas ou mais críticas. Mas este é o meu testemunho. E senti que precisava de ser dito.

Lembro-me daquele dia como se fosse ontem. E não porque o calendário mo grite, mas porque o coração ainda o guarda, como uma ferida aberta que insiste em não sarar. Era 12 de Março de 2024 quando a tempestade tropical Filipo tombou sobre Vilankulo. O céu escureceu de repente, como se alguém tivesse apagado a luz do mundo. O vento começou a soprar com uma raiva estranha, como se tivesse contas a ajustar com esta terra. E depois veio a água. Muita água. Tanta que parecia querer lavar tudo: as ruas, as casas, as árvores, os sonhos.

Nesse dia, senti pela primeira vez o que é o medo colectivo. Não era só meu, era de todos. Vi vizinhos a correrem com filhos ao colo, ouvi preces murmuradas ao vento, vi o mar a invadir espaços que antes lhe eram proibidos. A marginal, essa nossa velha amiga que sempre nos ofereceu o melhor nascee do sol da costa, foi uma das primeiras a ceder. Vi o chão a rachar como se a terra chorasse, árvores centenárias a tombarem como se não suportassem mais a dor, e as condutas de água a romperem como veias abertas de uma cidade ferida.

Mas a tempestade passou. Porque tudo passa, não é? Ou devia passar. Só que, um ano depois, a destruição continua ali. Intacta. Como um museu da negligência, ao ar livre. E essa é, talvez, a parte mais difícil de aceitar: não foi só a natureza que nos castigou — foi o esquecimento.

Hoje, ao caminhar pela marginal, não vejo apenas buracos e escombros. Vejo memórias partidas. Lembro-me dos domingos passados quando eu e minha família compravamos gelado de coco ali na esquina e sentávamos a ver os barcos regressarem da pesca. Lembro-me das sessões fotográficas improvisadas de casais apaixonados, das feiras de artesanato onde o riso e a música se misturavam com o cheiro a camarão grelhado. Tudo isso parece tão distante, como se pertencesse a outra vida. Uma vida que Filipo levou… e que ninguém se deu ao trabalho de tentar resgatar.

Os moradores das zonas adjacentes vivem hoje com um nó na garganta. Não é só a tristeza, é o medo também. Cada nuvem escura que se forma no horizonte é motivo de alerta. “E se vier outra tempestade?” — perguntam-se, em silêncio, enquanto olham para a estrada gretada e para as águas que, sem contenção, continuam a corroer o que resta da via. Já ninguém dorme tranquilo quando o tempo muda. Porque sabem que a marginal está nua. Desprotegida. Vulnerável.

E os automobilistas? Esses arriscam diariamente as suas vidas a transitar por ali. Alguns por necessidade, outros por desconhecimento. Mas todos partilham o mesmo risco: o de ver o carro engolido por uma cratera, o de ser surpreendido por uma derrocada. Há troços onde já nem se sabe o que é estrada e o que é erosão. É um jogo de adivinhação mortal.

A pergunta impõe-se: como é que chegámos aqui? Como é que deixámos um dos maiores postais turísticos de Vilankulo tornar-se um símbolo de abandono? Onde estavam — e onde estão — as soluções? Sim, ouvimos as mesmas palavras repetidas vezes: “não há recursos”, “é um processo”. Mas palavras não tapam buracos. Palavras não reconstroem estradas. Palavras não salvam vidas.

A marginal de Vilankulo não era apenas uma estrada. Era um espaço de encontro, de lazer, de identidade. Era ali que os turistas tiravam as fotos que depois rodavam o mundo. Era ali que os jovens sonhavam, que os artistas se inspiravam, que os idosos recordavam os seus dias de juventude. Hoje, o que resta? Um caminho perigoso, árvores tombadas como cadáveres de pé, canos a céu aberto, lixo acumulado nos cantos da desilusão.

O edil reconhece o problema. É verdade. Mas de que vale reconhecer sem agir? Um ano é tempo mais do que suficiente para se fazer pelo menos o início de algo. Um sinal de que há esperança. Mas nem isso. E enquanto isso, o turismo, que é a alma económica de Vilankulo, afunda-se com a estrada. Os visitantes já não vêm como antes. Quem viria, afinal, para ver destroços?

Não escrevo esta crónica para culpar apenas. Escrevo porque me dói. Dói-me ver a minha cidade assim. Dói-me ver tanta beleza esquecida. Dói-me ver o tempo a passar e a ferida a crescer. Porque Vilankulo merece mais. Os seus moradores merecem mais. As suas memórias merecem ser preservadas. E se ninguém gritar, tudo continuará assim: paralisado na espera.

A cada época chuvosa, com ela, a angústia renova-se. Até quando? Até quando vamos esperar por uma intervenção que nunca chega? Até quando vamos permitir que a negligência tenha mais força do que o amor à terra?

Sei que há quem diga que “há prioridades maiores”. Mas pergunto: o que é mais prioritário do que a dignidade de um povo? Do que a segurança de uma cidade? Do que o resgate de um lugar que foi, em tempos, um orgulho nacional?

A marginal de Vilankulo ainda pode ser salva. Ainda pode renascer. Mas para isso é preciso mais do que promessas. É preciso vontade. Compromisso. Ação. E acima de tudo, é preciso coração.

Porque uma cidade que perde a sua marginal, não perde apenas uma estrada. Perde parte de si. E não há tempestade no mundo que justifique esse tipo de perda. Só a indiferença o consegue fazer. E essa, meus caros, é a mais perigosa das tempestades.

Parte I: “Operação Gurué – Entre Arranhões, Emoções e Adrenalina”. Chego ao parque de transportadoras interprovinciais, na cidade de Nampula, por volta das seis horas da manhã. De pasta nas costas e ânimo no coração sigo a minha jornada com apenas um objectivo: conhecer a histórica cidade de Gurué. Desde muito cedo, ainda na escola primária, ouvi falar dos largos campos de chá nas margens do Rio Licungo e nas serras à volta.

Recorrentemente, ao longo dos anos, fui ouvindo falar da cidade de Gurué como um dos celeiros da Província da Zambézia, mas não só, Gurué sempre chegou aos meus ouvidos e olhos como uma cidade bela e rica que se situa entre verdes colinas no interior daquela província do centro do país. Foi assim que me apaixonei por Gurué mesmo sem a conhecer. Muito clichê isso, eu sei. Mas foi o que aconteceu. Esta paixão cresceu ainda mais quando, através do Alegre Canto da Perdiz, Paulina Chiziane levou-me a conhecer os montes Namúli, terra do José dos montes. Algum dia nesta vida eu tinha de conhecer esta cidade.

390 Quilómetros estavam entre o meu ponto de partida (cidade de Nampula) e o meu destino (Gurué). O mapa do google estimava que a viagem fosse durar, no máximo, seis horas. A experiência dos motoristas e outros colaboradores das transportadoras dizia que em cinco horas mais tardar eu estaria em Gurué. Porque onde desenvolve-se e alimenta-se uma grande paixão, abre-se também margem para grandes desilusões, a primeira tentativa de desiludir o meu amor platónico por Gurué começa aí mesmo, ainda em Nampula. As normas informais asseveram que o carro só sai do parque quando estiver cheio. Da mini-bus (vulgo TNS ou chapinha) desenhada para 15 pessoas, contando com o motorista, espera-se que nela viagem 21 pessoas. 

Passam-se trinta, quarenta, sessenta, noventa minutos e o carro não enche e por isso não sai. Não se pode reclamar e nem se pode recorrer a uma alternativa, porque não existe nenhuma alternativa de transporte público que queira fazer o trajecto Nampula-Gurué. Aparentemente não é um trajecto com muito negócio e, por isso, os poucos que permanecem no negócio têm poder absoluto sobre as regras. Às nove horas, três horas depois da minha chegada, quando eu já queria começar a desistir do meu amor por Gurué, vinte e uma pessoas estão a bordo do chapinha e já podemos seguir viagem. Recupero o fôlego e peço perdão a Gurué. Foi um momento de tensão, mas a paixão continua.

O trajecto segue. Andamos a voar, todos em silêncio, ninguém reclama da velocidade, é como se tivesse havido um acordo informal entre o motorista e os passageiros na tentativa de compensar o longo tempo de espera antes da nossa partida. O Problema é que a estrada ficou alheia a esses concertos informais feitos na anuência do silêncio. Eu ia dizer buracos, mas não é esteticamente belo incluir tal palavra num texto de amor. Digamos que os arranhões profundos que a estrada possui, não nos permitem “voar” com tranquilidade. Entre frequentes saltos, solavancos, curvas e contracurvas em plena estrada rectilinear, fomos adoçando a nossa jornada dentro daquele chapa e, nisso, eu já começava a desiludir-me novamente.

Para tentar esquecer a decepção, vou alimentando a minha alma com bela paisagem verde e montanhosa que envelopa o nosso trajecto. É de encher a alma ver os verdes e lindos campos que habitam nestas terras. Ao passar por Alto-Ligonha vejo os resquícios ainda bem presentes das últimas manifestações pós-eleitorais. Restos de um camião incinerado jazem em plena estrada nacional número um. O posto policial e algumas sedes distritais também tiveram o mesmo destino.

Seguimos viagem. À beira da entrada é um pouco do mesmo que vemos em toda a EN1. crianças, adolescentes, mulheres com bebé ao colo, arriscam as suas vidas e um pouco mais para se aproximar de qualquer carro que faça passagem na sua localidade e vender-lhes frutas, verduras, legumes e outras singularidades de cada local.

Chego ao desvio de Nampevo por volta das 13 horas e tenho de deixar o primeiro chapa porque este ia à Quelimane. Ao desviar de Nampevo em direcção ao interior da Província da Zambézia, 90 km separam-me de Gurué. Eu já tinha feito 300, então o que faltava era pouco.

Era praticamente a quarta parte de todo o trajecto, porém, para a minha desilusão e quase desapaixonamento, foi o trajecto mais longo. Entrei num chapa que prometeu me deixar em Gurué dentro de duas horas no máximo. Era eu e mais onze. Faltavam dez para preencher o carro, por isso, a cada pessoa que se encontrava à beira da entrada o carro parava para carregar e descarregar. Era uma lentidão sem fim que foi sento apimentada por novos e mais profundos arranhões que ornamentam a estrada que segue até Gurué. Estão a decorrer obras de reabilitação neste momento, o que já é uma esperança para o futuro, porém, no presente, a experiência dos solavancos e saltitões dentro do carro não passa despercebida. Passadas as duas horas prometidas, o motorista decidiu cumprir a sua promessa e deixou-me. Mas ainda não estava em Gurué, estava na sede do distrito de île, que dista a 65 km de Gurué, ou seja, dos 90 km só tinhamos feito 25.

Ao ser abandonado pelo chapa, alegando não haver passageiros que justificassem a sua chegada a Gurué, eis que sou obrigado a esperar mais uma hora para, às 16 horas, conseguir embarcar a bordo de uma camioneta caixa aberta que me levaria até ao meu destino. A mim e a mais 20, 30 ou 40. Não sei. Éramos muitos e o sistema era o mesmo: pára, carrega, continua, pára, descarrega, continua, esquiva buraco… desculpa, arranhão, … e eu, apaixonado que sou, começo a questionar seriamente o meu amor por Gurué. Não teria sido melhor se eu tivesse mantido esse amor no plano platónico? Será que valia a pena sofrer daquela forma para chegar a Gurué? 

Já se passam doze horas desde a hora que eu saí de casa em Nampula até alcançar a cidade de Gurué. Uma escalada dura e que, mais uma vez, vem evidenciar que o turismo interno em Moçambique não está acessível para todos. No regresso à Nampula, a experiência foi similar.

Saí às 8h de Gurué e cheguei às 20h em Nampula. Certamente que se eu tivesse uma viatura particular, ou tivesse condições de alugar uma, eu estaria aqui a narrar uma história totalmente diferente. Mas, para a maioria dos moçambicanos, grupo no qual faço parte, que não tem alternativa a não ser viajar de transportes públicos, estes são alguns dos dramas que desincentivam a realização do turismo interno.

Às 18 horas, com os nervos e desilusão à flor da pele, verdes campos que se estendem em

colinas e um horizonte que dá alento aos olhos e acalma qualquer alma inquieta. Pergunto discretamente a um passageiro do que se tratava aquelas paisagens verdes e, como se de algo vulgar se tratasse, ele responde: são os campos de Chá. Nesse momento esqueço-me tudo o que passei e volto a apaixonar-me por Gurué, uma paixão que eu só teria condições de a viver no dia seguinte.

 

 

Realizada em Fevereiro do ano em curso (2025), não foi mero propósito o trabalho minucioso, bastante perspicaz, como é o traço deste Professor das artes plásticas, Jorge Dias.

Uma exposição aclamada pelo público que alude a beleza e crítica, tal como foi feita pela conceituada Professora Alda Costa.

Este trabalho, foi muito mais além das memórias que jazem nas estampas das capulanas, uma mescla em surdina no ser, de quem sente e vê, tal como a série “paisagens ambulantes”.

No som de uma sinfonia, o artista na sua destreza, trás-nos a melodia sonora de três camponesas, guerreiras, não traçadas pela guerra, mas por um sentimento, de lá para aqui.

Na obra, “Daniel na cova dos leões”,  vislumbra-se  um sentimento que nos remete às escrituras, lá está, esta figura enigmática, com os olhos arregalados, em todas as vértebras, como quase um questionamento. 

… o lá daqui.

Voltamos à terra, como um ser da natureza. Por que sonhar, se podemos ver?

Na série: Trabalho sobre a terra I

É um envolver do néctar de sentidos, o que se fecunda com a vida, a um renascer. O ciclo da vida, numa representação ambígua, do presente e futuro.

E quem é está individualidade!?

Ser  multidisciplinar. 

Jorge Dias é conhecido pela sua genialidade na arte contemporânea, explorando sempre as vicissitudes na imersão técnica do detalhe, recorte, sentido, extensão, permeado sempre a uma criatividade uno. 

Não se trata somente do guru das artes plásticas, crítico, pesquisador e inovador, o seu trabalho interdisciplinar é aguçado, no limiar de uma ponte, entre o nascer do sol até ao horizonte, isto é, atravessa com mestria a construção da história das artes plásticas em Moçambique. Um carimbar indelével, entretanto sem desforrar o  seu sublime fraquejo. Dias  é um montanhista, gigante na terra dos rostos cruzantes, quase no silêncio de um pêndulo que alicerça uma vasta gama de artistas plásticos nacionais e não só. Assim ele o-é, como poeticamente ele descreve  “Fico a ver o lá daqui “.

A palavra é uma bala: Não tem recuo.

Mia Couto

No dia 24 de Março, o jardim do CCMA acolheu um evento de Spoken Word, intitulado “Heroínas”, com acesso livre. Matilde Chabana foi a mestre de cerimónias do evento.  

“Heroínas” é um projecto poético que consiste nas poetas: Denise Fazenda, Jessica Cristina, Lorna Zita e Emma de Jesus. 

A expressão “Spoken Word”, em português poesia falada, é uma nova construção de poesia, que tem como objectivo principal expressar sentimentos, ideias sobre temas muitas vezes ignorados ou com uma percepção social limitada.

O nome “Heroínas”, provavelmente, deve-se à travessia caótica que as mulheres trilham no quotidiano moçambicano, são vários flagelos que assolam a mulher, desde assédios sexuais no trabalho, na faculdade, escola, aos estupros domésticos, raptos, desaparecimentos e estrangulamentos da mulher até à morte.

“Heroínas” decorreu sob a forte presença de mulheres e jovens que aderiram ao evento, a missão do público era manter o ouvido aberto e das poetisas era mandar as “balas” ao público.

Heroínas começou com declamações singulares e intercalares das poetisas, a miscelânia com a voz da cantora Dórcia Chanázia, que foi chamada a abrilhantar o evento.

“Heroínas” tinham uma missão clara: Mudar a percepção do público em relação à figura da mulher, transportar o público ao interior da alma feminina, exalar as dores e cicatrizes que a mulher carrega e, quiçá, emprestar a pele da mulher a ver se se percebem os seus tormentos.

Dórcia Chanázia, de voz suave, trocou simpatias com o público, sua voz contagiou a juventude a cada actuação no jardim do CCMA. Uma das surpresas do evento foi o mais recente livro da escritora Denise Fazenda, intitulado “Na lente delas”, que esteve à venda no local do evento.

A marcha poética de “Heroínas” teve várias abordagens sobre a mesma causa, interessa aqui destacar, três reflexões, suportadas por três poemas das “Heroínas”.

Poema 1 Filhas da mãe – 

Em “Filhas da mãe”, “Heroínas” apresentaram uma declamação colectiva, que aborda a frágil condição social da mulher, os versos seguintes ajudam a entender essa visão:

“Fui condenada antes mesmo de falar” 

Fui silenciada porque nasci mulher

E minha mãe, também filha da mãe chora um luto que o mundo ignora

Ela grita por mim como gritou por outras… enquanto o mundo segue, indiferente, cúmplice e conivente”

No poema, “Heroínas” denunciam uma condição diferente entre sexos, o silêncio e a violência reservada apenas à mulher, o grito de uma mãe não pode ser ouvido, mas pode ser ignorado, recebido com indiferença e cumplicidade.

Quantas vezes ignoramos o grito da mulher na nossa vizinhança? Quantas vezes alegamos ser briga de casal quando uma mulher é vítima de pancadaria? É sobre esta cumplicidade e indiferença que “Filhas da Mãe” exorta:

Poema 2 Uniões Prematuras

Em uniões prematuras, “Heroínas” apresentaram igualmente uma declamação colectiva e milimetricamente sequenciada. O poema convida-nos a um discurso vindo do imaginário de uma adolescente de 13 anos, que apela à consciência dos seus pais e da sociedade acerca das uniões prematuras. Um trecho do poema nos permitirá melhor análise.

Eu era só uma menina, 

Quando fui obrigada a mente fechar e as pernas abrir

quando senti o peso daquele corpo sufocando-me até não mais conseguir respirar

Fui obrigada a balões de rosa parar de soprar para ver minha barriga inchar

Eu só tenho 13 anos, como querem que tenha forças para um bebé de mim retirar?…

Rompeu-se, foi vítima da fístula obstétrica…

Não, fui vítima da vossa criminalidade, ambição, egocentrismo e falta de amor

Uniões prematuras são um flagelo que aumenta o ciclo da pobreza, devido ao abandono da rapariga na escola, e sua dependência ao homem a que foi entregue. Uniões prematuras matam sonhos, e depreciam a vida da mulher. A fístula obstétrica é uma doença que retira toda a dignidade e auto estima de uma mulher (sobretudo criança), a sociedade é chamada a parar e pensar nestes versos, uniões prematuras são intoleráveis, e destroem o futuro da família.

Poema 3 

Já podes comemorar mamã tua filha para tua casa não voltará

Lembras mamã quando eu disse que não queria casar?

Que do meu namorado já estava a desconfiar?

E tu me disseste que… não podia violar a tradição

Te contei que durante três meses tratei ITS 6 vezes

Aquela boca com pontos, não foi acidente de carro como ele te contou

Foi ele, agrediu-me violentamente, mamã

No poema “Heroínas”, há um culpado pelo sofrimento da mulher por vezes oculto, pois é, a própria mulher, a própria mãe, a própria tia, que olha para o casamento como uma fonte de renda para si, um fonte de status social, uma forma de manter a tradição dos antepassados, sem ter em conta os sentimentos e a opinião de quem efectivamente vai se casar.

No texto, um conjunto de sinais de que o casamento era tóxico foi dado à mãe, mas ela preferiu ignorar para manter o status, a tradição e pode dizer de boca cheia, que a sua filha casou.

A base do casamento é o amor, a felicidade do casal, e não a tradição, ou o status desejado pelos pais. No poema, a filha pede asilo em casa da mãe porque a sua vida está insuportável, mas é recomendada a aguentar, e aguentou tanto até perder a sua vida, num lar que nunca desejou estar.

“Já podes comemorar mamã tua filha para tua casa não voltará”, disse a filha depois de perder a sua vida.

“Heroínas” nos lembram que a vida de uma mulher deve ser cuidada desde que ela nasce, até à fase adulta, uma união prematura, ou um casamento feito às pressas pode destruir a própria vida da mulher e a sua família. Salve as “Heroínas”.

 

Era por volta das 20 horas quando regressei à cidade de Inhambane, depois de mais um dia de trabalho intenso. A noite começava a envolver as ruas com o seu manto escuro e silencioso. Ao aproximar-me da zona de Nhapossa, na entrada da cidade, presenciei uma cena que, infelizmente, já não é estranha aos habituais viajantes da estrada. Um cobrador, pendurado precariamente do lado de fora de um chapa 100, equilibrava-se entre o risco iminente e a indiferença coletiva. O silêncio dentro do carro era quase ensurdecedor, como se aquele cenário fosse um mero detalhe de um dia comum.

Pergunto-me: em que momento normalizámos o absurdo? Como chegámos ao ponto de ignorar o perigo à nossa frente, tratando-o como parte de uma rotina inevitável? O cobrador, desafiando as leis da física e da prudência, representava não apenas a negligência dos transportadores, mas também o reflexo de um sistema que insiste em valorizar a pressa em detrimento da segurança. E nós, os passageiros, calados, será que somos cúmplices dessa imprudência?

O episódio daquela noite é apenas um entre tantos outros que se repetem diariamente nas estradas moçambicanas. Os chapas, lotados muito além da sua capacidade, percorrem caminhos que mais parecem testes de sobrevivência. Condutores e cobradores desafiam não só as regras de trânsito, mas também os limites da responsabilidade. E quem viaja como passageiro assiste a esse teatro de imprudência com uma apatia que assusta.

É impossível não se questionar: onde está a voz do povo? Onde está a coragem para exigir respeito? Como podemos aceitar que a vida humana seja tratada com tamanha negligência? Cada um de nós, ao permanecer calado, legitima um sistema que perpetua a indiferença. A cada dia, vemos mais cobradores pendurados, mais ultrapassagens perigosas, mais vidas postas em risco. E, ainda assim, seguimos como espectadores passivos desse cenário.

Os condutores desses chapas, muitas vezes pressionados pelos patrões para atingir metas financeiras impossíveis, acabam por sacrificar a segurança em nome da rapidez. Mas será que essa justificação basta? Será justo colocar toda a responsabilidade sobre os ombros dos trabalhadores, ignorando o papel de um sistema que pouco ou nada faz para regulamentar e fiscalizar de forma efetiva o transporte público?

E os passageiros, por que não se levantam? Por que não reclamam? Aquele cobrador pendurado na entrada de Inhambane podia ter caído e perdido a vida, mas a indiferença no interior do carro era quase palpável. O que nos impede de agir? O medo de represálias? A resignação de que nada vai mudar? Ou é simplesmente o peso de uma cultura que nos ensina a aceitar o que é errado como norma?

A situação dos chapas em Inhambane é um reflexo claro de um problema maior. Não se trata apenas de transporte, mas de uma crise de valores e de consciência coletiva. Quando toleramos a negligência, quando permitimos que a rapidez seja mais importante do que a segurança, estamos a enviar uma mensagem perigosa às gerações futuras: a de que a vida humana é descartável.

Mas há soluções. O que falta é vontade. Fiscalizações mais rígidas, punições exemplares para os infratores, campanhas de educação cívica que incentivem os passageiros a exigir os seus direitos. E, acima de tudo, é necessário despertar a consciência coletiva de que o silêncio também é uma forma de violência. Quando nós, passageiros, aceitamos passivamente as condições precárias dos transportes, estamos a contribuir para a perpetuação de um sistema que despreza a vida humana.

Que o episódio daquela noite em Nhapossa sirva como um alerta. Que possamos olhar para o cobrador pendurado, para o motorista imprudente, e entender que eles também são vítimas de um sistema falho. Mas nós, passageiros, também somos parte desse sistema. E cabe a nós decidir se queremos continuar como espectadores ou se queremos ser agentes de mudança. Porque, ao fim da linha, o preço do silêncio será sempre mais alto do que qualquer bilhete que possamos pagar.

“Sangue em flecha” é um romance que se desdobra entre Maputo, Magude, África do Sul e China, e, mais para o fim, Niassa. É-nos revelado por um narrador autodiegético, talvez por isso com mais propriedade o caro leitor se mergulhe e perca na história, confundindo as suas peripécias com a sua história de vida, pela naturalidade com que é narrada a vida de Salomão, jovem que não se entende com o pai e, por isso, é muito apegado à mãe.

Salomão é um jovem oriundo de uma família com posses, que vive no centro da cidade de Maputo. Economista de formação, entretanto, nunca chegou a exercer a sua profissão, pois não gosta de trabalhar e depende dos pais, pelo que se dedica a gerir namoros efémeros com distintas mulheres que, apesar do amor não correspondido, morrem de amores.

Por conta das desavenças frontais com o pai, decide abandonar os pais e ir a Magude, terra natal do pai, à procura de reestruturação da sua vida. Por ser apaixonado pela fotografia, leva consigo uma máquina fotográfica, para registar todos os momentos e lugares pelos quais passaria. Em Magude, é convidado por um português, Mulungo, a trabalhar como motorista e este aceita. Todavia, o seu espírito de “rabo de saia” possuía-o, pelo que se apaixona pela esposa mais nova do seu polígamo tio, Arão. Por conta do possível incesto que fosse cometer, porque já tinha fotografias suficientes para uma possível exposição, Salomão decide abandonar o emprego e o tio, alegando que já tinha recolhido imagens suficientes.

Nesse interlúdio, Romão, seu primo, convida-o a um projecto supostamente financiado pelos EUA. Salomão entrava, involuntariamente, num grupo de caça-furtiva, sediado na África do Sul, dentro do qual, com as idas e voltas a Maputo, África do Sul e Magude, vivia um triângulo amoroso mal construído com Elisa e Jane, até que lhe é apresentada a Luísa, que se torna sua esposa e ajuda a concentrar-se.

Nesse ínterim, Salomão consegue sair do xadrez criado pelo primo, até que fizesse parte do grupo de caça-furtiva e mergulha-se não no ramo da Economia, mas de Educação Ambiental, tendo criado o projecto Casa da Natureza, com o objectivo de ensinar às comunidades, principalmente crianças, lições de protecção ao ambiente, com especial enfoque para recursos faunísticos.

Salomão metia-se, afinal, num outro problema, pois o seu passado o perseguia. Romão, que outrora estava morto, ressurge para atormentar a sua vida; Lídia já não aguentava as ausências de Salomão e via o seu relacionamento esfriar, banhado de mentiras e incongruências. Salomão vê a Casa da Natureza em chamas e, consequentemente, os seus sonhos tornando-se em cinza.

Nisto, Salomão, de em quando em vez, recompunha-se na Rua Araújo, com a prostituta Rosa que, mais do que uma prostituta, se servia de conselheira; chegando, em algumas vezes, a não se envolverem sexualmente.

Ora, em “Sangue em flecha”, há uma representação clara do realismo social moçambicano, nomeadamente a dicotomia campo-cidade, a poligamia, a traição, etc., apresentando uma intertextualidade com as obras “Niketche”, de Paulina Chiziane, e “Ilusão à Primeira Vista”, de Almeida Cumbane.

O realismo foi um movimento artístico-literário que surgiu nas últimas décadas do século XIX, na França, no qual os escritores retratavam o Homem e a sociedade tal como eram. Tal como se pode aferir em diversas fontes, ele surge na Europa, especificamente na França, e vai sendo desenvolvido noutros continentes, porém, é manifesto em textos em prosa. 

Para Reis e Lopes (2002), a representação pode ser abordada em termos dialécticos e não dicotómicos, o que significa que, entre o representante e o representado, existe uma relação de interdependência activa, de tal modo que o primeiro constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que, entretanto, continua ausente.

Esta abordagem conduz-nos à noção de pseudoreferencialidade que, de acordo com Silva (1984), se configura não por referencialidade imediata, mas mediata, pois que, embora haja uma relação de interdependência activa entre o representante e o representado, o discurso artístico afirma-se relativamente autónomo.

Veja-se, por exemplo, quando o narrador descreve a vida do campo e, igualmente, a poligamia, quando diz:

“Tinha dito que não voltaria para o almoço, mas, pelo caminho, arrependi-me. Devia era ter dito ao tio Arão. Ele é que fazia a gestão de tudo em casa, desde as quantidades do que comíamos todos os dias até à hora das refeições. Na hora das “manjas”, o meu tio vigiava as panelas. Os olhos acompanhavam cada pedaço de galinha que ia aos nossos pratos. Ele ficava sempre com a melhor parte. A Elisa preparava uma galinha inteira só para ele.

Quando se comesse peixe, os maiores peixes eram para o meu tio. Eu achava tudo aquilo repelente. Tive que me habituar. Ele era o oposto do meu pai. A única semelhança que havia entre eles era idade, o mesmo rosto e muita altura. Altura que herdei. Meu tio parecia mais velho que o meu pai. Talvez seja por gerir muitas mulheres e muitos filhos, isso também envelhece muito rápido a qualquer um.” (Espada, 2025:43) (destaque nosso) No que concerne à traição que, aliás, Espada soube muito bem encaixá-la, através da analepse (recuo), um recurso estilístico muito usado para arrefecer a narração e, através do encaixe que o caracteriza, esclarecer algumas nuances da narrativa, o narrador revela que foi naquela circunstância em que ficou a saber que o pai, Jerónimo, se envolvera com a esposa do irmão, mãe do Romão, quando assevera:

“(…) Meu pai baixou a cabeça. Eu acompanhei tudo. Foi nesse mesmo

dia em que fiquei a saber que os dois partilhavam apenas o mesmo quarto.

Durante muitos anos, o meu pai dormia num colchão. Nunca pensei que aquele

colchão que tantas vezes vi era onde o meu pai se deitava todas as noites.”

(Espada, 2025:47)

Como que em vaticínio à máxima segundo a qual “filho de peixe peixinho é”, o narrador expõe em claro o facto de ter sido um bom aprendiz, quando diz:

“Pela primeira vez, olhei para a minha tia. Nunca tinha reparado que

ela era uma mulher linda e com a parte traseira avantajada. Tomei banho e

decidi descansar. Eu estava cansado. Dormi só cinco minutos ou dez minutos.

Acordei e, ainda deitado, lembrei-me da Elisa. O seu corpo de menina

passeava pelos meus olhos. Levantei-me e saí para contemplá-la apenas.

Ninguém me podia proibir de sonhar um pouco e alimentar a minha vista. Nem

mesmo Deus. Ocorreu-me que eu estivesse a ficar maluco. (Espada,

2025:50) (destaques nossos)

Portanto, “Sangue em flecha” trata-se de um romance que retracta, numa linguagem simples e moçambicanamente trinchada, coadjuvada por suspenses e surpresas, o realismo social moçambicano, pincelado por poligamia, a vida do campo vs. cidade, traições e, acima de tudo, feridas abertas por flechas humanas. Estamos perante um romance que conjuga o

amor e o ódio, a perseguição e o amor à natureza e, por que não ao próximo?

Vale, por isso, lembrar o leitor que “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” (Aristóteles, 2003) Não é o nosso objectivo esgotar as nuances sugeridas pelo romance “Sangue em flecha”, mas, sim, espevitá-lo a que o adquire e navegue neste sangue que, por causa das flechas que a vida nos prega, jorra em nossas

vidas; pelo que deverá descobrir:

(i) Como terminou o relacionamento entre Salomão e Jane?

(ii) Como terminou o amor doentio entre Salomão e Elisa, sua tia mais nova?

(iii) Como terminou a Rosa, a prostituta conselheira? e

(iv) Que desfecho Salomão deu à sua vida?

Por fim, parafraseando Cumbane, após a leitura, se o livro for bom, recomende-o aos seus amigos; se for mau, aos seus inimigos. Só não deixe de o recomendar.

 

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. (2003). Poética, 7ªed., Lisboa. Volume VIII.

ESPADA, S. (2025). Sangue em flecha, Maputo: Ethale Publishing.

REIS, C. e Lopes, A. (2002). Dicionário de Narratologia, 7ª.ed., Coimbra: Almedina.

SILVA, V. (1984). Teoria da literatura. 6ªed., Coimbra: Livraria Almedina.

 

carlosdagraca18@gmail.com

Assim como a mistura entre as cores azul e amarelo dá origem ao verde, eu insisti em acreditar que a fusão da minha vontade de ser alguém com o meu esforço incessante poderia também resultar numa tonalidade vibrante de esperança. O verde, dizem, é a cor da esperança. Mas, que ironia amarga, para mim, esse verde não floresce. Porque, na realidade, sinto-me afogada numa palete de cinzentos nebulosos, banhada por uma profunda melancolia que não se dissipa.

Como posso eu julgar que existe qualquer resquício de esperança quando os pilares da minha existência — a minha família — me atribuem um preço? Oiço as palavras atormentadas que ecoam na minha mente, questionando: quanto vale uma vida? Tinha eu a crença ingénua de que a minha vida era inestimável, mas segundo os meus próprios progenitores, sacrifícios e valores monetários tornaram-se o preço cobrado pelo meu futuro, pelo meu bem-estar e pelos meus sonhos mais queridos.

Fui ferida duas vezes, e cada ferida carrega um peso insuportável que me acompanha a cada passo que dou. A primeira vez, pela ferocidade de um homem que deveria ser portador de amor e proteção, com idade para ser meu avô, que, na visão de muitos, deveria oferecer mimos e carinho incondicional, mas no meu caso se revelava como o estuprador que despojou minha infância e a inocência que ainda me restava. Em um único momento, ele se tornou o arauto da dor, obliterando a luz que emitia em meu ser e transformando aquele que deveria ser um refúgio seguro num labirinto de terror.

A segunda ferida, mais insidiosa, veio do silêncio cúmplice dos meus próprios pais, que, ao invés de se levantarem em minha defesa, optaram por um acto de traição. Trocaram a dor da minha alma por algumas migalhas, como se o meu sofrimento pudesse ser apagado por uma mesquinha oferta de alimentos e um valor monetário, aceitando essas sobras como se fossem uma desculpa válida. Com isso, negaram não só a gravidade do que havia ocorrido, mas também a chance de eu me sentir válida e protegida. Cada uma dessas feridas tornou-se uma tatuagem invisível em minha alma, um lembrete constante das promessas quebradas e da inocência que nunca mais retornará. 

A dor não se apaga, e a luta para encontrar novos significados em meio a tanto sofrimento é um caminho tortuoso, onde cada dia é uma batalha entre a vontade de renascer e as lembranças que insistem em me manter presa ao passado. Se os avós deveriam ser sinônimo de amor, por que na minha história eles se transformaram em algo tão oposto? Essa dualidade persiste, e sigo à procura de um futuro onde a dor que me foi infligida não defina minha identidade, mas sim a força que sou capaz de reunir para superar.Que esperança pode ainda existir em mim, quando a confiança se desfez nas sombras da traição? O meu coração anseia por uma luz que não chega, enquanto o peso da tristeza me sufoca, como uma neblina densa, impedindo-me de ver o caminho à frente. A vida tornou-se uma tela manchada pelas dores do passado, e só deliro ao imaginar um futuro onde a cor verde da esperança possa, finalmente, renascer.

Este é o relato de uma criança cujos olhos, outrora brilhantes e cheios de esperança, se viram envoltos na escuridão de um pesadelo inimaginável. Nos braços de um homem que deveria ser um protetor, a sua inocência foi despedaçada, deixando uma cicatriz indelével na sua alma ainda delicada. Aquele momento cruel não foi apenas um ataque à sua integridade; foi uma violação da própria essência do ser infantil, um roubo que ecoaria por toda a sua vida.

E quando a criança olhou em busca de amparo, de conforto e de amor nos braços dos seus pais, encontrou-se em vez disso, com a frieza de uma traição que não esperava. O segundo golpe, mais devastador que o primeiro, desferido por aqueles que deviam ser os seus maiores defensores, que deveriam proteger e cuidar, mas que, em vez disso, se tornaram cúmplices silenciosos do acto mais odioso que a vida poderia infligir.

O fardo que estas crianças carregam é insuportável, e é impossível não sentir um profundo desejo de que todos aqueles que destroem os sonhos inocentes, assim como os que olham para o lado e permitem que essas atrocidades aconteçam, fossem eliminados do tecido da sociedade. A injustiça que se perpetrava sob a tutela de quem devia cuidar grita por mudança, pede por justiça, clama por um mundo onde nenhuma criança tenha de sofrer a dor que traz consigo. Que cada um de nós encontre o valor e a coragem para agir, para proteger, e, assim, garantir que a inocência das crianças não seja mais uma vítima das sombras que se escondem entre sorrisos e promessas quebradas.

Muitos podem assumir que a violação sexual se limita ao acto físico, mas, na verdade, essa dor se estende além da mera carne, permeando atitudes e acções que invadem a intimidade de uma forma devastadora. Vejamos o relato de uma jovem maior de idade, cuja vida se tornaria marcada por um trauma inesperado em um dia que deveria ser de celebração.

Era uma tarde radiante de sol, onde as risadas ecoavam e o amor pairava no ar durante a celebração de um matrimônio. Todos estavam felizes, imersos na alegria daquela união, e a jovem, como testemunha do amor, também tentava se deixar levar pela energia contagiante do momento. No entanto, ela nunca imaginou que aquele dia lhe traria uma das experiências mais sombrias e profundas de sua vida.

Durante a sessão de fotografias, enquanto todos posavam com sorrisos luminosos, um senhor, que era parte daquele evento, decidiu cruzar uma linha que não deveria ser ultrapassada. Enquanto se preparavam para capturar aquele instante, ele, de forma intencional e cruel, apalpou as nádegas da jovem. A sua mente levou um momento para processar a invasão, até que, ao se voltar, se deparou com o sorriso insidioso daquele homem, que, mesmo acompanhado da esposa, parecia se regozijar na sua própria impunidade. Ele piscou um olho para ela, como se a sua acção fosse um jogo.

Neste instante, a jovem sentiu-se a pessoa mais suja e envergonhada do mundo. Todo aquele brilho e alegria do casamento se desfizeram como areia entre os dedos. O único desejo que a consumia era o de encontrar um buraco onde pudesse enfiar-se, longe daquela realidade cruel que lhe havia sido imposta. Desde aquele momento até o final da celebração, a jovem que ostentava um sorriso para os outros mergulhou num profundo poço de tristeza, um luto pela sua inocência e segurança. 

Embora ocupasse um papel relevante na cerimônia, a sua única vontade era ir para casa, para se afastar daquele homem que a ferira de tão perto, que transformara um dia de amor em um pesadelo silencioso. Hoje, passados cinco anos, o eco daquilo ainda ressoa dentro dela; as memórias não se apagam, e o impacto daquela acção tão desumana continua a marcar sua vida, refletindo que a violação vai além do corpo, petrificando-se na alma e nos sentimentos. É um lembrete doloroso de que o respeito pelo outro deve ser inegociável, e que cada sorriso escondido pode ocultar cicatrizes que nunca se fecham.

Que essa história chegue aos corações dos que a leem, que desperte a compaixão por aqueles que sofrem em silêncio, e que nos faça a todos mais atentos, mais protetores. Que possamos ser a mudança que queremos ver, lutando para proteger a inocência das crianças e garantir que ninguém tenha que enfrentar a dor que destrói sonhos e arroba a vida. É preciso aprender a ouvir, a acolher e a agir, para que possamos, juntos, construir um mundo onde cada ser possa prosperar em dignidade e amor…!

Estamos em 1992. Sob o sol quente de um dia que parecia carregar em si os ventos da história, eu e a minha mãe empreendemos uma jornada singela, mas carregada de significado. Acompanhávamos o meu primo, um jovem de coração aberto e olhar sorridente, até a vila do Caniçado, em Guijá, na província de Gaza. Era o dia da sua apresentação formal na casa dos pais da namorada, um ritual cultural que tecia os fios da tradição com os da esperança. O caminho, poeirento e sinuoso, parecia sussurrar promessas de união, enquanto o horizonte se desenhava em tons de terra e céu. 

Chegamos, enfim, àquele lar simples, mas erguido com a dignidade de quem sabe acolher. A hospitalidade moçambicana, essa chama que nunca se apaga, envolveu-nos como um abraço. Os cumprimentos dançaram no ar, palavras gentis trocadas como presentes, e as apresentações, feitas com o devido respeito, abriram as portas para o que estava por vir.

O meu primo, em seu momento de solenidade, foi apresentado como o namorado da filha da casa. Tudo transcorreu em harmonia, como se o próprio tempo, em reverência às regras culturais, tivesse pausado para abençoar aquele instante.

Após a cerimónia, o aroma de um almoço generoso invadiu o ambiente. Os pratos fumegantes, os risos que ecoavam como música, e as conversas que se entrelaçavam como rios em busca do mar. Foi então, entre garfadas e memórias partilhadas, que o pai da namorada, um homem de semblante simpático mas olhos curiosos, voltou-se para a minha mãe com uma pergunta simples, quase casual: “E vocês, que língua nacional falam?” A minha mãe, com a serenidade de quem carrega a sua identidade como um tesouro, respondeu: “Somos lomwés da Zambézia, e por isso falamos a língua Lomwé.” O que se seguiu foi um instante de pura magia, um daqueles momentos em que o destino parece rir de contentamento.

Para o nosso espanto, o homem, com um sorriso que desvendava segredos, começou a falar Lomwé com uma fluência que nos deixou boquiabertos. As palavras saíam da sua boca como pássaros livres, voando em direcção à minha mãe, que, surpresa, respondeu na mesma língua. De repente, o quintal daquela casa em Caniçado transformou-se num palco de reencontro improvável. A conversa entre os dois ganhou vida, um diálogo animado que dançava ao som de uma melodia ancestral, enquanto nós, os mais jovens, observávamos, atónitos, o florescer daquela conexão inesperada.

Curiosos, pedimos que ele contasse como viera a dominar tão bem a nossa língua. E ele, com a calma de quem já viveu muitas vidas, abriu as portas do passado. Contou-nos que aprendera o Lomwé em São Tomé e Príncipe, para onde fora levado como deportado, numa época de sombras e exílio. Lá, entre moçambicanos, a saudade da terra natal os unira. Foi nesse chão distante que ele encontrou um amigo moçambicano, um companheiro de alma, com quem fez um pacto simples, mas profundo: ensinar um ao outro as suas línguas maternas. E assim, dia após dia, entre risos e silêncios, trocaram palavras, sons e pedaços das suas raízes. Ele aprendeu o Lomwé, e o amigo, por sua vez, abraçou a língua dele, o Shangana. Um acto de resistência, de amor, de humanidade.

Aquele encontro no Caniçado, que começara como uma formalidade, tornou-se algo maior. A apresentação do meu primo, agora, repousava sobre um alicerce mais forte, banhado pela familiaridade de duas etnias que, por um capricho do destino, partilhavam o mesmo idioma. O que era apenas um namoro ganhou contornos de promessa, de laços que transcendiam o tempo e o espaço. E ali, sob o céu de Gaza, enquanto o sol se despedia lentamente, eu não pude deixar de pensar: o mundo, sim, é redondo. Redondo como as histórias que nos encontram, como os caminhos que se cruzam, como as línguas que, mesmo separadas por rios, montanhas ou mares, acabam por se abraçar.

 

Era uma daquelas tardes abrasadoras que só o interior de Moçambique sabe oferecer. A terra em Funhalouro estava seca, cansada e sedenta, como se o calor fosse eterno. Mas ali, onde o silêncio reina e o horizonte parece intocável, havia mais do que uma vila à espera de água. Havia uma história à espera de ser contada.

Foi neste pequeno canto da província de Inhambane que uma lição de liderança brotou do chão, não pelas mãos da tecnologia, mas pela sabedoria do povo. Tudo começou com uma missão aparentemente simples: abrir furos para trazer água às comunidades locais. A equipa chegou munida de máquinas e convicções, mas esqueceram o essencial – o diálogo.

Cinco tentativas frustradas depois, o responsável pela obra viu-se encurralado entre a terra que se recusava a ceder e a pressão de entregar resultados. Num momento de desespero, o líder da equipe decidiu ligar ao então Governador de Inhambane, Daniel Chapo, talvez na esperança de ouvir uma solução técnica ou, quem sabe, uma autorização para desistir. Mas Chapo, com a calma de quem já enfrentou outras secas – físicas e metafóricas –, ofereceu uma resposta que ninguém esperava.

“Já falaram com a comunidade? Já ouviram o que eles têm a dizer?”

A resposta foi um desconcertante “não”. Afinal, na cabeça de quem está habituado a operar máquinas e consultar mapas, a terra deveria ser dominada pela ciência, e não pela história oral. Chapo insistiu: “Voltem. Sentem-se com as pessoas. Escutem. A sabedoria delas vale mais do que qualquer equipamento.”

E assim foi. Numa roda simples, cercados pela humildade de quem conhece a terra como a palma da mão, a equipa ouviu as vozes que antes ignoraram. Um régulo, com um sorriso que parecia misturar paciência e ironia, resumiu tudo numa frase: “Pensámos que sabiam o que estavam a fazer. Mas já que perguntam, podemos ajudar.”

Guiados pelos conselhos da comunidade, os engenheiros começaram a perfurar onde a população indicava. E, como se a terra quisesse premiar a escuta e a colaboração, cada furo trouxe à superfície a água tão aguardada. A alegria que brotou do chão era apenas igualada pelo alívio de quem, finalmente, foi ouvido.

Mas esta história não é apenas sobre água. É sobre liderança. Sobre o tipo de líder que não se esconde atrás de estatísticas ou teorias, mas que entende que a força de Moçambique está no seu povo.

Daniel Chapo, que hoje preside o país, mostrou, naquele dia em Funhalouro, que a verdadeira liderança não nasce de decisões solitárias, mas da humildade de saber ouvir. E, agora, ao olhar para ele como Presidente, a pergunta que ecoa é: será que manterá essa proximidade? Será que continuará a acreditar que o futuro de Moçambique só pode ser construído de mãos dadas com o povo?

Os moçambicanos querem um presidente que saiba que as máquinas sozinhas não constroem o progresso e que o desenvolvimento só acontece quando se trabalha com as pessoas, e não para elas. Queremos um país onde cada voz conta, onde o agricultor, o pescador e o estudante têm tanto a ensinar quanto o economista ou o engenheiro.

Talvez a maior lição de Funhalouro seja esta: não importa quão avançada seja a tecnologia ou quão bem-intencionadas sejam as políticas. Se o povo não for ouvido, os furos continuarão secos.

Hoje, Daniel Chapo carrega o peso de um país cheio de sonhos e desafios. Mas, como Funhalouro mostrou, a solução não está apenas nas suas mãos. Está nas vozes dos moçambicanos, nas comunidades que, tal como a terra, esperam apenas ser tocadas com respeito e atenção.

Moçambique é uma terra de potencial, mas esse potencial só será realizado quando todos forem incluídos no processo. Como em Funhalouro, o sucesso de Chapo como Presidente não será medido pelo número de projetos concluídos, mas pelo impacto real na vida das pessoas.

A água de Funhalouro não foi apenas um recurso encontrado; foi uma lição aprendida. E que esta lição seja a bússola que guie Moçambique para um futuro mais justo, mais inclusivo e mais humano.

Pois, no final, a verdadeira força de um líder não está em impor soluções, mas em construir pontes para que o povo possa, ele próprio, encontrar as respostas que sempre teve.

Tal como foi em Inhambane, acredito num Daniel Chapo, agora Presidente, mostrando que o verdadeiro sucesso da liderança está em ouvir, em aprender, e em trabalhar lado a lado com o povo. Pois, no final, como ele bem sabe, a verdadeira força de Moçambique não vem das sondas ou dos furos, mas da sabedoria coletiva e da colaboração constante entre governo e cidadãos. 

Esse é o Moçambique que queremos ver crescer.

A precariedade da educação leva-nos a afirmar, muitas vezes de forma simplista, que “há jovens que não falam as suas línguas nativas. Eles são uma vergonha!”. Mas será essa uma análise justa?

Fiz parte de uma geração que cresceu num período em que falar línguas moçambicanas na escola era não apenas desencorajado, mas expressamente proibido e até motivo de insulto e castigos. Para aqueles cuja língua materna era o cinyungwe, aprender qualquer matéria se tornava um desafio gigantesco, pois o ensino era exclusivamente em português. Eu, por outro lado, tive o privilégio de ter o português como língua materna e, por isso, nunca enfrentei barreiras linguísticas na escola. Se não compreendia algo, sabia que a dificuldade não era linguística.

Até há pouco tempo, essa realidade era considerada normal. Afinal, há pessoas que chegaram aos 50 anos sem jamais serem fluentes nas suas línguas nativas.

Poderemos considerá-las neofalantes? Não sei. Para o serem, seria necessário que tivessem abandonado voluntariamente a sua língua materna em prol de outra, atingindo, nessa nova língua, um domínio oral e escrito considerável. Contudo, o que se verifica é que muitos moçambicanos não chegam a ser fluentes nem em português nem nas suas línguas nativas, resultado directo de uma realidade que, por décadas, fragilizou e marginalizou as línguas africanas, retardando sua aceitação, padronização e valorização.

O cenário actual é ainda mais crítico quando compreendemos que essa supressão linguística foi reforçada pela infame “lei do assimilado” do regime colonial português. Esta legislação promovia a ideia de que as línguas africanas eram destituídas de valor e que apenas a proficiência em português permitiria aos moçambicanos alguma vantagem. Ser fluente em português tornava-se um passaporte para determinadas funções no Estado, para a participação em cerimónias oficiais e para a ascensão a uma elite que, muitas vezes sem se dar conta, operava a favor do regime colonial. Até à queda desse regime, as nossas línguas já eram amplamente marginalizadas, consideradas indignas, apelidadas de “línguas de cão”. Essa barreira ideológica demorou a ser quebrada, e apenas nas últimas duas décadas começaram a surgir políticas linguísticas voltadas para a sua valorização.

A necessidade de introduzir as línguas moçambicanas no sistema de ensino tornou-se evidente, mas a forma como esse processo foi conduzido gerou estranheza e resistência. Recordo-me de 2007, quando uma brigada visitou a escola primária onde eu estudava para recrutar alunos interessados em aprender cinyungwe. A adesão foi mínima. Para a maioria, parecia ilógico aprender formalmente uma língua que já falava e, para mim, que só dominava o português, parecia inútil estudar uma língua que a sociedade ainda estigmatizava. Em qualquer dos casos, não se viam vantagens. A falta de uma explicação clara sobre a importância dessa mudança fez com que o projecto fosse recebido com desinteresse e desconfiança. Esse preconceito linguístico persiste até hoje.

O reflexo desse histórico de marginalização é evidente: durante muito tempo, as elevadas taxas de reprovação escolar coincidiram com a alta percentagem de alunos não fluentes em português. Esse factor levou professores a adoptarem estratégias para equilibrar as notas no final do ano, mascarando uma realidade preocupante. Contrastando com essa situação, no período imediatamente após a independência, o saber era valorizado acima da origem ou da idade. Muitos moçambicanos foram nomeados para cargos e funções importantes, pelo conhecimento e experiência que possuíam e, acredito, só depois pelo domínio do português.

A reflexão impõe-se: estaremos, agora, a tentar reverter um processo que não começou connosco? Ou estaremos apenas a tentar sobreviver às cicatrizes de um passado linguístico imposto?

Neofalantismo e a importância do cinyungwe 

Quando cheguei à oitava classe (2008), a restrição de falar as nossas línguas na escola já não era tão rígida. Muitos colegas meus eram fluentes em cinyungwe, e foi então que, por iniciativa própria, decidi começar a falar a minha língua. Esse momento marcou uma mudança significativa na minha relação com o idioma e com a minha identidade cultural.

Durante muito tempo, a escola representou um espaço onde a língua portuguesa era a norma, enquanto as línguas locais eram desincentivadas. Esse fenómeno não é exclusivo de Moçambique; ocorre em diversos contextos onde uma língua oficial, muitas vezes herdada do colonialismo, ocupa uma posição de prestígio em detrimento das línguas indígenas. No entanto, ao ver os meus colegas expressando-se naturalmente em cinyungwe, percebi que havia um espaço para retomar minha língua de herança. 

Não me interessa muito se esse processo de reapropriação da língua pode ser descrito como um caso de neofalantismo, um termo usado para designar aqueles que, apesar de não terem aprendido uma língua desde a infância ou não a terem usado activamente por algum período, passam a adoptá-la como meio de comunicação no dia-a-dia. Para mim, essa transição foi tanto um desafio quanto um acto de resistência. No início, enfrentei dificuldades para encontrar as palavras certas e formular frases com fluidez, mas, com o tempo, fui ganhando confiança e desenvolvendo um sentimento de pertencimento mais profundo.

Falar cinyungwe não era apenas uma questão linguística, mas também uma forma de me reconectar com a minha cultura e com a minha comunidade. Era um reencontro com as histórias, expressões e sabedorias que fazem parte do meu povo. A língua carrega em si a memória colectiva, os valores e a cosmovisão de um grupo, e resgatá-la é um passo essencial para fortalecer a identidade cultural.

Actualmente, as línguas moçambicanas ainda enfrentam desafios no reconhecimento e valorização dentro da sociedade. Embora haja políticas linguísticas que busquem promover o ensino e o uso das línguas locais, ainda há um longo caminho a percorrer para que o cinyungwe e outras línguas moçambicanas tenham o espaço que merecem. Ser um neofalante, nesse contexto, não é apenas uma escolha pessoal, mas um acto político e social. 

Acredito que a valorização das línguas locais deve ser uma missão colectiva. O cinyungwe, assim como o changana, o macua, o sena e tantas outras línguas faladas em Moçambique, são parte fundamental do nosso património cultural. 

Cada vez que escolhemos falar, aprender e ensinar as nossas línguas, estamos contribuindo para a sua preservação e continuidade para as futuras gerações.

O meu percurso como neofalante da minha própria língua foi uma jornada de descoberta e empoderamento. Espero que mais jovens sintam-se encorajados a abraçar as suas línguas maternas e perceber que nelas há uma riqueza inestimável.

A língua não é apenas um meio de comunicação, mas também uma afirmação de quem somos e de onde viemos.

Aura é um conceito com vários significados, considerando os distintos contextos de inserção do termo. Segundo o dicionário Prebiram da internet, a Aura é descrita como um ambiente psicológico que parece envolver ou influenciar algo ou alguém.

A AI inteligência artificial possui uma definição similar, aura é um suposto círculo de luz ou energia que envolve o corpo.

Se a exposição de Maria Chale, patente na Fundação Fernando Leite Couto, denominada “Agente da passiva”, que foi inaugurada no dia 12 de Março de 2025, também for entendida como um “corpo”, podemos, seguramente, dizer que esta exposição também possui uma aura, cabe a cada espectador desvendar a aura da exposição.

O título “Agente da passiva” remete-nos a uma dupla fragilidade humana, a incapacidade de sermos protagonistas de todos os eventos que nos ocorrem, e a dificuldade que temos em admitir que somos criaturas frágeis.

Os rostos da exposição, se metamorfoseiam em rostos vividos no nosso quotidiano, são rostos do mercado, da nossa vizinhança, são rostos do nosso prédio, do nosso bairro, são figuras moçambicanizadas visualmente pelos seus rostos e pelas suas vivências.

Se Maria Chale, durante um plebiscito com as telas e aguarelas, foi passada para “agente da passiva”, com certeza uma aura lhe foi entregue para recriar o quotidiano social em que vivemos em quadros como: o preço do saco subiu, a nova cunhada, a patrulha.

Enfeitiçada pela aura do ofício visual, Maria recriou visualmente as diversas auras que tomam posse de si enquanto uma “agente da passiva” que não pode parar o imprevisto de dar vida às telas.

O quadro Aura X feito com recurso a técnica Aguarela sobre papel, com a dimensão de 20x30cm, criado em 2025, é parte da exposição, Maria Chale com o seu talento, convida o espectador a interpretar as emoções visuais do quadro.

Aura X é um quadro que caracteriza o mistério, o desconhecido, com um fundo branco, apresenta linhas e formas indefinidas, as cores ganham vida sobrepondo-se umas por cima das outras, numa tonalidade ora esverdeada ora enegrecida, a tonalidade escura transmite a ideia de algo errado.

O quadro é intrigante, as cores estão em desarmonia, o espectador é transportado para um lugar de desconforto e meditação, a sensação mais patente do quadro é o inconformismo. Chale provavelmente quis espelhar o estado de um cidadão, ou uma aura rebelde, que segue o seu próprio curso, e pelo caminho encontra vários obstáculos, mas inconformada, vai criando, novos caminhos, novas estradas, representadas através das várias curvas de aguarela na tela, essas curvas são saídas, são processos complexos e trabalhosos até este cidadão ou aura chegar ao topo do quadro, o seu destino final.

Para espectadores com menos sensibilidade visual, o facto de não haverem formas convencionais no quadro, e o único recurso de imaginação ser a palavra aura, que por sinal foi tida em vários quadros, pode originar uma limitação na interpretação do quadro.

Aura X pode ser a personificação do clima de tensão e instabilidade que vivemos em Moçambique, deixando cada cidadão em estado de lamúrias e inconformismo.

Aliás, inconformismo é o que todos precisamos para buscar uma mudança e a paz.

Maria Chale é licenciada em Arquitectura e Planeamento Físico pela Universidade Eduardo Mondlane, segue uma carreira apaixonada, e está actualmente na sua terceira exposição individual.

 

Quando se constituiu o artigo 51 que garante à população o direito ao ajuntamento e

manifestação foi com base na fé racional de que, num Estado Democrático, a opinião e participação do povo são essenciais para que haja uma boa governação no país.

Neste sentido, o direito à manifestação devia ser tido como um veículo democrático concebido para transportar a opinião, o clamor, as inquietações das maiorias ou minorias sobre um determinado fenômeno social até a uma autoridade governamental com objectivo de esta criar um espaço de discussão ou negociação em busca de uma solução eficaz ao problema.

Por isso, não era suposto que as manifestações fossem vistas como um empecilho para a realização e consolidação do Estado Democrático em Moçambique. Pelo contrário, o seu exercício deveria ser tido como um meio fidedigno de captar-se a  real vontade, a sensibilidade e a opinião do povo sobre assuntos importantes para

estabilidade, união e progresso duma nação.

E, quando avaliado o grito dos manifestantes e notar-se a sua pertinência, o governo deveria estar apto a criar um espaço de diálogo com os próprios manifestantes, buscando esclarecer mal-entendidos ou corrigir-se dos seus erros cometidos. Todo e qualquer governo que se põe a ouvir a inquietação do povo e se predispõe a dialogar com ele, consegue claramente encontrar soluções pacíficas e eficazes à altura dos problemas apresentados. A comunicação pode salvar uma nação.

Todavia, uma ideia errônea sobre a importância do direito à manifestação tem norteado mal o regime do dia. De forma prática, o governo moçambicano continua com a perniciosa concepção de que aquele que se manifesta nas ruas assume uma posição inimiga contra o Estado ou mesmo serve de boicote à governação do partido no poder.

Sendo assim, todos os grupos que se fizerem à rua com alguma objecção sócio-política amiúde têm sofrido repreensão violenta da Polícia, uma força legal sob o comando do executivo. Em Moçambique, as manifestações que não registam ocorrências de casos de violência policial são aquelas que normalmente louvam algum feito do governo. E, curiosamente, têm sido manifestações lideradas pelos grupos pró-governo como OJM, OMM, CNJ e outras filiações do partido no poder.

Esta clara descriminação reforça a impressão duma postura antidemocrática do governo quando se trata de respeitar as práticas civis previstas na constituição. Deste modo, servindo-se da política de violência policial contra as manifestações pacíficas, o governo fecha a esfera pública, proibindo assim o exercício da liberdade de expressão colectiva tanto às maiorias como às minorias na nossa sociedade.

 

Não havendo aceitação política de os grupos sociais participarem, ainda que de forma pacífica, na esfera pública, automaticamente, o governo impede-lhes o direito de serem ouvidos e a possibilidade de terem os seus problemas ou inquietações resolvidos por ele próprio. Esta postura de ignorar as reivindicações daqueles que marcham, protestam traduz fielmente uma política do silêncio de um regime ditatorial.

Ante este comportamento antidemocrático de uso excessivo da força policial e indiferença do governo às reais inquietações dos protestantes, que alternativas restam a este povo oprimido e ignorado?

Não resta outra alternativa conveniente às massas senão responder à ditadura com as versões da mesma moeda: violência, vandalismo, desobediência, insurreição. O líder socialista venezuelano, Hugo Chávez, já havia constatado essa eventual reacção de um povo farto de ditadura, quando sentenciou:

“Los que le cierram el camino a la revolución pacífica, le abren al miesmo tiempo el camino a la revolución violenta” (Trad.: aqueles que impedem o caminho para revolução (manifestação) pacífica, abrem, ao mesmo tempo, o caminho à revolução violenta.)

Em Moçambique, tal caminho para acções populares violentas ficou aberto, como consequência de um longo período de repreensão violenta a manifestações pacíficas que reivindicavam a verdade eleitoral, salários atrasados, raptos dos empregadores, má governação e alto custo de vida.

Quando se proíbe que um povo manifeste a sua indignação na rua, de forma pacífica e ordeira, o mesmo povo acaba vendo-se obrigado a recorrer à destruição como uma forma legítima de obter atenção suprema ou criar a pressão sobre o seu governo no desespero de que os seus problemas não sejam mais ignorados. Sendo assim, barricar as vias públicas, queimar pneus, pilhar e destruir as instituições públicas, incluindo propriedades privadas, passa a ser o seu novo modus operandi acompanhado de desobediência civil e, às vezes, de assassinatos dos supostos apoiantes ou defensores do regime.

Este comportamento popular, embora bárbaro e censurável, é de fácil compreensão,

pois é um comportamento que até se observa em relações interpessoais. Quando, por exemplo, um credor lhe é devido o seu dinheiro pelo caloteiro, e ele usa meios pacíficos para reaver o seu valor, mas é ignorado, evitado e, às vezes, humilhado, o que acontece é que este credor se acaba vendo na obrigação de mudar de método de cobrança da sua dívida. E, muitas vezes, o meio de pressão que ele encontra acaba envolvendo ultimatos, pancadarias e apreensão de bens. Reitero: a violência é um meio que se deve censurar e desencorajar, entretanto, a melhor maneira de dissuadi-la é abrir canais de diálogo e liberdade de expressão. Sem essas condições, as massas tenderão sempre a recorrer ao caos para impor a sua vontade ou obrigar que a sua reclamação seja ouvida e acautelada pelas autoridades, a qualquer custo.

Em suma, é a falta de abertura a um diálogo responsável e o uso excessivo da força

policial que obrigou o povo a recorrer a manifestações violentas e desobediência civil como meio de expressão. Se o povo chega a desobedecer ou violentar um polícia, é que predominou nele a sensação de que esta autoridade não está mais a servir os interesses do Estado para os quais foi consagrada, mas os interesses particulares do regime. Se o povo chega a queimar tribunais e sedes do partido, é porque provavelmente teve a percepção que estas instituições são lhe corruptas e manipuladoras.

Para os males presentes de vandalismo e desobediência que se ameaçam deteriorar em anarquia absoluta ou guerra civil, não há outro remédio mais eficaz que abertura a um diálogo comprometido com mudanças necessárias capazes de tornar as instituições públicas autônomas e credíveis. As sementes da insurreição popular, em Moçambique, já foram lançadas, desde as eleições turbulentas de 2024, e não há que as impedir de germinar com uso de mais violência estatal, isso seria mesmo que as regar e adubar.

Em tempos de ódio, apenas o diálogo e compromisso com a mudança podem impedir a derrocada de uma nação. Delongar o processo de reconciliação nacional assemelha-se a deixar a tuberculose propagar-se por mais tempo no nosso organismo. Quanto mais tarde a doença for tratada, mais penosa e difícil será a sua cura, como disse Nicolau Maquiavel.

O caminho para paz não passa por perseguir aqueles que  estão no lado oposto ou contrário do regime, mas corrigir as razões que os levaram a passar para o outro lado, tal como apelou o artista moçambicano, Azagaia, “mude a causa para mudar a consequência” (in Povo no Poder).

 

A história de um país não se escreve apenas com factos, mas também com silêncios. Há episódios que são meticulosamente arquivados, distorcidos ou simplesmente apagados. Em Moçambique, a memória colectiva ergue-se nesse equilíbrio frágil entre o que se revela e o que se omite. Chave de Areia, de Bento Baloi, inscreve-se nesse território instável, onde a busca pela verdade se choca com relatos dispersos e identidades voláteis.

O romance não apenas revisita um dos episódios mais enigmáticos da história moçambicana — o desastre de Mbuzini —, como também entrelaça essa tragédia nacional aos estilhaços de uma família consumida por traições, segredos e revelações inesperadas.

A obra opera em múltiplos níveis: há uma investigação sobre a morte de Samora Machel, onde política e conspiração se entrecruzam; um drama íntimo, tecido pelo triângulo amoroso entre Márcia, Roberto e Chirindza; e uma jornada identitária, conduzida por Dambu, um jovem que se vê confrontado com a instabilidade de suas origens.

Essas camadas não são independentes — o pessoal e o político se fundem a tal ponto que a pergunta que se impõe não é apenas “o que realmente aconteceu?” mas também, “o que significa ser moçambicano quando a própria memória do país é uma disputa?”.

A morte de Samora Machel, em Mbuzini, permanece como um mistério envolto em versões contraditórias. Bento Baloi não busca fornecer respostas definitivas, mas insere essa tragédia no centro da narrativa, transformando-a em um espelho para reflectir outras formas de silenciamento e distorção da verdade.

O romance não se limita a reconstruir os acontecimentos históricos. Ele os coloca em tensão com personagens que também vivem cercados por verdades provisórias e lembranças que se desmancham ao toque. O autor conduz o leitor por documentos, relatos e investigações, tornando a obra um exercício de memória colectiva.

No entanto, essa sobrecarga informativa, por vezes, atrasa a fluidez da história, exigindo um leitor atento. Ainda assim, essa escolha estilística reforça a ideia de que compreender o passado — seja nacional ou pessoal — exige esforço, paciência e persistência.

 

No plano íntimo, o romance desvela relações corroídas pelo tempo e pelas circunstâncias.

 

Márcia, investigadora do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, não carrega apenas documentos e pesquisas — traz consigo os escombros de uma vida permeada por escolhas difíceis. Chirindza, seu antigo amor, partiu para estudar no exterior e, ao regressar, encontrou-a casada com Roberto, seu grande amigo. Esse reencontro não só é um choque emocional, como também uma metáfora para um país onde as ausências nunca deixam o espaço vazio por muito tempo, ou seja, “nós sempre deixamos alguma coisa para trás. Não podemos evitar. Isso é o que nos define” ( In: A Insustentável leveza do ser, de Milan Kundera).

O conflito entre Chirindza e Roberto não se limita à disputa amorosa. É um embate onde ninguém sai ileso.

Para Dambu, que sempre acreditou pertencer àquela história, a revelação de que não é filho biológico de Márcia desmorona as suas certezas. Sua identidade, que parecia tão bem definida, revela-se frágil, quase ilusória. O que resta quando tudo aquilo que nos definia se dissolve?

O título da obra não é um detalhe arbitrário. Chave de Areia sugere uma metáfora: a chave, símbolo de acesso ao conhecimento, à verdade e à identidade, se desfaz antes mesmo de cumprir a sua função. Como a areia que escapa entre os dedos, a História de Moçambique, as memórias familiares e as certezas de Dambu se fragmentam à medida que ele avança em sua busca.

Bento Baloi constrói um romance que desafia o leitor a questionar para além do passado oficial do país, também as narrativas que sustentam nossas próprias existências. Há momentos em que a densidade da trama exige esforço, mas esse é o preço de uma obra que se recusa a oferecer respostas simplistas.

E, no fim, o livro nos deixa uma inquietação: é possível construir uma identidade sobre alicerces movediços? Se a história de um país se faz tanto do que se conta quanto do que se cala, onde está, afinal, a verdade?

Talvez ela resida menos nas respostas e mais nas perguntas que ousamos fazer, nas memórias que recusamos enterrar. Porque compreender Moçambique – e a nós mesmos – exige encarar o que se dissolve, se distorce e se reconstrói. E, acima de tudo, exige a consciência de que a luta não termina na última página. Como dizia Samora Machel, “a luta continua!”.

 

Ancorando novas coordenadas, traçando novos planos, as duas sessões anuais (Assembleia Popular Nacional e Conferência Consultiva Política do Povo Chinês) da China, que acabaram de ter lugar em Beijing, semeam a confiança na modernização ao estilo chinês e iluminam uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade.

Navio económico gigantesco navega pelas ondas e ventos.

Em 2024, o Produto Interno Bruto da China alcançou 134,9 trilhões de yuans, com um crescimento de 5% em relação ao ano anterior. A produção de cereais atingiu pela primeira vez 700 mil milhões de quilogramas. Foram criados 12,56 milhões de novos postos de trabalho urbanos. A produção anual de veículos de nova energia superou as 13 milhões de unidades. Os dados encorajadores apresentados no relatório do governo central mostrou ao mundo a força e vitalidade extraordinária da

economia chinesa. O desenvolvimento económico da China é sólido e repleto de vantagens. A China é o único país com todas as categorias industriais definidas pela ONU e os valores agregados da manufatura chinesa têm ocupado o primeiro lugar

do mundo por 14 anos consecutivos. A resiliência e o potencial do desenvolvimento económico da China são fortes. A taxa de contribuição chinesa para o crescimento económico global mantém-se em torno de 30%. O vasto mercado continua a oferecer dividendos de desenvolvimento para o mundo.

O ano corrente marca o final do 14º plano quinquenal da China e o início do planeamento do 15º plano quinquenal. A China continuará a impulsionar um maior aprofundamento integral da reforma, promovendo a construção de um grande país e o empreendimento da revitalização nacional por meio da modernização chinesa. Ao mesmo tempo, continuará a trazer mais oportunidades para a recuperação e crescimento da economia mundial.

Diplomacia de grande potência é vanguarda beneficiando o mundo.

Atualmente, a situação internacional está cheia de mudanças e desafios, com conflitos geopolíticos escalados. Os fenômenos do “desacoplamento e fragmentação das cadeias industriais e de abastecimento”, “pequenos pátios com vedações altas” e “cortinas de ferro tarifárias”; tornam-se cada vez mais evidentes.

Diante de desafios globais constantemente emergentes, a China adere a um verdadeiro multilateralismo e defende o conceito de governação global baseado na consulta, construção e partilha conjuntas. Honramos os compromissos do Acordo de Paris e construímos o maior sistema de produção de energia limpa do mundo. A China é o primeiro país do mundo a classificar oficialmente as substâncias relacionadas com o fentanil como uma classe, dando um contributo notável para a causa internacional da luta contra a droga. Insistimos numa cooperação económica e comercial mutuamente benéfica, opomo-nos às guerras tarifárias e comerciais que prejudicam os outros e a si próprio, e rejeitamos a politização e a instrumentalização das questões económicas e comerciais. A China propôs e implementou três iniciativas globais, e atualmente 82 países fazem parte do “Grupo de Amigos da Iniciativa Global de Desenvolvimento”, enquanto 119 países e organizações internacionais apoiam a Iniciativa Global de Segurança. A 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU aprovou por unânime a resolução sobre o Estabelecimento do Dia Internacional para o Diálogo entre Civilizações, proposta pela China.

O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e a vitória da Guerra Antifascista Mundial. A China é um dos fundadores e beneficiários da ordem internacional pós-WW II e também é um dos principais defensores e construtores dessa ordem. A China vai ficar firmemente ao lado correto da história e do progresso humano, defender a autoridade e o estatuto da ONU e opor-se ao hegemonismo, à política de poder, a todas as formas de unilateralismo e protecionismo, salvaguardando a justiça e a equidade internacionais e oferecendo mais fatores de certeza para um mundo incerto com a estabilidade da China.

Cooperação China-África atravessa montanhas e mares para abrir uma nova viagem. 

A China e a África são amigas, parceiras e irmãos verdadeiros que compartilham o mesmo futuro. Sob a liderança do presidente Xi Jinping e dos líderes africanos, as relações China-África abraça o melhor período na sua história, elevadas para uma comunidade com futuro compartilhado China-África de todos os tempos na nova era. A Ferrovia Tanzânia–Zâmbia, a Ferrovia Mombasa-Nairobi e a Ferrovia Addis Abeba–Djibuti, são exemplos da amizade China-África que liga o caminho da felicidade. O cultivo de arroz, a tecnologia de fungos e o atelier Lu Ban, são exemplo da cooperação China-África que entoa a canção da prosperidade.

O ano corrente marca o 25º aniversário da fundação do FOCAC e o 50º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas China-Moçambique. A China está disposta a trabalhar em conjunto com Moçambique para impulsionar a implementação das seis principais propostas de modernização e das dez ações de parceria, de forma a promover a modernização conjunta China-África. A China está disposta a fortalecer os intercâmbios de experiências da governança, implementar o tratamento de taxas alfandegárias zero a 100 por cento dos produtos de Moçambique e outras medidas preferenciais, expandir as oportunidades de cooperação nas áreas tais como economia digital e desenvolvimento verde, a fim de criar mais benefícios tangíveis para os povos dos dois países, escrevendo um novo

capítulo da amizade tradicional sino-moçambicana e injetando uma nova força para o desenvolvimento acelerado do Sul Global.

O labirinto de estradas em Massinga, pontuada por poeira e o cheiro da terra quente, levou-me ao Centro de Apoio a Idosos, um espaço simples, mas impregnado de histórias que, muitas vezes, preferíamos não ouvir. Foi lá que conheci Joaquina, uma mulher de 72 anos, pele enrugada pelo tempo e olhar vazio, mas com uma história tão pesada que me sufocou enquanto ela falava.

Sentada numa cadeira de madeira, com um lenço amarrado na cabeça, Joaquina contou-me sobre os dias mais sombrios da sua vida. “O meu filho tentou matar-me, senhor jornalista. Ele dizia que eu era uma feiticeira, que eu tinha amaldiçoado a sua vida. Mas eu sou apenas uma mãe…” A voz dela tremia, e os olhos, húmidos, carregavam uma mistura de dor e vergonha.

Joaquina teve quatro filhos, mas apenas um sobrevivia. Esse filho, que em tempos foi o centro do seu mundo, trabalhava na África do Sul, onde procurava o sustento que nunca chegou. Segundo ele, as suas constantes desgraças eram culpa da mãe. “Dizia que eu era a razão pela qual ele não prosperava, que eu o tinha enfeitiçado para não ter sorte no trabalho nem em nada.”

No princípio, as palavras eram cortantes, mas ainda suportáveis. “Chamava-me coisas feias… dizia que eu era má, que devia morrer. Eu fingia que não ouvia, mas, por dentro, doía tanto.” A violência psicológica deu lugar à física. Joaquina relatou que, quando o filho voltava de madrugada, embriagado, obrigava-a a ficar de pé durante horas enquanto ele a insultava. “Uma vez, ele atirou-me um prato cheio de comida à cara e disse: ‘Não precisas disto, feiticeira!’ Depois disso, parou de me dar de comer.”

O ponto mais baixo chegou numa noite fria. Após uma consulta com um curandeiro, o filho voltou com um olhar de ódio que Joaquina nunca tinha visto antes. “Disse-me que o curandeiro tinha-lhe explicado tudo: que eu tinha lançado feitiços para ele não arranjar mulher, para ele ter disfunção sexual e não sair de casa. Disse que eu queria controlá-lo para sempre.”

Foi nessa noite que ele tentou matá-la. “Agarrou numa faca e veio para cima de mim. Se não fosse o vizinho que ouviu os meus gritos, eu não estaria aqui para contar esta história.” Joaquina foi levada para o centro por esses vizinhos, mas o trauma ficou para sempre. Ela chora à noite, perguntando a Deus onde errou como mãe.

Enquanto ouvia Joaquina, sentia-me esmagado por uma questão: como pode alguém tentar matar a mulher que lhe deu a vida? Não é apenas a história de Joaquina. A província de Inhambane está repleta de casos semelhantes. Muitos idosos são acusados de feitiçaria pelos próprios filhos, netos ou vizinhos, com base em crenças alimentadas por curandeiros que agem como juízes e carrascos.

Esses curandeiros, que deveriam ser guardiões das nossas tradições, muitas vezes são catalisadores de tragédias. Como é possível que, em pleno século XXI, pessoas recorram a tais práticas para justificar fracassos pessoais? Por que é mais fácil culpar os pais do que assumir responsabilidades? Joaquina não é uma feiticeira. É uma mãe que amamentou, criou, chorou e lutou pelo filho. Mas, no final, tornou-se vítima dele.

Enquanto deixava o centro, a pergunta ecoava na minha mente: quando perdemos a nossa humanidade? Os filhos, que deveriam proteger os pais, agora são os algozes. A tradição, que deveria ser um pilar de união e respeito, tornou-se uma arma letal nas mãos de quem não entende o seu verdadeiro valor.

E quanto aos curandeiros? Não têm responsabilidade alguma neste ciclo de violência? Até que ponto eles contribuem para a construção de uma sociedade mais justa? Não deveriam ser educadores do amor e do respeito ao próximo, em vez de perpetuarem o ódio e a destruição de laços familiares?

Joaquina é apenas uma entre milhares. A violência contra os idosos é uma ferida aberta que denuncia o nosso fracasso enquanto sociedade. Somos um povo que canta o amor, mas que o mata em silêncio nas casas de Massinga, Vilankulo ou Morrumbene.

Ao regressar, as palavras de Joaquina ecoavam na minha mente: “Eu só queria que ele me chamasse de mãe outra vez.” E eu pergunto a cada um de nós: onde está o amor que juramos às nossas mães e pais quando eles nos carregavam no colo? Quando perdemos a capacidade de os ver como os seres que mais nos amaram?

Talvez ainda haja tempo para nos reencontrarmos com a humanidade perdida. Porque, no fim, o que resta é a pergunta que Joaquina nunca deixou de se fazer: “Mãe, não me mates mais.” Mas quem, realmente, matou quem?

Já é sobejamente conhecida a ideia de que a crítica literária pode ser tomada de determinada forma em função do espaço em que circula, dos objectivos que condicionam a sua produção, bem como dos mecanismos discursivos que a sustentam.

Vem daí a ideia de se distinguir a crítica literária jornalística da académica. Há, actualmente, uma crescente tendência de se prestar certa atenção à crítica literária que é feita em meios “contra-hegemónicos” (blogs, vlogs, redes de chat, etc.), mas, de uma ou de outra forma, esses
são, para mim, espaços de divulgação. Não vejo outra característica particular de textos que surgem nesses meios. Casos há em que um texto crítico publicado em tais meios é eminentemente jornalístico e, noutros casos, não poucos, é um texto académico.

Há, contudo, uma crescente apropriação do género crónica argumentativa/de opinião no domínio da crítica literária feita nesses meios. Tal apropriação não se resume a criadores de conteúdos de crítica literária, mas a vários intelectuais de diversas áreas que, pelo meio em que pretendem fazer circular o texto, despem-se das suas amarras académicas e dão ao texto um ar mais leve.

Mais agradável. Engraçado, porém profundo. Já agora, foi com esse propósito que surgiu a coluna “tasaver”.

Ainda que neste último caso e no da crítica jornalística haja um interesse de tornar o texto leve e menos “picante”, há sempre reacções crispadas. Defensivas. Agressivas, às vezes. É interessante quando tais reacções culminam em troca de cartas nos jornais ou em notas de esclarecimentos nos mesmos meios em que a crítica circulou. É até um exercício elegante.

Não penso que isto ocorra por acaso. Nem por causa de quem criticou ou por causa do criticado.

O facto é simples e claro: a crítica dói, meus senhores. Mas, muitas vezes, representa o choque de realidade de que precisamos. É essa consciência que faz com que doa menos e fiquemos gratos quando nos é dirigida nos meios jornalísticos tradicionais ou nos digitais (contra-
hegemónicos).

Curiosamente, esta é a crítica a que os autores têm acesso, porque circula. Gera debate. Promove a obra, mas também pode desacreditá-la.

Enquanto isso, a crítica académica anda ali como a dama intocável da zona. Que deseja alguns rapazes mas não se quer dirigir a eles. Vive fazendo comentários em surdina e quando um dos jovens (por si admirado ou não) se aproxima, finge que “não está nem aí”. É assim a academia. É assim a indústria cultural. É assim a sociedade. Todas essas são instâncias de poder. Onde há poder, há hipocrisia.

Comparando o que se produz, do ponto de vista crítico, no jornalismo, nos meios digitais e na academia, seria interessante que os escritores lessem géneros académicos produzidos sobre os seus livros. Na sua maioria, são textos ancorados a uma crítica de fundamentação. Uma crítica que “produz” uma teoria e procura fundamentá-la com base em excertos da obra ou na sua macro/micro-estrutura.

Mas nisso não há, apesar de me parecer um exercício um tanto quanto gasto pela perspectiva em que é tomado. Muitas vezes é feito de fora para dentro e não de dentro para fora, o que, quanto a mim, seria um pouco mais interessante.

Nesse exercício feito de fora para dentro. Dito de outra forma, da teoria para a fundamentação no texto, há um processo contínuo e cansativo de sacralização do texto e, outro pecado maior, o de endeusamento do autor empírico como se este e o autor textual fossem a mesma instância.

Seria interessante que os escritores lessem géneros académicos produzidos sobre os seus livros.

São textos muito elogiosos. Capazes de dizer o que nem o autor pensou quando escreveu tal texto. Nada vejo contra tal exercício: afinal a leitura interactiva dá espaço para esse mágico acontecimento: o texto terá diversas interpretações cada vez que passa pela igual diversidade de
leitores. É justo. Mas, cá entre nós, há exageros. Fazemos interpretações forçadas. Nesse movimento “de fora para dentro” há teorias que não encontram, na obra, um terreno fértil para ganhar vida, mas nós damos sempre um “empurrãozinho”. Um adubo acrescido. Uma rega aqui e
acolá, e zás, surge o título da crítica académica: “a manifestação de [FENÓMENO] em [TÍTULO DO LIVRO] de [AUTOR]” com argumentos totalmente “martelados”.

São estes “martelanços” que me fazem pensar no quão interessante seria se os autores tivessem acesso aos textos produzidos no meio académico sobre a sua produção literária à semelhança dos que são produzidos noutros meios e que geram reacções crispadas, pelo que surgem algumas perguntas de base:

1. Haveria igual reacção, mesmo não concordando com o que é dito?
2. Haveria interesse em interagir com o autor do texto crítico para entender melhor a sua
perspectiva?
3. Haveria um retorno ao exercício oficinal para aprimorar certos aspectos que possam ter
gerado a eventual “desorientação” do leitor crítico?
4. Haveria uma carta ao júri de defesa, se tiver sido um trabalho de culminação de curso?
5. Haveria uma carta ao editor da revista, se tiver sido um artigo publicado numa revista
científica?

Enfim! São muitas perguntas, para uma só resposta: seria interessante!

A graça disso não estaria no prazer de ver uma potencial “guerra de titãs” mas na movimentação do “sistema literário” que isso iria representar. Não seria novidade: há casos relatados em outras latitudes em que certos autores fizeram a carreira inteira de costas viradas
com um certo crítico ou um conjunto deles e as partes seguiram tranquilamente as suas vidas e continuaram a exercer o seu papel com consciência do que estavam a fazer…afinal, nem o autor nem o crítico são semideuses avessos ao contraditório. O fim máximo dessa divergência de perspectivas/opiniões/escolhas estéticas não foi sobre quem ganhou e quem perdeu, mas sobre a importância que isso teve para a manutenção do sistema literário que se estava a construir.

Em síntese, se quisermos um sistema sério e estivermos comprometidos com isso, precisamos de ultrapassar as “guerras das comadres”, “as lutas de almofadas”, “as doxas de bar e dos grupos de chat” e assumirmos um compromisso sério com a “sarna” que escolhemos para nos coçar: a escrita e publicação de livros.

A melodia fez-se ouvir como um suspense. Durante três, quatro, cinco minutos, os batimentos cardíacos do público aceleraram, ora acompanhando o ritmo da música que se anunciava, ora confrontando a razão e a emoção.

Na Sala Grande do Franco, os ponteiros do relógio marcavam 20h09. Mas, sem que ninguém se importasse pela hora, jovens e adultos de todas as idades adivinhavam, em surdina, o momento exacto em que a banda subiria ao palco.  Em quatro actos, tudo aconteceu ao seu ritmo. Rui Soeiro (baixista), Paulo Chibanga (bateria), Tiago Correia-Paulo (guitarra) e Pedro da Silva Pinto (vocalista)… Todos recebidos com efusivas salvas de palmas. Quer dos que já tinham visto o quarteto actuar há milhões de anos, quer dos que, pela primeira vez, tinham pela frente algo aparentemente improvável ou inusitado.

Como se se preparassem para a luta, os 340ml tocaram “Shotgun”, um tema de há duas décadas, mas que ainda soa novo neste mundo que inventa espingardas de todos os feitios. Essa foi uma introdução mesmo curta para o que vinha; como se o tempo nunca tivesse passado, afinal a última actuação oficial da banda foi numa digressão na África do Sul, eSwatini e Moçambique, em Agosto de 2012, os quatro rapazes concretizaram velhas sintonias num palco que teve a honra de os receber no primeiro de dois concertos agendados. Como se ainda tivessem alguma coisa a provar, interpretaram “Hang on to yourself (Rachel)”, numa espécie de invocação da saudade. Talvez, por isso, o público andou breves minutos perdido na busca de um lugar na história da banda. Nesses 7 ou 10 minutos, apesar de raros ataques de excitação, na Sala Grande ainda se podia manter a compostura. No entanto, mal soou “Midnight”, o mais clássico som dos 340, o Franco quase entrou em ebulição. Sol de pouca dura. A intro tinha sido programada para justamente aquecer os ânimos e (re)alimentar uma expectativa que já era alta.

Todos de pé ouviram os acordes de “Michelle”, mas não a Obama, entre sorrisos de uma expectativa propositadamente adiada. Foi nesse momento que, entre o público, se ouviu o editor da Kulera perguntar:

– Assim já começaste a escrever?

À pergunta de Emílio Cossa, instantes depois reforçada pelo artista visual João Roxo, o jornalista não respondeu. Até porque não se escreve na exacta proporção o que se sente em determinados concertos. Todavia, alguém queria porque queria que o jornalista registasse algumas linhas no bloco de notas. Então, de forma providencial, um câmara man foi usado pelo destino sem que se desse conta disso. Ingénuo, apareceu mesmo rente ao palco para fazer a melhor filmagem do mundo, e, como se dissesse: “Já que não queres escrever, então leia…”, virou as costas ao público e as palavras tornaram-se inteligíveis: back to the future.

Não fosse aquele um tão esperado concerto dos 340, aquela conjugação de letras inglesas passariam despercebidas. Mas o back to the future, com letras garrafais, pareciam prenunciar a ligação de um hiato que, finalmente, levaria a banda a uma dimensão ulterior. Por isso, quando, ao fim de meia hora, Pedro da Silva Pinto referiu que o concerto estava inserido nas celebrações dos 30 anos do Centro Cultural Franco-Moçambicano, de facto, no instante a seguir, pareceu que o sentido de futuro, entre os elementos da banda, estava garantido. Sobretudo quando Tiago Correia-Paulo fez o seguinte convite:

– Vamos tentar tocar uma música nova?

– Não sei. – Gracejou o Pedro.

Nesse curto diálogo, a ideia que pairou no ar foi a de que os 340ml estavam de “regresso” a uma nova era, na qual, seguramente, iriam gravar o tão adiado terceiro álbum. Entretanto, logo a seguir, compreendeu-se que a questão sobre música nova era apenas retórica. Baixando a linguagem, era papo furado, uma vez mais, para a banda manipular a expectativa do público. Portanto, tocaram “Regents park” na profundidade experimental de quem compõe cada nota musical no palco, e como se a existência e a música fossem sinónimos. Aí o público sentou-se um pouco. Recarregou as energias para o que vinha e ainda deu-se ao gosto de pensar em voz alta:

– Esse Pedro canta muito!

A afirmação daquela jovem mulher soou mais do que um sussurro no ouvido, foi qualquer coisa como abrir um botão da blusa de linho, branca e fresca, com os lábios por humedecer e os olhos esbugalhados de fervor. Mas o namorado da formosa mulher, qual Taylor Swift moçambicana, também embalado na sonoridade de sons como “Make it happen”, não compreendeu o alcance da repetida afirmação, “Esse Pedro canta muito!”, e ainda bem! De outro modo, nem mesmo o jornalista saberia como teria sido o “welanço” entre ele e o artista. 

Ainda sentados, muitos entre abraços e goles de cerveja, ouviu-se “The untitled song”, numa espécie de antídoto para todos os problemas que afectam o corpo e alma. Alguns puderam cantar e levitar, sem se interessarem com o relógio, inclusivamente, quando o quarteto interpretou “21:40”. Os mais atentos, apreciaram ainda os bons momentos de improvisação da banda, unindo uma sintonia espontânea e agradável a uma oportuna interacção com o auditório.   

De repente, “Friday night and I’m all alone”. Pura mentira! A noite não era de sexta-feira e os 340ml não estavam sozinhos. Ainda assim, o público, bando de distraídos, levantou-se aos saltos como se fosse a única coisa sensata a fazer, como se fosse “Meia-noite”, como se despertasse da realidade para um sonho, como se desse um grito de liberdade, como se celebrasse o passado e o por vir. Excitação absoluta, sincera e selvagem. 

A banda que iniciou o seu percurso musical em Maio de 2000, que lançou o álbum Moving, em 2003, e Sorry for the delay, em 2008, experimentou a paixão de se doar para os outros. 

– Pedro, entrega! – Tiago Correia-Paulo disse isso um par de vezes. Porém, a entrega foi de todos. Cada um do seu jeito, pôs o seu instrumento a vibrar mais forte do que podia, dando à guitarra, ao baixo e à bateria particularidades que pareciam inalcançáveis. 

– “Midnight” é a cena! – Disse Emílio Cossa, o editor. 

E quando, a certa altura da interpretação, Pedro da Silva Pinto cantou:

– You’re the one I’m adoring at the midnight drive-in. Ttraduzindo para português, qualquer coisa como “Você é quem eu estou adorando…”, aquela bela mulher concluiu que os versos eram para ela. Sem prestar muita atenção ao que sobrava do verso, abriu todos os botões da blusa, marca Zara, e pareceu estar a preparar-se para o que nunca ficou claro. Então tirou os óculos cor de rosa, afinal sem lentes, e conservou-os numa pequena Louis Vuitton castanha. Já com um teor de álcool amais no sangue, o namorado, qual Dr. Teodoro Madureira de Dona Flor e seus dois maridos, continuou entregue à sua sorte, feliz por ver a sua flor realizada aos abraços imaginados com um certo rapaz no palco.  

“Midnight” foi necessariamente a cena! Quando o tema acabou, houve quem pensou que o concerto tinha chegado ao fim. Percebeu-se logo que “Radio 75” era imprescindível. Há uns anos, a banda poderia ter interpretado o tema com a mesma amabilidade num perspectivado concerto de celebração dos 20 anos do álbum de estreia, Moving. A COVID-19 tramou a pretensão e a coisa ficou na vontade. 

Felizmente, a pandemia passou e uma empresa sul-africana, há séculos fã da banda, contactou os rapazes para realizarem concertos na Djoni. Porque os fãs moçambicanos há muito pediam um concerto em Maputo, os 340ml perceberam que não fazia sentido ignorar os seus conterrâneos. Com o Franco, encontraram uma data: 14 de Março de 2025. As vendas dos acessos ao show, entretanto, esgotaram (online), antes mesmo de o Franco receber os bilhetes impressos. Conclusão? Muita gente queria os ver. Solução? Uma nova data. Assim, como brincou a comunicação do Franco, “os últimos foram os primeiros”, uma vez que a data encontrada para o “concerto extra” foi 13 de Março. Assim, os 340ml agendaram quatro dias consecutivos de concertos: quinta e sexta-feira, em Maputo, e sábado e Domingo, em Joanesburgo e Cape Town, respectivamente. 

“Moodswing” e “Australopithecus” foram outros temas tocados. “Fairy tales” ficou para o fim. Entre uma e outra música, já em jeito de despedida, Paulo Chibanga foi o grande protagonista de uma “improvisação” muito engraçada. Imagine-se, o baterista com boas cordas vocais, enquanto tocava vivamente  o seu instrumento, “brincou de cantar” uns versos de “Empoderada errada”. A malta ouviu “txilar com cota” e sorriu divertido. 

O concerto de hora e meia estava evidentemente a chegar ao fim, mas Paulo Chibanga ainda deixou a bateria por instantes para abraçar a filha Imani, que, aos 10 anos de idade, mesmo a condizer com o significado do seu nome swahili, tem Fé de que será uma cantora. Foi a primeira vez que viu o pai actuar. Sentiu-se orgulhosa e garante que vai guardar a experiência como uma luz que sempre se acende à meia-noite.  

Por: Wang Hejun, Embaixador da China em Moçambique

Ancorando novas coordenadas, traçando novos planos, as duas sessões anuais (Assembleia Popular Nacional e Conferência Consultiva Política do Povo Chinês) da China, que acabaram de ter lugar em Beijing, semeam a confiança na modernização ao estilo chinês e iluminam uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade.

Navio económico gigantesco navega pelas ondas e ventos.

Em 2024, o Produto Interno Bruto da China alcançou 134,9 trilhões de yuans, com um crescimento de 5% em relação ao ano anterior. A produção de cereais atingiu pela primeira vez 700 mil milhões de quilogramas. Foram criados 12,56 milhões de novos postos de trabalho urbanos. A produção anual de veículos de nova energia superou as 13 milhões de unidades. Os dados encorajadores apresentados no relatório do governo central mostrou ao mundo a força e vitalidade extraordinária da economia chinesa. O desenvolvimento económico da China é sólido e repleto de vantagens. A China é o único país com todas as categorias industriais definidas pela ONU e os valores agregados da manufatura chinesa têm ocupado o primeiro lugar do mundo por 14 anos consecutivos. A resiliência e o potencial do desenvolvimento económico da China são fortes. A taxa de contribuição chinesa para o crescimento económico global mantém-se em torno de 30%. O vasto mercado continua a oferecer dividendos de desenvolvimento para o mundo.

O ano corrente marca o final do 14º plano quinquenal da China e o início do planeamento do 15º plano quinquenal. A China continuará a impulsionar um maior aprofundamento integral da reforma, promovendo a construção de um grande país e o empreendimento da revitalização nacional por meio da modernização chinesa. Ao mesmo tempo, continuará a trazer mais oportunidades para a recuperação e crescimento da economia mundial.

Diplomacia de grande potência é vanguarda beneficiando o mundo.

Atualmente, a situação internacional está cheia de mudanças e desafios, com conflitos geopolíticos escalados. Os fenômenos do “desacoplamento e fragmentação das cadeias industriais e de abastecimento”, “pequenos pátios com vedações altas” e “cortinas de ferro tarifárias” tornam-se cada vez mais evidentes. Diante de desafios globais constantemente emergentes, a China adere a um verdadeiro multilateralismo e defende o conceito de governação global baseado na consulta, construção e partilha conjuntas. Honramos os compromisssos do Acordo de Paris e construímos o maior sistema de produção de energia limpa do mundo. A China é o primeiro país do mundo a classificar oficialmente as substâncias relacionadas com o fentanil como uma classe, dando um contributo notável para a causa internacional da luta contra a droga. Insistimos numa cooperação económica e comercial mutuamente benéfica, opomo-nos às guerras tarifárias e comerciais que prejudicam os outros e a si próprio, e rejeitamos a politização e a instrumentalização das questões económicas e comerciais. A China propôs e implementou três iniciativas globais, e atualmente 82 países fazem parte do “Grupo de Amigos da Iniciativa Global de Desenvolvimento”, enquanto 119 países e organizações internacionais apoiam a Iniciativa Global de Segurança. A 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU aprovou por unânime a resolução sobre o Estabelecimento do Dia Internacional para o Diálogo entre Civilizações, proposta pela China.

O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e a vitória da Guerra Antifascista Mundial. A China é um dos fundadores e beneficiários da ordem internacional pós-WWII e também é um dos principais defensores e construtores dessa ordem. A China vai ficar firmemente ao lado correto da história e do progresso humano, defender a autoridade e o estatuto da ONU e opor-se ao hegemonismo, à política de poder, a todas as formas de unilateralismo e protecionismo, salvaguardando a justiça e a equidade internacionais e oferecendo mais fatores de certeza para um mundo incerto com a estabilidade da China.

Cooperação China-África atravessa montanhas e mares para abrir uma nova viagem.

A China e a África são amigas, parceiras e irmãos verdadeiros que compartilham o mesmo futuro. Sob a liderança do presidente Xi Jinping e dos líderes africanos, as relações China-África abraça o melhor período na sua história, elevadas para uma comunidade com futuro compartilhado China-África de todos os tempos na nova era. A Ferrovia Tanzânia–Zâmbia, a Ferrovia Mombasa-Nairobi e a Ferrovia Addis Abeba–Djibuti, são exemplos da amizade China-África que liga o caminho da felicidade. O cultivo de arroz, a tecnologia de fungos e o atelier Lu Ban, são exemplo da cooperação China-África que entoa a canção da prosperidade.

O ano corrente marca o 25º aniversário da fundação do FOCAC e o 50º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas China-Moçambique. A China está disposta a trabalhar em conjunto com Moçambique para impulsionar a implementação das seis principais propostas de modernização e das dez ações de parceria, de forma a promover a modernização conjunta China-África. A China está disposta a fortalecer os intercâmbios de experiências da governança, implementar o tratamento de taxas alfandegárias zero a 100 por cento dos produtos de Moçambique e outras medidas preferenciais, expandir as oportunidades de cooperação nas áreas tais como economia digital e desenvolvimento verde, a fim de criar mais benefícios tangíveis para os povos dos dois países, escrevendo um novo capítulo da amizade tradicional sino-moçambicana e injetando uma nova força para o desenvolvimento acelerado do Sul Global.

A realidade é que o tempo passa tão rápido que, por vezes, esquecemos de olhar para nós mesmos. E, ao dizer isso, refiro-me ao exercício cotidiano, frequentemente negligenciado, de observar aquilo que nos rodeia — tudo ou parte disso — pois somos feitos e definidos pelo meio no qual estamos inseridos e existimos. Ou seja, essa nossa realidade nos leva, em certos momentos, a esquecer de olhar para a própria realidade ou a fazê-lo de maneira superficial, com olhares fugazes sobre algo que exige nossa atenção e sensibilidade. É nesse entremeio, entre o esquecimento e o descurar, que a exposição “Agente da Passiva” emerge como um souvenir (em francês, uma lembrança), tecido por aquarelas e acrílico sobre papel, dessa nossa realidade.

A denominação da exposição sugere reflexões. Como se estivéssemos todos submetidos a leis e regras — da vida ou da existência — “Agente da Passiva” surge como um espelho da realidade, evidenciando que a vida é, de facto, regida por estruturas visíveis e invisíveis, que não apenas traçam caminhos ou impõem limites, mas também nos fazem vergar perante essas mesmas regras. Esse acto de vergar amplia o significado da exposição: o agente da passiva subordina-se à (lei da) vida. A questão se impõe: a que leis da vida? Talvez à forma, quase inconsciente, com que vivemos, onde, para os mais dramáticos, trata-se de uma marcha cega para um fim abismal. A resposta possível não esclarece, mas reflecte as normas que nos governam. Se perguntamos por que a vida é assim, a famosa resposta surge, irónica e resignada: “porque é”, ou, de outras formas, “as coisas são assim mesmo”. Diante disso, resta-nos apenas uma possibilidade: viver as coisas como são (ou não). 

O quadro “Disponível por “é uma mostra, amostra e montra desse cotidiano que, mesmo sendo visível e útil em um mundo acelerado como o nosso, ainda esconde algo sob a superfície: uma possível submissão às regras do mundo e da vida.

Em uma análise superficial, o 55 x 75 cm de Chale retrata fielmente a realidade, sem deformá-la interpretativamente, trazendo traços de puro realismo. Não apenas a exposição apresenta retratos realistas, mas também há espaço para a abstração, como nas sequências Aura I, II, III, entre outras. Voltando ao quadro “Disponível por Encomenda”, ele retrata o que observamos no dia a dia, sem necessidade de escavações profundas — basta a superfície da tez: pessoas ganhando a vida ou tentando ganhá-la por meio de encomendas de produtos, nhonga e etc. É um tema corriqueiro, nosso e actual, que Chale propõe. Afinal, quem nunca encomendou algo? Vivemos assim; no fim do dia, estamos todos envolvidos nessa dinâmica — encomendamos ou entregamos encomendas. Especialmente nas grandes cidades, essa engrenagem rege a rotina.

Essa alternância não nos caracteriza apenas como moçambicanos, mas reflecte uma grande parte do mundo. No entanto, entre nós, essa prática parece ganhar uma expressão singular: todos conhecem alguém que entrega encomendas ou já fez uma. Mas é preciso notar que essa actividade não é recente; o que mudou é que hoje ela já constitui uma economia consolidada.

Essa alternância justifica, portanto, a subordinação à (lei da) vida, onde as opções giram em torno das encomendas: uma vida mercantil, em que todos são vendedores em potencial e outros, compradores prováveis. De uma forma ou de outra, estamos todos submetidos à economia e ao mercado.

Actualmente, parece que tudo gira em torno de encomendas. No entanto, surge uma questão incómoda: o que, de facto, está disponível por encomenda? As coisas ou as pessoas? Torna-se difícil discernir se estamos falando de alguém disponível para entregar encomendas ou de alguém que só está disponível quando encomendado. Será que, no fim das contas, as pessoas também se tornam produtos, disponíveis sob demanda para os outros, para a vida e até para si mesmas? Esses são alguns dos efeitos do capitalismo que, em parte, nos sequestra o tempo ao nos fazer acreditar que tempo é dinheiro, obrigando-nos a correr sempre. Nessa pressa diária, só nos permitimos parar, conversar e trocar risos mediante uma “encomenda”, esquecendo-nos de que o tempo é, na verdade, a própria vida.

No quadro, uma mulher de lado, com uma expressão de resignação, segura uma paperbag, normalmente usada para encomendas, especialmente entre a África do Sul e Moçambique, trazendo uma sensação de monção e movimento. Essa mulher retrata o nosso cotidiano, repleto de correrias por encomendas: encomenda-se tudo menos nada. Mas a questão ainda me parece válida, pela forma como nos subordinamos à vida, nós, os agentes passivos: o que está disponível por encomenda? Os produtos ou as pessoas?

À guisa de um introito

Maria Lamas escreveu o livro As Mulheres do meu país, nos anos 50, demonstrando que as mulheres portuguesas eram mais do que a caracterização de “domésticas” que lhes cabia. Revelou que eram pessoas de trabalho, contrariamente às ideias pejorativas que havia, a seu respeito, no seu contributo para a vida de famílias ou de um país. Foi no título do seu livro que me inspirei para celebrar as escritoras do meu país, em comemoração do “dia da mulher”.

A par de outras duas colegas de profissão, tenho andado a recensear a literatura de ficção da lavra de mulheres moçambicanas. Constato que têm sido empreendedoras, mais do que, preconceituosamente, se afirma e muito mais do que o silenciamento as relega.

No que à produção em livro diz respeito, em “Mulheres em trânsito”, no Congresso Alda Lara, em Lisboa, em 2019, Ana Mafalda Leite e eu, destacamos a existência de 35 mulheres. No mesmo ano, no seu livro intitulado Cartografias em construção: algumas escritoras moçambicanas, Ana Rita Santiago, pesquisadora brasileira, revelou existir esse mesmo número de escritoras. Numa pesquisa para apresentar uma palestra designada “Literatura Moçambicana: rastos e rostos da última década – 2010/2020”, na Associação de Escritores Moçambicanos, em 2020, consegui recencear 44 escritoras. E, numa outra recolha que realizei em 2023, a fim de apresentar uma comunicação no SINALLIP- 2023, um evento literário brasileiro, anotei 71 nomes de escritoras. Esse trabalho ainda está em actualização; até porque, me consta a edição de mais obras de lavra feminina. Devo referir que cada um desses levantamentos vai adicionando à lista existente, novas entradas.

É na sequência da ampliação dessa lista, reitero, ainda em actualização, que abordo, neste texto, o trabalho realizado na antologia Blasfêmeas: sangue e poesia (Blasfêmeas), organizada pela Gala-gala edições; que colige trabalhos de dezoito mulheres, das quais, três já têm livro publicado. Abordarei ainda a obra intitulada Recortes de mim desse tal de amor, publicada pela Chiado Books, ambas tiveram a sua apresentação pública no presente ano.

Levantam-se, andam e suplicam que não lhes tirem a arte

Blasfêmeas: sangue e poesia é a sexta antologia publicada pela Gala-gala Edições e organizada por Pedro Pereira Lopes; sendo a segunda exclusivamente dedicada a disseminar trabalhos de mulheres. A primeira obra, nesse sentido de exclusividade, foi editada em 2020 e leva o título de Carta para os filhos de Adão um e-book. Depois da independência, essa foi a primeira editora a publicar uma antologia de autoria apenas feminina. Destaco o género das mãos que escrevem os textos, porque, realizar um exclusivo desses revela-se importante e urgente, não só em Moçambique, como em muitos lugares do mundo.

A antologia acabada de referir foi editada em função de uma chamada para publicações para autoras sem livro publicado. Os trabalhos coligidos, nessa obra, foram aferidos do ponto de vista da sua qualidade e escolhidos, dentre outros que não estavam em condições para publicação, obviamente. Constam dela, mulheres que são publicadas pela primeira vez: Adelina Afonso, Camila Chilaúle, Cecília Mabjaia, Yanissa Khan ou Drofth Suhura, Ester Chiziane, Ivânia Paquete, Lasmim Caminho, Marlen dombo, N’wantsukunyani Khanyisani, Nívia Massango, Regina Nhamuchua, Samira Longamane, Saquina Pancrácio, Tatiana Muianga, Tulipa Negra e Hera de Jesus, vastamente antologiada noutros contextos. Nesse mesmo livro há textos de Merciana Uamba e Kaya M, autoras com livro publicado.

Segundo Pedro Lopes, na sua nota de apresentação deste livro afirma tratar-se de “um manifesto poético, um convite à celebração da mulher que, por meio da poesia, desafia regras, rompe silêncios e revela a sua presença num mundo dominado pelo patriarcado”. O título é sugestivo, porque, sendo um trocadilho, marca e grito de mulheres, essas “blasfemas”, que ousam desafiar um mundo real e de escrita literária dominado por homens. Além disso, trata-se de um título revelador da obra dessas mulheres – as fêmeas.

A Obra e suas temáticas

Essas mulheres são inspiradas pela obra de Noémia de Sousa, a mãe de todos os poetas moçambicanos, mulher, também irreverente na sua escrita e no alerta para que o mundo seja um bom lugar para se viver. É, também, claramente, esse o posicionamento de Maria Lamas, acima mencionada. É possível verificar-se sugestões disso nos textos das nossas antologiadas que, não tendo realizado um trabalho com uma mesma temática, têm o denominador comum de sugerir um grito contra as amarras da exclusão ou da dominação do mundo pelo género masculino ou masculinizado.

Digo masculinizado, porque, do que se sabe ou pode aprender sobre as lutas pelos feminismos é que há algumas pessoas que incentivam o afloramento da feminilidade, num mundo em que as mulheres sejam isso mesmo que a biologia lhes permitiu ser, mas que tenham direitos tão humanos quanto os homens. Explico esta aproximação remetendo o leitor à leitura do poema “estamos entregues” de Regina Nhamuchua, no livro Blasfêmeas: sangue e poesia que afirma:

 

Não sou Barbie das tuas expectativas/Sou a mulher das minhas realidades/ E
chama-me Shaka Zulu/pois quebrei todas as correntes/e vou construir o meu
próprio império de padrões/porque no meu corpo, sou o meu próprio padrão! … E
conduzo o meu Mercedes Benz/ Ao lado de quem conduz um Freightliner de
mente! Blasfêmeas, p. 75. [o sublinhado é meu].

O sujeito poético no excerto acabado de mencionar quer a sua afirmação enquanto pessoa e ser respeitado por tal. O mesmo o faz o sujeito no poema “caminhos” de Saquina Pancrácio que afirma “suplico em silencio que me abram/para sair e voltar a voar/… Não sei andar com os pequeninos pezinhos que tenho/mas posso voar com as grandes asas que, só as criei/ para poder voar quando não mais pudesse andar” […]. Blasfêmeas, p. 87. [o sublinhado é meu].

Existem, entretanto, outras mulheres que não usam esse direito. Aceitam a subjugação, mesmo sabendo que podem ter um destino melhor ou por outra, actuam de modo masculinizado ou o comumente chamado de dominação patriarcal.

As antologiadas de que tenho vindo a falar agem, tal como o sugeriu Noémia de Sousa: “levantaram-se e andaram”, sujeitaram-se à uma chamada de textos, para poderem publicar. E colocam o mesmo tipo de pensamento nos sujeitos ou sujeitas de enunciação dos seus textos, ie, sujeitos/as contestatários/as.

Passo, nessa sequência, a revelar, em linhas muito breves, o que suplicam. A ordem de enunciação dos textos foi feita por agrupamentos de significação. Esses grupos não fazem paredes estanques uns com os outros, dialogam no sentido de similaridade de temáticas.

Do trabalho de Ivânia Paquete, cuja poesia é rente ao labor da poetisa que inspira a antologia, num dos seus poemas intitulado “procura-me”, a autora, como que a desejar dizer: “Se me quiseres conhecer”, tal como Noémia de Sousa, afirma: “Procura-me”, sugerindo, se te aproximares, irás conhecer-me na minha perfeição e na minha imperfeição. Sou humana. Blasfêmeas, p.37.

Segue-se, após esse aviso um grupo de autoras que trabalharam a temática do grito, para que se dê voz e lugar à mulher e, passo a mencionar:

Adelina Afonso, em “Costa do sol” sugere o pedido de liberdade para seguir a vida. Junta -se esta autora Hera de Jesus, quando no seu poema intitulado “queremos, apenas, ser mulheres” revela: “Era uma vez…/mulheres/ que apenas/queriam ser mulheres/num mundo/cruel para mulheres. Blasfêmeas, p.43.

Por outro lado, e porque, provavelmente, a educação da rapariga devesse ter componentes mais complexas, Lasmim Caminho adverte, através do seu poema com o título “meu período, meu corpo, meu futuro”, que ao iniciar o seu período, é dito à rapariga que ela “cresceu”, nada mais sobre outras questões inerentes ao seu futuro de mulher. Daí ela alertar: “pois, eu sentia-me exposta, presa sem portas/ num mundo de padrões […]. Blasfêmeas, p.51.

Marlen Dombo dá voz aos excluídos: mudos, sonâmbulos, os que choram e às mulheres, convidando-os “a serem fortes o bastante, para gritar num ambiente no qual ninguém os ouve num lugar para deitar a gravata” […]. Blasfêmeas, p. 57. Quem também grita, com recurso ao seu sujeito poético e rejeita o lugar do silêncio da mulher é Merciana Uamba, que em “memórias de um não parto” coloca um sujeito poético que suplica por um colo para falar sobre os seus desejos, não se anulando. O que sugere, esta autora é que as mulheres não têm que viver como se fossem de aço. Têm sentimentos, tal como qualquer humano. Blasfêmeas, p. 63.

Outras mulheres, neste livro, se preocupam com um país que é sugestão de Moçambique:
Adelina Afonso, diz em “síndrome de Pemba”: “[…] “Onde pés tenebrosos perscrutam o Wimbe/Em busca de um novo porto/ “Sou persuadida todos os dias/a cá permanecer por mais um dia/ ou quando em “sono dos deuses chora a partida para a morte”. Blasfêmeas, p. 15. Esta temática constitui preocupação, também para Yanissa Khan, nos poemas “verão africano e “wayemba”. O primeiro que nos revela o choro derivado de uma guerra e o segundo que é um convite por uma luta pela vida.

Essa guerra em Cabo Delgado é também reclamada por Lasmim no seu poema “vim confessar-nos”, no qual o sujeito poético reza por dias melhores nesse espaço geográfico. A poesia de Tulipa Negra também se cinge a esse lugar de dor. Há uma descrição sobre o desperdício de vidas humanas e das riquezas ambientais de Cabo Delgado, que a autora descreve no seu poema com o título “diário do refugiado”.

Hera de Jesus demonstra-se atenta a diferentes problemas de Moçambique e aí temos a certeza de se tratar desse país, porque parte do seu Hino Nacional vem mencionado no poema intitulado “convulsão”, através do qual a autora reivindica o lugar de subalternidade relegada à mulher e ao país malcuidado. E desgovernado, recorda-nos Regina Nhamuchua que, através do seu poema “estamos entregues”, sugere que cada moçambicano deve 7 milhões à China.

Em “desencanto”, Dombo descreve Moçambique, o lugar onde os karinganas sobre os velhos tempos deixaram de ter lugar, entretanto, segundo ela, convém manter-se a esperança em dias melhores.

Há alusão à esperança e ao amor, nesta obra. A esperança em novos futuros, derivados da procriação, enaltecida por Kaya M. e esperança, em sermos nós “se a soberania o permitir”, diz-nos a autora, em “últimos delírios”. Já o amor é cantado em Camila Chilaúle que o liga à paixão, nos seus poemas “infinito é o vermelho poema e “frangipani”. Ester Chiziane faz-nos um convite ao cuidado pelo outro, em “meu amor” e “dançaremos, certamente”.

Nesta mesma tónica de amor e de cuidado, enaltecendo a arte, Samira Longamane refere: “neste papel passo a escrever acerca da minha família,/ dos momentos mágicos/enredos de afecto, ternura e convívio/… Descobri que escrever neste papel é mais seguro/porque ninguém falsificará a minha história”. […]. Blasfêmeas, p.p. 82-83.

A Violência doméstica é aflorada por Cecília Mabjaia nos poemas “a (in)felizarda e “ela é forte. Neles, a autora nos recorda que a mulher africana é ensinada a pacientar a vida e a dor que daí advenha. A par disso, Cecília Mabjaia vai longe, recorda-nos sobre os perigos do HIV, derivada da violência social na profissão da prostituição.

A temática da violência doméstica é, ainda, aflorada por Nívia Massango que pergunta quem é o homem, como que a questionar os direitos que se atribui para encher a mulher de pancada, silenciando a sua voz que, entretanto, grita. Tatiana Muianga é outra mulher que coloca o seu sujeito poético a reivindicar contra o silencio quanto à violência doméstica. Diz o seu poema “mulher de aço”: […] ”O canto do galo já é audível e o sono não chegou/ A angústia e a raiva consomem o meu corpo/ mas não posso denunciar/ As pancadas que recebo nas madrugadas”. […]. Blasfêmeas, p. 91. Esta poeta, no seu texto “despertei” alude um grande mal social, as violações sexuais a mulheres. Blasfêmeas, p. 92.

Há poesia erótica, neste livro. Ela é trazida pelo sujeito líricocriado por N’wantsukunyani Khanyisani, autora que se apresenta na obra, na qualidade de quem escreve “arte pela arte”, arte para deleite e fruição. E é em nome da revitalização da arte que termino convidando à leitura de Ivânea Paquete, no poema, de título “quando me for”. Nele, esta escritora enaltece o amor por esse fenómeno. Ainda na mesma senda, com o título “artes” Saquina Pancrácio, celebra este acontecimento, questionando: “E o que seria arte sem o amor/ Um corpo sem vida, talvez/ou uma fonte sem água/. […]. Blasfêmeas, p. 89.

Como se pôde constatar, esta é uma obra que, para além do grito de mulheres por um lugar diferente do subalterno é um grito e uma exaltação da arte, à semelhança do que se diz no excerto do poema “Súplica”, que é epigrafe do Blasfêmeas: sangue e poesia, no qual se diz, citando Noémia de Sousa: “ – Por isso pedimos,/de joelhos pedimos:/ tirem-nos tudo../mas não nos tirem a vida,/não nos tirem a música”.

Prometera, mais acima, abordar a antologia Blasfêmeas: sangue e poesia, para depois me ater à obra Recortes de mim desse tal de amor, título do primeiro livro de Sheila Miquidade. Reitero a importância de se celebrar trabalhos da lavra de mulheres.

Recortes de mim desse tal de amor
Trata-se de um livro composto por 78 páginas, incluindo os para-textos. Tem 47 poemas (graficamente, não se trata, pois de um poema para cada página). Há poemas curtos e outros longos, que se caracterizam em versos ou em prosa poética. Mas todos sabemos que o diálogo literário se estabelece através do conteúdo e não da quantidade de versos ou de palavras que uma obra contenha. Mais do que os textos, vale recordar que caracterizam a obra delicadas ilustrações em colagens de Inês Flor.

O título da obra remete a uma biografia. Entretanto, a forma estética a partir da qual o texto está escrito, os versos, fez-me acreditar que não se trate de uma obra desse género pois, do pondo de vista estético, o mais comum é a biografia ser escrita em prosa. Mesmo considerando a prosa poética, no livro, também, constata-se que o livro não é uma biografia. Em ambos casos, a julgar pela idade da autora do livro, mais o seu percurso, deduzível através dos dados biográficos que se encontram na contra-capa do livro, seria necessário mais espaço para narrar a sua trajectória de vida ou seja; lendo a obra não ficamos a conhecer a Sheila Miquidade, mas a sua escrita. Quero afirmar com isso que, um livro biográfico relata o curso de vida do seu autor.

Este livro pertence ao género a que se designa autoficção; escrita na qual a ficção e partes da identidade do autor convivem. Um exemplo do que acabei de afirmar pode ser encontrado no primeiro poema do livro, intitulado “Quem inventou o amor”. Este poema sugere o questionamento da nossa existência e da existência do amor. Há nele uma reflexão sobre a matéria e a origem do amor, que aludem a biografia da autora.

A autoficção subdivide-se escrita confeccional, que é o caso do livro de Sheila Miquidade e em ficção autobiográfica, quando se trate de narrativa que integre a identidade do seu autor. Recordo, entretanto, que para aferir os traços biográficos de um autor que escreva nessas vertentes é importante conhecê-lo pessoalmente ou entrevistá-lo, para não se incorrer em assupções sobre a sua identidade e as identidades  ficcionadas.

As aferições que fiz sobre a identidade da autora são baseadas no que é mencionado nas orelhas do livro, na qual se refere que “Sheila capturou momentos íntimos, transformando as suas experiências em versos que reflectem a sua jornada pessoal e a sua observação sobre o mundo”. Isto explica, claramente, a utilização de partes da biografia, mas não será a partir delas que se pode reconstituir o curso e o percurso de vida da autora empírica.

Em Teoria Literária, chama-se poesia lírica, a que fala sobre o amor (aquela através da qual se pode manifestar a subjectividade: o que se sente e o que pensa sobre o mundo ou sobre a vida). Na Bíblia Sagrada, mais precisamente no “Cânticos dos cânticos” ou “cânticos de Salomão encontramos as definições ou caracterizações sublimes e filosóficas sobre o amor; nomeadamente: amor fraternal (entre irmão, família e amigos); amor romântico (amor idealizado, desejo); amor de amizade ou philia (afeição); amor incondicional, ágape (cuidado com o bem-estar da pessoa) e, por fim, o amor sexual (desejo de prazer que um amado e uma amada sentem um pelo outro).

A propósito de escrever sobre o amor, devo, entretanto, recordar que, em Moçambique, até antes de 1984 a poesia sobre essa temática era proibida. A poesia lírica foi se construindo, ao longo do tempo. Somos um país jovem que, nos anos 60 escrevia apenas poesia de combate, através da qual se desejava que cada palavra em cada poema tivesse o efeito didáctico de luta contra o jugo colonial e “nada de poemas de amor”, dizia-se. (cfr. Brochura sobre o 1º Seminário Cultural [da Frelimo], decorrido entre 30 de Dezembro de 1971 e 21 de Janeiro de 1972, na rubrica resoluções sobre literatura).

Esse desiderato foi, timidamente, desconstruído por Luís Carlos Patraquim, através do seu livro Monção (1980), bem como a obra Raiz do Orvalho (1983) de Mia Couto. Foi mais tarde, em 1984, com a poesia de Eduardo White que ficou marcada a rutura total ao publicar a obra Amar sobre o Índico. Depois disso, escrever sobre o amor, em Moçambique, tornou-se corriqueiro. E hoje temos muitos autores que se dedicam a essa estética. Recortes de mim desse tal de amor da autoria de Sheila Miquidade é um desses exemplos.

Essa obra é classificável na estética de si, preconizada por Foucault, que fala, no âmbito dessa escrita, sobre (cuidados de si e cuidados do outro). Lendo Recortes de mim desse tal de amor, aliando ao que se diz na orelha do livro, pode se perceber que o livro resulta de um processo de ressignificação da vida do seu autor ou dito de outra forma: tratou-se de um processo no qual a arte cura a vida, como é o caso do poema, “Ai mãe, brotei”. Pg. 36.

Há ainda, no livro, repetições de expressões que nos remetem a reflexões sobre a condição e existência humana. Dou dois exemplos: Poema “Nós” – nós no vazio e na imensidão; “Do salto de bico alto” – o vazio da tua existência. Supostamente, as pessoas são o resultado de um acto de amor (um acto físico que se deseja prazeroso, mais do que romântico) e, por isso, deduzir-se que amar seja bom e que o amor faça bem (no sentido de plenitude), entretanto, o que a vida prova ou o que o livro ilustra é que as convenções sobre o amor são falhas. Há vazios na nossa existência. Há respostas no poema já aludido e no poema intitulado “Um café por favor”, no qual se fala de presença que é ausência, pg. 34. E tem mais, o último poema do livro brinda-nos com outras definições sobre o amor, o tal conceito difuso.

Termino como comecei. Vou recordar a importância de se não silenciar a escrita da lavra de mulheres, disseminando a sua obra, estimulando-as a escreverem, a publicarem ou mesmo analisando os seus trabalhos.

Recordo ainda que este texto ainda se encontra em construção, daí deixar o meu endereço electrónico, para quem deseje colaborar no recenseamento ora iniciado. Ainda há trabalhos de mulheres por registar, prova-o, por exemplo o facto de que, ainda a fechar este texto, para o enviar ao jornal, sou agradavelmente surpreendida pela notícia de que acaba de ser editada a obra No Dorso da Sombra, de Hera de Jesus, mencionada no grupo de mulheres antologiadas no livro Blasfêmeas: sangue e poesia.

Março de 2025

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

Na periferia esquecida do bairro Salela, nos subúrbios de Inhambane, vive Raci. Aos 73 anos, o peso da vida já lhe vergou as costas, mas não a vontade de lutar. O que resta de força no seu corpo magro sustenta uma rotina impensável para alguém da sua idade. Raci vive sozinha numa casa de zinco corroído, onde o vento atravessa as paredes como que a lembrar-lhe que está exposta, tal como a sua vida.

Até dois anos atrás, Raci recebia o que o Estado chamava de “subsídio social”. Pequeno, quase insignificante, mas suficiente para que ela comprasse farinha e sal e, com sorte, um punhado de feijão. Era pouco, mas representava um fio de dignidade. Até que, sem aviso, esse fio foi cortado.

Com o desaparecimento do subsídio, Raci foi obrigada a encontrar força onde já não existia. Trabalhar tornou-se uma questão de sobrevivência. Com as mãos calejadas e os joelhos castigados pela idade, ela começou a cultivar terrenos alheios em troca de algumas moedas ou de um punhado de milho. Acorda antes do nascer do sol e caminha pelos becos poeirentos à procura de quem precise de mão-de-obra. A fome não lhe dá outra escolha.

“Eu só queria descansar”, confessa, com lágrimas a correr pelas rugas do rosto. “Mas, se não trabalho, não como. E quem mais se importa comigo?”

O eco da sua pergunta é uma acusação directa ao Estado, que deveria protegê-la. O silêncio em resposta é ensurdecedor.

Raci não é um caso isolado. Nos subúrbios e nas aldeias esquecidas de Moçambique, milhares de idosos, crianças órfãs e pessoas com deficiência vivem situações semelhantes. Quando o subsídio social desapareceu, não foi apenas o dinheiro que se perdeu. Perdeu-se a dignidade, a esperança e a confiança num sistema que prometia não deixar ninguém para trás.

No bairro Salela, as histórias de sofrimento são compartilhadas como lamentos em coro. “Já não somos gente para eles”, diz uma vizinha de Raci, também vítima do corte no subsídio. As palavras simples carregam uma verdade cruel: o Estado abandonou os seus mais frágeis.

O Instituto Nacional de Acção Social (INAS) justificou-se com questões administrativas, mas que explicação administrativa pode aliviar a fome? Que burocracia justifica a morte lenta de quem não tem forças para lutar contra o abandono?

A Constituição de Moçambique proclama o direito de todos a uma vida digna. No papel, somos uma nação de solidariedade, porém a realidade é feita de vazios. O vazio no prato de Raci, no olhar de quem perdeu tudo, e no compromisso de um Governo que se esqueceu da sua gente.

É impossível não reflectir sobre o que nos tornámos. Como sociedade, aceitamos o sofrimento dos outros como um cenário de fundo, uma normalidade cruel que já não nos comove, mas histórias como a de Raci não podem ser apenas um ponto final. Elas exigem acção.

Ao cair da noite, Raci recolhe-se na sua casa. Uma lamparina ilumina o espaço precário enquanto mastiga o pouco que conseguiu juntar no dia. A fome ainda a acompanha, mas é o abandono que lhe pesa mais. E amanhã, quando o sol nascer, ela voltará à procura de trabalho, com um corpo que clama por descanso e um coração que já não sabe se vale a pena esperar por dias melhores.

Esta é a história de Raci, mas também é a história de um país que precisa urgentemente de olhar para dentro e ouvir o eco do abandono que grita nos subúrbios e nas aldeias. Até quando seremos surdos a este clamor? Quantas vidas mais terão de ser sacrificadas no altar da indiferença antes que façamos algo?

Raci sobrevive, mas o custo da sua resistência é uma acusação directa a todos nós, porque o abandono de Raci não é apenas dela – é nosso. E, enquanto ignorarmos isso, continuaremos a falhar como nação.

A felicidade, essa quimera que todos perseguimos incessantemente, raramente é alcançada de forma plena. A vida apresenta-se como um campo onde a satisfação plena é uma ilusão, um horizonte que recua, à medida que nos aproximamos. Este paradoxo reflecte-se tanto em situações de carência material, quanto em contextos de aparente abundância. Ao longo deste texto, iremos explorar as razões pelas quais a felicidade permanece um bem intangível e como o desejo insaciável e as pressões sociais perpetuam esse ciclo de insatisfação.

O Paradoxo da Satisfação e o Papel da Filosofia

A filosofia, há muito, sustenta que a felicidade é, por natureza, inalcançável. O conceito remonta a ideias de pensadores como Arthur Schopenhauer, que descrevia a vida como um pêndulo entre a dor e o tédio, e Immanuel Kant, que afirmava que a felicidade plena está fora do alcance humano, sendo a nossa existência pautada por um constante desejo de mais. Cada conquista alimenta novos desejos, criando uma espiral de expectativas que cresce indefinidamente. Assim, a realização é temporária e seguida pela sensação de vazio que se instala quando os novos anseios não são satisfeitos.

A questão central é que a própria natureza humana é contraditória. Queremos a estabilidade e o contentamento, mas somos biologicamente programados para buscar novos desafios e enfrentar novos obstáculos. Isto torna a felicidade um objectivo efémero e mutável. Quando atingimos o que julgávamos ser o auge da realização, novas metas e padrões emergem, ampliando o fosso entre a realidade e a satisfação esperada.

A Percepção Social e a Autoimagem

Outro factor que contribui para a infelicidade é a nossa necessidade de aceitação social.

O ser humano, como ser social, procura constantemente alinhar a sua autoimagem com os padrões ditados pela sociedade. Estes padrões, muitas vezes inatingíveis e construídos sobre idealizações, geram um ciclo de comparações e frustrações. A pressão para corresponder às expectativas externas faz com que muitos vivam a sua vida sob o peso do julgamento alheio, em vez de buscar autenticidade.

O fenómeno das redes sociais intensificou ainda mais esta tendência. Os “momentos de felicidade” partilhados são frequentemente curados e editados, criando uma ilusão de perfeição que poucos conseguem igualar na vida real. Esta distorção gera ansiedade e um constante sentimento de insuficiência, pois a felicidade que aparentamos não reflecte necessariamente a felicidade que sentimos.

A Influência das Crenças e as Dúvidas Existenciais 

Muitas pessoas encontram consolo em sistemas de crenças que prometem respostas para as grandes questões da vida e uma justificação para as dificuldades enfrentadas. Porém, mesmo as convicções mais sólidas podem ser abaladas por circunstâncias inesperadas.

A dúvida é um componente intrínseco da condição humana, e todos, em algum momento, deparam-se com a incerteza sobre o significado da sua existência. A interacção entre a espiritualidade e a racionalidade moderna é frequentemente relegada à esfera do psicológico, como se os nossos sentimentos e intuições não tivessem legitimidade.

Ainda assim, há momentos em que as experiências pessoais desafiam esta visão. A

A sensação de que forças além do nosso entendimento influenciam o nosso destino persiste, apesar das explicações científicas e racionalizações sociais. Acreditar ou duvidar torna-se uma luta constante entre o desejo de transcendência e a imposição de uma realidade concreta que parece conspirar contra a serenidade.

O Papel da Pobreza e das Desigualdades

A vida, para aqueles que enfrentam a pobreza, coloca uma perspectiva ainda mais sombria sobre a busca pela felicidade. A escassez de recursos básicos não apenas dificulta o acesso a oportunidades, mas também amplifica as preocupações quotidianas, reduzindo a capacidade de sonhar com algo mais. Quando a sobrevivência se sobrepõe a todas as outras ambições, o conceito de felicidade transforma-se em algo secundário e quase irreal.

Por outro lado, aqueles que já ultrapassaram as barreiras da carência material descobrem que a abundância não é garantia de felicidade. Como defendido por muitos pensadores contemporâneos, a abundância pode alimentar uma sensação de vazio existencial, quando os objectivos deixam de ser substanciais e passam a ser metas superficiais, alimentadas por uma cultura de consumismo e comparação.

Uma Nova Perspectiva: A Simplicidade e o Contentamento

Se, por um lado, as pessoas com ambições maiores enfrentam uma jornada mais tortuosa em direcção à felicidade, por outro, há lições a ser retiradas da simplicidade e da moderação. As filosofias orientais e as práticas de mindfulness ensinam que a felicidade pode residir na aceitação do presente, na gratidão pelo que se tem e na capacidade de viver com menos desejos. Quando se vive com intenções mais focadas e se valoriza o essencial, os pequenos prazeres da vida ganham nova relevância.

Uma pessoa com menos expectativas concentra-se em atingir as poucas metas que considera essenciais, reduzindo assim a discrepância entre o desejo e a realização. Essa abordagem permite um maior estado de contentamento e uma existência menos marcada pela frustração.

Conclusão

A busca pela felicidade é um tema tão antigo quanto a própria humanidade, e a sua complexidade reside na natureza multifacetada da nossa existência. O que se observa é que a felicidade não é um ponto fixo a ser alcançado, mas sim um estado fluido que varia de acordo com os desejos, as circunstâncias e a capacidade individual de encontrar significado e aceitação no percurso. Enquanto as sociedades modernas continuarem a fomentar uma cultura de consumo e de constantes comparações, a insatisfação será uma presença constante. A resposta pode estar em redireccionar o foco para o interior, para os pequenos momentos de alegria, e redefinir o que significa verdadeiramente ser feliz.

Este texto convida à reflexão sobre as armadilhas da vida contemporânea e relembra que, para alguns, a felicidade encontra-se na moderação e no cultivo de uma mente tranquila, longe dos excessos e das expectativas irrealistas.

 

Aqui é mister, prior a qualquer seguimento argumentativo, uma explanação que possa trazer luz no título que dá caminho a esse ensaio. Entende-se ‘o africano’ não como uma individualidade com origens de um lugar físico chamado África, nem se trata de uma colectividade de indivíduos conscientes de si mesmo oriundos ou viventes de um lugar físico chamado África, mas, pelo contrário disso, trata-se ‘o africano’, como ‘o cristão’, como cultura, onde, por dentro, residem as crenças, a religião, hábitos, e outros saberes que moldam e caracterizam um determinado povo. Essa justificação corrobora com o facto de haver africanos cristãos, individualidades de origem africana mas que professam a religião cristã. Essa mescla, por mais que possa parecer inconcebível, ela é justificável porque cristianismo é uma religião, e, o que assusta a muitos doutores de religiões e, em particular, a africanistas, é que uma religião é, acima de tudo, uma expressão cultural porque, diz-se, ela vem para responder os anseios de um determinado povo, só que, cada povo tem seus próprios anseios devido às condições materiais e espirituais em que estão submetidos.

A transmutação, sem auscultação, de certas religiões para outras regiões parece, em primeiro lugar, algo agressivo, digno de povos imperialistas, como o Ocidente na era de cristianização do mundo, mas essa historicidade sobre a expansão do cristianismo pelo mundo e, em particular, em África, não é aqui o ponto focal. O que interessa é que a imposição do cristianismo em África e, em especial, Moçambique criou focos de litígios, descontinuidade e, muito pouco, de convergência. Um exemplo de convergência é a inexistência de um ser imaterial cujos poderes são absolutos, nesse caso Deus cristão. Essa convergência vê-se claramente quando curandeiros falam em nome de Deus, e dizendo que trabalham pela sua graça.

Contudo, há também, óbvio, vários pontos de descontinuidade entre o africano e o cristão, porque esse cristianismo como religião carrega uma cultura de onde ela se desenvolveu como tal. Então há, aqui, um conflito entre a cultura africana e a cultura alheia que vê embarcada, de modo oculto, no cristianismo. E, nesse cristianismo, há muito de cultura europeia.

Também, apraz referir que o mesmo cristianismo saindo de Europa para África, acabou ganhando muito de África, com um exemplo claro e objectivo dos Maziones, que apesar de rezar a Deus cristão, acabam incorporando aspectos africanos, como o respeito pelos espíritos, antepassados em que, no lugar de os combater, fazem-lhes alguma reverência caso seja necessário.

Um exemplo de descontinuidade entre o africano e o cristão é levantado pela música de João Bata, intitulada “Buza Ka Yehova”, cujo significado é “Pergunte a Jeová (partindo do pressuposto que, em alguns casos, Jeová e Deus são sinónimos, em Moçambique,)”. Em geral, a música é uma série de questionamentos, lamentações pelo que de mal existe no mundo, mesmo havendo um ser mais do que ser infinitamente poderoso que pode acabar com o sofrimento do mundo. Essas questões são sumarizadas num dos últimos versos da mesma composição, em que, em desespero, questiona: “Kassi Ukwini Tlelu lakona” (Afinal, de que lado estás/ onde estás?). Uma indagação com alargada veemência dentro do seu peito sobre a localização desse ser mais que ser, e, assim sendo, deixa-nos uma ideia clara da sua inoperância ou suposta inoperância. 

A música, em si, é repleta de informação interessante, e uma das perguntas é o cerne desse ensaio, que levanta e demonstra esse dito ponto de descontinuidade, onde, partindo da questão levantada na música, se fica sem uma resposta fácil sem se desfazer de um dos lados, ou se desfaz do africano ou do cristão. 

“A matsalwa mali lweyi angafa ata pfuka, se, a lweyi angatxinga vassati va vanu vataku yini ka mafa-vuka” “As escrituras dizem que quem morreu irá ressuscitar, e esse que praticou levirato o que irá dizer ao morto-acordado (ressuscitado)” Em Moçambique, levirato (ainda há sororato “quando é um homem que casa com duas irmãs” (Batalha, 2004:134)) é uma prática que carrega o nome “Ku txinga”, não apenas a nomenclatura que é diferente, mas a própria prática em si difere da prática dos israelitas. 

Em Israel, o homem era obrigado a casar a mulher do seu falecido irmão, o que difere subtilmente da prática em Moçambique, onde o homem é obrigado a ter relações sexuais com a mulher do seu falecido irmão, como um acto de purificação, não que signifique que esse se torne, necessariamente, a sua mulher. A perspectiva que se nutre, nos meios da nova sociedade moçambicana, sobre a prática do levirato é enviesada, ou, no mínimo, rechaçada, contudo, Batalha (Antropologia: perspectiva holística, 2024), relembra as razões de carácter social que levaram à prática desse tipo de casamento porquanto “num sistema de troca entre linhagens, isto é uma forma de garantir a protecção das trocas: quando um marido ou uma mulher morrem são imediatamente substituídos por um irmão ou irmã, respectivamente, garantindo a continuidade das trocas entre as duas linhagens” (p. 134), como também, tanto no sororato como levirato os filhos não crescem numa família (com um pai ou mãe) estranha. 

A condição da dúvida se dispõe: o que faz com que, mesmo não sendo uma prática estranha no mundo, e que é até referido no antigo/velho testamento, essa prática é diabolizada? A única resposta, para esse facto, está centralizada no eurocentrismo, e que tudo começa na Roma de Constantino quando se converteu para o cristianismo. Devido aos estudos do antropólogo Jack Goody sobre a família e o casamento na Europa, sabe-se que houve várias reformas e profundas.

Por exemplo, ele refere que a adoção, o casamento de viúvas, o casamento entre primos, o

divórcio, o concubinato e o levirato foram proibidas. Essas proibições contradiziam, em certa medida, o velho testamento e até o próprio direito romano. Isso revela que esse cristianismo professado em África é, profundamente, europeu. Pois, entre europeus, culturalmente, essa prática é profundamente difícil de aceitar, como explica batalha, “levirato, embora mais fácil de compreender pelos europeus, uma vez que se trata de um tipo de casamento descrito na bíblia, não deixa de ser estranho” (p. 134).

O que sucede é que a mesma igreja ocidental que “estranha” o levirato, fala de ressuscitação dos mortos com a vinda de Cristo. No confessionário, revelo que ainda me é difícil compreender essa ideia de ressurreição, contudo, faz parte da crença cristã: “Quem morreu vai ressuscitar”. Como natural, essa crença foi levada para África, e acontece a colisão entre as duas realidades. “Se o morto acordar, o que é que esse txingou vai dizer ao ressuscitado?”, questiona João Bata, porque, refresque-se a memória, parte-se de um pressuposto em que há aqui uma cisão entre os africanos e cristãos, onde, nos olhos dos segundos, a prática de levirato é estranha, mas mesmo assim é uma prática social, na realidade do africano.

Essa questão de João Bata na canção “Buza Ka Yehova” denuncia um pouco de “contraproducência” que existe entre o africano e o cristão. Se o africano vê o levirato como uma prática vantajosa, e o cristão proíbe a mesma, então qual solução se descobre para esse litígio?

Conforme anteriormente descrito, não é de uma solução fácil, a não ser, no final, abolir essa prática ou esquecer, por momentos, que se trata de um pecado. Isso significa deixar de lado um dos lados. No fundo, essa música também traz um pouco disso, a fusão de duas culturas completamente distintas, e suas consequências, onde, em casos como esses, não se sabe onde recorrer. Debates não cessam sobre várias temáticas, e uma delas é a do levirato, mas não há convergência, outros olham como tradicional e outros como uma aberração: essa confusão visceral é um resultado prático dessa fusão.

 

Irei voltar…,
Irei voltar para vos oferecer palavras amigas que o tempo trouxe na melodia imaginária do meu silêncio.
Irei voltar para contar a metáfora do "sim" honesto que a humildade sussurra à consciência divina.
Irei voltar, sim, para revelar a caricatura do abraço sincero, que recorda um mundo melhor às almas
serenas e cheias de esperança no futuro.
Irei voltar para mostrar o longo caminho que conduz os corações até a linha do horizonte da vida, ao
verso que rima o soneto da esperança.
Irei voltar para descobrirmos juntos o segredo da melodia da timbila, a fantasia dos braços que
desenham a coreografia da dança Tufo e a arte que molda a máscara inspiradora dos passos da dança
Mapiko.
Irei voltar para traçarmos juntos uma sociedade sem pecados sociais, onde a educação oferece
conhecimentos que favorecem a competição ética no mundo, sem distinção de pertença social.
Irei voltar para arrancar o capim que cresce nas mentes, impedindo o florescimento da muda da paz.
Irei voltar para cantar com a criança africana a letra do silêncio e o ritmo do soneto de Hosana dos
anjos.
Irei voltar para mostrar as imagens dos momentos da travessia do deserto sem pisar na areia fina, mas
tocando a água do rio de palavras que purifica os olhos do espírito sábio.
Voltarei para evocar a saudade do tempo, recordar os bons momentos que vivemos e colher a chuva de
lembranças que fertiliza o solo das memórias, mantendo-as vivas em mentes de neurónios saudáveis.

Voltarei para recitar a poesia das noites de lua cheia, sentado à beira do Índico, a contar as estrelas que
alegram o pescador do bem.
Voltarei com a música do silêncio para fazer sorrir o coração calado. E estarei aqui e agora, com rima
sem soneto, com soneto sem rimas, para declamar a poesia do futuro que desenha estrofes do passado
e versos do presente.
Irei voltar…

 

28.02.25

Há poemas que não se deixam domesticar. Entram na boca como brasas, roçam a garganta, inflamam os sentidos. Há poemas que não cabem em uma moldura de significados fixos, que não se prestam ao descanso da interpretação clara. A poesia de M.P. Bonde é assim: um território de tremores, uma margem onde a palavra não ancora, mas resiste, se refaz, se desdobra em espectros de luz e escuridão. Um umbigo arde na boca longe de ser um mero livro, é um corpo em combustão, onde o íntimo e o simbólico colidem e deixam marcas.

Ao longo de seus versos, Bonde faz da palavra um campo de forças. Não há linearidade confortável, não há pausa para a respiração. O tempo se fragmenta, a memória se entrelaça ao presente, a experiência do corpo se confunde com o ônus da realidade.

No Caderno Primeiro: margem, nota-se uma reflexão sobre o tempo e a memória, com versos que dialogam com silêncio. O poema III traz elementos como “há anjos relendo Elliot no quarto onde amadurecem as palavras…”, evoca uma atmosfera introspectiva onde a literatura se torna um refúgio e, ao mesmo tempo, uma prisão melancólica.

Ademais, no poema IX, “na aflição escura a dureza do sono expande os gestos no soalho…”, o sono longe de ser um descanso, é uma matéria dura, um espaço de gestos que se expandem, talvez involuntários, talvez forçados pelo próprio desconforto da existência. O eu lírico não se abandona ao repouso – ele se movimenta no soalho, que amplifica sua presença tornando cada gesto audível, visível, palpável.

As figuras de estilo utilizadas por Bonde são afiadas e desestabilizadoras. A personificação das manhãs que “penduram o cume na folha pálida” , não é apenas uma atribuição poética da humanidade à natureza; é uma afirmação de que a luz não dissolve a angústia, mas a sustenta.

Há na sua poesia um brilho intenso, mas que não se entrega à claridade total, pois, como escreveu Antero de Quental, em Raios de Extinta Luz, “a arte é como luz: brilha do alto”, e é

desse lugar que Bonde conduz suas imagens – ora iluminando, ora mergulhando no escuro,

sem jamais se fixar em um único ponto. A sinestesia, subtil, entretanto presente, costura sensações e emoções em um mesmo tecido, criando uma poesia que se sente tanto quanto se lê.

Esse jogo entre a claridade e o desespero reaparece nos paradoxos da obra. A expressão “na claridade do desespero, as confidências do eco”, inverte a lógica comum: o desespero normalmente associado à escuridão aqui o autor o veste de luz. Esse tipo de subversão semântica, é recorrente na obra e exige uma leitura activa, onde cada verso pede para ser relido, decifrado, revirado como um enigma. O poema não se entrega de imediato — ele impõe resistência.

Por vezes essa resistência se manifesta no próprio estilo tornando-se excessivamente hermético. O excesso de deslocamentos sintéticos, pode gerar uma sensação de afastamento, impedindo que o leitor se conecte emocionalmente com o poema. No entanto, essa escolha estilística não é gratuita: é parte do próprio jogo de combustão que sustenta o livro. O desconforto não é um efeito colateral, mas um convite à imersão.

Já no Caderno Segundo: Porções do tempo, o tom parece mais intenso e onírico. No poema 4, a angústia é materializada em imagens como “Amarrei fios de lã na dobra da angústia” e “vozes amordaçaram lágrimas no vórtice da boca”. A recorrência do corpo – boca, umbigo, pupila – aponta para uma escrita que inscreve a subjectividade no físico, transformando emoções em matéria.

O título do livro já sugere essa fusão entre carne e verbo, entre matéria e discurso: um umbigo arde na boca. O umbigo, esse primeiro vínculo com a vida, o traço da conexão primordial, queima no lugar do discurso, na casa do dizer. É uma representação que ressignifica a oralidade não como um dom, no entanto como um fardo, um incómodo que inflama e queima. Mas o que resta ao corpo, se um umbigo arde na boca? Talvez resta apenas desassossego — um corpo incendiado pela linguagem, onde cada verso é fogo.

O impacto dessa escrita não está apenas no que ele diz, porém na forma como diz. A ausência de pontuação, a quebra abrupta dos versos, a escolha por imagens que desafiam a lógica habitual do pensamento: tudo isso faz de Um umbigo arde na boca um livro que exige uma leitura imersiva. Não há concessões ao leitor; há, sim, um convite – mas é um convite para a vertigem, para o fogo que arde na palavra e no corpo.

Ao final, resta a sensação de que fomos atravessados por algo indomável. Bonde não escreve para apaziguar, não escreve para ser decifrado em uma única leitura. A sua poesia é um organismo vivo, que nos escapa sempre que a tentamos fixar. E talvez seja essa a sua maior força, permanecer ardendo, mesmo depois que fechamos o livro.

 

Na pacata cidade de Inhambane, onde o mar sussurra segredos e as palmeiras dançam ao vento, uma tragédia silenciosa tem ceifado vidas sem alarde.
Num bairro tranquilo da terra da boa gente, o som do rádio de uma vizinha preenchia a manhã quando a notícia chegou. Rungo, um jovem de 32 anos, foi encontrado sem vida no quarto que alugava e ninguém percebeu os sinais. Ninguém sabia das noites mal dormidas, das dívidas acumuladas, do coração partido. A vizinhança ficou em choque, mas o luto foi rápido. “Ele devia estar a passar dificuldades”, comentaram alguns, antes de voltar à rotina. O silêncio que marcou a vida de Rungo foi também o epitáfio da sua morte.
Esta história, infelizmente, não é única. Em Moçambique, o suicídio é uma tragédia que ocorre em silêncio. Dados indicam que, em média, 8,4 pessoas por 100.000 habitantes tiram a própria vida todos os anos, e a maioria são homens.
Em 2023, quase cem pessoas tiraram a própria vida nesta província, com a maioria dos casos ocorrendo nas cidades de Inhambane e Maxixe, bem como nos distritos de Homoíne e Jangamo, mas o problema vai muito além dos números.
O que falta em cada estatística é a vida real de quem foi levado ao limite. É o rosto de homens que, pela pressão de parecerem fortes, nunca encontram espaço para desabafar.
A sociedade moçambicana, como muitas outras, ensina aos homens desde pequenos que “chorar é fraqueza” e “pedir ajuda é sinal de derrota”. Estas ideias tóxicas criam um ciclo de isolamento emocional, onde muitos se veem presos. Quando problemas financeiros, desgostos amorosos ou desafios sociais surgem, o peso da solidão cresce. Sem um sistema de apoio — sem uma palavra amiga, um abraço, ou até mesmo a coragem de procurar ajuda —, a ideia de terminar com tudo pode parecer, para eles, a única saída.
Mas onde estamos como sociedade? Onde está a família, que deveria ser um porto seguro? Muitas vezes, as famílias ignoram sinais claros de sofrimento porque os homens “são fortes e aguentam”. E a igreja? As comunidades religiosas precisam abrir espaço para discussões francas sobre saúde mental, quebrando os preconceitos que afastam as pessoas da ajuda necessária. O mesmo vale para a comunidade em geral. É urgente criar espaços onde os homens possam falar, chorar e ser vulneráveis sem medo de julgamento.
Em Moçambique, já vimos histórias que poderiam ter tido finais diferentes. Há casos de homens que tentaram pedir ajuda, mas foram ignorados. Uma mensagem não respondida. Um apelo descartado como “drama”. Estas são oportunidades perdidas, feridas abertas que deixam famílias a perguntar “o que poderíamos ter feito?”
Para prevenir esta tragédia silenciosa, precisamos de um esforço coletivo. É necessário educar crianças, homens e mulheres sobre a importância de expressar sentimentos. É essencial que a família esteja presente, que a esposa ou companheira seja uma aliada para ouvir, compreender e apoiar. É fundamental que todos nós, como sociedade, digamos aos homens que “está tudo bem em não estar bem”.
Cada vida perdida é uma voz que não foi ouvida, um grito que nunca chegou a ecoar. Não podemos permitir que os homens continuem a morrer sem serem ouvidos. O silêncio não pode ser o seu destino. É hora de mudar esta narrativa, antes que mais vidas sejam engolidas por este peso invisível.

Por: Fernanda da Lena Hermano

A história da arte é também a história das ausências. Em cada grande movimento, há nomes que não chegaram a ser escritos, vozes que não foram escutadas, imagens que nunca se materializaram porque as mãos que poderiam criá-las foram silenciadas antes do tempo.

Entre essas ausências, a presença feminina sempre foi um campo de disputa. Mesmo quando existem, as mulheres artistas precisam constantemente de reafirmar o seu espaço, justificar as suas narrativas, provar que a sua obra não é apenas uma extensão do doméstico ou do sentimental, porém um acto consciente de concepção e metamorfose.

Em meio a essa paisagem desigual, quando uma mulher escolhe o carvão – matéria rude e crua – e o pastel – frágil, quebradiço, mas radiante – para construir sua arte, ela está também a construir um território. Não apenas para si, entretanto para todas aquelas que ainda precisam romper barreiras para existir no campo da produção artística.

A exposição “Memórias daqui”, patente na galeria da Fundação Fernando Leite Couto, traz obras definidas por um jogo intenso entre o carvão e o pastel de óleo que conferem uma força emocional às imagens. Há rostos que parecem aflorar de uma memória distante, olhos que sustentam momentos repletos de emoção, traços que oscilam entre a nitidez e o esvanecimento. Indubitavelmente, Nelsa Guambe utiliza o desenho e a pintura como uma forma de escavação, isto é, cada linha é um resquício do que foi vivido e do que ainda ressoa.

Dentre as obras expostas, “Aiufa de Nankumi (29,7 x 42 cm, carvão e pastel de óleo sobre papel, 2024)”, não se impõe pelo deleite, mas pelo impacto. A composição nos apresenta um rosto feminino em desordem, uma identidade que se fragmenta entre o humano e o não-humano. A fusão entre a imagem e as criaturas que habitam sua cabeça propõe um estado de conflito, um embate entre forças internas e externas.

Duas entidades parecem dividir sua cabeça ao meio: à esquerda, um pássaro de presságio; à direita, uma forma menos definida, um híbrido de sombras que se confunde com o próprio traço da artista. Os olhos, inchados e marcados por tons de vermelho, azul e laranja, evocam um sofrimento que transcende a individualidade da imagem representada – um sofrimento que ressoa na memória de muitas mulheres, seriam marcas de violência? Seriam sinais de uma visão ampliada, que enxergam além do que é permitido? A obra abre a interpretações múltiplas, todavia não deixa dúvidas sobre sua força simbólica.

Na face, um segundo rosto se insinua. Seria um crânio? Um macaco? Um espírito ancestral?

A indefinição é precisamente o que o torna intrigante. Se um lado do rosto confere esse espectro do passado, o outro lado quase não existe – como se a ausência fosse a única possibilidade restante. O que significa ser uma mulher cuja metade da identidade foi apagada? O que resta quando a história de alguém é escrita apenas pelos outros?

A escolha dos materiais reforça essa tensão. O carvão, com a sua textura rugosa, gera uma sensação de pressa, de algo riscado rapidamente, como uma marca deixada em pedra. O pastel, mais delicado, introduz cor, mas não suaviza a dor expressa na imagem. Há algo bruto na obra, um desconforto visual que impede o espectador de apenas olhar sem sentir.

Outras obras também se destacam, pela sua potência e singularidade. Como em Duas Mulheres, aqui Nelsa nos apresenta um díptico intrigante. De um lado, um semblante de traços delicados, adornado com flores, exalando serenidade e graça. Do outro, um rosto de feições intensas, com um olhar perfurante, transmitindo vigor e determinação. A justaposição dessas imagens nos leva a questionar a complexidade da identidade feminina e a multiplicidade de papéis que as mulheres desempenham na sociedade. Seriam duas faces da mesma mulher? Ou representariam distintas gerações?

Contudo, nem todos os elementos da exposição alcançam a mesma potência expressiva. Em algumas obras, o traço parece sobrepor-se à emoção, resultando em composições visualmente densas, todavia carentes de subtileza. A paleta de cores, embora enérgica, por vezes se mostra previsível, enfraquecendo a capacidade de surpreender o espectador.

Apesar dessas pequenas ressalvas, na exposição “Memórias daqui” somos convidados a contemplar a força, a resiliência e a diversidade das mulheres, pois, “mulher é terra, sem semear, sem regar nada produz” (provérbio zambeziano, em Niketche de Paulina Chiziane), portanto, a arte serve como instrumento de empoderamento e transformação social.

Dessa maneira, as obras de Nelsa Guambe são como sementes que germinam no íntimo do espectador, despertando a consciência da força e da delicadeza da alma feminina. Seus retratos, esculpidos com carvão e banhados por cores resplandescentes, funcionam como espelhos que para além de reflectirem, também interpelam — revelando histórias, dores, lutas e esperanças.

 

Com o desenvolvimento das sociedades e a preocupação que estas sociedades vão tendo em relação à origem e ao passado do Homem, os costumes das comunidades, os traços que diferem uma comunidade da outra, a preocupação em manter imortais esses traços culturais, a cultura é usada na sociedade actual com infinidade de sentidos. Para o conceito da cultura, Marinez (2009) sublinha, no seu livro ‘Antropologia Cultural – Guia para o Estudo’, as definições dos clássicos Arnold e Tylon da seguinte forma:

Em 1869, Matthew Arnold definiu a cultura como o conseguimento da perfeição, que implica uma condição interna da mente e do espírito (doçura e luz), através do bom e do melhor que se pensou e se diz na história. E, em 1871, Edward Tylor, definiu a cultura como um conjunto complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e várias outras aptidões ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. Taylor faz uma reflexão importante e diz que a cultura não é biologicamente transmissível, mas sim adquirida dentro da sociedade, da qual este Homem é membro. Todas as culturas são dignas e não existem culturas mais valentes que outras.

Assim como a vida humana sofre influência do meio, também a cultura não é estática. Segundo Taylor, a cultura está em constante transformação. A cultura não é um fruto puro e está sujeita a processos constantes de contaminação. Marinez refere que a cultura é um produto do Homem, pelo que implica consciência e liberdade. O que faz distinguir o homem do resto do mundo animal é a cultura. Embora possa haver fenómenos comuns entre os homens e os demais animais, a diferença reside na consciência e liberdade presentes no acto humano.

A cultura é uma tarefa social e pertence à comunidade, ao grupo social do qual o indivíduo faz parte. O conjunto de experiências vividas pelo Homem, através da história, é que formam o património cultural de um determinado povo. A cultura é uma herança social reservada a um determinado povo, que merece conservação, transmissão e continuidade para as novas gerações. A linguagem é considerada um dos factores muito importantes no progresso da chamada herança social, que é a cultura. Graças à posse da linguagem, os homens podem transmitir, uns aos outros, uma ideia clara das situações não actuais e do comportamento adequado a essas situações, o que torna possível um enorme crescimento ao conteúdo da herança social. A capacidade humana de comunicar-se através da linguagem é considerada o primeiro facilitador da convivência humana e seguro transmissor dos traços culturais predominantes numa determinada comunidade. Para a fonte, com a linguagem, a transmissão do comportamento adquirido deixa de estar sujeita ao acaso. O conhecimento possuído por cada geração pode ser transmitido, como um todo, à geração seguinte.

A organização social em comunidades e a linguagem contribuíram para que o Homem tivesse uma herança mais rica que a dos animais. Assim, segundo Giddens, o que torna qualquer sociedade diferente é o facto de ela definir uma espécie de verdade. A cultura é um modo de vida total, e não apenas elementos parciais de uso e costumes. O autor fala da existência da cultura ideal, que é o comportamento que as pessoas acreditam que deveriam ter. Em contrapartida, a cultura real é entendida como o comportamento concreto das pessoas, ou seja, o que realmente fazem e vivem. Fontes acrescentam que “cada membro de uma sociedade precisa conhecer intimamente apenas a parte da cultura total necessária para adaptar-se e preencher um determinado lugar na vida da comunidade”. Isto quer dizer que o único limite à possibilidade de conteúdo de uma cultura é o conjunto formado pelas capacidades de aprendizagem e todos os indivíduos que compõem a sociedade portadora da cultura em questão.

Na realidade, este limite nunca foi atingido, nem aproximado. Por mais rica ou complexa que seja uma cultura, há sempre lugar para novos elementos. Os grupos sociais que são identificados pela sua cultura são cobertos de vários símbolos que funcionam como chave da cultura. Para Martinez, os símbolos formam sistemas entre si, que falam e, na sua inter-relação, transmitem mensagens que é necessário prestar-lhes a devida atenção para as captar. Etimologicamente, o vocábulo símbolo provém do verbo grego sumbalo, que significa lançar conjuntamente, reunir, amontoar. Expressa a ideia de aproximar e juntar duas partes de uma mesma coisa que originalmente estivera unida, com o fim de chegar a conhecer ou identificar algo. Trata-se de um sinal de reconhecimento.

Para que a cultura sobreviva por muitos anos, é necessário que ela seja transmitida a todos os novos membros da comunidade, para que saibam da sua importância na identidade dos traços de uma determinada comunidade.

Escrevemos-te deste nosso anónimo recanto. Queríamos publicar esta missiva na mesma noite quente de Dezembro passado quando, tomados pela angústia existencial e quase em prantos, escrevemos.  Sabemos que as palavras teriam mais comoção naquela altura, sobretudo quando cuspidas na língua que também foi dos nossos antepassados. Mas, infelizmente, a antiguidade dos nossos vocábulos ainda não cortou a fita na pista da corrida de velocidade das línguas do mundo. É uma pena não podermos te escrever no idioma que melhor expressaria a reciprocidade das nossas emoções. Tu sabes melhor o que isto significa.

Para compensar o infortúnio das nossas limitações, de não podermos te escrever na língua que corre na alma do nosso sangue e dos nossos antepassados, tentaremos usar as convenções que a maioria dos escribas usa nos seus actos. E como suporte, usaremos de empréstimo a língua que Gama e seus confrades de piratagem nos deram de herança.    

Já estamos em Janeiro de 2025. E, do outro lado do hemisfério, ainda carregamos as lembranças do frio, durante anos de sobrevivência na diáspora. O frio que nos trouxe a infância perdida nas memórias do vasto e serpenteante leito do Limpopo, quando ainda podíamos contar com a estação do inverno.  Lembra-se, era de fazer desenterrar todo o tipo de agasalho, de secar os dedos e os beiços, de reacender com vivacidade o afecto das nossas fogueiras. 

Nos tempos que correm, a antítese das coisas baralha a natureza! Qualquer ambientalista diria que são os carpos do aquecimento global. Os cristãos mais devotos diriam, seguramente, que Deus há muito tempo anda zangado! Nas aldeias da nossa terra, a mesma que te viu nascer, nas vastas planícies outrora esverdeadas de Mandlakazi, os anciãos diriam que os antepassados esgotaram a paciência de serem esquecidos. É cada qual com os seus argumentos e sua razão. A verdade é que se aluiu a harmonia entre os homens e a mãe natureza. Enquanto reflectimos, chega-nos a voz da Alice, a protagonista em Na Mão de Deus, que diz, perentória: “as pessoas vivem infelizes porque quebraram o pacto de harmonia com a vida”. 

2024 mal terminou, os dias do primeiro mês do novo ano esvaem-se a galope, num ritmo sem lógica. Não vemos o tempo passar! É como dizia a vó Ximeli, o ritmo dos novos tempos é outro. Ela, com quase 90 anos, tinha visto tudo nesta vida, e sabe o que diz. Para vó Ximeli, os sinais dos novos tempos não se traduzem apenas pelo ritmo acelerado, mas também pela insolência de realidades cada vez mais surpreendentes, insuportáveis, de crescente estupidez humana – desabafava em tom de tédio.

A verdade é que o ano começou com novos ciclos. Mas o novo, infelizmente, não traz a esperança de um novo começo. Gestado nos escombros da violência, o ano novo começa e corre sob o manto de incerteza, de uma paz incompreensível e de tensão latente, apesar do sol ir recuperando o domínio das tardes de Maputo, no lugar do cinzento de gás lacrimogênio e do barulho da pólvora. O brilho do alcatrão ressurge timidamente ante o preto das cinzas do pneu queimado e restos de cápsulas. Os “donos da pátria” aperaltam-se em posses e poses de ocasião. Dos púlpitos simulam discursos ufanos e emotivos, como sempre. O povo e a paz são jargões mais ouvidos. Que tipo de paz é essa, tecida à medida da gana de um bolso?

Paulina, como se pode falar de paz, desgarrados à reconciliação genuína e profunda? Como falar de paz, no meio de desaparecimentos forçados à luz do dia e da noite, mortes e enterros em valas comuns, mesmo depois de tudo… Como estar em paz, se as sequelas da pólvora jazem em membros mutilados, rostos desfigurados, no trauma e na ansiedade insanável de quem espera o retorno do filho que não voltou da “revolução”, e o Estado continua madrasta! A justiça cega. Ainda assim, e depois de tudo, a máscara ainda não caiu! 

Paulina, perdoa-nos por não ter o hábito de aprumar devidamente os pensamentos. As circunstâncias desorganizam as coisas. Há tempo para organizar pensamentos enquanto a pátria afunda em oceanos de lágrimas? Desde que aniquilaram a vontade do povo, esvaíram-se alguns dos mitos mais ufanos e ilusórios que anestesiaram o imaginário social. A passividade, a paz e harmonia social…

 Esgotaram toda a nossa paciência, confundiram-na com a apatia, que jamais nos foi intrínseca. E dá nisto, quando se semeiam histórias ao vento e se espera que elas mesmas protejam o sonho do universo e a nossa própria estabilidade, diria Erving Goffman.  

E agora, Paulina? E agora?

O caos virou o nosso normal. Negam-nos a liberdade como nos tempos dos nossos ancestrais vendidos a preço de um espelho. Negam-nos as nossas areias. O nosso ouro. Nosso gás. Nossa terra para erguer nossos esconderijos e produzir nossa sobrevivência. Negam-nos a nação inteira. Negam-nos tudo! E o barulho das armas é o eco da força de batuques que não param de estuprar nossas vidas miseráveis e únicas, como se tivéssemos outras de reserva. A morte deixou de ser temida pelos homens da farda e morremos como insectos. Craveirinha diria, se calhar menos alegórico do que naquele tempo, de forma espectaculosa “Feras matam velhos, mulheres e crianças/e não são feras, são homens/e os velhos, as mulheres e as crianças/são os nossos pais/nossas irmãs e nossos filhos, Maria!”. 

A pergunta que nos arrebenta os miolos é sobre o que é pior hoje, Paulina. A violência policial em si ou sua normalização?

Quando a polícia exibe o desprezo da vida e sequestra?  Quando os dedos no gatilho se erigem com o sangue de jovens (de)armados apenas com a voz e um dístico na rua? Quando seus dedos hirtos disparam a esmo o maldito gás nas residências, mutilam inocentes, semeiam luto e orfandade, espalhando terror, luto e a semente do ódio; e no lugar da vergonha, vinga a ultrajante disputa de narrativas, como se a morte fosse um simples arranjo discursivo?

Quando os run-flat de veículos blindados transformam corpos humanos em suas pistas de predilecção nas Avenidas da nossa desgraça? E no fim se fala de inquéritos cujo fim sabemos… Triste ópio de consolação colectiva.

O que é pior, nos dias de hoje, Paulina?  

No fim são champanhes às costas e custas do povo de que tanto falam, tripudiando do mesmo. Brindarão às ocultas pela divisão das tetas do Estado, depois de zombarem das nossas lágrimas. Vão negociar mordomias, vão discutir subsídios, vão comer, vão beber e depois arrotar o desprezo de sempre. Com o cinismo de sempre, virão de sorrisos postiços para apertar as mãos, celebrando a façanha em nome daquilo que entendem dar nome de paz. 

E o povo? 

O povo, esse, continuará minguando de fome e sede. Continuará na esperança de que um dia um elefante ainda pode se sentar numa poltrona e segurar uma xícara de café para depois dançar mapiko, mandowa, marrabenta ou kizomba. Continuará a servir de isca para pescar mais “donativos” do Banco Mundial e companhia FMI. Continuará a andar com o rabo fora. Continuará a estudar embaixo de árvores, em pleno século XXI. Continuará a (in)suportar todo o tipo de humilhação que lhes dá prazer! 

Os jovens continuarão afogando-se nos “xivotsongos”, sentindo-se presidentes e reis das suas vidas, por estarem a ingerir bebidas de quinta, de marca Presidente e Lord Gin. Nossas mães continuarão a pensar que têm toda a culpa da desgraça da vida dos seus filhos, enquanto são vítimas das “mentiras da verdade”. E assim tem que seguir a vida, neste festival sádico, para quem tem o vírus de que nasceu para ser dono de todos os moçambicanos a vida inteira, nem que seja necessário derramar centenas de litros de sangue.  

Ah, Paulina, há muito que perdemos o verdadeiro sentido da vida nestes trópicos! Desde que a sede pelo poder nos desumanizou. Há muito que os académicos que pululam as nossas televisões trocaram o pensamento crítico-reflexivo por um copo de vinho e cerveja, o lenitivo da nossa geração.  Faz tempo que substituíram a vocação académica por migalhas de sobrevivência. Não é de hoje que a educação virou o cúmulo do ridículo nacional. Faz tempo que nos nossos hospitais fede a morte, e os médicos, cansados, simplesmente assistem… 

A nossa soberania virou moeda de troca. Nossas Forças de Segurança transformaram-se em actores de circo, internacionalmente, ao alugarmos militares de um país que nem cabe na palma de Niassa para cuidarem de Cabo Delgado e dos recursos da nossa desgraça. Não seremos o novo Congo, mas não aquele sonhado por Patrice Lumumba? Não seremos o futuro Delta do Níger? 

No fundo, há muito que se perdeu o leme desta pátria! Desde que a nudez da gana se expôs em Cabo-Delgado, a consciência dos pés dos nossos irmãos já não adormece! Sarnau, em Balada de Amor ao Vento, diria, subscrevendo nossos vagos pensamentos: “Há muito que a luz adormecera no silêncio”.  

Paulina, tu sabias que, a uma velocidade supersônica, correm poços de petróleo a germinar, mais que cisternas de água, em cada esquina do país? Sabias que nas Avenidas Marginal e Julius Nyerere há mansões a florir mais do que um prato de milho no bojo da grei? Sabias que há muitos segredos escondidos no meio de toda esta confusão? 

Nós temos os nossos olhos cansados de derramar a falta de esperança. Temos o nosso gás a entornar-se no Rovuma e a servir de combustível para tudo assar. Assam-se os pés que não param de gritar e saltitam como pistões no interior dos cilindros. Torra-se a esperança de um povo. Arde a prosperidade de uma nação inteira. Temos Pande e Temane na míngua do nosso optimismo. Temos Moatize a parir, há muito, deslocações involuntárias. Temos Montepuez na raiva do passado e do presente. Temos tudo e nada ao mesmo tempo! É triste, Paulina. Tu sabes o significado de tudo isto. 

Tu, como poucos, cedo percebeste os jugos contemporâneos, porque tens alertado para os perigos de uma nação que se ergue sem o (re)conhecimento de si mesma, da sua memória e cultura. Por isso, em O Canto dos escravos, seus versos ecoam como som agudo das trombetas: “desperta do sono que te pode conduzir a novos abismos/escuta-me: sem passado e sem memória não há história/ninguém é ninguém se não souber quem na essência é”.

Paulina, queríamos ter rabiscado algo que expressasse a grandeza da tua obra e de mais de duas dezenas de estrada. Mas, o facto de estarmos com as tripas a ferver na angústia do desespero não permitiu. Talvez não fosse para ser nesta encarnação. E nada mais nos resta a não ser um amplexo cordial! 

Em colaboração com Isaías Mate

Sou Catarina Matusse, nascida no campo onde a vida pulsava lentamente, entre a terra e o ar fresco, onde o sustento da minha família se erguia dos cultivos que a natureza generosamente nos oferecia. Desde cedo, a educação era a luz que me guiava, iluminando o obscuro horizonte dos costumes que me cercavam. Quando terminei a 12.ª classe em Manjacaze, deixei para trás a tranquilidade da minha aldeia e mergulhei no caos vibrante da cidade de Maputo, onde o ritmo acelerado da vida se contrapunha à serenidade dos campos.

Aqui, tudo era diferente: as pessoas moviam-se apressadas, as prioridades eram moldadas por um egoísmo urbano que me destoava, e a luta pela sobrevivência adquiria um novo significado. Adaptar-me foi uma jornada dolorosa, onde cada passo me afastava das raízes que me sustentavam. Porém, não me deixei vencer. Lutei, estudei, e finalmente formei-me, senti um misto de orgulho e solidão. Confesso! 

Estar longe dos meus pais, meu porto seguro, era aterrorizante, mas foi o que escolhi e devo seguir por esse caminho! Até porque tornei-me a mulher que sempre sonhei ser, financeira e emocionalmente independente, capaz de estender a mão a meus pais em Gaza, que ainda aguardavam a minha luz com esperança. A cada vitória, ecoava em mim a mensagem que sempre me ensinaram: que devo sentir-me orgulhosa de ser negra…! 

Nas telas da televisão, nos programas da diáspora, essa afirmação pulsava como um mantra, no entanto, confesso que a melancolia me invade ao perceber que, neste mundo repleto de dinâmicas cruéis, a cor da minha pele, em vez de ser um símbolo de força, muitas vezes intensifica a luta por reconhecimento e dignidade. Sinto-me perdida entre a controversa beleza da minha identidade e a dura realidade que, ainda assim, persiste em deixar cicatrizes profundas na minha alma.

Sinceramente, foi ao sair da minha zona de conforto que percebi que o dilema da negritude não é apenas uma narrativa passada, mas um problema palpável, uma sombra que se arrasta, mesmo nas mais comuns das situações. Enquanto atravessava o oceano, numa viagem pelo mundo fora, deparei-me com uma realidade que doí para além do que imaginava: num autocarro lotado, eu era a única negra. O autocarro, apinhado de gente, tinha poucos assentos, talvez pela escolha prática de acomodar mais almas em pé do que assegurar conforto. As viagens eram curtas, o destino não estava longe, mas a carga emocional que levava parecia interminável.

Ali estava eu, sentada e com um lugar vazio ao meu lado, as acelerações bruscas do veículo fazendo as pessoas balançarem de um lado para o outro de forma incómoda. O que mais me marcou foi que, apesar do espaço escasso, ninguém parecia disposto a ocupar aquele lugar ao meu lado. O entendimento do porquê, tardou a chegar como um peso no meu peito: era a cor da minha pele que estava a intimidar aqueles que ali se encontravam. Nesse instante, uma onda de desconforto invadiu-me, fazendo-me sentir suja, como se a minha existência fosse um fardo.

Encolhi-me, desejando ardentemente ser invisível, evaporar na atmosfera da indiferença. O desejo de voltar para casa explodiu dentro de mim, uma saudade profunda da minha aldeia, onde a cor da pele era apenas uma parte de quem eu era, onde ninguém olharia para mim com olhos de estranheza. Naquele momento, a cidade, com o seu brilho frio e a sua solidão, tornou-se um labirinto opressivo do qual não conseguia escapar. A dor da rejeição, do isolamento, era um eco que permanecia, lembrando-me que, mesmo em um mundo tão vasto e diversificado, a minha luta ainda era apenas a ponta de um iceberg.

E isto ainda era apenas o começo da minha jornada. No meu destino temporário, participei de um sorteio cujo prémio era um telemóvel de grande valor que poderia mudar a minha vida. Quando vi o meu nome na tela, “Catarina Matusse”, o meu coração pulou de alegria, transbordando de esperança. Eu, aquela menina desajeitada do campo, tinha sido agraciada com algo tão precioso! Naquele instante, as memórias da humilhação no autocarro pareciam ter-se dissipado, como se a felicidade pudesse apagar o peso desse momento tão doloroso. Mas, ingenuamente, não sabia que o pior ainda estava por vir…

Ao subir ao palco para receber o meu prémio, um sorriso radiante e genuíno iluminava o meu rosto, mas, de repente, senti um olhar de julgamento que me cortou como uma lâmina afiada. O semblante da sorteadora transformou-se, assumindo uma expressão de desprezo que me fez tremer. Mas eu não me deixei intimidar; era claro que eu havia ganho o prémio, e entre a emoção de ter conquistado aquele objecto desejado e o desprezo daquela senhora, a alegria deveria prevalecer. Contudo, a atmosfera logo se encheu de tensão quando ela começou a levantar obstáculos, a criar dificuldades para me conceder o que era meu por direito, até mesmo tentando manipular a situação de forma criminosa através do meu próprio celular…!

Discutiu-se acaloradamente se eu deveria realmente levar aquele telemóvel para casa, como se a tela que exibia o meu nome não fosse suficiente prova da minha vitória. Para meu espanto, fui desqualificada, sem sequer poder contestar. 

A injustiça da situação era palpável, e até hoje não entendo os verdadeiros motivos que levaram à minha exclusão. O sistema de sorteio era automático, as regras eram claras, e eu, sem dúvida, ganhara aquele prémio. No entanto, a cor da minha pele tornou-se o obstáculo que me impediu de trazer o telemóvel para casa.  

Como posso, então, sentir orgulho de ser negra, quando a realidade me ensina que, mesmo quando a sorte sorri, há sempre aqueles que se aproveitam da sombra do preconceito para apagar o brilho dos meus triunfos? A melancolia e a dúvida permanecem, um peso que carrego todos os dias, lembrando-me que, na luta pela dignidade, a batalha ainda está longe de ser vencida.

Ao longo da jornada de Catarina, somos convidados a refletir sobre a complexidade da identidade e as lutas diárias que muitos enfrentam devido à cor da pele. Sua história não é apenas um relato pessoal, mas um espelho das realidades que persistem em nossa sociedade. 

É imperativo que cada um de nós reconheça que a luta pela dignidade e pelo respeito é uma responsabilidade colectiva. Devemos unir nos em solidariedade, questionar nossos próprios preconceitos e promover um ambiente onde todas as vozes sejam ouvidas e valorizadas independentemente da cor e raça. 

Que possamos agir com empatia, apoiar iniciativas que promovam a igualdade e celebrar a diversidade que enriquece o nosso mundo. A transformação começa com a conscientização e a disposição de cada um para fazer a diferença. Ao nos unirmos, podemos iluminar os caminhos de quem ainda luta para encontrar seu lugar no mundo, assim como Catarina. Lembremo-nos: todos somos responsáveis pela promoção da mudança…

Uns vêem o mundo em paredes brancas, outros nas estampas que a vida borda sobre os seus dias. Há quem encontre raízes na lembrança de um cheiro, no brilho de cores que resistem ao sol e ao tempo. O olhar, por vezes, é uma travessia. Nem sempre basta ver; é preciso decifrar, tocar com os olhos, sentir a textura do que se apresenta à nossa frente. 

É nesse fluxo entre o que fomos e o que nos tornamos que a exposição “Fico a ver o lá daqui”, de Jorge Dias, se desenha. Aqui, o olhar se abre para o instante que carrega séculos, para a cor que conta histórias, para o detalhe que revela uma identidade em perpétua construção. Não há respostas fixas, apenas perguntas que dançam sobre a superfície das telas, pois,“é o olhar que dá sentido ao que se vê, como aponta John Berger, em Modos de ver.”

Inaugurada no Camões – Centro Cultural Português, no dia 12 de Fevereiro, e aberta ao público até o dia 15 de Março, “Fico a ver o lá daqui” propõe um diálogo entre o que se vê e o que se sente, entre a memória colectiva e a experiência pessoal.

A série Beleza da Terra, composta por três obras (Beleza da Terra I, Beleza da Terra e Beleza da Terra II), é um dos pontos centrais dessa jornada visual. As obras, compostas por acrílico, colagens de tecido e papel espuma, materializam um discurso em que a sobreposição não é apenas técnica, mas também conceitual, isto é, revestimento de memória, tradição e reinvenção se entrelaçam, revelando a multiplicidade do olhar.

Nas três obras, observamos figuras que parecem totens ou guardiões da terra, elementos geométricos que evocam símbolos tribais e paletas que transitam entre os tons terrosos e as divergências do vermelho, azul e verde. As formas circulares, recorrentes nas obras, sugerem ciclos – de vida e de história.

As composições exibem uma dança entre o geométrico e o orgânico: círculos, vasos e figuras humanas emergem de um espaço em que as cores expressivas se impõem sobre fundos ornamentados. O uso do papel espuma adiciona um relevo quase escultórico, fazendo com que os elementos avancem para além da superfície plana e convoquem o espectador a um olhar mais atento.

Esse efeito volumétrico dá às criações uma sensação de materialidade, pois elas vão além da representação e ocupam o ambiente.

Mas o que nos diz essa “beleza da terra” que o artista propõe? Não se trata de uma contemplação bucólica ou de uma exaltação ingênua da paisagem. Pelo contrário, a beleza

aqui se apresenta através da resistência das tradições e dos desafios impostos pela modernidade.

Como no caso das práticas de herança como o timbila ou as danças tradicionais, que, mesmo diante da globalização e da urbanização, continuam a ser instrumentos de afirmação cultural.

A beleza que se propõe não é passiva, mas activa, em constante diálogo com as mudanças

sociais e políticas que definem o cotidiano de Moçambique. Entretanto, a força estética da série pode, em certos momentos, se perder na densidade de informações visuais. A profusão de padrões e sobreposições, embora intencional, pode desafiar a apreensão imediata da composição, tornando a observação mais exigente.

Para alguns observadores, esse excesso pode ser visto como dispersão, enquanto para outros, é justamente esse acúmulo que confere potência às obras, reflectindo a complexidade da história e da cultura que representam.

Vale ressaltar que, o título preconiza um deslocamento, ou seja, um exercício de ver à distância, de interpretar o outro lado a partir do aqui. Mas onde exactamente é “aqui” e onde

está “lá”? Jorge Dias responde sem respostas fechadas, conduzindo o observador por um mosaico de significados que recordam tanto a cultura moçambicana quanto uma estética globalizada e contemporânea.

Em Moçambique, essa dicotomia entre “aqui” e “lá” pode ser observada nas praças e avenidas que trazem consigo a memória histórica e a dinâmica social do país. A Praça da

Independência, no centro de Maputo, simboliza a transição de um “aqui” colonial para um “lá” de liberdade, sendo um espaço que não apenas evidencia um ponto de encontro urbano, todavia também o local onde as celebrações e os protestos, as manifestações culturais e políticas, continuam a redefinir o país.

Adicionalmente, o tecido, um elemento recorrente, remete às capulanas, que, além de vestimenta, são portadoras de narrativas, lembranças e afectos. Em outros termos, assim como a terra é cultivada e transformada, a identidade que emerge dessas obras também se 

inscreve na mutabilidade. Portanto, Jorge Dias, com essa exposição, questiona as fronteiras da identidade e da memória.

No jogo entre ver e ser visto, “Fico a ver o lá daqui” transforma o próprio acto de olhar em uma experiência de deslocamento. O espectador é chamado a preencher lacunas, a reconstruir significados, a costurar, ele também, sua própria interpretação. Como escreveu João Guimarães Rosa “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é na travessia”. E, talvez, ao final, perceba que “o lá” nunca esteve tão distante, ou que, no fundo, sempre esteve dentro do “aqui”.

 

Por Domingos Mucambe

As vezes que tenho uma visita guiada nas artes minguam quase nunca acontece, e, contra todas possibilidades e probabilidades, aconteceu: e, imersos num cenário onde preto e branco, cores predominantes, nos escureciam o presente nas sombras do passado, eu me revelava um inexperiente nessa coisa de ser guiado e, paralelamente nos desconhecimentos, quem me guiava também tombava nas suas explicações inexistentes, e, levados pela melancolia dos Madjoni-joni, partilhávamos mais silêncios que palavras. É nesse entremeio que nasce a vontade de escrever esse ensaio, para, num lado, dizer o quão gostei desse passeio nas histórias de muitas famílias moçambicanas e, do outro lado, reagir a obra de Nuno Silas, exposta no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

De longe, apenas o preto e o branco lampiscavam, numa dança coordenada, mas também adversativa: uma cor tentava levar o lugar do outro, e, no final, os dois conquistavam a atenção mesmo nesse infinito pelejo. São duas cores que, convencionalmente, têm sido usados para retratar todos os sentimentos ligados a sofrencia de vários tipos, até mesmo o desfavorável luto, por exemplo. E é bem isso que se sente, se vislumbra e se imagina naquelas grandes telas: as dolorosas angústias de um pretérito muito presente, e em prontidão de acontecer,  acompanhado também por luto: se não é luto por um querido que se tornou ente naquele trabalho mineiro, era luto porque as pessoas perdiam um pouco de si naquelas covas, ora a sua saúde, a sua sanidade, e outras vezes outras coisas indescritíveis, e que somente as histórias que traziam dentro dos seus peitos podiam desenhar esse panorama. Não é apenas uma angústia que nos nasce ao vislumbrar essas lutas, são muitas que nos perpassam onde se resguarda uma memória colectivamente vivida, por isso é que, de um modo, são ressuscitadas, se andam vivas como que nunca morreram, então foram trazidas ao diálogo. Falando em diálogo e discurso, a exposição “Madjoni-joni: retratos de mineiros e famílias moçambicanas na África do sul” traz uma intermidialidade quando junta, num mesmo espaço, a fotografia, o vídeo e o desenho em grandes telas. Em breves trechos, a intermidialidade é a “relação que se estabelece entre dois ou mais produtos de mídia e de estabelecer uma categoria analítica” (Kogawa, Ghirardhi et Dos Santos, 2022 (disponível em https://doi.org/10.1590/2176-457353511)).

Além desses três “produtos de mídia”, essa exposição tem algo de incomum, nas galerias moçambicanas, que é o jogo dialógico/dialéctico entre os desenhos (e outras artes) e alguns textos. Essa interacção entre o texto e o desenho, por exemplo, essa intermidialidade, faz-nos não termos saudades dos títulos das obras. Em algum modo, sente-se que o texto, em inglês, na primeira exposição, por exemplo, contextualiza, clarifica e, para o nosso bel prazer, aprofunda a degustação. Apesar de haver essa contextualização e clarificação, surge, nos ares, que as mesmas são parciais, o que faz com que a outra parte da interpretação ainda se resguarde no ofício individual e subjectivo. Aliado a essa questão, a ausência de títulos abre um campo de significações que fica ao encargo do próprio observador, apreciador.

Em telas, Nuno Silas conseguiu reunir variadas angústias de Gado Mapara Magaiza, denunciado por José Craveirinha, isolamento forçado pela apartheid até a xenofobia. Há aqui uma conversa entre as telas, todas trazem-nos na tez as dificuldades, o sofrimento e, no meio disso tudo uma única possibilidade, a resiliência de famílias moçambicanas nas terras do rand. Metaforicou o trabalho braçal com os capacetes usados pelos trabalhadores das minas, e, nesse jogo entre

palavra e figuras, Nuno Silas escreve “Slave labour on mines” [trad.: Trabalho escravo nas minas] que nos oferece balizas concretas, essas que nos permitem relacionar esse quadro com o contexto “Gado Mapara Magaiza”, onde se retrata o trabalho desumano (animal), desigualdades e outras injustiças sofridas por moçambicanos. “Mamparra Magaiza” assim surgiu para glosar com homens que eram explorados não só por ignorância, como também por falta de protecção das autoridades.” – Luís Loforte (2007, correio da manhã). É essa falta de protecção que os fazia gado. Num outro quadro, sinto que o Silas sugere a ideia do apartheid e o isolamento dos negros (em particular, as famílias moçambicanas) com o arame farpado atrás de um pai, mãe e filho.

Nesse trabalho coordenado de significações, está lá uma estória desenhada que nos chama atenção, a todos, que é a questão da xenofobia. Cecília de la Garza (2011, disponível em https://doi.org/10.4000/laboreal.7924), na tentativa de definir esse conceito, refere que “pode dizer-se que este tipo de discriminação se baseia em preconceitos históricos, religiosos, culturais e nacionais, que levam o xenófobo a justificar a segregação entre diferentes grupos étnicos com o fim de não perder a própria identidade”. É, à luz dessa pequena definição ou tentativa de se situar esse conceito, o caso de dizer que os moçambicanos sofrem preconceitos e discriminação constantes nas terras sul-africanas que leva os mesmos a estarem isolados e segregados. Contudo, a própria autora acrescenta que “por outro lado, muitas vezes acrescenta-se um preconceito económico que vê nos imigrantes competidores pelos recursos disponíveis no seio de uma nação” (ibidem). Esse por outro lado revela muito aquilo que é a problemática do moçambicano nas terras do rand, que é, simplesmente, uma migração económica. E isso é justificado na transcrição “I came to Joni because of poverty, indeed!” [trad.: Vim para Joni por causa da pobreza, de verdade], e, com falta de protecção e ignorância, coloca-o numa posição de fragilidade.

O quadro é simples: um grupo de pessoas rodeando uma outra pessoa numa posição, imagina-se, de resignação e sendo apedrejado. Essa obra revela muito desse comportamento hostil contra os estrangeiros na África do Sul direccionado aos moçambicanos, em geral. É uma imagem que é reveladora, não precisa de muitas palavras. Essa tinta-da-china sobre papel em 150 X 196 cm, datada de 2024, abre feridas que ainda vertem grãos de pus e, de um outro modo, intensificam o já intenso drama de ser um moçambicano pobre naquelas terras: o terror e o medo de, a qualquer momento, eclodir qualquer fissura económico social e a corda rebentar-se pelo lado mais fraco.

Por conta da sua fraqueza, esses pagam com vida, em mortes mais dolorosas que qualquer acto de sacrifício, paus e pedradas até a respiração perder-se entre o ar, contaminado por sua exploração.

Essa exposição traz isso, em geral, as angústias que temos como moçambicanos: dos muitos gados mapara magaiza, dos isolamentos em bairros de lata e, em particular, a xenofobia, que acaba sendo o demonstração mais que evidente do sofrimento dos moçambicanos na terra de Mandela.

 

“A maior arma de um opressor é a mente do oprimido.” — Steve Biko

  1. A Ignorância Como Política de Estado

A história de um povo é escrita nas salas de aula. O destino de uma nação não se decide apenas nos palácios ou nas urnas, mas sim, nos livros que são colocados nas mãos das crianças, nas palavras que lhes são ensinadas como verdades absolutas, nos limites impostos aos seus pensamentos, antes mesmo que possam questioná-los.

Em Moçambique, a ignorância não é um acidente. É uma construção. Os conteúdos escolares são cada vez mais superficiais, distorcidos e, muitas vezes, deliberadamente falsificados. Os jovens aprendem que Moçambique faz fronteira com o Mar Vermelho, que Azagaia, o maior rapper e activista da sua geração, era um mero consumidor de drogas, que é normal adolescentes do mesmo sexo desenvolverem desejos sexuais um pelo outro. Não sei como pode isso ser descrito como educação. Livros com erros grotescos são distribuídos nas escolas e, quando são expostos ao público, o Ministério da Educação alega desconhecimento. Mas a questão essencial permanece: se ninguém aprovou os manuais, como chegaram eles às mãos das crianças?

A resposta não está na incompetência, mas na intenção. Manter o povo na ignorância é o primeiro passo para garantir que ele não questione, que não lute, que não se rebele. A falta de uma educação de qualidade não é um descuido, mas sim um projecto de poder. 

  1. A Polícia e o Estado: A Violência Como Método

A consequência directa de uma população mal instruída é um sistema de justiça brutal e primitivo. A polícia moçambicana não investiga crimes, não respeita procedimentos legais, não consulta peritos forenses ou linguísticos. Não porque não queira, mas porque não sabe. A Constituição, que deveria ser o pilar do seu trabalho, é um livro desconhecido para a maioria dos agentes. Sem conhecimento da lei, aplicam apenas a força.

Os casos de abuso policial são incontáveis. A prisão arbitrária e a tortura tornaram-se ferramentas comuns para extrair confissões, e qualquer voz dissidente é silenciada. Um exemplo recente foi o famoso caso de Unay Cambuma (Wilson Matias), que foi espancado e humilhado publicamente. Mas parece que seu processo desapareceu nos corredores obscuros da impunidade. Está preso? Vai a julgamento? Ninguém sabe.

E poucos se atrevem a perguntar.

A impunidade é a lei silenciosa que governa Moçambique e a falta de conhecimento da população torna-a possível. Como exigir justiça quando não se conhece os próprios direitos?

III. A Mídia: A Verdade Silenciada

Se a educação fracassou e a polícia governa pelo medo, restaria ainda um último reduto de resistência: a imprensa. Mas o que acontece quando até a mídia é controlada?

A televisão estatal moçambicana (penso, única estatal), há muito, perdeu credibilidade.

Pressionada pela população a ser menos “mentirosa”, continua a operar sob uma única perspectiva: a que favorece o poder. A notícia não é um reflexo da realidade, mas sim, um espelho distorcido, uma narrativa cuidadosamente construída de modo a manipular a opinião pública.

Como alternativa, surgiram canais independentes, como a TV Sucesso, de Gabriel Júnior.

Mas dizer a verdade tem um preço. O sinal do canal foi removido da DSTV, sem explicação, deixando milhares de moçambicanos sem acesso a uma das poucas fontes de informação confiáveis. 

  1. O Custo de Dizer a Verdade

A censura à imprensa independente e a perseguição de activistas são sintomas de um governo que teme a consciência do seu povo. Mas nem todos se calam. Movimentos de jovens como os de Nádia Munguambe, Quitéria Guirengane, continuam a lutar pelos direitos humanos, mesmo sabendo que a batalha é desigual.

A luta pela verdade não é apenas uma questão de coragem. É uma questão de sobrevivência. Enquanto a informação for suprimida, enquanto a educação for manipulada, enquanto a violência policial for normalizada, Moçambique permanecerá refém de um sistema que prospera à custa da ignorância.

  1. A Última Pergunta

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