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ARTIGOS DE OPINIÃO

(Comeu e não limpou a boca)

Contexto

Na última semana, foi submetido à apreciação pública o Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2024. Como tem sido recorrente, as manchetes dos jornais e os debates televisivos giraram em torno de um tema que a opinião pública já conhece demasiado bem: o desvio e a má utilização dos recursos do erário. O caso mais citado foi o desaparecimento de 33,6 milhões de dólares provenientes das receitas do gás natural, verba que, de acordo com a lei, deveria ter sido canalizada para o Fundo Soberano.

A indignação gerada por este exemplo emblemático dominou as discussões. Contudo, a pergunta que se impõe é se tais desvios representam a causa dos problemas da governação em Moçambique ou se, pelo contrário, são apenas manifestações de algo mais profundo. Ao observar o conjunto de anomalias descritas pelo Tribunal Administrativo, fica claro que não se trata de episódios isolados. Eles são sintomas de uma doença mais grave: a erosão dos fundamentos do Estado de Direito.

É nesse quadro que este artigo procura ir além do imediato. Mais do que contabilizar valores perdidos ou indignações pontuais, o objectivo é analisar as condições estruturais que permitem tais desvios. O problema maior não está apenas na gestão deficiente de recursos públicos, mas na prática persistente de governar fora dos limites da legalidade, reduzindo a lei a um enunciado sem força vinculativa. Explorar esta contradição — entre a promessa normativa e a realidade governativa — é essencial para compreender as fragilidades da nossa democracia e os desafios para a sua consolidação.

O percurso normativo: avanços no papel

A noção de Estado de Direito ocupa um lugar central na teoria e na prática da governação moderna. Ela assenta na premissa de que a autoridade pública deve ser exercida dentro de limites legais claros, universais e obrigatórios para todos. A legalidade não é apenas um enunciado formal: é um princípio estrutural que organiza a relação entre poder e norma, garantindo previsibilidade, igualdade e justiça. 

Em Moçambique, a evolução constitucional e legislativa do país mostra, à primeira vista, um esforço considerável para se aproximar deste modelo. Desde a independência, a Constituição foi revista em múltiplas ocasiões para incorporar elementos da democracia representativa, da descentralização e dos direitos fundamentais. Foram igualmente aprovadas leis detalhadas em domínios cruciais: gestão orçamental, administração pública (ex: lei n.º 9/2002 e lei n.º 4/2011), exploração de recursos naturais (ex: lei n.º 20/2014) combate à corrupção (ex: lei n.º 6/2004), criação de tribunais especializados (ex: lei n.º 18/2018), regulação da actividade económica (ex: lei n.º 1/2022).

Acresce ainda o desenvolvimento de instrumentos electrónicos modernos, como o e-SISTAFE, destinados a garantir maior transparência na gestão das finanças públicas. O quadro normativo, portanto, é vasto e sofisticado.

Contudo, o Estado de Direito não se mede pela quantidade de leis ou pela sofisticação tecnológica. Mede-se pela sua aplicação efectiva, pela igualdade perante a lei e pela capacidade das instituições em fazer cumprir as regras sem distinção, e no ordenamento jurídico moçambicano são elas a Assembleia da República (AR) e a Procuradoria Geral República (PGR).

O Relatório TA 2024: um espelho desconfortável

O recente Relatório do Tribunal Administrativo relativo à Conta Geral do Estado de 2024 ilumina esta interrogação com clareza perturbadora. Segundo o Tribunal Administrativo, as contas apresentadas pelo Executivo apresentam violações reiteradas das normas de elaboração e execução orçamental, incumprimento sistemático de procedimentos contabilísticos definidos há mais de duas décadas, elaboração de mapas financeiros fora do sistema electrónico concebido para garantir integridade, ausência da cobrança de impostos sobre a renda mineira, não-transferência das receitas florestais e faunísticas às comunidades locais, omissão das contribuições destinadas ao Fundo Soberano, e ainda a contracção de empréstimos de grande dimensão sem autorização parlamentar. Este padrão persistente remonta a 2002, ano em que foi aprovada a Lei n.º 9/2002 (SISTAFE), cujas disposições continuam, duas décadas depois, a ser sistematicamente desrespeitadas, mesmo com as recomendações recorrentes do TA. Portanto, trata-se de um catálogo de práticas que não são meros acidentes administrativos: são sinais de uma governação que, em múltiplos momentos, actua como se a lei fosse facultativa.

A gravidade não reside apenas no detalhe das irregularidades. Reside no princípio que é violado. Num Estado de Direito, a lei é universal: aplica-se a todos, do cidadão mais humilde ao governante mais poderoso. Quando o governo ignora normas que ele próprio aprovou, transmite uma mensagem destrutiva: que a lei é apenas um instrumento de conveniência política, válido para uns, dispensável para outros. O resultado é a corrosão da confiança social e a erosão da legitimidade das instituições.

Implicação de um “Estado de Esquerda”

As consequências desta erosão, como vimos acima, multiplicam-se em diferentes esferas. (ii) No plano económico, a não-cobrança de impostos sobre a renda mineira (IRRM) representa uma perda colossal de receitas num país que enfrenta desafios severos em matéria de financiamento de serviços públicos.

Vale lembrar ainda que, num contexto de pobreza estrutural, cada metical não arrecadado corresponde a escolas não construídas, hospitais não equipados, estradas não reabilitadas. Por outro lado, (ii) no plano social, a não-transferência de receitas às comunidades constitui não apenas uma injustiça, mas uma violação de direitos reconhecidos em lei. As populações que vivem em zonas de exploração florestal, faunística ou mineira vêem-se privadas de compensações que deveriam mitigar os custos ambientais e sociais da actividade extractiva. A frustração resultante alimenta tensões locais e mina o sentido de pertença ao projecto nacional.

(iii) No plano político, a repetição de práticas ilegais por parte do Governo gera uma cultura de impunidade. Se quem governa pode violar a lei sem consequências, por que razão haveria o cidadão comum de respeitá-la? O efeito de contágio é inevitável: multiplicam-se os comportamentos informais, a evasão fiscal, as práticas corruptas. O Estado de Direito perde a sua função ordenadora e transforma-se num enunciado vazio, incapaz de regular a vida colectiva. De lembrar que, durante as manifestações, a polícia se tornou alvo por se entender que esta não seguia a lei.

Por fim, o relatório do Tribunal Administrativo também revela outra fragilidade: (iv) a debilidade dos mecanismos de fiscalização. Desde 2002, as recomendações desta instituição são reiteradamente ignoradas. Esta ausência de consequências transforma o controlo institucional num ritual formal, sem eficácia real. O parlamento, por seu turno, raramente exerce a sua função fiscalizadora com independência plena, funcionando muitas vezes como extensão do executivo. Por sua vez, a PGR é eficiente em perseguir um ladrão de galinhas, ou um nhoguistas do Mercado Estrela, mas perde capacidade quando se trata dos Boisses. O resultado é um ciclo vicioso: relatórios são produzidos, irregularidades são registadas, mas a governação prossegue como se nada tivesse sido dito. 

Este padrão não é exclusivo de Moçambique, mas reflecte um dilema frequente em democracias jovens e em Estados marcados por legados autoritários: a dificuldade de transformar normas formais em práticas enraizadas. O que se observa é uma espécie de “dupla realidade”: por um lado, uma Constituição e um corpo jurídico que reflectem os mais avançados princípios democráticos; por outro, uma prática governativa que frequentemente os ignora. Entre a promessa normativa e a prática política abre-se um vazio que fragiliza a própria ideia de democracia.

Um sistema político pode organizar eleições periódicas e manter uma aparência institucional democrática, mas, sem Estado de Direito efectivo, corre o risco de degenerar em formalismo. As eleições deixam de ser suficientes para legitimar o poder quando este se exerce acima ou fora da lei. A democracia reduz-se então a um ritual procedimental, desprovido da substância que a sustenta: a submissão do poder à norma.

Como inverter esta trajectória? 

A resposta não se encontra na aprovação de mais leis, mas na criação de condições para que as existentes sejam respeitadas. Isso implica três transformações decisivas, nomedamente: 

  1. A primeira é institucional: órgãos de fiscalização como o Tribunal Administrativo devem ter autoridade vinculativa, de modo que as suas recomendações produzam consequências jurídicas e políticas concretas. Isto implica transformá-lo urgentemente em Tribunal de Contas; 
  2. A segunda é política: a Assembleia da República deve reforçar a sua independência em relação as amarras políticas, exercendo de forma efectiva o papel de controlo do executivo. Os partidos da oposição devem tomar liderança e iniciativa (será necessário contratar serviços especializados para prestar a assistência técnica);
  3. A terceira é cultural: é preciso cultivar uma cidadania que veja no Estado de Direito um património comum, e não uma imposição distante. Sem pressão social, as instituições permanecem vulneráveis à captura pelo poder político.

Moçambique encontra-se, assim, perante uma escolha de fundo. Ou transforma o seu património normativo numa realidade prática de governação regulada pela lei, ou continuará prisioneiro de uma contradição em que a legalidade é proclamada mas não vivida. A história mostra que regimes que ignoram sistematicamente o Estado de Direito acabam por perder não apenas a confiança dos cidadãos, mas também a capacidade de assegurar desenvolvimento sustentável. Na Venezuela, a fragilização das instituições e o desrespeito sistemático pelas normas constitucionais geraram uma crise humanitária sem precedentes, demonstrando como a erosão da legalidade pode corroer tanto a economia como a coesão social. 

A arbitrariedade pode parecer vantajosa no curto prazo para quem governa, mas no longo prazo mina a própria sobrevivência do sistema político.

Diz um célebre provérbio africano o seguinte: “A árvore do baobá começa com uma semente pequena”.Oriunda de família com grandes limitações financeiras, chega hoje aos seus 53 anos a maior campeã moçambicana de todos os tempos: Maria de Lurdes Mutola. De carácter comedido, parca em palavras, mas sempre mulher de acção, ela encarna com perfeição a essência escorpiana, reconhecida pela intensidade, sensibilidade, coragem e uma personalidade magnética e enigmática.

Lurdes Mutola é o baobá das nossas lides desportivas. E será sempre essa síntese de força interior e reserva emocional, que expressa, com discrição, o muito que almeja realizar pelos jovens deste país. Tem a consciência exacta do esforço e da dedicação que a vida exige, porque nada lhe foi oferecido de bandeja. Respeita profundamente todos aqueles que dão o seu melhor para erguer ou reerguer este Moçambique que ainda busca, de tudo um pouco, para o bem do seu povo, nem sempre com o êxito desejado.

Com tudo o que conquistou, à custa de enorme sacrifício, ela partilha, como todos nós, as disfuncionalidades do país, os desequilíbrios, as máculas, os entraves e as suas aporias. Tive a oportunidade de privar com ela e conversar longamente na sua última homenagem pública. Avessa aos holofotes, notei o quanto viajava absorta em pensamentos, cautelosa perante as surpresas, mas convicta de que vale a pena apostar no desporto, resgatar as velhas glórias e criar incentivos capazes de inspirar milhares de jovens talentosos, tantas vezes privados de oportunidades. Convenhamos, foi um momento de conversa franca e desarmada, repleto de aprendizagens.

Lurdes Mutola, a nossa Menina de Ouro, correu como quem carrega o sonho de um povo inteiro. Veio do Chamanculo, essa periferia de poetas, boxeadores, músicos e sonhadores, e transformou as suas passadas em páginas eternas da história do atletismo mundial. Foi pela mão de José Craveirinha, o maior poeta da nação, e do seu filho Stélio, que ela encontrou motivação para se desligar do futebol de campo e fazer uma viragem, não providencial, mas oportuna, rumo ao atletismo. Pai e filho, perspicazes, viram nela o diamante ainda por lapidar.

E o mundo testemunhou esse brilho ao longo de anos que a história jamais apagará das suas páginas mais douradas: ouro em Stuttgart (1993), ouro em Edmonton (2001), ouro em Paris (2003); prata em Sevilha (1999), bronze em Atenas (2006). Ouro em Toronto (1993), Barcelona (1995), Paris (1997), Lisboa (2001), Birmingham (2003), Budapeste (2004) e Moscovo (2006); prata em Maebashi, bronze em Valência (2008). Na Commonwealth, ouro em Kuala Lumpur (1998), ouro em Manchester (2002), bronze em Melbourne (2006).

E, no apogeu da glória, em Sydney, a 25 de Setembro de 2000, a bandeira de Moçambique subiu ao seu ponto mais alto. Depois de Samora Machel, nunca o país havia sido tão bem referenciado por cidadãos anónimos de tantos países. O hino nacional ecoou. Com ele, o coração de um país bateu no mesmo compasso dos seus 800 metros de coragem. Lurdes Mutola tornou-se imortal naquele instante. Não apenas por vencer, mas, sobretudo, por provar que a grandeza pode nascer do chão vermelho do Chamanculo e alcançar as luzes do mundo.

Todavia, vinte e cinco anos depois, a medalha de ouro parece mais reluzente do que o reconhecimento que lhe devíamos. Moçambique ainda não lhe ergueu uma estátua e nem criou uma estrutura dinâmica para colher os frutos da sua enorme e inquestionável façanha. Estruturalmente, o país poderia ter capitalizado essa conquista, promovendo o atletismo como modalidade de eleição, com as escolas a adoptá-lo como disciplina obrigatória nos jogos locais e escolares, e com programas de bolsas de estudo voltados à formação de novos talentos.

Estrategicamente, Lurdes e toda a sua equipa estariam preparados para orientar e proporcionar as condições materiais necessárias para tal empreendimento. Assim tem acontecido, por exemplo, no Quénia, na Etiópia e noutros países, que chegam a instituir dias nacionais dedicados ao atletismo, momentos em que o país pára e vai para as ruas correr, assistir e celebrar o talento dos seus melhores atletas.

Um dos incentivos poderia, possivelmente, começar pela designação de um estádio com o seu nome, permitindo-lhe congregar investimentos e gerir técnicos, olheiros e promessas do desporto. Esse espaço seria um estádio de referência, para onde convergiriam as principais provas nacionais e regionais. Um olhar sobre a Jamaica demonstra bem como as suas maiores estrelas sustentam o desenvolvimento do atletismo no país: os seus nomes estão gravados em infra-estruturas icónicas, e os jovens crescem desejando alcançar os mesmos patamares de glória.

No contexto moçambicano, concordamos todos que pouco tem sido feito para transformar a carreira e a história de Lurdes Mutola num verdadeiro manual de inspiração para os jovens. A nossa Menina de Ouro já tem, é certo, o seu nome em algumas ruas de bairros; recebeu doutoramentos honoris causa pela Universidade Pedagógica de Maputo e pela Universidade Eduardo Mondlane. Tem sido homenageada esporadicamente. Mas falta-lhe ainda, sobretudo, a eternidade que os povos sábios concedem aos seus heróis.

Ela, que treinou na longínqua Oregon, nos Estados Unidos, na cidade de Eugene, e conquistou o mundo vivendo e estudando longe da pátria, regressou para criar a Fundação Lurdes Mutola, um símbolo de esperança e de novas sementes. Hoje, advoga pela criação de um Centro de Alto Rendimento, um sonho audacioso e dispendioso, mas absolutamente necessário, porque as grandes nações investem no talento antes que o talento lhes fuja.

Em algumas das suas aparições públicas, recordo-me de algo que ela disse, palavras que importa preservar:

Quando subi ao pódio olímpico, não era apenas eu que vencia. Era cada menina e cada rapaz que acreditou que o sonho é possível, mesmo quando o caminho parece impossível”.

Essas palavras deveriam ecoar em cada escola, em cada pista e em cada aldeia onde o desporto é ainda um improviso de esperança. É dessa motivação que ainda carecemos, aquela que poderia fazer grande diferença em todos nós, na reorganização dos nossos objectivos e nas reflexões sobre os caminhos do desporto em Moçambique. Afinal, depois da Lurdes, quase contemporânea, surgiu outra atleta, a Argentina da Glória. Teve marcas importantes e alguma participação em Jogos Olímpicos, mas, certamente, Moçambique não voltou a saborear o pódio africano ou olímpico.

O atletismo moçambicano vive hoje uma sombra inquietante de si mesmo. A chama inspirada por Lurdes Mutola parece ofuscada, e os trilhos desse desporto mostraram-se extraviados em direcções pouco transparentes. Apesar de declarações de boas intenções, a prática de preparar atletas competitivos parece paralisada, sem visibilidade clara de caminho ou de resultados capazes de emular os dias de glória do passado. 

As instituições que deveriam liderar esse processo parecem atoladas em processos operacionais e pouco focadas em estratégias estruturais de longo prazo. Por exemplo, quase nada se ouve falar dos campeonatos nacionais e/ou provinciais, certamente muito longe da celebração da excelência atlética.  Infelizmente, o atletismo nacional aguarda que a poeira do esquecimento se dissipe, e que se reencontre rumo, liderança e transparência, sem os quais os talentos continuam adormecidos e o país, mais uma vez, perde-se no lodo da mediocridade.

Há memórias que não se apagam. Enquanto o mundo celebra a Lurdes Mutola em Oregon, e enquanto as pistas de Joanesburgo recordam que foi ela quem treinou a lendária Caster Semenya, Moçambique deve-lhe mais do que aplausos. Deve-lhe continuidade. Nas pequenas passadas que os nossos jovens hoje correm, há um eco distante da Menina de Ouro. Cabe-nos fazer com que esse eco se transforme em voz, em programa, em política pública, em centro de formação. Porque os países que não celebram os seus campeões não correm, caminham em círculos.

Como é possível que um país que teve em Lurdes Mutola não apenas uma campeã, mas uma mentora comprovada, capaz de treinar atletas do calibre de Caster Semenya, tenha simplesmente desperdiçado este capital humano inestimável? A resposta, tão dolorosa quanto evidente, parece encontrar eco na incompreensível letargia das nossas autoridades desportivas.

Afinal, o atletismo moçambicano não definha por falta de talento. Definha porque as estruturas que deveriam sustentá-lo são fantasmas burocráticos, onde a inércia se disfarça de formalidade, e onde muitas vezes faltam visão e estratégia para conduzir o desporto ao patamar que merece. Enquanto o Quénia e a Etiópia constroem centros de alto rendimento e sistemas de detecção de talentos nas aldeias mais remotas, Moçambique nem sequer consegue manter as poucas pistas de atletismo que existem em condições mínimas de funcionamento.

A Fundação Lurdes Mutola existe, mas sobrevive à margem do apoio estatal consistente. O Centro de Alto Rendimento que ela propõe continua no reino das promessas vazias. Temos uma das maiores treinadoras do continente a implorar por condições básicas, e as autoridades respondem com homenagens protocolares e discursos empoeirados que não constroem pistas, não formam treinadores, e não criam bolsas de estudo.

A verdade, nua e crua, atesta que as nossas autoridades desportivas falharam redondamente. Falharam ao não transformar o sucesso da Lurdes Mutola numa plataforma de lançamento para gerações futuras. Falharam ao não instituir programas sistemáticos de formação de técnicos especializados. Falharam ao não investir em infra-estruturas desportivas dignas. Falharam ao permitir que o atletismo escolar se tornasse uma anedota, praticado em campos improvisados de terra batida, sem cronometragem adequada, sem acompanhamento médico e sem nutrição desportiva.

Vinte e cinco anos depois da medalha de ouro olímpica, o atletismo moçambicano é um deserto de realizações porque os responsáveis preferiram a inércia confortável à ousadia necessária. Preferiram gerir a mediocridade a construir a excelência. Enquanto isso, Lurdes Mutola, que poderia estar a liderar uma academia nacional de atletismo, a formar treinadores, a descobrir e a lapidar novos diamantes do Chamanculo e de todo o país, vê o seu legado minguar por falta de visão daqueles que têm o poder de decisão.

É uma vergonha nacional que uma campeã desta dimensão não tenha sido aproveitada como recurso estratégico. É um escândalo que o seu conhecimento, a sua rede de contactos internacionais e a sua capacidade comprovada de formar campeões mundiais não tenham sido mobilizados de forma estruturada e ambiciosa. Não obstante, o fracasso não é de Lurdes Mutola. O fracasso é nosso, de forma colectiva: das instituições que dormem enquanto o talento se desperdiça, dos dirigentes que confundem cargos com competência, e dos orçamentos desportivos que são insultos disfarçados de investimento.

Muitos parabéns, Maria de Lurdes Mutola! Hoje, 27 de Outubro, no seu aniversário natalício, o país inteiro deveria parar por um instante e, de coração em punho, dizer: “Obrigado, Lurdes Mutola, por nos teres ensinado a correr com o coração e a vencer com a alma”. Mas deveria também, com igual fervor, exigir das autoridades que a tua grandeza não seja desperdiçada, que o teu legado seja convertido em acção, e que a tua presença entre nós se torne o alicerce de um atletismo moçambicano renascido das cinzas. Afinal, o baobá que começou como semente pequena no Chamanculo cresceu e deu sombra ao mundo inteiro. Cabe-nos agora plantar novas sementes sob a sua copa, antes que a floresta se transforme em irremediável deserto.(X) 

A história da migração económica é, na verdade, a história das promessas vendidas em nome do progresso. Em Moçambique, essa equação assumiu o rosto dos Madgermanes, homens e mulheres enviados à antiga República Democrática Alemã (RDA) sob o selo da “cooperação socialista”. Cada vida é combustível de experiências, cada memória é petróleo bruto a ser refinado, cada relato fulge como satélite que cruza a escuridão do tempo, iluminando trajetórias que agora ganham voz nas paredes da galeria do Centro Cultural Moçambicano-Alemão. 

Largaram os batuques, descansaram os apitos, arrumaram as vuvuzelas: na passada quarta-feira (10/10/2025), escolheram outro compasso e chegaram ao coração de lembranças acesas onde a exposição “See my Story. Copyright by Madgermanes”, curada e fotografada por Sabine Felber, os recebeu.

Entre fotografias, vídeos e depoimentos, as histórias circulam como caminhos percorridos irradiando propósito e vitalidade, transformando o espaço em âmbito de reflexão e reconhecimento. Incontestavelmente, mostrando que a equidade e humanidade podem conviver num mesmo olhar, numa mesma prática.

As imagens estáticas testemunham vidas em trânsito, suspensas entre o ontem e o agora. Cada rosto se apresenta como mandíbulas que mastigam o tempo, linhas que respiram coragem e olhares que bifurcam consciências. A disposição das peças visuais estabelece conversas mudas entre épocas, entre trajetórias que se tecem, salientando que os Madgermanes são a prova viva e persistente de uma era de alianças ideológicas, isto é, eles representam a memória social da Guerra Fria em solo africano. O seu constante apelo é pelo reconhecimento integral de que as suas trajectórias e saberes técnicos são naturalmente, um capital de sacrifício e de valor inestimável para nação moçambicana.

 O rosto da migração na imagem Lurdes Eli Uate acolhe a polissemia desta narrativa, encontrando, porventura, o seu ponto de maior ressonância na biografia. Enviada à RDA com a promessa de estudos universitários, uma aspiração inicialmente frustrada pela realidade fabril (VEB Textilkombinat), e regressando com uma bagagem técnica e vínculos indeléveis (como a amizade com Andrea Wess), ela corporifica a cisão entre a utopia prometida e o destino imposto. O seu relato, coligido em vídeo e ilustrado na fotografia, é um dos elos mais fortes da exibição.

Nesta perspectiva , a curadoria de Sabine Felber concentra-se na polaridade inerente a estas jornadas, ou seja, o reconhecimento do capital técnico e dos laços afectivos consolidados no estrangeiro coexiste com a melancolia de um regresso que os forçou a conciliar o legado de um passado produtivo com a incerteza do presente moçambicano. É esta dissonância, capturada pela lente e pelo acervo audiovisual, que sublinha a persistência e a relevância de cada trajectória individual.

De igual modo, nas captações audiovisuais, a narrativa ganha impacto. Depoimentos que antes habitavam apenas o pensamento agora assaltam a galeria, revelando o ritmo dos dias, os tropeços do retorno, a aspiração por dignidade. O olhar de Sabine é definido pela transparência e pela valorização aos Madgermanes; Com isso, cada vivência é apresentada no seu ritmo, permitindo ao visitante uma imersão empática que transcende o olhar, absorvendo a essência de quem esteve ali. A organização actua, fundamentalmente, como um selo de revalidação da identidade moçambicana, afirmando o valor humano e técnico inerente aos seus percursos. Assim, esta é uma confluência de visões, recordações e vozes que se restauram a si próprias.

Não obstante o mérito do trabalho da sabine em garantir visibilidade e dignidade, a leitura da exposição confronta o observador com paradoxos constitutivos à representação histórica. O maior desses desafios reside na delicada fronteira da autonomia narrativa. Portanto, o acto de expor estas vidas acarreta o risco de perpetuar uma assimetria visual, onde os Madgermanes são vistos, mas o poder de enquadrar e traduzir a sua história ainda reside num olhar externo. Esta preocupação espelha a condição maleável a toda a história contada, pois, como escreveu João Borges Coelho em O Museu da Revolução: “o passado e o futuro… são ambos feixes de possibilidades. Ambos se vergam à maneira como os quisermos contar.”

 É perante esta flexibilidade da narrativa que a necessidade de cautela se torna vital, sobretudo face ao risco da estetização da dor, ao transformar o sofrimento e o sacrifício em objecto belo e contemplativo, as imagens podem involuntariamente neutralizar razão do seu clamor por justiça. Deste modo, a exposição deixa no ar uma reflexão incontornável, mostrando que revisitar o passado é apenas o primeiro passo: o feixe de possibilidades do futuro exige um novo conto.

“See my Story. Copyright by Madgermanes” celebra vidas que cruzaram fronteiras, carregando sonhos, saberes e resistência. Sabine Felber transforma a memória em farol, mostrando que cada trajetória é bússola para um futuro onde dignidade e justiça entrelaçam-se no mesmo compasso. Revisitar o passado é apenas o primeiro passo e o próximo exige de nós reconhecimento activo e compromisso com aqueles que fizeram história.

Já se sentiu como se tivesse sido arrancado de um belo sonho sem nunca ter adormecido, apenas para acordar dentro de um pesadelo?  

Ora, há livros que não se abrem, nos abrem;  não se lê, abduzem-nos; “Sobre Toda as Escuridão” de Melo Tinga, é um desses raros gestos literários que não apenas contam uma história, mas fazem pulsar no leitor o ritmo de uma de um coração ferido. Aqui cada palavra é uma confissão, cada silêncio é um sopro a desfazer fronteiras, entre a ternura e a ruina no princípio a dor.

No princípio, a dor, morte, luto, tem um nome: Suzana.  A morte é apresentada sem véus, num  realismo que se cola o corpo e transforma em fronteira. Sangue, hálito, sombras, um quarto que apodrece junto do narrador. Não é apenas a perda de alguém: é a erosão da própria existência. Tinga trabalha bem esse mergulho sensorial e mental, tem êxito por transformar algo sem beleza, como lamúrias ou alucinações de um homem em novela, e é onde “Thanatos” se revela. 

A sua ausência atordoava-me. Era um homem triste  mergulhado na infinita escuridão… O joelho frio, encostado ao peito, estremecia. Conta-me um lençol cansado, imundo e fedorento.  Permanecia de cuecas toda a tarde, as marcas de urina pelo soalho, o cheiro intenso pelas narinas adentro a perturbar os pulmões. Ouvia vozes chegarem de um universo remoto.”

Então, surge Filipa. E  a narrativa respira. A sua entrada é quase messiânica: mãos que limpam, olhos que choram, o corpo que devolve ao narrador o calor que julgava  perdido. Ela é “Eros” em estado puro, mas não ingenuamente vital. A sua ternura é tingida de lágrimas, e é nesse paradoxo que se ergue a sua força. 

“Por que vieste, Filipa?” 

“Precisas de te levantar”

“Para onde?”

“precisas regressar” 

“De onde?”

Se a Susana arrasta para o abismo, Filipa não conduz ao Paraíso: oferece apenas o regresso possível à superfície. É uma escolha subtil do autor, que impede o embate entre vida e morte, mas, ao mesmo tempo, deixa em aberto se Filipa é personagem de carne e osso ou apenas fantasma necessário.  É de se questionar o período entre a morte de Suzana e o início do relacionamento com a Filipa,  já agora não está bem claro quando começou. 

Segundo Freud, a vida psíquica é movida por duas forças fundamentais, Eros, o instinto de vida, Abrange todas as pulsões e tendem a preservação, união, prazer,  amor e criação. Ele não é apenas desejo sexual, mas a energia que liga, que constrói e que mantém a vida. Thanatos, o instinto de morte, manifesta-se como a tendência à agressão, ao desligamento, a repetição destrutiva, e em última instância, ao retorno ao inorgânico. Para Freud a existência humana é atravessada pela tensão inevitável entre esses dois princípios: um que afirma a vida e o outro que a dissolve.

No final, o mar. As ondas repetem-se como ladainha “Onda vem. Bate. E vai”. É nesse ritmo que o Narrador entrega-se não a morte nem à vida, mas à fusão de ambos. É aqui onde a novela de Tinga alcança  o auge poético, criando um ritmo hipnótico, ora beijo, ora abismo. A insistência na repetição tem força ritual, mas pode também mecanizar a emoção, o risco da musica tornar-se ruído. Mesmo assim, o mar segue-se como metáfora maior: amantes e túmulo, Eros e Thanatos em estado líquido. 

Suzana é profunda, como este mar. É distante… sinto o som do mar entrar audaz pelos tímpanos. Haveria, dentro, anjos irritados a cantar pela boca das ondas?

É nessa metáfora que a história se resume, ora, o mar fundo, noturno, Thanatos é onde o narrador quer se entregar, uma negação suicida da realidade. E a terra, Eros, ou melhor, Filipa, onde o desejo de viver habita. E entre o mar e a terra encontramos as ondas personificadas no corpo do narrador, “Onda vem. Bate. E vai”, sem se quer ter seu próprio desejo, apenas se deixa levar. 

Sobre Toda Escuridão é, pois, um romance que ousa transformar o luto em estética, arriscando-se a perder clareza para não perder intensidade. A sua grandeza está no equilíbrio instável: entre o excesso e a delicadeza, entre a ferida e o consolo, entre Suzana e Filipa. O mar, último abraço, pede o que o pertence, as ondas, e se retira em maré baixa, deixando apenas uma carta que o tempo irá corroer. 

Peça Teatral: “Sobre Toda Escuridão” 

A obra, adaptada para o teatro a partir da novela de Melo Tinga, vencedor do prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa em 2020, tem direção de Ramadane Matusse e conta no elenco com Maria Ausenda (Filipa) e Paulo Jamine (narrador), além da participação especial da dançarina Francisca Mirine (Suzana). Foi apresentada no Instituto Guimarães Rosa (IGR), com sessões marcadas para os dias 14, 15, 21 e 22 de agosto. 

A peça abre como quem liga um pulmão: luz contida, ambiente doméstico em ruínas, corpo no centro. A primeira impressão é de economia cenográfica, apenas dois pufes e um espelho que não teve nenhuma utilidade, para além das vestes da Suzana.  

Essa opção formal funciona: concentra a atenção na voz do corpo, nos pequenos gestos, nas expressões faciais. E no final não havia espaço para mais nada, Suzana ocupara tudo e nem Filipa conseguiu libertar espaço. 

A atuação dos personagens, privilegia a fisicalidade do luto. O narrador move-se, fito prolongado no vazio. Anda para frente e para trás, seus movimentos espelhavam a sua desordem mental. A personagem da Filipa entra como contraponto: limpeza de objetos, arrumação, canto discreto, gestos de cuidado. 

A presença de Suzana, no palco, é sobretudo fantasmagórica, lembrada nos gestos, nas falas do narrador e em imagens ou memórias que o corpo reencena. A personagem apresentou diversos passos de dança contemporânea, no entanto, ela mostrou ter um grande potencial, para além do que mostrou. Esta estratégia concentra a peça no que o livro trata em longas narrações: “Cadernos de Alucinações”, a ausência também é personagem. 

Comparando o livro e a peça 

A adaptação teatral toma a metáfora central do romance (as ondas como fronteira entre vida e morte), e a transforma em dispositivos cénicos: repetição de gestos, refrões sonoros , e a alternância imagem/silêncio. 

No livro a experiência do luto é conduzida pela narração interior extensa, metáforas acumuladas e ritmo de refrões escritos. A dor vive na linguagem. Na peça a dor ganha corpo imediato, o espetador vê o joelho frio, o lençol, o movimento de limpeza e isso cria uma empatia física urgente. O teatro, portanto, incorpora em imagem aquilo que o livro narra: o corpo passa de representação mental para presença sensorial. Esse ganho é o maior triunfo da adaptação. 

No livro a Filipa (Eros), opera como a prática do retorno à vida; na peça, sua ação ritual limpar, cantar cuidar, chamar atenção, é representada cenicamente. O gesto físico de Filipa funciona: é conciso e potente. Ganha vida, maior intensidade e vivacidade do que o livro descreve. 

No romance, Suzana (Thanatos), é simultaneamente presença e fantasma textual, na peça opta-se por mantê-la fantasmática visualmente, embora não há muitos elementos que a compõe (como a queda, o sangue, etc…), isso não reduz a sua intensidade. 

A confissão “eu matei Suzana” funciona melhor no texto literário (onde a ambiguidade psicológica é sustentada por fluxo interior), do que no palco, onde o público pede evidência material. 

O refrão das ondas no romance encontra equivalente dramatúrgico nas repetições gestuais e em elementos sonoros. Isso é uma boa transferência estética a forma do livro vira gesto. A experiência de ver o ator em tempo contínuo (sem recuo reflexivo do livro), coloca o espectador numa relação de urgência com o luto, vantagem teatral clara. 

É interessante mencionar o facto de que o narrador apresenta uma certa variação de vestes, e no final é trajados de calças pretas e uma camisa branca, na peça a troca de roupa foi ausente, o que de certa forma faz perder a profundidade cénica e da a impressão de todo o ocorrido ter acontecido no mesmo dia. 

Há,  porem, uma escassez nos dois, a presença da Filipa, esta personagem perde um pouco do seu poder e impacto pelo facto de ser apresentada apenas na visão do narrador, ela poderia ter um impacto maior e identidade muito além do narrador. 

Outro ponto que não se pode esquecer é a confissão do narrador quando ao seu estado psíquico, quando este afirma sofrer de “depressão”, está confissão faz a novela perder o seu mistério e complexidade que é apresentada desde o início, tanto na peça quanto no livro. 

Não posso negar o facto de que a depressão da sua partida abrira uma profunda cavidade. Caminho firme para o fundo da escuridão provocada pelo remorso da morte da minha mulher.” 

Contudo, é um livro e uma peça que vale a pena ler, não só como quem descodifica signos linguísticos, mas como quem se deixa possuir pelo fantasma da Suzana, para depois respirar Filipa. 

Introdução: Em Moçambique, a palavra “diálogo” tornou-se omnipresente, repetida como um refrão político, mas raramente concretizada na prática. Desde o lançamento do chamado Diálogo Nacional Inclusivo, em 2025, o termo assumiu centralidade na narrativa oficial como resposta às tensões e polarizações resultantes das eleições de 2024. A sua invocação carrega uma promessa de reconciliação e refundação democrática, mas a observação do processo revela mais contradições do que avanços. O diálogo que deveria ser um espaço de construção de entendimento mútuo foi rapidamente capturado pelas lógicas de poder que marcam a política moçambicana.

Dialogar para ganhar, e não para dialogar: A hegemonia do partido no poder, a fragilidade da oposição e a instrumentalização da sociedade civil ajudam a explicar o percurso que o diálogo tomou. A Frelimo percebeu desde cedo o valor simbólico do processo, apresentando-o como vitrine de pluralismo e abertura, ao mesmo tempo que mantém o controlo da sua agenda e define os limites da participação. O diálogo converte-se, assim, num mecanismo de gestão de tensões e não de transformação política. Os partidos menores, enfraquecidos por sucessivas derrotas e falta de base social, vêem nele mais uma oportunidade de sobrevivência do que um compromisso com a construção colectiva. A sua presença assegura visibilidade, acesso a recursos e uma sensação de relevância, mas pouco acrescenta à substância da discussão. No mesmo cenário, actores emergentes como Venâncio Mondlane — figura controversa e inquieta — vêem-se, eles próprios, como catalisadores e vítimas desse processo. Criador da ANAMOLA, partido emergente que procura transformar o descontentamento em força política, Mondlane tornou-se presença incômoda. Fora da plataforma oficial, mas sem abandonar o discurso do diálogo, decidiu fundar um diálogo paralelo, como quem ergue um espelho diante do Estado. Porém, ironicamente, o espelho devolve o mesmo reflexo: cálculo, não entendimento.

O paradoxo torna-se evidente: aquilo que foi concebido como espaço de inclusão rapidamente se converteu em ritual de exclusões recíprocas. As mesas de auscultação multiplicam-se, os comunicados são divulgados com pompa e as câmaras registam cada gesto, mas a confiança pública permanece mínima. O diálogo existe mais como performance do que como prática, e a sua função parece ser a de administrar diferenças em vez de as resolver. Nesse processo, a sociedade é frequentemente reduzida ao papel de espectadora, convocada a legitimar decisões já tomadas em instâncias anteriores, sem verdadeira possibilidade de influenciar os resultados. 

(A ANAMOLA já apresentou a sua proposta de reformas. Nesse contexto, importa questionar qual a utilidade do diálogo recentemente lançado por si. Legitimação? Do mesmo modo, a proposta de agenda apresentada pela COTE visa, em última instância, indagar junto da população de Sabié se esta prefere um sistema semipresidencial ou presidencial?)

Entre o ideal de diálogo e o faz de conta: A teoria científica oferece ferramentas úteis para compreender esta contradição. Paulo Freire recorda que o diálogo é, antes de tudo, um acto de reconhecimento do outro como sujeito. Não se dialoga para vencer, mas para transformar e compreender. Jürgen Habermas, por sua vez, define a democracia como espaço da razão comunicativa, onde a verdade resulta da força do argumento e não da posição de poder. A distinção que faz entre racionalidade comunicativa e racionalidade estratégica é central para interpretar o caso moçambicano. O diálogo moçambicano opera predominantemente sob racionalidade estratégica: fala-se para legitimar posições, preservar hegemonias ou garantir sobrevivência política, e não para construir consensos genuínos. O resultado é um processo colonizado pelo sistema, onde a linguagem deixa de ser instrumento de entendimento e passa a ser moeda de troca.

A experiência internacional mostra que diálogos autênticos são necessariamente conflituosos, demorados e onerosos. O processo de paz na Colômbia só ganhou legitimidade quando incluiu vítimas e comunidades rurais marginalizadas, mesmo que isso tenha atrasado o calendário e aumentado a complexidade. O Acordo de Belfast, na Irlanda do Norte, revelou que não há reconciliação possível sem regras claras de igualdade de voz, mediação independente e compromissos verificáveis. A transição democrática da Coreia do Sul demonstrou que diálogos políticos só se tornam duradouros quando acompanhados por mecanismos de responsabilização e transparência pública. Em todos estes casos, o custo foi elevado, mas o resultado foi a criação de legitimidade. Moçambique, pelo contrário, procura atalhos: quer velocidade, harmonia e imagem, como se fosse possível colher os frutos da conversa sem o esforço da escuta.

O sentido perdido da palavra: O problema é também linguístico. Palavras como “inclusão”, “reconciliação” e “refundação” perderam densidade normativa e circulam como etiquetas performativas, sem correspondência na prática. O discurso político tornou-se espectáculo, uma feira de intenções em que se fala mais para ser visto do que para construir compromissos reais. Quando a linguagem se esvazia, a política perde a sua função deliberativa e transforma-se em ritual legitimador.

O Diálogo Nacional Inclusivo, tal como conduzido até agora, corre o risco de se tornar um espantalho democrático: visível, mas vazio. Mais do que resolver as tensões nacionais que justificaram a sua criação, tende a perpetuá-las, reforçando a percepção de que a política em Moçambique é menos espaço de deliberação e mais arena de encenação. A ciência mostra que diálogos genuínos só existem quando são inclusivos de facto, quando aceitam o desconforto e quando produzem acção concreta. Sem estas condições, o país continuará preso ao paradoxo cruel de falar incessantemente em diálogo enquanto dialoga cada vez menos.

Com mais de dez anos de percurso no cenário do rap moçambicano, Caligrafia Poderosa (pseudónimo de Luciano Júnior) consolidou-se como uma voz comprometida com questões sociais e culturais, sobretudo na província de Tete. Em 2025, lançou a música intitulada “A Minha Pele”, produzida por Filósofo, e gravada na Gawa Records. A obra retrata as experiências de pertença e exclusão racial, trazendo à superfície debates urgentes sobre identidade, desigualdade e preconceito. Desse modo, neste artigo, é nosso objectivo explorar as diversas formas pelas quais o sujeito poético cria a sua metáfora da pigmentação, mantendo foco em aspectos de escrita criativa, destacando detalhes linguísticos, culturais e até artísticos que possam ser pertinentes para a nossa crítica.

O negro e a memória da escravidão

O sujeito poético abre a canção afirmando: “Eu sou preto como a sombra que reflete como a luz/ Eu sou preto escravizado, acorrentado numa cruz/ Preto sem direitos, que dizem ser independente/ Rejeitado pela cor, encarcerado no continente”. Através desta enunciação, resgata a herança de violência histórica da escravidão e estabelece uma ligação com a condição contemporânea do negro em Moçambique. Com um tom de denúncia que evoca memórias colectivas, o sujeito poético recorda a marginalização estrutural que, infelizmente, ainda é presente, nos dias de hoje.

Tal abordagem dialoga com Azagaia, em “Cães de Raça”, quando o rapper denuncia a condenação social dos mulatos, que passo em citação directa: “… na Tuga, o assimilado, português de segunda/ Na terra, condenado a mecânico ou prostituta/ Ninguém vence a minha luta/ Se é mulato e arranja job, dizem que deu a fruta”. Ao comparar expressões como “encarcerado” (Caligrafia Poderosa) e “condenado” (Azagaia), sublinhadas anteriormente, nota-se uma convergência semântica que reforça a ideia de uma prisão simbólica e uma limitação de horizontes impostas pela cor da pele.

O branco e o sarcasmo da dominação

Na segunda estrofe, o sujeito poético encarna a voz de um homem branco, vociferando: “Eu sou branco detentor da riqueza mundial/ O branco que vocês temem, vosso pai celestial/ Aquele que vocês imploram para sobreviver/ E em troca disso, até explora por tanto prazer”. Aqui, observa-se um discurso irónico e arrogante que desnuda as assimetrias globais de poder, remetendo para as heranças coloniais e para a exploração contínua dos recursos africanos, por aqueles que outrora exploraram a nossa terra.

Mais uma vez, ecoa Azagaia, quando este afirma: “… dono da língua, dono da obra, dono das acções de Banco/ Dono da arrogância, mas deixa explicar um bocado/ É que desde a minha infância que sou sempre bem tratado…” (Azagaia – Cães de Raça). A intertextualidade reforça a tradição da crítica social no rap moçambicano, que se posiciona como espaço de resistência e de denúncia.

Inclusão dos albinos e pluralidade de vozes

Um dos pontos mais ousados da faixa é a inclusão da experiência dos albinos, frequentemente vítimas de tráfico humano pela pigmentação da sua pele. Essa abordagem amplia o debate racial para um quadro de vulnerabilidade específico do contexto moçambicano. O título da música, “A Minha Pele”, funciona como chave interpretativa, sendo a pele, aqui, entendida como espaço de identidade, dor e resistência.

Nesse sentido, o sujeito poético assume múltiplas vozes — negro, branco e albino — numa estrutura polifónica. Esse recurso literário não apenas multiplica perspectivas, como desafia fronteiras rígidas de identidade. Quando o artista afirma: “Eu sou preto, sim, mas também sinto o que vocês sentem/ Minha cor não constitui a diferença entre a gente”, reafirma a busca de uma unidade humana contra a lógica da segregação.

Questões estilísticas e linguísticas

Embora a mensagem seja clara e contundente, algumas construções poderiam ser estilisticamente mais apuradas. Por exemplo, na estrofe do albino: “Sinto-me diferente nos olhos de muita gente” poderia ser reescrito como “aos olhos de muita gente”, para maior precisão. Apesar disso, a oralidade típica do rap justifica certas opções e aproxima a obra do público-alvo.

Do ponto de vista literário, a alternância de vozes confere riqueza estilística, permitindo que metáforas, paralelismos e imagens de denúncia se entrelacem num discurso de intervenção.

Considerações finais

“A Minha Pele” é uma obra de grande pertinência no contexto moçambicano actual. Aborda simultaneamente a herança da escravidão, a persistência do racismo, a arrogância colonial e a vulnerabilidade dos albinos, compondo um mosaico de exclusões e resistências. Para além de promover a reflexão sobre igualdade racial, a música inscreve-se numa tradição artística que questiona as estruturas de poder e propõe um olhar crítico sobre as nossas próprias sociedades.

Assim, Caligrafia Poderosa não apenas denuncia, mas abre espaço para a empatia, colocando-se no lugar do “outro” e, com isso, convidando o público a repensar preconceitos e a lutar por uma convivência mais justa e inclusiva.

“If you’re African raised in poverty
And the only one treading the path of success
You’re already born to look out for your family and communities.”

Esta é uma afirmação marcante presente na música Little Girl, do álbum Mutchangana, lançado em 2023, da artista moçambicana Assa Matusse. O excerto revela, de forma sensível, uma realidade vivida por muitos jovens africanos: a responsabilidade precoce de sustentar sonhos alheios, em detrimento da realização pessoal. Trata-se de uma espécie de transacção simbólica, na qual os projectos individuais são frequentemente substituídos por aspirações colectivas. A busca pelo sucesso deixa, assim, de ser  para benefício próprio e torna-se num meio de sustento familiar.

Em inúmeros casos, os jovens sentem-se pressionados e emocionalmente sobrecarregados por dois factores determinantes: a condição socioeconómica precária que caracteriza grande parte do continente africano, e o profundo sentimento de obrigação moral para com aqueles que, outrora, sacrificaram os próprios recursos e sonhos em prol do seu crescimento.

Segundo Matusse, “dreaming big is considered the first step towards frustration“. Tal enunciação poderá ser interpretada como reflexo da dissonância entre a magnitude dos sonhos de uma jovem africana pobre e a dureza do contexto em que estes se desenvolvem. Os sonhos revelam-se, assim, como construções fragilizadas pela realidade social que os rodeia. Neste sentido, é importante reconhecer que o acto de sonhar, em África, assume contornos substancialmente distintos dos que se verificam, por exemplo, em contextos europeus.

A composição musical evidencia que, mesmo perante cenários de adversidade, os valores da solidariedade e da empatia mantêm-se. A letra sublinha esta perspectiva nos seguintes versos:
“We don’t give because we have much 

 We learn to give just ‘cause we know 

How it feels to have nothing.”

 Temos, de um lado, a figura de uma jovem africana desfavorecida, retratada por Matusse como alguém que se move pelo desejo de cuidar da família e da comunidade. De outro lado, a crónica “Pobre dos nossos ricos”, de Mia Couto, originalmente publicada no jornal Savana, em dezembro de 2002, oferece-nos um contraponto  ao retratar, com fina ironia, a elite moçambicana contemporânea:

“O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenino: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias.”

Ao longo da crónica, torna-se evidente que os objectivos desta elite não contemplam o bem-estar colectivo, nem a criação de condições sustentáveis de desenvolvimento. O enriquecimento é orientado, quase exclusivamente, para o consumo individual e ostentatório, mesmo que isso implique o sacrifício de sonhos alheios:

“E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.”

Como sublinha o autor, estes indivíduos “podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros”, o que contrasta de forma significativa com a realidade evocada por Matusse, onde a solidariedade comunitária prevalece e o vizinho torna-se num irmão.

Apesar das suas diferenças formais e estilísticas, ambas as obras dialogam de forma subtil, estabelecendo um paralelismo em torno da centralidade do dinheiro e da busca por uma vida melhor. A jovem de Little Girl e os “novos-ricos” de Mia Couto têm em comum o anseio pela ascensão, embora os seus propósitos e meios se revelem profundamente antagónicos. Esta aproximação crítica conduz a uma interrogação pertinente: quem detém, de facto, a verdadeira riqueza, a little girl que partilha o pouco que tem ou a elite que acumula para si?

“As obras que trazem os toques nacionais são legítimas, estas têm amor-próprio.”

Ziberman (2014)

A literatura tem sido um grande meio de expressão, tanto de expressão quanto de identidade nacional, por isso que Wellek & Werren (2003), citados por Coutinho (2012) entendem que uma literatura nacional, deve ser caracterizada por especificidades de uma nação, ou seja, a literatura nacional, deve abarcar conteúdos que possam diferenciá-la de outras literaturas, dando a aura da originalidade.

A literatura moçambicana, da pós-independência, tinha/tem a ideia de se revestir de Moçambique, a ideia de exaltação da pátria amada. Era notável, tanto nos poemas assim como nas prosas, a presença constante de elementos que representassem, de um certo modo, a sociedade moçambicana.    

Para Coutinho (2012) a relação entre discurso literário e identidade nacional, por mais que possa parecer natural e inevitável, é uma construção histórica relativamente recente. Assim como o conceito de “nação”, identificado a “estado-nação”, a noção de“literatura nacional” originou-se na virada para o século XIX, particularmente com os românticos alemães, que divulgaram a idéia de que uma literatura se define pela sua afiliação nacional e pelo facto de que deve incorporar o que se entendia como as características específicas de uma nação.

Antes de mergulharos nos aspectos que representam cor local moçambicana no nosso objecto de análise, jugamos ser imperioso apresentar uma pequena base teórica sobre os conceitos-chave, a saber:

  • Narração 

A narração, segundo Reis & Lopes (1996), ocupa-se da organização global do discurso e da sua economia interna. A narração pode ser entendida como acto e processo de produção do discurso narrativo, ela envolve o narrador enquanto sujeito responsável por esse processo, por sua vez, o narrador será entendido fundamentalmente, como autor textual, entidade fictícia a quem no cenário, cabe a tarefa de enunciar o discurso.

  Os elementos da linguística bantu moçambicana, têm um papel importante na construção do discurso narrativo, da entidade que narra, ao passo que, se se removesse tais elementos (empréstimos), o discurso precisaria ser reformulado, de modo que a função retórica/estética empregue no mesmo, tenha efeitos no leitor, e que haja lógica, esta que permitira a compreensão da mensagem que se pretende transmitir nos textos.

  •  Representação

Para Reis e Lopes (1996), representação é um termo afectado pela polissemia. Abarca procedimentos de imitação (similitude). Para os autores imendiatamente supracitados, a representação remete-nos á diversas questões, no âmbito literário, uma delas está ligada a problemática do realismo, a representação do real

 Relactivamente à representação, Chartier (1991) citado por Makowieck (2003), debruçar-se da ideia de que é possível vermos que a representação é o produto do resultado de uma prática, no entanto, toma como exemplo a literatura, dizendo que é representação, porque é o produto de uma prática simbólica, que se transforma em outras representações. A autora supracitada diz que para Le Goff (Cf. Pesavento, 1995), representação é a tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstracção.

  1.  Cor local

A cor local, como recurso narrativo, recebeu pouca atenção do ponto de vista analítico. Somente nas primeiras décadas do século XX, quase um século depois de seu uso corrente na produção intelectual, o mecanismo tornou-se objecto de pesquisa.

 No âmbito literário, Ziberman (2014) define cor local como a produção literária baseada no conteúdo nacional, ou seja é o processo de verter-se das cores do país. A autora diz ser esse o único critério para que se possa produzir uma literatura autenticamente nacional, conclui dizendo que, as obras devem abarcar toques nacionais.

Para Cardoso (2014.), a cor local é um mecanismo narrativo de largo emprego, que se manifesta em diferentes tipos discursivos e engendra um feixe de expressões contíguas que pode ser largamente empregada na historiografia e mormente no campo literário. 

O autor imediatamente supracitado diz ainda que cor local significa uma escrita que explora o discurso, o que nos remete a língua, a vestimenta, que em algumas regiões, ainda não tenha sofrido o processo da globalização, os hábitos de pensamento e a topografia peculiares a uma região.

Portanto, achamos que uma análise detalhada sobre a cor local, olhando para as nações colonizadas, por de trazer à superfície a ideia de que a cor local pode ser vista como uma maneira de quebrar a ligação com a literatura do colonizador. 

Segundo Matusse (1998. p.74), estudar a moçambicanidade literária, enquanto construção (de uma identidade), não significa uma total arbitrariedade na escolha de elementos pelas quais é construída, e que caminhos são procurados com o intuito de firmar uma identidade, contudo, os autores moçambicanos, movidos pelo desejo de representar a sociedade moçambicana, constroem a sua imagem. 

  • Análise e Interpretação de dados

Partindo do princípio de que literatura é uma arte, e segundo Hadjicolaou (1973) o artista é intérprete do mundo, atraves das obras criadas por ele mesmo. É sabido que para que se possa produzir uma obra literária, de cunho nacionalista, vestida de cor local, é necessário que se acorra a algum intertexto.

  •  Empréstimos das línguas bantu como auxílios no discurso narrativo 

Segundo Wellek e Werren (2003), para que se possa reconhecer uma literatura como nacional, são três os critérios que devem ser tomados em conta, a saber: Critério linguístico, Critério territorial, Critério cor local

Moçambique tem como língua oficial o Português, para além dele, há vários outros países que também têm-na como oficial também. Entretanto, o autor desta obra, Vestidos de terra, utilizou elementos das linguas bantu moçambicanas na construção do discurso narrativo, como por exemplo: Wuputsu, Masingita, Tchova xi ta duma, Zenterina, Nkakana, Xipoko, Molwenes, nthonthontho, khanimambu hosi, xikwembu, tinhlolo, xikwembu, xingerengere, xikolonhe, etc. Alguns do eventos no universo diegético ocorrem em espaços que existem na realidade, como por exemplo: Zimpeto, Malanga, Manjacaze, Manjacaze, No bazuca, Xiphamanine, Manhica, Maxaque, etc.

  • Um olhar sobre os textos – espaços representados 

No texto “Rosa”, há uma acção que decorre num espaço designado Zimpento, que o narrador nos dá a conhecer: 

“ … o cobrador nem deu por ela porque estava mais preocupado com o dinheiro dos passageiros que desciam e pelos que chamava para entrarem, gritanto Zimpeto via Jardim, Zimpeto…Zimpeto, Zimpeto!” (p.35)

Encontramos no texto “Emproibido Machico”, um outro espaço designado Malanga, onde o narrador descreve a seguinte acção, até alude ao livro “Mangas verdes com sal” de Rui Knopfil:

“ Os meninos da malanga detestavam a sua presença por baixo da mangueira, pois virou um empecilho para o festival de mangas verdes com sal” (p.62)

Em “Jorogina e o Mar”, encontramos um espaço que é, na realidade moçambicana um local de busca do pão-nosso-de-cada-dia, entretanto, nesse espaço, já na narrativa, o autor apresenta-nos a imagem das prostitutas da baixa da cidade:

“ […] dentro da sua mini-saia preenche de segredos e desejos dos machos, […] chegando a baixa da cidade […]” (p.77)

No texto “O Menino do Nada na Cidade”, o narrador conta uma história que acontece num espaço que ao nosso ver é alude a cidade de Maputo, na Avenida Eduardo Mondlane. Nos outros textos, o espaço onde decorre a acção é explícito, no entanto, neste texto, não:

“Ao dobrar a esquina já dobrada antes dele, depara-se com uma estátua. Sim, outra é de um homem com o braço direito erguido o punho cerradíssimo, para não lhe voar o futuro da mão, enquanto a outra mão rente ao corpo, segura um livro volumoso […] ” (p.85)

Neste texto, “Bendita Dhinda”, o narrador relata uma acção que se desenrola no espaco que alude a Avenida acima mencionada, exactamente entre cemitério de Ronil e o SENSAP:

  “Era inevitável Bendita Dhinda passar pela casa do terror, porque a boca da ruela sem saída onde vivia com a mãe, era entre o cemitério e os bombeiros” (p.88)

No texto “O Recado do Gumende no Bazuca”, o autor tomou em representação o mercado Xiphamanini, onde está o lugar onde se “pega” transporte para longdas distâncias, é no Bazuca. 

“Aqui estamos nós no bazuca, a espera do machimbombo para Manhiça. Aqui no bazuca, xiphamanine, todos os caminhos te levam para casa, no dia que te perderes vem parar aqui, vais encontrar o teu caminho.” (p.121) 

  •   A tradição 

Rogério Manjate, representa, em Vestidos de Terra, uma parte da tradição moçambicana, desde os mitos até aos hábitos.  

“Amalita”, este texto, representa a fúria dos antepassados quando, os seres vivos, membros da família dos antepassados, não fazem as vontades dos mesmos, por consequência alguma coisa de negativa acontece, no entanto, a religião muita das vezes, não acredita na existência destes e na sua força.

O autor traz-nos representados estes fenómenos no texto, que também concorrem para a representação da cor local, pois trata-se de conteúdo de carácter identitário, são manifestações que a sociedade tem conhecimento.

A personagem Dinoca, segundo como dá-nos a conhecer o narrador, adoeceu, entretanto, quando iam a unidade sanitária, os exames não acusavam, entretanto, quando regressavam a casa, ela piorava, foram, a personagem José dos Santos e sua esposa, a vários centros de saúde, nada acusou, um medico, conhecedor da tradição, aconselhou-os a irem procurar ajuda fora do hospital, pois tal assunto não estava a altura da medicina, sendo católico, José dos Santos hesitou, a priori, mas depois cedeu, chagados ao curandeiro, foi-lhes dito que havia uma força de um entrepassado que estava descontente com a acção da personagem José dos Santos, aquando do nascimento de sua filha Dinoca. Passamos a citar:

“A menina está pior […], nenhuma reza a nenhum Deus lhe baixava as febres [..] vê-se que ela não está bem, contudo, é algo que nos ultrapassa […] vai ao curandeiro […] mas nós não andamos nisso, eu sou católico. Minha filha nisso não! És mais católico do que quem para não salvar a vida da sua filha […] a menina ia passando de mão em mão a espera de milagres Zé, temos que ir. Vamos ao curandeiro […] o ritual do curandeiro era muito simples. […] o velho regeu-se no peito da menina e apanhou o espírito, era de uma mulher, sentou-se calmamente na esteira e disse: boa noite meu sobrinho José. […] então por que é que nunca nos apresentaste a tua mulher pois entregue-me a menina. […] eu não quero muitas coisas, sobrinho, quero que dês o meu nome a esta menina.” (pp.108-11)

Ligado a questões de tradição, está também o texto “A Morte Pronunciada”, onde o narrador, conta a história de uma personagem que aquando da sua nascença, foi-lhe atribuído o nome de Xikapeko, todavia, o pai teve de levá-lo ao registo, onde nomes tradicionais não eram aceites, só que o nome Xikapeko foi-lhe dado pelos antepassados, entretanto, a senhora da conservatória não o aceitou, propondo-lhe nome português. Rodrigues, foi o nome escolhido, que moçambicanizado, ficou Lodiriki. Tal acto foi uma afronta aos antepassados:

“ Sim, Rodrigues, é mais português. O espanto assaltou a cara do pai, indignado disse: mas ele é daqui. Numa noite de verão […] inesperável […] Xikapeko morreu […] terá sido o vizinho Ngumina, com inveja de não fazer filhos […] Lodiriki, que nome é esse, perguntou o caçador de espíritos […] se os espíritos lhe empossaram nome de Xikapeko, porque contrariaram” (pp.142, 143)

De facto, na nossa sociedade, e segundo os mais velhos, conhecedores das leis tradicionais, nunca se pode contraria a vontade dos antepassados, pois de uma ou de outra forma haverá consequências negativas. Nestes textos, o autor, ao nosso entender, construiu aquilo que é a imagem da sociedade moçambicana em particular, no que tange a tradição. Em muitas famílias, o critério de escolha do nome não está nas mãos dos progenitores, mas sim, muita das vezes dos antepassados.

Encontramos também como dado a ser processado, a questão dos mitos, histórias mitológicas transmitidas de geração em geração. O autor recorreu a um intertexto pertencente a literatura oral, moçambicana, para poder construir algumas acções das personagens no universo diegético.

Podemos ver, no texto em que a personagem Arbelo Magaia, gabava-se por nunca ter atropelado um cão, entretanto, o asar não tardou, durante a sua jornada laboral, conduzindo, atropelou um Cão, daí que, pensou ter tomado de tal acto, um asar tremendo. Vejamos a seguinte passagem textual:

“Lembra com orgulho que nunca atropelou um homem, muito menos um Cão […] quis deus tecê-las: quando ia virar para entrar a garagem, apareceu-lhe a frente um Cão que vinha correndo, fugindo dos miúdos que o apedrejavam. Mais rápido que o de repente, seu pé, não ele, pisou o travão e os pneus chiaram tchuiiimm, seguido de phú! E a vida do Cão suspendeu-se no ganido incompleto […] o cão morreu […] começaram os tormentos do motorista Arbelo Magaia. quem atropela um cão, abre o caminho para mais acidentes e desgraças , nos dias seguintes.” (pp.114,115)

Este conto reflecte aquele que é o pensamento de alguns indivíduos na sociedade, no diz respeito à este mito. Há quem acredite que sim, basta atropelar um cão são “sete anos de vacas magras”, portanto, o leitor, ao se deparar com este intertexto, logo irá ser transportado à literatura oral, que é esta, ao nosso entender, que o autor utilizou para a construção de parte deste conto.

Portanto, alguns textos da obra em análise, tem uma função pedagógica a nível tradicional, social, etc., pois, entendemos que a sociedade moçambicana tem como uma das bases de educação, a tradição e os provérbios: 

Os textos “Amalita” e “Morte pronunciada”, são uma representação concreta daquilo é uma parte da nossa tradição, pois é sabido que tudo na vida tem regras, a tradição também é muito regrada, vejamos que no texto “Amalita”, o motivo que trouxe a doença era desconhecido pelos pais, até o conhecimento científico não conseguiu saber o que realmente se passara, até que se recorreu ao curandeiro, este que tem o poder de entrar em contacto com os antepassados. Descobriu-se que um antepassado é que estava zangado com o pai da personagem, por este não ter cumprido com a vontade dele.

 No texto “A morte Pronunciada”, houve uma violação da vontade dos antepassados por parte do pai da personagem Lodiriki, pois este, tinha um nome tradicional, dado pelos antepassados, entretanto, quebrou-se o pacto, Lodiriki pagou com a vida. Quando não se obedece o que os antepassados mandam, alguém tem de pagar. É o que este texto dá a entender.

Nos aspectos de ordem social, no texto “Amlita”, o narrador dá-nos a conhecer o que acontece na unidade sanitária na qual levaram a menina, as condições higiénicas que deixam a desejar, a demora no entendimento, a impaciência de alguns pacientes, ou por outras, descreve o que acontece nalgumas unidades sanitárias da realidade.

Em jeito de conclusão, Noa (2003), diz-nos que, quanto maior for o investimento na autenticidade do representado, maior é a sobreposição dos diferentes códigos que regem a visão do observador. Entendemos que o autor desta obra, o que está a representar é resultado do contacto que teve com cada objecto representado, até porque as obras literárias têm alguma coisa do “eu” do autor.

  • Referências Bibliográficas

Bernd, Zila. (1992). Literatura e Identidade Nacional. São Paulo: Editora UFRGS.

Freitas, Savio Roberto Fonseca de & Pinheiro, Vanessa Riambu. (2020). Dos Percursos pelas Áfricas à Literatura Moçambicana. João Pessoa: Editora UFRGS.

Manjate, Rogério. (2021). Vestidos de Terra. Maputo: Cavalo do Mar.

Matusse, Gilberto. (1998). A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulane Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária.

Noa, Francisco. (2003). Imperio Mito e Miopia. Lisboa: Editora Caminho.

Reis, Carlos & Lopes, Ana Cristina M. (1996). Dicionário de Narratologia. 5a ed. Coimbra: Livraria Almedina.

Wellek, Rene & Warren, Austin. (2003). Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários. São Paulo: Martins Fontes.

Zunguze, Pedro Manuel Natingue. (2009). A Representação do Espaço Suburbano na obra Xikandarinha na Lenha do Mundo de Calane da Silva como Afirmação da Moçambicanidade. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane.

Artigos científicos em formato eletrónico:

Cardoso, Eduardo Wrigth. Uma nação para ser vista: Desvelando o Tempo e o Espaço Nacionais por meio da Cor Local na Historiografia Oitocentista. Disponível em:  https://www.scielo.br/j/topoi/a/9LYWWv8mwdFZKPtJ5m5bFKh/?lang=pt&format=pdf, acesso em: 6 de Outubro de 2025.

Coutinho, Eduardo F. (2012). O conceito de Literatura Nacional e a Crise de Identidade na América Latina. XIII encontro da ABRALIC internacionalização do Regional, UEPB/UFCG, 1-2. Disponivel em: https://abralic.org.br/anais/arquivos/2012_1434241663.pdf, acesso em 6 de Outubro de 2025.

Makowicky, Sandra. (2003). Representação: A palavra, a ideia, a coisa. n.57, 1-6. Disponível: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/downloaad/2181/4439 , 7 de Outubro de 2025.

Ziberman, Regina. (2014). Cor Local e História da Literatura. Revista de Literatura e Diversidade Cultural, v.13, n.6, 9-16. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/32356744_Cor_local_e_Historia_da_literatura , acesso em: 7 de Outubro de 2025.

Metamiserista

Quando o Sérgio Raimundo também conhecido por Poeta Militar, compartilhou a imagem da capa do novo livro, antes de aceder ao livro, ocorreu-me haver intertextualidade entre o título “o colono preto saiu do guarda-fato” com o romanesco do camaronês Mongo Beti: o pobre Cristo de Bomba; um missionário católico que, ao visitar a sua paróquia, descobre com perplexidade que todos os males locais têm origem na própria Missão. Ainda que sejam géneros distintos, no de Poeta Militar apresentado em crónicas e no de Mongo Beti em romanesco, entretanto, ambos denunciam o colonialismo que combate um povo e fazem-no recorrendo a sátira, e é nesta perspectiva que ocorre a concatenação.

Não se pode confundir a anestesia com a esperança!

Camilo José Cela in “a Colmeia”

sonho com uma revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não esteja condicionado ao conceito expresso por uma ideologia, seja ela qual for.”

Jorge Amado in “o Menino Grapiúna” 

Inicio esta jornada invocando os autores: Cela e Amado, porque na minha crença toda a celebração tem de invocar o tempo para que o espírito se manifeste sobre a carne. E que será a arte se não a manifestação de coisa alguma!? 

O que motiva o autor a escrever sobre o colono preto, é o facto de ter nascido neste país cheio de colonos pretos. Colonizamo-nos a cada gesto em que oprimimos o outro, desnecessariamente, e tomamos o lugar do colono que dissemos tê-lo vencido, entretanto, substituímo-lo e tomamos o seu chicote para que o apliquemos em outros nossos irmãos. A busca pela justiça social e uma sociedade melhor onde haja equidade inquieta o autor de “o colono preto saiu do guarda-fato”.

 Logo a prior abre-se a página do colono preto com o seguinte excerto do poeta francês, Apollinaire, “Piedade para nós que trabalhamos na fronteira do ilimitado e do futuro”. Aqui, o autor confessa tudo o que sonha para com o seu povo: piedade. Que este colono preto, tenha piedade de seus irmãos. 

“Assim, queres começar, Sérgio” (…), este texto das páginas 10 e 11, apresenta-se como prelúdio e o autor apresenta o seu projecto em género textual de crónica e anuncia deixando nas entrelinhas que “aí tem”, tal como reage a mulher, quando o seu esposo a informa que passará a noite fora, e ela responde dizendo: assim, queres começar. Vemos o homem aqui descrito, a reagir diante desta construção verbal da seguinte forma: o meu primo, totalmente diluído de medo, passou por cima de grades de cerveja gelada, espectadas de carne de porco e uma animada música.  De acordo com o autor, a mulher usa este termo: assim, queres começar, como sinonímia de termos como cão, malandro, desprezível e etc.

Pode se depreender que o termo “assim, queres começar”, é o desarmamento de qualquer plano e instalação da ordem diante do caos e de desacertos. Nestes termos, fazemos desta significação para compreender que o Poeta Militar, prepara o leitor advertindo-o que nas páginas seguintes do livro irá desinstalar o caos e desacertos, e reveste-se da autoridade da mulher que faz o homem atravessar grades de cerveja gelada e corre para casa. Entretanto, assim, começa o autor nos fazendo atravessar as grades da fissuração e voltarmos para dentro de nós e repõe a ordem. 

O texto da página 12, intitulado “Quando não trabalhas”, em que descreve a forma como a sociedade trata o homem desempregado, dizendo que: quem não trabalha deve disputar os cantos de casa, todos os dias, com a poeira e ratos (…) a família transforma-te num pequeno técnico de coisas pequenas: pregar botões de casacos, colar solas de sapatos, lubrificar fechaduras e chaves, seguir pegadas no quintal (…). Este texto é polissémico no seu pendor. Não te enganes, caro leitor, pensando que o Poeta Militar se ocupa a entender actividade de caça-ratos, caçador de poeiras ou mesmo de um desempregado. E nota que o texto termina dizendo o seguinte: quando não trabalhas ganhas um novo nome (…) ao telefone dizem bem alto para ouvires: o Paulo, o Lucas, a Lina, o Paíto e a Inês estão bem; o resto está na mesma. O resto és tu que não trabalhas, seu desgraçado. Esta mente satírica, diz muito por aqui, estas pegadas ao amanhecer que são seguidas por este indivíduo que não trabalha se reverberam nas nossas acções factuais, quando se nos é confiado uma missão e deixamos de trabalhar tal como se espera, mas nos tornamos nesta figura que preenche os vazios.

O texto de Poeta Militar rememorou-me uma conversa com um amigo que dizia: mas este ministro só aparece na imprensa quando morre alguém e se lamenta sempre. Aí pensei, se um ministro que tutela os interesses públicos num domínio, apenas aparece para se lamentar de quem perece, devia ser ministro de lamentações. Que se crie este pelouro! Porque fica evidente que assim cumpriremos com a nossa missão de caçar ratos, cuidar da poeira, ou de fazer as lamentações tal como bem o sabemos fazer. O sistema está fodido, amigos!

Segue-se o texto “um bocejo que me assustou muito” da página 15, em que descreve bocejos assustadores e até que monstruosos. No entanto, o bocejo representa o preparo do sono ou descanso. 

No texto da página 16 “assim falam os nossos cobradores”, descreve a sina de quem anda em autocarros, um exercício que independe de títulos académicos; descreve um doutor cujo título não coube no chapa do cobrador e foi ignorado em plena estacão, para dizer que, para ser afinado em chapas não se pode portar títulos. Ocorre também o uso de neologismos como o termo quinhentxu para se referir aos quinhentos meticais. 

Na página 20 faz a classificação canina dos nossos analistas de televisão que os estrutura em 5 grupos seguintes:

  1. Cães de gaiola: os que ladram e ameaçam, só para assustar os distraídos, mas no pescoço têm a coleira e ao fim-do-dia recolhem à gaiola.  
  2. Analistas Bobi: os que se dedicam em coisas fúteis, mas temem enfrentar ao ladrão.
  3. Cães de fechadura: os que ladram atrás da fechadura da porta porque tem medo de enfrentar de frente a quem assalta a casa.  E esses são mais perigosos, pois atacam a todos, menos o que comanda a tigela de ração. 
  4. Cães vira-latas: saltitam de televisão em televisão com o microfone entre as pernas, carregados de raiva que procuram uma família que os acolha e proteja-os do frio, dos ossos sem sabor das esquinas, das pedradas de rua e moscas nas feridas das orelhas;
  5. “Cães híbridos” (grifo meu): que são analistas que parecem ter nascido do cruzamento de raças caninas diferentes. Uns que cruzam, por isso, ideias e informações, são bravos e atacam, mas nunca aparecem sempre, são chamados nomes, combatidos com balas e pedradas, são isolados porque são perigosos demais para a nossa sociedade.

Nesta senda, convido ao digníssimo leitor a reflectir no grupo de analistas com que se identifica na perspectiva apresentada por Sérgio Raimundo.

Na página 24, encontramos a cronica clássica “fomos enterrar o nosso director” onde se descreve a disputa pelo poder em que todas as estratégias são válidas para tirarmos quem estiver no nosso caminho.

A irreverência de Poeta Militar reside na simplicidade com que se comunica ao escrever, a carapaça e as antenas que tem revelam as feridas que há em nosso corpo. Um pensamento distópico de compreender a dor porque ela doi. Este raciocínio pode ser compreendido a partir de Sartre (2004, p.19) que diz o seguinte: 

Assim a linguagem: ela é nossa carapaça e nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um prolongamento dos nossos sentidos. Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos espontaneamente ultrapassando-a em direção a outros fins, tal como sentimos as nossas mãos e os nossos pés; percebemos a linguagem quando é o outro que a emprega, assim como percebemos os membros alheios. Existe a palavra vivida e a palavra encontrada

Vide o excerto concernente, página 29: a casa vai sendo modificada sem ser mexida. A casa continuará, as tocas dos ratos foram fechadas e nenhum rato foi morto; os ratos já começaram a cavar novas tocas em novos lugares. É o novo governo dentro da casa. 

Pensar em ratos que se mantém em todos os ciclos, conduz a narração de Júlio Cortázar em “Histórias de Cronópios e de famas” no texto intitulado “o homem sem moralidade”, que descreve o homem que vendia palavras e gritos para o povo e decidiu ir vender para o ditador alegando que seriam as suas últimas palavras antes que fosse fuzilado, o que lhe valeu a prisão, mas no dia seguinte o ditador fora preso por seus generais e morto antes que dissesse as palavras que pretendiam vendê-lo. Para dizer que, o Poeta Militar também se ancora ao raciocínio de Júlio Cortázar.

As saudades por Azagaia confessam-se na página 35. Homenageia Rosita Pedro, pelos 25 anos, referimo-nos a menina que nasceu no topo de uma árvore nas cheias de 2000 em Chibuto. Há também neste livro, um texto sobre o episódio horrendo da moça atropelada pelo blindado da polícia durante as manifestações, e é ainda nestas manifestações que se ocupa a descrever “as três profissões que surgiram com as manifestações: Doutor desliga-internet, Porta-Cara-Sem-Vergonha que defende o património do Estado e o Observador Lunático, o que nada vê no que se vê. 

Na página 47, ocorre um exercício bastante interessante, de reflexão no uso de diminutivos de nomes, uma prática actual e resulta em casos de Dr. Cus, que se refere a Dr. Custódio, Cons, Constância, e “até Já nosso anjo” numa notícia necrológica sobre Jacinto.

De acordo com o poeta francês, Rimbaud (2014, p.5): (…) E então, quando tu tens fome e sede, tem sempre alguém que te manda passear. Não será este colono preto que nos manda passear diante da miséria social que vivemos?!

Lê-se na página 52 o seguinte: todos temos direito de amar, mas isso não nos dá o direito de escolher os nossos namorados.

Esta construção precedente, assim como tantas outras aqui constantes, conduzem-nos à reflexão dos 50 anos de independência que o país celebra neste ano. Os prós e contra, conquistas e desafios. Desde o judiciário, desintegrado em textos como os que dissecam sobre as eleições, em crónicas como: a vergonha que passei no dia 09 de Outubro; sobre a cultura versus política em: tio Mondlane, viste a tua nova estatua; sobre o desemprego em: a espera de quem procura por um emprego. Há ainda assuntos como “os raptos em Maputo” e entre tantos outros, que abordam assuntos que enfermam a sociedade moçambicana. 

E é da página 69 que surge a crónica que dá título ao livro “o colono preto saiu do guarda-fato”, para descrever o senhorio que aparece quando se extingue a luz e tudo fica às escuras, e do guarda-fato surge a sombra  que recolhe todo o património que a família possui e quando se restabelece a electricidade tudo fica iluminado, mas a casa se apresenta vazia, sem nada do que possuía antes do apagão, porque o colono preto já saiu do guarda-fato. 

Este colono que age sorrateiramente quando tudo fica escuro, controla os nossos movimentos, e quando o pai se ausenta carrega os nossos pertences e quando abrimos os olhos ele se esconde e a miséria inunda a casa porque nada temos. Neste raciocínio depreende-se que, tudo o que temos, hoje, o colono preto virá buscar.  

Há aqui pecados e recados, mas não encontrei a penitência! 

Sérgio Raimundo, que à outrora escreveu versos sobre “o menino cândido” em “Avental de Um Poeta Doméstico”, que tive o privilégio de apresentar em nossas incursões, cresceu e hoje tem a sua voz e autoridade no cenário literário contemporâneo em Moçambique, segue com as ancas ou sem ancas, o CAMARADA Poeta Militar, segue, em direcção à Comala, como o filho que entre sequências dialogais construídas em Pedro Páramo, na narração de Juan Rulfo, ouve da mãe o seguinte: Não vá pedir-lhe nada. Exija-lhe o nosso. O que esteve obrigado a dar-me e nunca me deu (…) O esquecimento em que nos teve, meu filho, cobre caro.

Este é um livro que cobra o que é nosso, não te esqueças, apenas o que é nosso! Um livro revolucionário tal como é a escrita de Poeta Militar. Uma revisitação do guarda-fato vazio de dia e sombrio às escuras, entretanto, ainda assim, guardámo-lo em nossos quartos nestes 50 anos.

Toma a palavra vivida em nosso corpo e oferece a palavra encontrada no espírito, o sonho, a esperança aqui encontrada. Um livro que traz algo obrigatório, a esperança, porque a esperança é obrigatória para quem quer viver e de qualquer forma temos de sonhar, ainda que em nosso quarto, fábrica de sonhos, haja um colono preto a espera de fecharmos os olhos para nos atormentar os sonhos!

Referências Bibliográficas:

Amado, Jorge. “O Menino Grapiúna”. Publicações Europa-América. Lisboa. 1992.

Beti, Mongo. “O Pobre Cristo de Bomba”. Edições 70, Lisboa, 1979. Tradução de Geminiano Cascais Franco. Pág. 268.

Cela, José. “A Colmeia”. Publicações Dom Quixote. Lisboa. 2002.

Cortázar, Júlio.  “Histórias de Cronópios e de famas”. Editorial Estampa. Lisboa. 1999.

Rimbaud, Arthur. “Iluminuras”. Editora Iluminuras. 2014

SARTRE, Jean –Paul.  “Que É a Literatura?” Editora Ática. São Paulo. 2004.

Na recente reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros Nórdicos e Africanos, em Victoria Falls, reafirmámos o nosso compromisso comum de defender o sistema multilateral, o direito internacional e os direitos humanos. Num tempo de divisões globais cada vez mais profundas, esta parceria é mais do que simbólica — é essencial.

A relação entre os países nórdicos e africanos assenta em décadas de solidariedade. Para os nórdicos, o colonialismo foi uma ocupação — uma violação do direito internacional e da dignidade humana. Esta compreensão moldou o nosso apoio aos movimentos de libertação em toda a África Austral. A sociedade civil, as igrejas, os estudantes e os sindicatos mobilizaram-se em solidariedade. A minha própria trajectória política começou no movimento anti-apartheid norueguês há cerca de 45 anos.

Este envolvimento entre povos lançou as bases para uma cooperação a longo prazo. Desde o apoio à paz no Sudão até ao respaldo a organizações regionais como a UA, a SADC e a IGAD, a nossa parceria evoluiu. A Noruega continua a ser um parceiro consistente — política e economicamente. Continuamos a destinar 1% do nosso RNB à assistência ao desenvolvimento.

Hoje, a nossa cooperação concentra-se cada vez mais no investimento, no comércio e no desenvolvimento do sector privado. Instituições como o Fundo Norueguês de Investimento para Países em Desenvolvimento (Norfund) e o nosso fundo soberano (Fundo Global de Pensões do Governo) estão activas em todo o continente, reflectindo o nosso compromisso com um envolvimento a longo prazo.

Porém, a nossa reunião em Victoria Falls teve lugar num contexto preocupante. A guerra no Sudão criou a maior crise humanitária do mundo. O Leste da RDC sofre com a violência alimentada por actores internos e externos. O Sahel e o Corno de África permanecem frágeis. O povo da Palestina é vítima de graves violações em larga escala do direito internacional e de níveis extremos de violência. Do mesmo modo, a guerra da Rússia contra a Ucrânia constitui uma violação flagrante da Carta das Nações Unidas.

Estas crises não são isoladas. Reflectem uma erosão mais profunda da ordem internacional baseada em regras. Quando os governos escolhem a dedo quais violações condenar, minam o próprio sistema destinado a proteger-nos a todos. Condenar a agressão da Rússia na Ucrânia enquanto se permanece em silêncio sobre os bombardeamentos de Israel em Gaza é inconsistente. O inverso é igualmente perigoso. O mesmo se aplica a críticas selectivas no Sudão ou no Leste da RDC.

A posição da Noruega é clara. Condenamos violações do direito internacional onde quer que ocorram — seja na Ucrânia, na Palestina ou em África. Rejeitamos duplos critérios, não apenas nos conflitos, mas também no financiamento ao desenvolvimento e na justiça fiscal global. A credibilidade do sistema multilateral depende da coerência e da justiça.

Construir confiança entre regiões não é fácil, mas é necessário. A parceria nórdico-africana é um modelo do que a cooperação global pode ser: alicerçada no respeito mútuo, na responsabilidade partilhada e na convicção de que a justiça deve ser universal.

A Noruega continuará a desempenhar um papel de ponte — entre Norte e Sul, entre regiões e instituições. Na verdade, a divisão do mundo em blocos regionais como “Norte” e “Sul” faz hoje menos sentido. O mundo está cheio de desafios que só podem ser resolvidos em conjunto, como as alterações climáticas e as pandemias. Talvez a divisão mais importante entre os países não seja geográfica, mas sim baseada em saber se procuram defender princípios fundamentais do direito internacional e encontrar soluções comuns. Acreditamos que o multilateralismo não é apenas uma ferramenta diplomática, mas sim um imperativo moral. Juntos, devemos defendê-lo.

Em Moçambique, a juventude vibra com o ANAMOLA. Vibra porque vê nele frescor, novidade, energia. Vibra porque está cansada da velha política que se arrasta há cinquenta anos com as mesmas caras, os mesmos discursos e os mesmos truques. 

Nunca fui de partido nenhum. Nunca carreguei cartão de membro, nunca bati palmas em congressos, nunca fui cabo de ninguém. Nunca. Talvez, num ou noutro momento da minha juventude, tenha me iludido com a possibilidade de apoiar uma ideia revolucionária que nascia — mas logo percebi que todo movimento, cedo ou tarde, se fecha e vira partido. E partido é sempre máquina, é sempre engrenagem, é sempre estatuto e disciplina. Movimento é vida, mas partido é burocracia.

Eu não me filio a igrejas talvez numa tenra imatura idade fui, nem a clubes de futebol, nem a partidos políticos. Não tenho deuses, nem políticos, nem pastores que pensem por mim. Sou um jovem herético, céptico, liberal, humanista e existencialista. E justamente por não ter amarras, ouso dizer o que muitos não dizem: a juventude de Moçambique precisa aprender a pensar por si, antes de se deixar manipular pelas máquinas partidárias.

Se sabe que a juventude moçambicana tem sede de mudança. Essa sede é legítima. O país não precisa de mais discursos vazios, mas de uma verdadeira transformação social, política e cultural. Nesse contexto, nasce o ANAMOLA: muitos jovens acreditam que ele é um movimento, uma revolução. Mas, entre a vibração e a consciência há um abismo. É preciso fazer uma pausa, jus, pensar, analisar e compreender: ANAMOLA não é um movimento — na verdade, pela Constituição, é apenas mais um partido. Um partido legalizado, que tem de funcionar com estatutos, regulamentos e hierarquias. E a diferença é fundamental. 

E aqui surge a contradição: pode um partido ser movimento? Pode um partido ser revolução? A resposta é não. Um movimento pode inspirar um partido, mas um partido nunca poderá ser um movimento revolucionário, porque o movimento é espontâneo, orgânico, plural, enquanto o partido é institucional, hierárquico e regulado. Um partido é criatura da lei. Um movimento é criatura da vida. Um partido é estatuto, disciplina, organograma. Um movimento é fluxo, energia, espontaneidade. Ao se legalizar como partido, o ANAMOLA entrou para a arena institucional, com todas as suas regras e vícios.

E aqui começam os problemas: muitos jovens do ANAMOLA já não toleram críticas. Pensam que criticar o partido é atacar o sonho. Confundem divergência com traição. Isso não é novo: a FRELIMO sempre funcionou assim. Desde os tempos da luta armada, quem questionasse a linha política do partido era visto como traidor. A disciplina partidária substituiu a liberdade crítica. A mesma lógica continua até hoje: quem critica o partido é inimigo do povo.

A RENAMO fez o mesmo. Ao longo da sua história, quem divergia da linha de Dhlakama era afastado, punido ou silenciado. A lógica de “ou estás connosco ou contra nós” sempre predominou. O mesmo se repete no MDM, onde os líderes locais que ousaram questionar Daviz Simango foram marginalizados e o próprio Venâncio e os demais sabem disso. É a velha política de inimizade que Achille Mbembe tão bem descreveu.

Essa aversão à crítica não é exclusiva da política. A religião sempre funcionou do mesmo modo. Quando monges ou pensadores medievais ousaram questionar a Bíblia, a Igreja os queimou vivos. Chamavam-nos hereges, como se pensar fosse pecado. Daí nasceu a Inquisição, tribunal do medo, que calava as vozes divergentes. O Islão político também usou a mesma lógica: guerras santas para eliminar os infiéis e consolidar o monopólio da fé.

Os partidos — todos eles — se parecem com igrejas. E eu não sou de igreja nenhuma. As igrejas queimaram hereges na fogueira; os partidos queimam dissidentes no silêncio, na exclusão, no desemprego, na perseguição. A Igreja criou a Inquisição; os partidos criaram a censura e a disciplina. A Igreja inventou guerras santas; os partidos inventaram guerras civis. No fundo, é sempre a mesma lógica: quem critica é inimigo, quem pensa diferente deve ser silenciado.

Ora, em política, o resultado foi semelhante. Sempre que alguém ousou pensar diferente, surgiram partidos oposicionistas — não porque o sistema aceitava a crítica, mas porque a crítica era expulsa e obrigada a organizar-se em novas estruturas. É assim que nasceram muitos partidos de oposição em África: não como fruto da diversidade democrática, mas como produto da exclusão política.

Em Moçambique, não é diferente. A Frelimo expulsa, marginaliza, silencia. Daí surgiram desertores, dissidentes e, no fim, partidos como a RENAMO e o MDM e outros. Agora surge o ANAMOLA, tentando ocupar o espaço da esperança popular. Mas se não aprender com essa história, se repetir os mesmos erros, se não aceitar a crítica, acabará por transformar-se numa cópia das forças que hoje combate.

E aqui está o perigo: um partido que não tolera crítica é igual a uma igreja que queima hereges. A política torna-se uma nova religião. O líder é visto como um deus invisível — presente em todos os discursos, mas ausente quando o povo precisa de prestação de contas. O povo torna-se massa obediente, recitando slogans em vez de pensar. Por isso, quero partilhar dez pressupostos que mostram claramente essa tensão — e que servem para a juventude reflectir e não se deixar enganar pelo entusiasmo sem pensamento crítico.

  1. Um partido nasce da lei; um movimento nasce da vida.

O ANAMOLA está inscrito como partido político, regulado pelo Estado. Isso significa que tem de obedecer regras jurídicas, apresentar contas, seguir estatutos. Um movimento, ao contrário, nasce da rua, da consciência coletiva, das lutas sociais. Não precisa de autorização do Estado para existir, porque é expressão direta do povo.

  1. Partido é estrutura vertical; movimento é fluxo horizontal.

Num partido há presidente, secretário, porta-voz. Há cargos e hierarquias. Num movimento, não: todos são vozes, todos são protagonistas. Quando o ANAMOLA insiste em se chamar movimento, ignora que já está preso na verticalidade da lei que o reconhece como partido.

  1. O partido divide; o movimento agrega.

Um partido vive da disputa eleitoral, precisa mostrar que é melhor que os outros. Isso gera competição, inimizade e clubismo. Já o movimento social não se define contra outro movimento, mas pelo objetivo comum (liberdade, igualdade, justiça). O ANAMOLA, sendo partido, já entrou no jogo da divisão.

  1. O partido obedece a estatutos; o movimento obedece à consciência.

Militantes de partidos não podem falar livremente contra o seu partido, porque há disciplina interna. Num movimento, a crítica é parte da vida. Se os jovens do ANAMOLA não aceitam críticas, já estão a comportar-se como militantes partidários e não como cidadãos livres.

  1. Ser membro de partido não é ser revolucionário.

Muitos jovens do ANAMOLA pensam que ser membro de partido é já ser revolucionário. Não é. É apenas uma escolha institucional. A revolução está na rua, no pensamento crítico, na desobediência ao status quo — nunca apenas no cartão de membro.

  1. Movimento é luta pelo bem comum; partido é luta pelo poder.

O objectivo último de qualquer partido é conquistar o poder do Estado. O objectivo de um movimento é pressionar o poder, fiscalizá-lo, mudar consciências. ANAMOLA, como partido, inevitavelmente, terá de disputar cadeiras no parlamento. Isso não é revolução, é institucionalização.

  1. A política não é propriedade dos partidos.

Aristóteles dizia que o homem é zoon politikon, animal político. Isso significa que política é vida comum, partilha de destino. Reduzir política a partidos é empobrecer a cidadania. ANAMOLA, se quiser ser mais que partido, terá de voltar-se à vida da sociedade civil.

  1. Movimento é diversidade; partido é disciplina.

No movimento cabem várias vozes, até contraditórias, porque a força está na pluralidade. Num partido, há disciplina de voto, disciplina de opinião, disciplina de ação. Quem diverge é castigado ou expulso. Isso já está a acontecer com membros do ANAMOLA que não aceitam certas críticas.

  1. A juventude precisa aprender a diferença entre engajamento e fanatismo.

Ser engajado significa participar, refletir, propor. Ser fanático significa obedecer cegamente, defender sem pensar. Muitos jovens do ANAMOLA estão a cair no fanatismo partidário, confundindo crítica com traição. Isso é sinal de imaturidade política.

  1. Partido não é revolução; é administração da revolução.

A revolução é sempre maior que qualquer partido. Um partido pode, no máximo, administrar os resultados da revolução. Mas se a revolução é capturada pelo partido, morre. Assim aconteceu em Moçambique: a FRELIMO foi movimento libertador, mas ao virar partido matou a revolução. O mesmo destino ameaça o ANAMOLA.

A Constituição da República legalizou partidos como instrumentos de representação política. E aí está o primeiro ponto de reflexão: um partido é uma instituição do Estado, não uma insurreição contra ele. Por isso, todo partido, seja ele a FRELIMO, a RENAMO, o MDM ou o mais recente ANAMOLA, nasce dentro da moldura legal e não pode, em hipótese alguma, transgredir os limites dessa legalidade. A revolução, pelo contrário, nasce sempre da ruptura, da desobediência, da ousadia de ir além. Por isso, um partido nunca será movimento, e um movimento nunca poderá ser partido.

E termino com 11 pressupostos sobre o fim da revolução moçambicana da geração 18 de Março e o nascimento do partido.

  1. A juventude moçambicana trancou a crítica. Hoje, criticar um partido é ser logo acusado de “inimigo”, “vendido” ou “agente infiltrado”. Mas sem crítica, não há revolução — há seita e obediência. E aqui está a armadilha: os partidos transformaram jovens em crentes, não em pensadores. 
  2. Não há mais revolução em Moçambique. As ruas, que já foram espaço de resistência, hoje estarão vazias. Cada protesto será visto como manifestação partidária, e não como voz popular. O que quer dizer, em Moçambique, a revolução acabou. A rua já não é espaço de resistência. Toda manifestação é criminalizada ou classificada como partidária. Se alguém protesta contra a fome, logo se pergunta: “É da FRELIMO? É da RENAMO? É do ANAMOLA?” A voz do povo se dissolve no ruído das bandeiras. 
  3. Ninguém mais irá à rua. Porque a rua foi apropriada pelas bandeiras. Todo grito será imediatamente classificado como pertencente a esta ou àquela cor, nunca como grito de um povo livre. A rua deixou de ser da revolução para ser do comício. 
  4. Há hierarquia partidária. O militante não é sujeito livre, mas peça de engrenagem. Obedece, marcha, vota, aplaude. Se não, é expulso. O militante é soldado. A crítica é traição. O partido é quartel. Não por acaso, a linguagem política é sempre militarizada: células, brigadas, disciplina, camaradas. O jovem aprende cedo que ser político não é ser livre, mas ser obediente. 
  5. O partido é legalizado pela Constituição. Isso significa que ele não pode transgredir, não pode ultrapassar, não pode quebrar as grades que o Estado lhe impôs. O movimento é ilegal, selvagem, criador. O partido é legal, domesticado, regulado. Todo partido é legal. E o que é legal não pode ser revolucionário. A legalidade domestica o ímpeto do grito. A revolução é sempre ilegal: os primeiros cristãos contra Roma, os hereges contra a Igreja, os guerrilheiros contra o colono. Mas, uma vez legalizados, tornam-se ordem, dogma, partido. 
  6. Os membros aceitam e obedecem. Mesmo que não compreendam, mesmo que discordem.. Por isso, os partidos, obediência é mérito; crítica é pecado. Quem critica é chamado de divisionista, desestabilizador, inimigo interno. A obediência é premiada com cargos, a crítica é punida com expulsão. 
  7. A consequência da desobediência é a exclusão. Não há espaço para o dissidente: ele vira inimigo, traidor, marginal. Assim o partido reproduz a lógica da igreja que excomunga e da política que silencia. A Inquisição política não usa fogueiras, mas difamação, expulsão, silêncio. 
  8. O movimento morreu quando virou estatuto. Porque o movimento é chama, é espontaneidade, é grito. Já o partido é acta, congresso, disciplina. Vive de congressos, estatutos e reuniões. Quando o movimento vira partido, o fogo vira cinza. 
  9. A juventude confunde engajamento com submissão. Muitos jovens acreditam que ser político é ser obediente ao partido, e não crítico diante da sociedade. Confundem militância com servidão. Hoje, muitos jovens acreditam que ser militante é dizer “sim” ao líder. Confundem engajamento com idolatria. O militante não é crítico: é fã. O partido virou estádio de futebol, onde se grita o nome do craque e se vaia o adversário. 
  10. Não haverá mais espaço para revoltas autênticas. Toda manifestação será imediatamente cooptada, absorvida, etiquetada como “pró” ou “contra” este ou aquele partido. A voz do povo desaparecerá sob o rótulo. Ou seja, haverá cooptação das revolta. Toda revolta popular é rapidamente cooptada. Quando camponeses protestam, dizem: “É manipulação partidária”. Quando estudantes marcham, dizem: “Estão infiltrados”. O povo perde voz, porque tudo é absorvido pela lógica partidária. 
  11. O resultado é o fim da revolução. Porque sem crítica, sem rua, sem autonomia, sem desobediência, sem risco — não há transformação. Há apenas manutenção de uma ordem partidária que se alimenta da juventude como massa de manobra.

Na política moçambicana, o problema é agravado pela gerontocracia. Os mais velhos decidem, os mais jovens obedecem. As juventudes dos partidos são escadas de ascensão, não espaços de pensamento. A OJM, a Liga Feminina, as juventudes partidárias — todas domesticadas para servir ao projeto do poder.

ANAMOLA, que nasce sob a esperança de ser movimento, já carrega em si o destino de ser partido domesticado. Seus jovens militantes já aprenderam a reagir à crítica como a Igreja reagia aos hereges: com fúria, não com reflexão. 

Reflexão Final

Juventude de Moçambique, pensai: não confundam entusiasmo com consciência. Não confundam cartão de membro com cidadania. Não confundam partido com movimento.

O anúncio de que o ANAMOLA atingiu mais de 64 mil membros em apenas 10 dias caiu como uma bomba no panorama político moçambicano. Para uns, é sinal de esperança. Para outros, um exagero propagandístico. Para os mais atentos, é mais do que isso: é um sintoma.

Se quisermos olhar com rigor, não podemos apenas repetir números. Precisamos perguntar, como diria Gramsci: qual é o “bloco histórico” que sustenta esse entusiasmo? Em outras palavras: o que significa, em termos de poder real, ter 64 mil nomes numa lista num país que há quase 50 anos vive sob hegemonia de um só partido?

É evidente que muitos dos 64 mil membros inscritos de ANAMOLA jamais se identificarão publicamente. Viver em Moçambique significa viver sob a sombra do medo: medo de represálias no emprego, medo de perseguição política, medo de exclusão social. Assim, uma parte significativa desses membros será invisível — militantes ocultos que podem existir apenas no número, não na acção. Ou se forem alguns quadros serão eles na liderança. Como o fixarão Raúl Novinte. E só serão publicados assim que forem dados cadeira confiável. Isso é crucial: o número cresce, mas a coragem de se expor não cresce na mesma proporção.

A ANAMOLA, legalmente, é um partido. Pode querer parecer movimento, pode falar como se fosse revolução, mas a sua natureza oficial já o condena a ser aquilo que todos os partidos são: uma instituição que busca poder. A verdadeira revolução não cabe nos estatutos, não cabe no registo do Conselho Constitucional, não cabe nos gabinetes. A revolução vive na consciência crítica e na luta organizada do povo. Por isso, ser militante não é suficiente. É preciso ser cidadão ativo, livre, pensante. Porque sem isso, amanhã estaremos apenas a repetir a mesma história: partidos que nascem como esperança e morrem como instrumentos de poder.

Um partido é apenas uma máquina de disputar poder. Um movimento é uma energia de transformação social. Se o ANAMOLA não abrir espaço para crítica, se não cultivar debate, se não aceitar divergência, morrerá como todos os outros: velho antes mesmo de envelhecer. A história mostra: quem proíbe crítica fabrica dogma. Quem fabrica dogma fabrica guerra. A Igreja fez guerras santas. A política faz guerras partidárias. O resultado é sempre o mesmo: sangue, silêncio e repetição dos mesmos erros.

Enquanto a juventude trancar a crítica, não haverá revolução. Haverá apenas partidos — legalizados, obedientes, disciplinados, hierárquicos — que alimentarão a ilusão de mudança, mas reproduzirão o mesmo sistema. Por isso digo: a juventude precisa escolher entre ser herege ou ser crente; entre ser crítico ou ser obediente; entre ser movimento ou ser partido.

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

 

INTRODUÇÃO

No dia 10 de Setembro de 2025, foi oficialmente lançada a fase de implementação do Diálogo Nacional Inclusivo, apresentado como resposta à crise política que se desencadeou após as eleições de Outubro de 2024. O evento contou com a presença do Presidente da República, Daniel Chapo, de partidos políticos com e sem assento parlamentar, bem como de representantes da sociedade civil. Foi descrito como um momento histórico, supostamente destinado a restaurar a confiança política e a inaugurar um novo ciclo de reconciliação nacional.

Na mesma ocasião, a Comissão Técnica para o Diálogo Nacional Inclusivo, liderada por Edson Macuácua, apresentou a metodologia que deverá orientar todo o processo. É precisamente sobre essa metodologia que este artigo se debruça, partindo do entendimento de que ela será determinante para definir se o diálogo se traduzirá num exercício genuinamente inclusivo ou apenas numa encenação concebida para reforçar a legitimidade do poder instituído.

Destaca-se que a forma como o diálogo foi desenhado e apresentado revela um conjunto de dilemas estruturantes: entre a promessa de pluralismo e o risco de captura político-partidária; entre a participação cidadã e a sua possível instrumentalização simbólica; entre a ambição declarada de reconciliação e o desgaste social que continua a corroer a confiança. É nesse espaço de tensão – entre expectativa e suspeita – que se situa a reflexão desenvolvida neste texto.

 

CONTEXTO

As eleições de Outubro de 2024 foram o rastilho de uma crise que já se evidenciava. O processo, marcado por denúncias de irregularidades, contestação popular e repressão de manifestações, abalou ainda mais a confiança nas instituições eleitorais, já fragilizada em anos anteriores. Para muitos cidadãos, a sensação foi clara: o seu voto pouco influenciava os rumos do país e a democracia permanecia refém da lógica dos detentores do poder.

O clima de desconfiança rapidamente transbordou para as ruas. O assassinato de jovens manifestantes em confrontos com a polícia intensificou protestos que, começando de forma pacífica, degeneraram em violência generalizada. O resultado foi devastador: centenas de mortos, destruição de infra-estruturas e uma economia paralisada durante semanas. A violência não surgiu do nada; foi a expressão concentrada de frustrações acumuladas, de exclusões persistentes e de um sentimento generalizado de abandono.

Foi neste ambiente de ruptura que, em Março de 2025, os principais partidos com assento parlamentar assinaram o Compromisso Político, transformado em lei no mês seguinte. Mais do que um acordo formal, tratou-se de uma tentativa de travar a espiral de violência e de abrir um espaço para que os moçambicanos pudessem discutir com frontalidade os problemas estruturais do país.

O diálogo nasce, assim, num contexto de crise múltipla: política, igualmente associada à perda de legitimidade das instituições; económica, dada a pobreza extrema explícita, desemprego juvenil e desigualdade persistente; e social, pela fome, pela baixa qualidade da educação e por um sentimento crescente de repressão e impunidade. Mais do que indicadores isolados, trata-se de um ambiente dominado por uma percepção generalizada de exclusão: exclusão dos processos de decisão, da participação efectiva na vida pública e do acesso justo aos benefícios económicos que o país possui. Entre promessas de democracia e a realidade da sobrevivência, o fosso tem-se alargado.

 

UM MÉTODO CONTRADITÓRIO PER SI?

O texto, em termos gerais, procura transmitir ambição e modernidade. Evoca pluralismo, transparência, igualdade de género e participação cidadã como fundamentos. Para concretizar esses princípios, organiza o diálogo em diferentes níveis: uma Comissão Técnica responsável pela coordenação; grupos temáticos para analisar áreas específicas como governação, descentralização e coesão social; e um conjunto de mecanismos de consulta, que vão desde rádios comunitárias a debates televisivos e plataformas digitais. No papel, transparece uma construção sólida, alinhada com boas práticas internacionais de democracia participativa.

Porém, é justamente nos detalhes que surgem as fragilidades. A Comissão Técnica, embora faça referência à sociedade civil, é dominada por partidos políticos, os mesmos que assinaram o Compromisso Político. Ou seja, o projecto de diálogo nasce já sob monopólio das mesmas forças que sempre controlam a arena política. Isso coloca em causa a promessa de pluralismo: como esperar inclusão genuína, se a condução está restrita a actores que sempre beneficiaram da exclusão?

De igual forma, os mecanismos de tomada de decisão levantam problemas. O documento valoriza o consenso, mas permite que as decisões sejam tomadas por maioria qualificada de três quartos. À primeira vista, parece um mecanismo que evita imposições apressadas, mas, num contexto de forte assimetria, em que um partido domina largamente o sistema político, esse dispositivo pode transformar-se numa simples formalidade: em vez de forçar compromissos, apenas confirma a força da maioria existente.

Os grupos de trabalho temáticos poderiam, em teoria, ser espaços de abertura e diversidade. Contudo, a metodologia não esclarece quem escolhe os membros nem com base em que critérios. Essa ausência de transparência abre a porta para que esses grupos se tornem extensões técnicas das elites políticas, e não fóruns genuínos de debate plural.

A promessa de participação cidadã é talvez o elemento mais publicitado. Fala-se em rádios comunitárias, debates televisivos e plataformas digitais como canais de escuta. No entanto, aqui se coloca um dilema antigo: ouvir não é o mesmo que influenciar. Sem mecanismos claros de devolução, relatórios que mostrem como as contribuições da sociedade são incorporadas ou descartadas, a participação corre o risco de ser apenas simbólica, ou mera manipulação, no sentido amplamente abordado por Sherry Arnstein (1969): uma forma de inclusão aparente que legitima decisões já tomadas, sem redistribuição real de poder ou capacidade de influência.

A própria representatividade está limitada. O diálogo exclui de forma explícita novas forças políticas ou figuras independentes que, embora fora do Parlamento, ganharam relevância na cena pública. Essa exclusão transmite a ideia de que o processo é fechado entre “os de sempre”, e mina o potencial renovador que um diálogo desta natureza deveria ter.

Finalmente, há a questão da monitoria independente. O documento fala em transparência, mas não estabelece mecanismos de fiscalização externa, que envolvam universidades, organizações cívicas ou observadores internacionais. Sem esse escrutínio, o processo corre o risco de se encerrar sobre si próprio, validando apenas as dinâmicas das elites que o controlam.

Em síntese, a metodologia articula uma retórica ambiciosa, mas está marcada por contradições estruturais. Proclama pluralismo, mas preserva a centralidade dos partidos. Invoca consenso, mas admite mecanismos de decisão que podem apenas reforçar hegemonias existentes. Promete participação, mas não assegura que esta tenha efeitos vinculativos ou capacidade real de influência. O dilema torna-se evidente: ou o processo é conduzido com criatividade institucional e honestidade política, rompendo com a lógica histórica de exclusão, ou será lembrado como mais um ritual legitimador, incapaz de responder às expectativas e necessidades concretas de um povo ávido de soluções concretas.

QUAL CREDIBILIDADE?

O dilema central do Diálogo Nacional Inclusivo decorre do fosso entre a ambição anunciada e as condições políticas e sociais que o enquadram. A metodologia apresentada aparenta sofisticação, mas, confrontada com a realidade moçambicana, revela fragilidades que podem comprometer o processo desde o início.

O primeiro obstáculo é a credibilidade. A confiança nas instituições está profundamente abalada, sobretudo após a violência que marcou o pós-eleições de 2024. A repressão de manifestações e a morte de centenas de pessoas alteraram de forma duradoura a percepção popular do Estado e dos partidos políticos. Neste cenário, qualquer iniciativa conduzida pelas elites enfrenta cepticismo imediato.

A própria condução do diálogo por estruturas lideradas pelos mesmos actores que protagonizaram a crise reduz a sua legitimidade social. Mesmo que se proclame transparência, paira uma suspeita persistente de controlo e manipulação, alimentada por experiências anteriores de “participação” apenas formal. Assim, antes de arrancar plenamente, o processo confronta-se com uma questão essencial: como gerar confiança numa sociedade desconfiada e ferida?

Este défice de confiança liga-se ao risco da captura política. O diálogo pode transformar-se num mecanismo de validação de decisões já tomadas pelo poder dominante, em vez de constituir um espaço de verdadeira negociação. A história política recente mostra como a oposição tem sido fragilizada e frequentemente neutralizada, o que reforça a percepção de que o modelo adoptado tende a perpetuar a hegemonia existente. Perante isso, cresce o risco de deslocação da contestação para espaços paralelos, menos previsíveis e potencialmente mais perigosos.

A participação cidadã, tal como está prevista, corre o risco de ser sobretudo simbólica. Consultas públicas, rádios comunitárias e plataformas digitais podem projectar uma imagem de inclusão, mas sem garantias de que as contribuições influenciarão as decisões. A ausência de mecanismos de devolução ou de relatórios que evidenciem como as propostas foram acolhidas ou descartadas transforma a cidadania numa presença decorativa e não num sujeito político activo.

O calendário agrava as fragilidades. A última etapa do processo está prevista apenas para Abril de 2027, quase dois anos e meio após o lançamento. Num país com urgências sociais e ciclos políticos curtos e competitivos, esse horizonte temporal suscita dúvidas: haverá paciência popular para esperar por resultados tão tardios? E que relevância ou força política terão as conclusões quando chegarem? A ausência de entregas intermédias visíveis pode desmobilizar e reforçar o cansaço democrático de uma população habituada a promessas adiadas.

Esse prolongamento pode ainda servir como mecanismo de gestão de tensões. Ao dilatar o processo, corre-se o risco de transformar o diálogo num expediente para adiar decisões estruturantes, neutralizando o conflito sem o resolver. Se o calendário se converter num instrumento de protelação, o diálogo deixa de ser resposta para se tornar parte do impasse.

Tudo isto é agravado por um contexto de desgaste social profundo. A pobreza extrema, o desemprego crescente, a fome em várias regiões e a degradação dos serviços públicos empurram grande parte da população para uma luta permanente pela sobrevivência. A política só tem relevância quando produz efeitos concretos. Se o diálogo não gerar resultados tangíveis – sobretudo num horizonte próximo – aumentará a frustração e poderá reabrir caminhos para novas explosões de violência.

Assim, a metodologia corre o risco de sucumbir às suas próprias promessas. Ao proclamar inclusão e transparência enquanto preserva estruturas fechadas, mecanismos controlados e prazos dilatados, compromete a credibilidade antes mesmo de produzir efeitos. Quanto maior a retórica, maior o potencial de desilusão. O que se anuncia como oportunidade de reconciliação pode converter-se em mais um episódio de desencanto político, reforçando a percepção de que, em Moçambique, a política continua a ser um jogo de elites distante da vida do povo.

CAMINHOS POSSÍVEIS

Com a metodologia já definida, é improvável que venha a ser revista. Resta, portanto, explorar as brechas existentes dentro da sua própria arquitectura. O desafio é claro: converter um modelo concebido para reproduzir o status quo num processo capaz de gerar mudanças reais, reconstruir confiança e produzir resultados visíveis. Para isso, há margens de acção que podem ser mobilizadas:

  1. Dar conteúdo efectivo à participação cidadã

Multiplicar rádios comunitárias, debates televisivos ou fóruns locais não basta se não houver retorno claro. É essencial instituir relatórios públicos regulares que indiquem, ponto por ponto, o que foi recolhido junto da população e como essas contribuições influenciaram as deliberações. Sem mecanismos de devolução, a consulta torna-se meramente decorativa; com devolução transparente, transforma-se em fonte de legitimidade. A experiência da CREMOD é ilustrativa: gerou expectativas elevadas, mas os resultados nunca foram claramente apresentados.

  1. Reforçar o papel da sociedade civil

Mesmo com uma Comissão Técnica dominada pelos partidos, os grupos temáticos podem abrir espaço para maior inclusão. Para isso, é necessário garantir diversidade nas nomeações, envolvendo universidades, igrejas, organizações juvenis, associações comunitárias e sindicatos. Uma composição plural reforça a credibilidade do processo e reduz a percepção de que o diálogo é exclusivo das elites.

3. Incluir actores e forças políticas relevantes

A legitimidade do diálogo dependerá da capacidade de integrar – formal ou informalmente – figuras e partidos que gozam de representatividade junto de sectores significativos da sociedade. Se certas forças, como Venâncio Mondlane ou o partido ANAMOLA, não puderem integrar directamente a Comissão Técnica, é imperativo criar canais institucionais para que as suas propostas sejam recebidas, registadas e reconhecidas publicamente. Mais do que ouvir, é necessário demonstrar que essas contribuições terão impacto nas conclusões e ficarão reflectidas nos resultados finais.

4. Produzir resultados intermédios

Aguardar até 2027 por conclusões finais é incompatível com a gravidade dos desafios actuais. O processo deve apresentar medidas concretas no curto prazo – por exemplo, compromissos de transparência orçamental, iniciativas de reconciliação comunitária em zonas afectadas por violência ou acordos sobre gestão de recursos públicos. Pequenas victórias podem gerar impacto político elevado, mostrar que o diálogo produz efeitos e manter a mobilização social.

5. Permitir monitoria independente

Nada impede que universidades, organizações cívicas ou parceiros internacionais acompanhem o desenvolvimento do diálogo e publiquem avaliações autónomas. Esse escrutínio externo deve ser visto como factor de reforço, não como ameaça. Num contexto de desconfiança, apenas a fiscalização independente pode atenuar suspeitas de captura e conferir maior credibilidade ao processo.

6. Praticar um consenso autêntico

A regra dos três quartos não deve funcionar como atalho para impor maiorias pré-definidas. A legitimidade não nasce de números, mas de compromissos construídos. Se os líderes optarem por negociação substantiva, mesmo dentro das regras existentes, será possível alcançar acordos que transcendam divisões e sinalizem renovação política.

A 5 de Outubro de 2017, Moçambique mudou por completo. De uma jóia do gás natural ainda por explorar para um conflito armado que começou com ataques na vila de Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado.

Em bom rigor, a invasão ao comando distrital da PRM em Mocímboa da Praia começou por volta das 23 horas do dia 4 de Outubro (segundo fontes orais no local), quando o país celebrava mais um aniversário da assinatura do Acordo Geral de Paz. Este pormenor não me parece uma mera coincidência.

No dia 5 de Outubro de 2025, o conflito em Cabo Delgado completa oito anos – metade do tempo que durou a guerra civil em Moçambique. Neste transcurso, muita coisa aconteceu. A mais grave delas é a morte brutal de cerca de 3 mil pessoas, entre civis, militares e polícias, para além do drama humanitário resultante do deslocamento forçado de mais de um milhão e quatrocentas mil pessoas.

Para assinalar este marco sombrio da nossa história contemporânea, propus-me a exercer o meu direito de cidadania, partilhando este artigo de opinião, que é, na verdade, um olhar a alguns pontos que me parecem essenciais para uma discussão colectiva.

O primeiro aspecto que me inquieta é a (aparente) normalização da barbárie que está a acontecer em Cabo Delgado. Todos, sem excepção, passámos a encarar o terrorismo como algo normal. A sociedade já não mais se comove tanto quando circulam imagens brutas de pessoas decapitadas em Cabo Delgado. Fica como se fosse apenas mais uma pessoa morta pelos terroristas, e a vida segue em frente.

Para a maioria dos jovens de Maputo, por exemplo, a situação de Cabo Delgado não lhes diz absolutamente nada. Todos os fins-de-semana são festas de rua, na praia, na discoteca, com direito a ostentação nas redes sociais.

A sociedade civil, que em Maputo levanta a voz por tudo e por nada, pouco fala do assunto de Cabo Delgado, e nunca vi uma marcha convocada para pressionar o Governo a encontrar melhores soluções para o problema.

Ah, do Governo já ouvi altos dirigentes (incluindo o antigo Presidente da República, Filipe Nyusi) a dizer que o terrorismo é um fenómeno que não acaba – uma clara sugestão de que devemos aprender a conviver com o mal como se se tratasse de um tumor benigno.

Imagino um dirigente do Governo a ser convidado, numa entrevista no estrangeiro, a caracterizar Moçambique. Acho que a resposta não fugiria desta: “O país está bem, as instituições do Estado estão a funcionar, é um país com um povo trabalhador, com muitas oportunidades para investir”. Isto diz muito do que ocorre no nosso substrato social, quando em contrapartida há crianças, jovens e idosos que vivem debaixo do espectro da violência, de dia e de noite, há oito anos.

Não é normal para um país que se espera uno e indivisível. A natureza está cheia de exemplos dos quais podemos aprender. Uma simples picada num pé é suficiente para pôr todo o corpo doente, porque não é um problema apenas do pé. É de todo o corpo.

A população de Cabo Delgado tornou-se carne de canhão, com a violência a chegar de todos os lados. Quando não morre pela brutalidade dos terroristas, morre de fome nas zonas de reassentamento ou morre vítima de balas dos militares que demonstram fraca capacidade de lidar com o terrorismo, devido à sua complexidade.

A Marinha de Guerra de Moçambique é citada em muitas notícias nacionais e internacionais como estando a promover mortes indiscriminadas de pescadores em Macomia, Mocímboa da Praia, na ilha de Ibo, em Palma e noutros sítios. O Exército (Infantaria) também é acusado de sistemáticas violações dos direitos humanos.

Porque é assim? Esta é a questão sobre a qual se mostra relevante reflectir.

O que me parece é que os nossos militares são formados apenas para impregnar a força bruta, e as comunidades não escapam a essa brutalidade. Depois são acusadas de não colaborarem na denúncia da movimentação dos terroristas, o que em si não faz muito sentido. Um Exército com uma estratégia bem definida não usa apenas a força das armas; recorre também ao chamado “soft power” para conquistar os corações das populações.

Há alguns anos, circulou um vídeo de militares ruandeses que apareceram a pilar numa casa, em Cabo Delgado. Não se tratava de um “show off” dos ruandeses. É aquele engajamento social que faz parte do “soft power” a que me refiro.

A diferença de actuação entres os ruandeses e a tropa moçambicana está a abrir caminhos para uma situação muito perigosa. Em Julho deste ano, a população do povoado de Namacande, distrito de Muibumbe, expulsou os militares moçambicanos, acusando-os de inoperância quando são chamados para intervir em casos de ataques terroristas.

A 11 de Setembro, na vila de Mocímboa da Praia, durante um encontro que juntou a administração do distrito, a população, os militares nacionais e os ruandeses, a população irrompeu aos gritos dizendo que prefere os ruandeses aos militares moçambicanos. O encontro terminou nessa confusão que por pouco não resvalou em violência.

Estes episódios são graves, porquanto demonstram sinais de quebra de confiança entre o Estado e a população. A ideia do contrato social está a esvair-se aos poucos e, com ela, a soberania nacional.

Quando um povo aliena a sua segurança aos estrangeiros, deve-nos envergonhar, como nação. A soberania não reside apenas nos discursos políticos, é um contrato que liga o povo à sua pátria-mãe. Garantir segurança das populaçõs é tarefa primordial do Estado moçambicano, e não de forças externas.

Nas Ciências Políticas, ensina-se que os três fins do Estado são: garantir (i) a segurança; (ii) a justiça e (iii) o bem-estar económico, social e espiritual. Nesta ordem de consideração, será que a população de Cabo Delgado sente efectivamente essas garantias?

A fechar esta parte, quero, de forma objectiva, dizer a todos os estratos da sociedade que devem indignar-se com o que está a acontecer em Cabo Delgado e devem levantar a voz até ser ouvida pelo poder político, que tem a obrigação de resolver os problemas da população. O silêncio é cúmplice.

João Saltiel coloca no seu livro O Pensar Social a seguinte pergunta: “qual é a fórmula mágica que o ex-presidente Joaquim Chissano utilizou para manter a paz por esses longos anos? Por que não pedir ao Presidente Chissano essa fórmula. Não queremos ser beefsteak de ninguém. É altura de pensarmos num Moçambique melhor, num país sem vukuvuko. Temos que pensar grande”.

 

UM OLHAR ÀS FORÇAS ARMADAS

O actual estágio das Forças Armadas de Defesa de Moçambique é resultado de um processo histórico que começou no tempo de Samora Machel e se agudizou depois do Acordo Geral de Paz.

Durante a Luta Armada de Libertação Nacional, Moçambique recebeu muito apoio da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), hoje Rússia, China, Cuba entre outros países socialistas. O apoio foi em termos de formação e equipamento militar (as famosas AKM e AK47 são herança desse passado), para além da logística que incluía o fardamento, botas e alimentação. Este apoio estende-se até ao período da guerra civil, que começou em 1977 e terminou em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), a 4 de Outubro.

Quando a guerra civil se iniciou, Moçambique tinha uma logística militar aceitável, porque as Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM) herdaram instalações militares e meios de guerra do regime colonial português. A título ilustrativo, a Marinha de Guerra era forte. Contava com a Base Naval de Metangula, em Niassa, que era a melhor do país, com oficinas para a reparação de navios de guerra. Destaca-se, igualmente, a Base Naval de Pemba, em Cabo Delgado.

Para aprimorar os conhecimentos de gestão logística militar, Samora Machel optou por enviar em massa militares para a URSS e Cuba, para estudarem a gestão e manutenção de equipamentos militares.

A partir de 1984, o apoio da URSS a Moçambique baixou consideravelmente, depois de Samora Machel assinar o Acordo de Nkomati com o regime do Apartheid, da África do Sul, como parte da estratégia para a África do Sul deixar de apoiar a Renamo.

Este acordo não foi bem visto pela URSS, que entendeu que era uma traição às causas do socialismo, agudizado pela visita histórica de Samora Machel aos Estados Unidos da América, em 1985. 

Para a União Soviética, Moçambique estava a piscar para o Ocidente, seu inimigo ideológico. Nessa altura, a economia de Moçambique estava de rastos, devido à intensificação da guerra civil.

A morte de Samora Machel, em Outubro de 1986, piorou a situação logística dos militares. Esta crise de logística estendeu-se até ao consulado de Joaquim Chissano, que assumiu a Presidência da República em 1986.

A guerra terminou em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), e foi estabelecida a missão de pacificação de Moçambique, através da ONUMOZ (sobre este assunto recomendo a leitura do livro Democracia e Outras Coisas de Moçambique, do cientista político Arcénio Cuco).

O Protocolo IV do AGP foi a base para a criação das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), como um Exército republicano, apartidário, com a missão de defender a soberania e a integridade territorial do país. 

O AGP previa a constituição de uma Defesa com um efectivo de 30 mil homens até à tomada de posse do Governo democraticamente eleito (depois das eleições de 1994). Esse efectivo estaria distribuído da seguinte forma: 24 000 do Exército; 4000 da Força Aérea e 2000 da Marinha. Esses efectivos, descreve a Lei do AGP, seriam fornecidos, 50% pelas então Forças Armadas de Moçambique e 50% pela Renamo (para mais informação pode-se consultar a Lei n.°13/92, de 14 de Outubro).

A composição das FADM nos moldes do AGP foi determinante para aquilo a que se assistiu a seguir nos governos da Frelimo – um autêntico abandono das Forças Armadas

A Força Aérea, em particular, morreu literalmente em 1992. Quando foi assinado o AGP, Moçambique tinha stock de motores de aviões militares MiG-17 e MiG-21, que sumiram misteriosamente, e nunca mais foi visto um MiG no ar. 

É muito provável que a existência de muitos militares provenientes da Renamo até nos cargos de topo das Forças Armadas tenha sido a causa desse desleixo, pois a possibilidade de interferir na sua actuação era menor. Em contrapartida, o Governo investiu bastante na Polícia da República de Moçambique, onde tem controlo de toda a cadeia de comando.

Quando Armando Guebuza assumiu o poder, em 2005, tentou mudar este paradigma, mas, porque tinha passado muito tempo sem investimento, não foi a tempo de revitalizar por completo este sector nevrálgico do Estado, de tal forma que, quando o terrorismo começou, em 2017, as Forças Armadas praticamente não tinham meios de combate.

Esta viagem no tempo era para chegar ao essencial: Moçambique secundarizou a Defesa ao longo dos anos que se seguiram ao AGP e foi encontrado em contrapé pelo terrorismo, por isso enfrenta o fenómeno aos improvisos.

Há um adágio militar bastante interessante que diz que “em tempos de guerra não se limpam armas”. Ou seja, a Defesa deve estar nas prioridades de qualquer governo, mesmo em tempos de paz.

A falta de logística para os militares que combatem em Cabo Delgado é uma realidade idisfarçável. Falo de logística, no seu todo (equipamento bélico, munições, aprumo e comida).

Recentemente, 300 militares que estiveram a combater o terrorismo em Macomia foram mandados voltar à sua procedência, depois de terem combatido sem receberem salário ou qualquer subsídio, e até relataram falta de comida, armamento e munições.

O Estado-Maior General disse, em comunicado de imprensa, que o processo de (re)integração daqueles jovens não obedeceu à lei e demais regulamentos que regem as Forças Armadas, porque alguns passaram para a reserva de disponibilidade, cumprido o Serviço Militar, e outros estão na situação de expulsos das FADM por diversos actos de indisciplina, incluindo a deserção.

Este episódio é grave e revelador de desorganização na liderança das Forças Armadas. É que, mesmo ignorando a questão de logística, da mesma forma que aqueles militares “ilegais” estiveram no teatro operacional, com acesso a armas e estratégias de combate, então podiam estar envolvidos também terroristas.

Mais grave ainda é que esses militares foram esbulhados do teatro operacional quando ainda tinham vontade de combater o inimigo e mostraram bravura nos combates que travaram. A pergunta que faço é: afinal, o que queremos concretamente, como país?

E se por via das armas não se ganha o conflito, porque não empreender esforços sinceros para o diálogo? Filipe Nyusi disse outrora que não havia rostos do terrorismo em Moçambique, por isso era difícil dialogar. 

Entretanto, tenho sérias dúvidas de que o Estado não conheça os líderes ou, pelo menos, alguns líderes. Até porque alguns discursos dos próprios governantes são contraditórios. Uma dessas contradições está relacionada ao facto de, em Agosto de 2023, Filipe Nyusi ter anunciado o abate de Ibin Omar, que era tido como um dos moçambicanos líderes da insurgência em Cabo Delgado. Com este facto, a pergunta que não quer calar é: afinal, são ou não conhecidos os líderes da insurgência em Cabo Delgado?

Tal como se sabia de Ibin, estou a crer que o Estado, através da Inteligência Militar e dos Serviços de Informação e Segurança do Estado, conhece os líderes ou, no mínimo, alguns líderes. E, se realmente não os conhece, que se alie à população que em várias circunstâncias, na imprensa ou nos encontros públicos, relaciona a insurgência com jovens locais e bem conhecidos. Contudo, para que a população colabore, mais uma vez, deve haver uma estratégia do Estado para conquistar a sua confiança.

 

INSURGÊNCIA ISLÂMICA?

Outro aspecto de realce é a frequente associação da insurgência ao Islão – narrativa da qual discordo, porque não encontro sinais claros de tentativa de estabelecimento de um califado (uma República governada com base em princípios e normas islâmicas). O que a leitura do fenómeno me sugere é a utilização da religião islâmica como veículo para facilmente conseguir militantes, porque talvez usar a narrativa de pobreza e exclusão social não fosse mexer tanto com as pessoas quanto a fé religiosa.

Lembremo-nos de que a radicalização teve os seus indícios em Mocímboa da Praia, de onde alguns jovens terão ido ao Sudão, supostamente estudar o Islão “puro”. Mocímboa da Praia é o distrito de Cabo Delgado onde a religião islâmica é professada por mais de 80% da população, algo que terá sido devidamente estudado e explorado pelos cérebros da insurgência.

Outro elemento que suporta a minha posição é o facto de os primeiros “al-shabaab” se comportarem de forma anti-islâmica, entrando nas mesquitas com sapatos, catanas, facas e de vestes que não respeitavam o padrão dos muçlmanos. Estes factos foram denunciados pela população em Mocímboa da Praia.

“Moçambique é um país predominantemente cristão (5,7 milhões de católicos, 2,5 milhões de protestantes), com uma grande comunidade muçulmana (3,6 milhões, majoritariamente sunitas), majoritária nas províncias nortenhas de Niassa (61%) e Cabo Delgado (54%) e nas zonas costeiras. O Sul de Moçambique e as suas principais cidades são predominantemente cristãos. A Igreja Universal do Reino de Deus, neopentecostal brasileira, tem conhecido uma rápida expansão no país, e a religião sionista é praticada por 3,1 milhões de moçambicanos. As comunidades religiosas tradicionais africanas estão também fortemente representadas, particularmente nas regiões rurais. Na província de Cabo Delgado, onde ocorreu a maior parte dos ataques jihadistas, os católicos são muito numerosos (cerca de 36%), estando também presentes comunidades menores de outras denominações religiosas (protestantes e sionistas)” – https://www.acn.org.br/mocambique/.

Estes dados levam a pensar noutras geografias que deviam ser o ponto “legítimo” para o início da insurgência islâmica no Norte de Moçambique, e não necessariamente Cabo Delgado, que, no cômputo geral, não tem a população maioritariamente islâmica, salvo melhor entendimento.

A guerra em Cabo Delgado, em meu entender, está associada aos recursos naturais, marinhos, energéticos e florestais que abundam na sua extensão. A religião pode ser uma estratégia de distracção para dissimular os reais interesses neste conflito.

Alguém consegue responder com objectividade quem explorava os rubis em Montepuez? Não eram os estrangeiros que dominavam o circuito de contrabando de gemas e fomentavam o garimpo? Para onde foram os garimpeiros e compradores que foram, várias vezes, alvo de ofensivas da Unidade de Intervenção Rápida? Será que esses estrangeiros que lucravam com o negócio ilegal ficaram felizes com essas ofensivas visando retirá-los do local? Seria ingenuidade demais dizer que “sim”.

E, mais do que ofensivas de repressão policial, que alternativas de sobrevivência foram dadas aos jovens garimpeiros moçambicanos? Nenhuma. Penso que é aqui que reside o erro que o Estado cometeu e continua a cometer, ao ignorar alguns sinais, como é o caso da insatisfação da população de Palma e Mocímboa da Praia, que não vê as suas expectativas satisfeitas na pretensa retoma do projecto de construção da fábrica de liquefação de gás natural em Palma.

 

SOLUÇÕES SINUOSAS

No auge do terrorismo (2020-2021), o desgaste das Forças de Defesa e Segurança foi notório, com a intensificação dos ataques, alastramento do terrorismo por mais pontos de Cabo Delgado, Nampula e Niassa e sucessivas baixas no campo de batalha. 

Moçambique accionou a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), que, através do mecanismo de cooperação militar, respondeu positivamente, anunciando a criação da Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM).

Entretanto, antes mesmo do posicionamento da força da SAMIM em Cabo Delgado, Filipe Nyusi confirmou a chegada a Moçambique de mil militares ruandeses. Esta situação não agradou à SADC, que não entendeu a posição de Moçambique de estabelecer um “acordo” bilateral com um país que (i) não faz parte do bloco regional e (ii) tem um conflito militar com um Estado-membro da SADC, a República Democrática do Congo.

De facto, foi uma situação deselegante, mas há que reconhecer que a chegada de militares ruandeses foi determinante para a recuperação da vila de Mocímboa da Praia em Agosto de 2021, depois de ter sido ocupada pelos terroristas por um ano. 

A SAMIM acabou por deixar Moçambique em Julho de 2024, e ficaram os ruandeses em Cabo Delgado. Que Ruanda é, neste momento, uma potência militar em África, é inquestionável. Esta foi, diga-se, a estratégia de sobrevivência que aquele país adoptou por estar localizado num “anel de fogo”, com conflitos constantes com os seus vizinhos, especificamente, Burundi e República Democrática do Congo.

Ruanda aperfeiçoou a sua estratégia de guerra ao longo do tempo, sobretudo depois do genocídio de 1994. Há quem entenda que, para Paul Kagamé sobreviver depois daquele evento, tinha de formar um exército forte.

Outrossim, Ruanda é um satélite da França e da Inglaterra naquela região de África, razão pela qual recebe equipamento militar de ponta.

Este histórico faz-me apreciar, num primeiro plano, a presença dos ruandeses em território nacional se olharmos na perspectiva de cooperação e capacitação do Exército de Moçambique.

Entretanto, fico perplexo quando noto o secretismo em torno dessa cooperação militar. Ainda que digam que assuntos de defesa fazem parte do segredo de Estado, não encontro cabimento para esta falta de prestação de informação aos moçambicanos.

O Presidente da República, quando toma posse, jura respeitar e fazer cumprir a Constituição da República de Moçambique. É esta Constituição que, no n.° 1 do art. 2, dispõe que “A soberania reside no povo”. 

O Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva (32ª edição) define soberania como “…a qualidade do que é soberano, ou possui a autoridade suprema; o poderio supremo, ou o poder sobre todos”. Nesta ordem de ideias, era expectável que antes de uma decisão deste nível fosse ouvido o povo que está formalmente representado na Assembleia da República. Até porque o anterior Presidente tinha um slogan interessante: o povo é o meu patrão!

Assuntos de defesa mexem com o sentido existencial de todos nós, como país. A história pode-nos penalizar se no futuro acontecerem situações graves derivadas destes acordos secretos. Lembremo-nos de que António Carlos do Rosário (operativo do SISE) disse, durante o julgamento do caso das dívidas ocultas, que havia um plano em marcha de divisão de Moçambique. Verdade ou não, a sucessão de acontecimentos em Cabo Delgado faz-me não desvalorizar aquelas palavras.

Analisando atentamente os factos, parece-me evidente que Filipe Nyusi correu para buscar apoio militar do Ruanda por pressão da TotalEnergies, que tem interesses comerciais em Palma. 

Em tudo isto, Moçambique deve proteger a sua soberania. Está claro que não vamos contar eternamente com o Exército dos outros para garantir a nossa segurança, daí que deve haver clareza nos objectivos que o país tem com o Ruanda: por quanto tempo será esta intervenção militar e quais são as contrapartidas que os ruandeses recebem.

Foi assim no passado. Aquando do processo de pacificação de Moçambique depois da guerra civil, as Nações Unidas intervieram com 7 mil soldados. A missão era bem clara em termos de cronograma, e, depois da realização das primeiras eleições em 1994, essa missão terminou.

O mesmo se verificou aquando da constituição da SAMIM. Tudo era claro: número de soldados de cada país, o mandato, e, antes de qualquer prorrogação da missão, o Órgão da SADC de Cooperação nas áreas de Defesa, Política e Segurança reunia-se para discutir e deliberar.

O Presidente da República, Daniel Chapo, (também com um slogan interessante inspirado no físico Albert Einstein (fazer diferente para obter resultados diferentes) tem a responsabilidade, neste momento, de fazer verdadeiramente diferente. Até para não carregar sozinho, no futuro, os pecados que se forem revelando.

É que está claro que o Ruanda ganha alguma coisa com a presença militar em Cabo Delgado. E, se um dia se decidir por sua retirada, será que Kigali vai deixar Moçambique de ânimo leve? Duvido! E, no meio disso, o que pode vir a acontecer em Cabo Delgado? Só o futuro responderá.

Uma coisa é certa: não há nada que os ruandeses fazem que os soldados moçambicanos não possam fazer, desde que haja boa formação, disciplina, tecnologia militar e logística adequada. Dito de outra forma, haja criação de condições para que as nossas Forças de Defesa e Segurança possam actuar sem dificuldades.

Por falar em logística, um soldado altamente equipado é um factor dissuasor do inimigo. Quem vê um soldado ruandês ao lado de um soldado moçambicano nota uma diferença extrema.

Quando o inimigo planeia um ataque a uma posição, naturalmente, faz a leitura da forma como os militares estão equipados, e isso é determinante para decidir por atacar ou não. Um exemplo mais ilucidativo é quando se repara para um soldado norte-americano num teatro operacional. A forma como se apresenta faz o inimigo pensar duas vezes para atacá-lo. É isto que Moçambique precisa de fazer com os seus homens.

 

*Esta opinião resulta das minhas reflexões enquanto jornalista com passagem pelo TON e contou com ideias de pessoas abalizadas nas Relações Internacionais; Ciências Políticas e na área militar, por isso agradeço a todos pela disponibilidade para conversa. Agradecimentos também ao cientista político Arcénio Cuco pela discussão de ideias e correcção do artigo.

Havia uma pré-estreia a contemplar no centro cultural universitário da UEM, pelas 18h do dia 19 de Setembro. Estava tudo orquestrado a rigor, a sala repleta de convidados, as luzes em jogo de mistério, afugentando a escuridão em alguns cantos e permitindo ela passear noutros, a sala em dó de suspense, era como se Josina Machel fosse reencarnar de novo em Lourenço Marques.

A banda coral milimetricamente posicionada na sala, os intrumentos cochichavam entre si, igualmente ansiosos perguntavam se: Quando começarão estes músicos a tocar nos?

Já passavam 11 minutos das 18h, os espectadores quase ruiam as unhas em público.

O evento encetou com um breve briefing da directora da ECA, a respeito dos cursos e trabalhos artísticos da própria ECA como Academia.

Seguiu se a sua explanação sobre o conceito da ópera, como um projecto de pesquisa e homenagem a Josina Machel, com a pretensão de promover a liberdade,  a memória cultural, a resistência, e valorizar  o papel da mulher na memória histórica de Moçambique, no contexto dos 50 anos de independência.

A opera Josina Machel contou com cerca de 250 participantes, dentre músicos, docentes, estudantes e jovens vulneráveis. A Obra combina música, teatro, e trechos da história de Moçambique, atribui se a autoria da ópera a Feliciano de Castro. Composta por 3 actos, ao público estava reservado contemplar apenas o acto 1 da ópera, no contexto de pré estreia que possuia exactamente  6 cenas. 

O espectáculo artístico finalmente iniciou, Josina foi apresentada numa encenação com mulheres do antigo destacamento feminino, magrinha, airosa e com os cabelos naturais que Deus embelezou antes de a dar. Esta cena simulava conversas quotidianas, com intenção de revelar a personalidade atenta e corajosa de Josina no meio do destacamento feminino.   

Seguiu se o grupo coral acompanhado da banda, que produziu um som de caracter revolucionário, cujo um dos trechos era “eu quero vencer a miséria”, este trecho representava o anseio do povo na era colonial, o desejo de abandonar a indigência, a ignorância, para finalmente ter dignidade. O público aplaudiu de mãos cheias.

Seguiu se uma performance de timbila e mbira, explorando a diversidade sonora e a potencialidade de cada instrumento, o público participou da actuação com a banda, usando o seu intrumento favorito, os aplausos.

A encenação da ópera socorreu se dum trecho histórico em que um soldado da Pide quase prendeu estudantes devido a prática de poesia, porém um governador livrou os estudantes da Pide. Este trecho remete nos a privação da liberdade de expressão a que o povo Moçambicano foi submetido durante o periodo colonial. 

No enlevo da encenação um grupo de estudantes num acampamento recebe os colegas de Lourenço Marques, num encontro de carácter político, cultural e social, estes estudantes manifestam juntos diversas artes. Iniciam com uma conferência do antigo núcleo dos estudantes secundários, Africanos de Moçambique (NESAM), representada por actores jovens, a cena visava contar a história sobre o prelúdio do movimento frente de Libertação de Moçambique e as primeiras fugas do país para Tanzânia com o objetivo de lutar por Moçambique. Esta cena despertou o sentimento nacionalista, a memória histórica de como começou a luta pela liberdade. 

Seguiu se um trilha sonora intitulada “Me dê um sonho”, Me dê um sonho foi uma composição solada por uma guitarra, acompanhada por violino e trompete, o arranjo era nostalgico, nacionalista e intenso, teletransportava nos para um periodo em que o nosso maior sonho era ver o nosso pais livre, nesse periodo cantava se para lembrar se de quem eramos e de onde queriamos chegar, afinal para ter esperança no futuro um povo precisa apenas de um sonho.

Um dos momentos solenes da ópera foi a declamação poética de Josina com o poema “Obrigado” ao som do violino entre seus colegas estudantes.

Josina entrou irrevente, o suspense da bateria acompanhava a sua irreverência, o choro do violino era revolucionário denotava um ponto de inflexão qualquer, enquanto Josina recitava :

– Obrigado… obrigado…. obrigado, obrigado! obrigado! Na plateia o público descodificava a mensagem, os primeiros obrigados suaves, misteriosos, depois tornaram se amargos, dolorosos, os últimos sabiam a revolta, portanto revoltosos.

– Obrigado, por séculos e séculos e séculos e séculos de exploração….”. O violino chorava como se fosse a voz dos nossos ancestrais revoltados, como se depois pudesse mudar toda a história da escravidão.

Cada linha do poema revelava os traços intelectuais de Josina Machel: O seu pensamento critico, a sua coragem. sua irreverência, a sua revolta com a situação colonial.

Houve um pequeno problema técnico com o microfone da Josina, que oscilou durante a sua declamação, ocultando trechos importantes do poema. Sendo Josina a figura de destaque, no próximo espectáculo da estreia, a produção deve estar mais sensível ao microfone da Josina, contudo a sua performance não foi abalada, manteve se firme e forte até ao fim.  

A Marrabenta foi chamada a ópera no número seguinte, e recebida com exuberância, uma das canções populares foi Elisa gomara saia, ai pôde se contemplar a beleza da nossa cultura, indumentária, a maravilha da nossa música, que realmente fascinou o público. A beleza do cabelo negro feminino foi exaltada pelas actrizes durante os passos da Marrabenta. 

A última ópera do espectáculo foi sobre Moçambique com o coro “lutaremos sem cessar”, a bateria testemunhava o compasso de soldados em marcha para a luta, as vozes tinham um tom abnegado, obstinado pelo sonho de um novo Moçambique, enquanto os coros enunciavam: “Lutaremos sem cessar”, os actores encenaram a construção de Moçambique, uns na carpintaria, outros cozinhando, outros lavando, outros marchando, mas todos construindo Moçambique, este trecho exaltou o amor pela pátria.

Talvez fosse oportuno para o público, poder apreciar a trilha sonora da ópera em formato de CD ou mesmo digital, para que ópera seja melhor capitalizada e imortalizada, a produção poderá ponderar.   

A Ópera Josina Machel, resgata um legado de valores pátrioticos, da personalidade de Josina: A coragem, irreverência e sacrificio pela pátria, também promove a valorização da figura e papel de Josina Machel, como mulher moçambicana que contribuiu para a luta pela independência.

No dia 17 de Setembro de 2025, a Ilha de Moçambique comemorou dois séculos e quatro anos. Passam 204 anos que a Ilha de Moçambique foi elevada à categoria de cidade. Ela continua imponente e com maior apreciação no seu valor cultural e histórico. Realmente, ela segue singular e esbelta mesmo depois dos ciclones que atravessaram Nampula e trucidaram parte da zona costeira.

Quando credenciamos que já expusemos tudo sobre a Ilha de Moçambique – património mundial, cultural e natural, desde 1991 – percebemos que a ilha esta além das casas de pedra e cal. Que está além dos fortins, fortalezas, palácios, templos, igrejas, mesquitas e um conjunto de casarões do modelo árabe, indo-português. Que está além da sacralidade dos rituais de beleza e do tufo que marca parte dos vários ilhéus daquela parcela de Nampula, daquele fragmento dos emakuas.

É no calcar da memória que o cancioneiro da Ilha de Moçambique continua sendo uma incógnita para mim. Das vezes que tive a possibilidade de visitar a ilha, infelizmente ainda não empatei com os dedos das mãos, centralizei o meu olhar para os cânticos que acompanham o tufo. Contudo, ainda não havia prestado atenção para os cânticos que são enunciados em actividades pesqueiras ou outras refregas feitas no mar. Falo concretamente da substrução musical ou do cântico que acompanha as naharas que fazem oxokhola (nome na língua macua-nahara para indicar mulheres mariscadoras que encontram nas malhas do mar o seu sustento económico e diário; que colhem, apanham mariscos entre rochas e estuários que banham a Ilha de Moçambique). Evidentemente, o que caracteriza as naharas não é somente o oxokholar (faina para encontrar os frutos do mar). São dotadas, também, de talentos artesanais e da agricultura. Todavia, na prática do oxokhola percebem-se, mesmo que de forma ligeira, alguns cancões do mar que, para a minha gula convencional, são um júbilo. É no cancioneiro nahara, no momento de oxokholar, que oscila a minha inquietude. Que sabedoria ancestral é entoado na hora do oxokholar?   

A trova nahara, neste contexto do trabalho com e no mar, assume dois prismas: i) elemento motivacional para aguentar a labuta que na maioria das circunstâncias, se não todas as ocasiões, é feito debaixo do sol e ii) reavivar as múltiplas heranças que fazem e constituem o tecido sociocultural da Ilha de Moçambique. O primeiro prisma seria para enganar o corpo. O segundo, mais do que uma fruição artística, serve para reavivar a cultura da ilha e perpetuar a memória das naharas, dos ilhéus e dos artefactos que compõem o trabalho da busca dos frutos do mar. O cancioneiro nahara torna-se um elemento participativo e intercede para invocar o que não deve morrer daquela prática que já é ancestral. Assim, o cancioneiro nahara alcança um papel bastante relevante na formação das atitudes hodiernas, na construção e produção de um olhar sobre a realidade social da ilha. Auxilia no ajustamento das lentes que as naharas utilizam para observar a realidade da Ilha de Moçambique, do seu ofício e dos múltiplos sentidos que esse tipo de trabalho representa: subsistência familiar e base de renda. Embora essas atitudes pareçam pequenas, simples e corriqueiras, a canção, no momento de oxokhola, eterniza saberes e faz um resgate de memória daquilo que é a essência de ser nahara. Óbvio que, a ideia de «eternizar saberes» e «resgate de memória» – como aqui é descrito – é cunhado num ângulo de quem observa e não faz parte daquele contexto. As naharas, embora não utilizem os termos com alforriados académicos e que servem para catalogar essa acção – ou esse cancioneiro que «eu ando a pescar» – tem a consciência que os seus cantos servem par partilhar virtudes, liberdade e com «traços ativistas» – abrem espaços para transitar para uma outra realidade de diálogo com o mar e com os ancestrais.

Diante do que vem sendo explorado, em tempos mais recentes, no intuito de fazer o resgate da memória das naharas, como fez a Professora Vanessa Rodrigues com a reportagem Naharas-Ancestrais suaíli que resistem às imprevisibilidades do vento e do mar (7 de Setembro de 2025, Público, p. 5), torna-se impreterível compreender o vasto cancioneiro que acompanha a prática do oxokhola

Fazer uma intelecção do cancioneiro nahara ancorado no binómio – «eternizar saberes» e «resgate de memória» – é alicerçar o conceito inaugural deste redacção: a incógnita que a Ilha de Moçambique é para muitos de nós. Ter a azo de ouvir, descrever, encontrar significados das cancões do mar, particularmente do cancioneiro nahara, com aspectos simbólicos que estão interligados com a identidade é encetar os vários significados representativos que encontramos na identidade emakua-nahara. O cancioneiro nahara deve ser pensado como parte principal da identidade emakua, reflectido enquanto suporte da memória social e um dos traços identificadores do valor patrimonial do estímulo interno e de eternização dos saberes da Ilha de Moçambique. Se tencionarmos coagir a nossa reflexão diríamos que: estamos perante um acto étnico fundado no critério ativista. A postura activista das naharas, cientes da palavra «activista» ou não, pois o que importa é o cancioneiro do mar, acentua o reconhecimento da intervenção cultural que elas fazem com vista a destacar a visibilidade da identidade emakua que é o selo branco da Ilha de Moçambique. O cancioneiro nahara fortalece a identidade emakua e oferece uma outra visibilidade que não cabe, apenas, no apanhar dos frutos do mar. Cabe, igualmente, na autoridade económica que ela tem sobre o mar pois é sacro na subsistência de muitos ilhéus.    

A partir deste pressuposto podemos propor a aplicação de parte do cancioneiro nahara como elemento de engrandecimento, verbalização e visualização das inquietações colectivas dos ilhéus que oferecem o colorido à Ilha de Moçambique. Portanto, para terminar a minha paixão pelo cancioneiro emakhuwa-nahara, é preciso reconhecemos, no entanto, que os cancões do mar assumem configurações de catalisadores do tempo de trabalho e de perpetuação de memória e da práxis do oxokhola. Por isso, fazer um mapeamento dessas práticas cancioneiras é assumir que as naharas são protagonistas activas para que alguns dos costumes da etnia emakua, especificamente da Ilha Moçambique, sigam como saberes eternos. Assim, o cancioneiro nahara, independente dos lentes e dos epítetos, prescreve um novo olhar para percebermos as dinâmicas que alicerçam um dos vínculos que faz a Ilha de Moçambique ser mágica e, eternamente, incógnita. Recompor a memória, por meio das cancões do mar, realizando o oxokhola, torna-se um elixir para a Ilha de Moçambique. E, esse papel de herança existencial só cabe, apenas, nas vozes das emakhuwa-naharas e no meio da melhor obra que as mãos podem fazer nas margens da Ilha de Moçambique: oxokholar!

Entre a Literatura, a Memória e a História

Notas Críticas para um Diálogo Necessário

Foi apresentado no dia 29 de Agosto último em Maputo o  livro “XIBALO – Quando Moçambique era Província”, cujo autor, Nelson Moda, firma-se, nesta nova publicação, na arte literária da história social. Também seu, o livro “Xirico. Vozes de Paz em Moçambique”, como o “Xibalo”, nos aviva a memória coletiva pelos símbolos icónicos da história do nosso século passado. 

A memória contida nos dois livros acaba por transfigurar pela metáfora subjacente nos subtítulos a representação de experiências difíceis que passamos. As experiências da colonização e da revolução. Por sinal, ambas alçadas no culto da massificação social  de propósitos maiores em si mesmos, paradoxalmente libertários. 

A memória é mesmo isso, tal como diz Paul Ricoeur, um dos nomes maiores da ciência histórica, para quem a “memória não é o que se recorda, mas aquilo que recorda”.

Esta era uma breve introdução ao presente exercício de leitura e crítica do livro “Xibalo” do professor e mediador de paz, Nelson Moda,  que nos convoca a mergulhar num texto literário que desafia convenções, articula períodos históricos distintos e propõe-se como contributo para a reconstrução da nossa memória colectiva. 

Contudo, esse impulso literário e memorialístico merece uma reflexão crítica, sobretudo quando a literatura se aproxima, com ambição, do campo da história.

Nelson Moda é um nome conhecido na vida académica e na diplomacia informal. Nascido em 1984, envolvido em missões de paz em Moçambique e no Sudão, ligado à Comunidade de Santo Egídio e à Universidade Católica, como docente, ele carrega consigo uma biografia de escuta e mediação. 

Esse ímpeto para o diálogo está presente neste “Xibalo”, um livro em que o autor impele-se a mediar os tempos, o passado colonial de Moçambique como província ultramarina de Portugal e o presente, em que ele mesmo é sujeito reflexivo. Há aqui, sem dúvida, um gesto generoso de resgate e denúncia.

Mas ao tentar cobrir um horizonte temporal tão amplo, do período colonial à contemporaneidade, o autor acaba por correr o risco de sobrevoar os factos com leveza excessiva. A narrativa, ainda que rica em imagens e preocupada com a condição do povo moçambicano, falha ao não dialogar com a historiografia crítica e especializada sobre o colonialismo, a luta pela libertação e a memória. 

A produção de conhecimento exige ancoragem. E no presente caso, a ausência de referências a autores credenciados e incontornáveis da historiografia moçambicana como Carlos Serra, Teresa Cruz e Silva, Yussuf Adam, Gerhard Liesegang, Malyn Newitt, Allen Isaacman, entre outros, deixa um vazio difícil de ignorar. 

A história não é uma narrativa, apesar do inverso ser um facto apetecível. E nesta coisa de escrever a história nos parece assente que os factos e a narrativa, com muita frequência, se contradizem. Amiúde, o discurso toma de forma deliberada o lugar do que acontece, mostrando os lados que nos agradam e não aqueles que, de facto, mereceríamos conhecer.

Este seria o caso da história passada do meio milénio do império português e da Igreja Católica em Moçambique e de outros lugares do mundo. As narrativas tendentes a descurarem as realidades históricas, muitas vezes incomuns e impopulares, como a relação dialética entre secularização e evangelização, parecem levar a que o autor, Nelson Moda, afirme que:

“Os portugueses coloniais manipularam a Igreja Católica, usando-a como instrumento de persuasão aos indígenas, facilitando, desta forma, a sua expansão e autoridade interna” (p. 14).

Como, então, se compreenderia que o império português tenha desvanecido e a Igreja se mantenha perene, se esta última, como se pode ler, tenha sido um “instrumento” português na história?     

A negação absoluta em história, pelos maniqueísmos próprios das dualidades discursivas, não é o mais aconselhável. A escrita da história é um processo de tessitura sábia, de ajuste das tonalidades, de aquietação das animosidades e tensões e, acima de tudo, passível de criar a reconciliação e permitir que os homens finalmente vivam em paz entre si. 

Tal escrita virtuosa facilmente torna-se uma ressonância negacionista quando a história em causa, como a que versa este livro “Xibalo”, é profundamente marcada pela violência racial do tráfico, da escravização, da extorsão, da despersonalização mediada pelo xibalo colonial e outras desumanidades.

Assim, em nossa vocação literária e, sobretudo, historiográfica devemos nos apelar à serenidade, permitindo-nos questionar, por exemplo, as habilidades diplomáticas de Portugal e não achar que o império português foi um facto à calha, a despeito das suas limitações financeiras e económicas. Tal serenidade, certamente, não levaria a se escrever da seguinte forma: 

“Se analisarmos à luz de uma leitura histórica rigorosa, o império colonial português perdurou, em grande parte, devido ao desinteresse da comunidade internacional…” (p.23).

Importa que a história, em verdade, nos informe sobre as realidades, até porque só assim nos precavemos dos ardis dos tempos, ao longo dos quais os poderes podem dissimular seus intentos. 

Adicionalmente, parece pouco convincente narrar o colonialismo como uma estrutura homogénea e autocentrada. É crucial reconhecer que Portugal foi, historicamente, uma potência periférica, pobre em recursos e altamente dependente de alianças estratégicas com países mais poderosos, nomeadamente a Inglaterra, com suas companhias majestáticas, e, mais tarde, a NATO, cujos apoios logísticos sustentaram o esforço colonial até ao limite da sua exaustão. 

Este tipo de contextualização é vital para não se cair na armadilha de repetir, inconscientemente, os mesmos enquadramentos binários entre “bons colonizadores” e “maus colonizados”, ou vice-versa.

No campo da metodologia, impõe-se uma distinção fundamental. Literatura não é história. A literatura pode e deve romper silêncios, dar voz ao indizível, convocar os sentidos. Mas, ao pretender interpretar processos históricos, o autor deve declarar os limites da ficção e reconhecer as tensões entre memória individual, mito social e rigor histórico. A ausência de uma bibliografia ou notas explicativas deixa o leitor num limbo. Estamos  a ler um testemunho, romance, crónica ou ensaio?

De maneira nenhuma essas precauções metódicas diminuem o mérito do “Xibalo”. Há páginas densas, emocionantes, comprometidas. Há um registo de oralidade bem conseguido. Há dor e esperança nas entrelinhas. Mas a leitura crítica exige que se diga, não basta a intenção para que o gesto se cumpra. 

Este livro pertence a uma geração literária moçambicana nova, de livros históricos iconográficos, temáticos como o “Xibalo” ou “Xirico”, este último também do mesmo autor, ou livros biográficos publicados sem que necessáriamente seus autores sejam historiadores.

E talvez seja precisamente isso que torna esta obra instigante, o seu inacabamento, a sua sede de ser mais do que é, uma legítima busca jovem em alicerçar a identidade coletiva moçambicana. 

Esta leitura crítica é também uma sugestão e uma homenagem à apreciação de um florescer literário, num país em que a escrita tem sido o arauto. “Xibalo” convida-nos, se o quisermos aceitar, a construir uma ponte entre o testemunho literário e a análise histórica. Essa ponte exige rigor, intertextualidade e serenidade crítica. 

Nelson Moda trouxe à mesa uma provocação. Cabe-nos agora continuar o debate, com generosidade, mas também com exigência intelectual. 

Deixo, ao fim, ficar o provérbio de mérito ao nosso autor do dia:

“Cada pássaro voa com suas próprias asas”.(X)

  1. Onde há riqueza, HÁ GUERRA

Não é coincidência: sempre que o subsolo africano revela ouro, gás, petróleo ou rubis, logo surgem insurgências, massacres, terrorismo. Cabo Delgado não foge à regra. O gás de Afungi, explorado pela TotalEnergies, poderia colocar Moçambique entre os maiores exportadores de GNL do planeta, multiplicar nosso PIB e transformar Pemba numa nova Doha. Mas vejam o enredo: desde 2017, insurgência islamista e ataques sistemáticos mantêm a região em estado de medo, justificando militarização e contratos de segurança privada.

O resultado? Os projectos param. As multinacionais recuam, mas mantêm direitos de exploração garantidos com o governo mas sem desenvolvimento local. Mas o “truque sujo” já estava traçado: a insurgência islamista, os atrasos, a insegurança nas estradas e nas comunidades tudo cuidadosamente alimentado. E quando o gás sair do chão, o lucro não vai servir para estradas, escolas ou hospitais, mas para pagar juros de dívida, resgatar empréstimos e garantir contratos opacos assinados em baixelas estrangeiras.

 A guerra, que deveria afastar investidores, acaba congelando contratos, garantindo que ninguém mais toque nessas reservas sem a bênção das mesmas corporações.

  1. O sistema Bretton Woods em campo

Era julho de 1944, e o mundo fingia reconstruir a paz. No luxuoso hotel Mount Washington, na pacata Bretton Woods, EUA, 730 delegados de 44 países passaram a chave da economia global para Washington. Liderados por Harry Dexter White e Keynes, decidiram que o dólar seria moeda única conversível em ouro — a 35 USD por onça. Nasceram ali o FMI e o Banco Mundial. Bretton Woods foi, na verdade, uma armadilha financeira: nós viramos colônias invisíveis, dependentes de papel impresso, enquanto eles recolhem ouro e riquezas físicas.

O FMI e o Banco Mundial observam de Washington. Sabem que Moçambique, mergulhado em insegurança, inflação e dívida, não tem força de barganha. O Estado pede empréstimos; eles “ajudam”, mas com juros, condicionalidades e planos de ajuste estrutural. E assim:

O gás de Cabo Delgado, quando sair do chão, será garantia de pagamento da dívida externa. O povo verá os navios levando riqueza, enquanto a miséria continua. A soberania vira papelada; nossa bandeira, um logotipo no contrato.

III. As ONGs e o braço humanitário do sistema

Enquanto isso, as grandes ONGs internacionais operam como braços auxiliares do sistema financeiro global. É claro que elas salvam vidas mas também cumprem uma função política e geoestratégica:

ACNUR garante a gestão dos deslocados, mas também controla fluxos populacionais para evitar que afectem interesses econômicos. OCHA coordena ajuda, mas monitora quem tem acesso aos campos e dados sensíveis. PMA fornecem assistência alimentar e vacinas, mas também “criam” uma dependência que enfraquece a pressão por soluções locais. UNICEF chegou a Moçambique nos anos 1960, firmando compromisso contínuo a partir de 1975, após a independência. Sua presença molda programas e consome a agenda pública dos aliados.

A Cruz Vermelha de Moçambique foi criada em 10 de julho de 1981 e reconhecida internacionalmente em 29 de setembro de 1988. Desde então, tem sido peça-chave em crises como os ciclones Idai e Kenneth. A International Committee of the Red Cross (CICV) intensifica sua atuação humanitária em Cabo Delgado, promovendo treinamentos e supervisão humanitária nos campos de deslocados mas são mais aliados do sistema.

ONU administra a narrativa: cada relatório publicado justifica intervenções militares, contratos de reconstrução e a presença de multinacionais “em nome da estabilidade”.

O jogo é claro: eles desarmam as nossas vozes com ajuda humanitária. Moçambique é salvo todos os dias — mas sempre de joelhos. Tudo parece humanitário, mas alimenta o ciclo: guerra cria crise, ONG faz paliativo, logo surgem FMI e BC mandando papéis, enquanto nossa riqueza se escoa por oleodutos invisíveis.

Além disso, as Embaixadas estrangeiras — do Canadá, Reino Unido, EUA, União Europeia entre outros, estão presentes, financiando projectos que parecem salvação, mas muitas vezes reforçam o sistema de dependência. São as manifestações diplomáticas de um jogo hegemonizado por Bretton Woods.

  1. O ciclo do saque invisível

O FMI e o Banco Mundial imprimem dinheiro digital, e o trocam por nossas riquezas reais: gás, minerais, rubis, grafite. Enquanto vós vos ajoelhais diante das ONGs e dos pacotes de empréstimos, eles garantem que os recursos rolam para fora, e que nossas infraestruturas continuam frágeis. Os programas de ajuste estrutural impõem cortes nos direitos sociais enquanto apoiam empresas multinacionais e privatizações.

Pensemos: quando um banco internacional empresta dinheiro, não envia riqueza real; apenas créditos digitais criados com um clique. Mas Moçambique paga com gás, rubis, grafite, carvão. Ou seja, trocamos riqueza física por dívida virtual. O saque é tão sofisticado que não precisa de canhões. Basta uma assinatura em Washington.

A guerra, nesse sistema, não é acidente. É ferramenta de contenção: mantém populações vulneráveis, líderes frágeis, multinacionais dominantes e ONGs legitimando a presença estrangeira. Cabo Delgado é laboratório disso.

  1. Filosofia do cativeiro global

Frantz Fanon diria que a colonização do século XXI não precisa de colonos. Ela se dá por contratos, relatórios, drones, e “projectos de desenvolvimento”. É a estética da caridade escondendo a estrutura da pilhagem. Hoje, a ONGs ecoam isso sob o pretexto da compaixão, e os embaixadores cumprem a retórica da cooperação, enquanto nosso solo sangra em moeda forte que se desvaloriza.

Moçambique tornou-se uma empresa sem acionistas nacionais. Nossos líderes são gerentes de um capital que não controlam. O FMI dita metas fiscais; o Banco Mundial define onde construir estradas; a ONU administra a crise humanitária; multinacionais decidem quando explorar o gás.

E o povo? Assiste à CNN noticiando “ajuda internacional” enquanto as aldeias continuam queimadas. Nós, africanos, devemos parar de assobiar para o lado. O verdadeiro poder está em reivindicar o aeroporto, a rodovia, a escola e o hospital que o gás nunca financiará para nós. E isso exige consciência, poesia política e revolta filosófica. O papel que recebemos é só uma promessa vazia — a verdadeira riqueza ainda está na terra, no mar, nas montanhas e embaixo dos nossos pés.

Se formos reféns de papel impresso, nunca seremos livres. Ouro, gás, grafite, rubis — essas são nossas moedas reais. Precisamos atrelar nossas transações a essas riquezas tangíveis, não ao metical, que desvaloriza. A China sabe disso: ela tem 800 bilhões da dívida dos EUA. Quem controla o real controla as decisões.

O que uma sociedade em plena transformação pede

 aos seus intelectuais são doutrinas estáveis,

 onde os enigmas encontrem solução, 

e o sofrimento, consolação. 

(Domenach)

Principio o presente ensaio com um apelo à consolação do sofrimento, porquanto que, Roberto Chitsondzo (doravante RC), neste trabalho musical, se serve da precariedade das condições, sejam elas económicas, políticas e/ou sociais como também ideológicas (de Moçambique) para, apesar (ou por causa?) disso, incentivar as pessoas a estudarem, representando, assim, a dialéctica entre a utopia e a distopia na sua música.

Vale lembrar que Chitsondzo, autor de “Vana va ndota”, “Buluku”, “Sathani”, “Sathuma n’mwhani”, “Matarlatã”, “Dondza” (música em pauta neste ensaio) entre outras faixas musicais retrata, nos seus trabalhos musicais, as desigualdades sociais e/ou o realismo social moçambicano.

Ora, antes de demonstrar até que ponto “Dondza”, de RC, contempla o utópico e o distópico nas entrelinhas, importa, portanto, situar o prezado leitor sobre estes conceitos. Noa (1998:66) afirma categoricamente que, “enquanto a utopia aponta para uma saída através de uma idealização, a distopia desenha uma não-saída ou uma saída ainda mais catastrófica. Isto é, se por um lado temos o sonho, por outro, temos o pesadelo.” (destaque nosso)

Ora, logo no princípio da música, o sujeito poético preocupa-se em recomendar que se estude, procurando, desta forma, sobrevalorar os estudos, pelo que se pode ouvir, quando entoa: “Dondza, dondza, wena (…)/ dondza (…)” (RC, s/d), traduzindo [‘Estude(a), estude(a)!, você (…)/ estude(a)!’]. 

Na continuidade, para transmitir a ideia segundo a qual independentemente da idade, sexo, estatuto social, se houver oportunidade para tal, que se estude, assevera: [‘mesmo que seja(s) mãe, pai,/ jovem/rapaz, rapariga,/ criança, adulto(a)/, ei, estude(a)! (…)’], quando entoa: “kumbe u mamana, kumbe u b’ava,/ kumbe u jaha, kumbe u ntombi,/ kumbe u n’wanana, kumbe u nkulu (mukulu),/ wena, heyi, dondza (…)” (RC, s/d)

Todavia, porque de todas as classes retro mencionadas a mais vulnerável, senão prioritária, é a infantil, o sujeito poético emudece-se e dá-se-lhe espaço, pelo que redargue poeticamente: “Fazer da escola o jardim, cada criança uma flor que nunca murcha (…)” (RC, s/d), como que em cobrança de cuidado, de tomada de atenção redobrada por parte dos seus ascendentes.

Estamos perante aquilo que Noa (1998:66) considera utopia, pois que aponta para uma saída através de uma idealização (no caso concreto, os estudos). Aliás, para este autor, “as utopias significam o lado solar, emocional, optimista e crédulo da natureza humana, enquanto que [sic] a distopia representa o lado lunar, cerebral, pessimista e céptico.” 

Na sequência, o sujeito poético, como que em encaixe à utopia retro explicitada, parte à exploração do distópico, quando entoa: “Van’wani vapfumala xikola (…)/ vateacher (…)/ mabuku (…)/ vapsvele (…)/ kuhleka (…)/ kutsaka (…)” (RC, s/d), traduzindo: [‘Aos outros falta-lhes escola (…)/ professores (…)/ livros (…)/ pais (…)/ sorriso (…)/ alegria (…)’], e o refrão riposta, no fim de cada aspecto ora em falta e aludido pelo sujeito poético, “dondza…”, como quem diz: apesar disso tudo faltar, ‘estude(a)!’

Estamos, portanto, perante clara exploração do distópico, ou seja, conforme Noa (1998) assevera, perante o desenho de uma não-saída ou uma saída ainda mais catastrófica. Dito de outro modo, se por um lado temos o sonho (a utopia neste caso), por outro, temos o pesadelo (a distopia).

Ou seja, apesar de o sujeito poético servir-se da expressão “van’wani”, que significa “outro(s)”, remetendo-nos, assim, à ideia de alteridade, quando diz “Van’wani vapfumala xikola (…)” (RC, s/d), entendemo-lo em duas perspectivas: por um lado, como quem, de facto, quer convidar as pessoas a valorizarem as poucas oportunidades existentes, já que os outros não têm nem o básico (escola, professores, livros, pais, sorriso, alegria), por outro lado, como se estivéssemos frente a uma falsa alteridade, servindo-se da liberdade poética que lhe é conferida pela arte para questionar: mas como estudar sem escola, professores, livros, pais, sorriso e, consequentemente, sem alegria?  

Razão pela qual Noa (1998), explicitando as aproximações e distanciamentos entre a utopia e distopia assevera: “Finalmente, se a realidade violenta a utopia, a distopia tende a violentar a própria realidade, afrontando-a e deformando-a”. 

Na estrofe seguinte, o sujeito poético, para frisar o que falta aos “outros” que, conforme explicitei anteriormente, não são, quiçá, “outros”, mas, sim, as mesmas crianças que se lhes é dado espaço na música, repete a sequência, porém de forma cruzada e diferente da no princípio da música trazida: “xikola” (escola), “mabuku” (livros), vathicha (professores), “kuhleka” (sorriso), “vapsvele” (pais) e, por fim, incorpora um léxico novo na letra da música (talvez que traduza a súmula): HINKWASVO (TUDO), pelo que fica a questão: como uma criança poderá ir à escola faltando-lhe TUDO?! 

Ora, como que em prova de que já não é sobre mãe, pai, jovem/rapaz, rapariga e adulto(a), mas, sim, criança, em meio a isto, na sequência, o sujeito poético volta a convidar a emprestada voz poética e infantil DAS CRIANÇAS, que frisam: 

“Fazer da escola o jardim, cada criança uma flor que nunca murcha” (RC, s/d), repisando o sujeito poético compassada e seguidamente: “Unga rereki (…) phakama (…) dondza, n’wananga (…)” (RC, s/d), que significa ‘Não recue(s) (…) persista(e) (…) estude(a), minha/meu filha(o) (…)’ 

Não estaria, o sujeito poético, a representar uma dada época do contexto moçambicano? Será o passado? Presente? Ou ambos? Ou, então, o por vir? Também nos indagámos. Mas, de uma coisa estamos certos: “ao conseguir referir-se a uma realidade indefinida (fenómenos filosóficos, sociais, políticos, religiosos, etc.) a arte – mais que qualquer outro fenómeno social – consegue caracterizar e representar uma época dada.” (Mukarowski, 1981)

À guisa de conclusão

Portanto,“Dondza” denuncia a precariedade das condições económicas, políticas, sociais e/ou ideológicas (de Moçambique?), para, apesar (ou por causa) disso, incentivar os que têm (mínimas) condições para estudar a fazê-lo e, estes “outros”, apesar de o sujeito poético servir-se da expressão “van’wani”, que significa “outros”, entendemo-lo em duas perspectivas: por um lado, como se de “outros” propriamente ditos se tratassem, já que outros “outros” não têm nem o básico (escola, professores, livros…), por outro lado, como se estivéssemos frente a uma falsa alteridade, ou seja, os “outros” fossem as próprias crianças que se lhes é dado espaço na música para clamar por cuidado, por se tratarem das flores que nunca murcham e (por que não) a ceiva do amanhã (?)

BIBLIOGRAFIA

ACTIVA

PASSIVA

  • DOMENACH, J. (1968). Le Retour du Tragique; ed. Ut.: O Retorno do Trágico, Lisboa: Moraes Ed.
  • NOA, F. (1998). A Escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária – UEM.
  • MUKAROWSKI, J. (1981). Escritos sobre Estética e Semiótica da Arte. Lisboa: Editorial Estampa.

Como diz o adágio popular “se a boca não regula, o corpo actua”, e quando a boca não consegue expressar as dores da alma, quem actua? 

Na noite do dia 22 de Agosto do ano de 2025, no centro cultural Franco-Moçambicano, foi encenada uma peça de dança coreografada e dirigida por Ídio Chichava, onde Açucena Chemane, Armindo Teimizira, Calton Muholove, Cristina Matola, Fernando Machaieie, Judite Novela, Mauro Sigauque, Martins Tuvanji, Nilégio Cossa, Patrick Manuel, Stela Matsombe, Osvaldo Passirivo e Vasco Sitoe, cantaram ao vivo em changana em misturas sonoras que passam pela Marrabenta e pelo Xigubo, envoltas na dança contemporânea. 

Os adereços minimalistas como cordas, cestos, pneus e até um carrinho de compras transformam objectos do quotidiano em memória carregada. Não é apenas coreografia é um acto colectivo que reclama a presença, exige uma respiração partilhada e, por fim, reverte a hierarquia entre quem olha e quem actua.

O bailado que circula em turnê há cerca de três anos dentro e fora de Moçambique, é das poucas obras de dança com cerca de 20 pessoas em digressão. 

No que se refere à indumentária, os dançarinos trajavam apenas um calção , com o intuito de eliminar fronteiras para permitir a livre emigração e expressão do corpo. Nisso, os Vagabundus são exímios: com muito pouco, representaram uma peça de dança carregada de um forte senso identitário. A vibração que emanava do palco era tão poderosa, que durante o espetáculo já não havia separação entre os espectadores e os dançarinos eram todos um só grupo! Cada espectador viu as suas dores e os seus desafios serem dançados pelos intérpretes e teve a oportunidade de literalmente subir ao palco e ser mais um “vagabundo”.

Para compreender este bailado, basta entender o nome do grupo: “Vagabundus” (alguém que vaga ou perambula sem destino fixo. Pode ter uma conotação negativa ou positiva, esta última, designando alguém que viaja por prazer ou aventura). Nesta obra, há uma “migração vagabunda” do corpo humano em estado de emergência. É como uma garrafa de champanhe agitada pelas dores da alma e pelos desafios da vida que, por fim, encontra espaço para explodir ou melhor, para se expressar.

Migração do corpo” refere-se ao deslocamento físico e simbólico que os intérpretes encenam atravessando estilos, espaços e afectos. Já “estado de emergência” traduz a urgência e a pressão sob as quais esses corpos se movem: uma dança que é resistência, sobrevivência, rito, celebração de rua, memória e denúncia ao mesmo tempo.

Os “Vagabundus” preencheram a sala de espectáculo do Franco-Moçambicano e dançaram com fervor as dores do quotidiano… dores tão acumuladas que os corpos tremiam, chacoalhavam e gemiam de exaustão, de dor, de repúdio, até tudo se acalmar, através da própria dança. Em cena, a “migração” manifesta-se em três campos entrelaçados:

  • O espacial: onde danças colectivas, com passos sincronizados revelam um acto comunitário. Entretanto, quando um dos bailarino afastou-se, insistindo em passos próprios recusando a sincronização, trouxe algo sobre a singularidade dentro da colectividade. Esse dançar singular prova que a dor é individual, e que cada um a expressa de forma única sem perder o senso comunitário.
  • O vocal: no qual as respirações viram gritos e sussurros se compõem em canto coral que paulatinamente invade o peito e ecoa pela sala.
  • O afetivo-político: onde o tremor do corpo é tido como sinal de emergência. O povo diz “basta”. Aquela vibração pequena que antecede a ruptura e a imagem da garrafa comprimida até explodir é a metáfora certa para o estado que a peça encena.

O fôlego exigido pela proposta “cantar e dançar de forma ininterrupta” cobre a peça de glória, mas também revela fragilidades: em obras longas, a intensidade pode perder nitidez e alguns dançarinos recorrem a gestos contidos, muitas vezes por gestão de energia ou por puro cansaço, o que, no entanto, não teve impacto negativo significativo.

Se pode questionar a escolha das músicas, mas o facto é que  foram todas executadas com maestria. O bailado começou com uma canção que denuncia a pobreza física, mas exalta a riqueza de espírito. Seguiu-se uma música espanhola entoando um pedido de desculpas, como se fosse um ritual sem dogmas. A última canção evocou a despreocupação da infância, convidando o público para brincar alegremente, como uma criança.

O público que se entregou à criação marcante de Ídio Chichava deixou a sala de espectáculo transformado inesperadamente, “Vagabundus” revelou-se um íman que puxa o espectador para uma travessia que mistura  dor e alegria. E isso  é um mérito raro.

Espaço de análise: Alberto da Cruz e  Egídio Chaimite

 

INTRODUÇÃO

A circulação recente de um vídeo amador, no qual a população de Mocímboa da Praia “manifesta” uma clara preferência pela presença das tropas ruandesas, relança de forma dramática o debate sobre a autoridade do Estado em Cabo Delgado.

A segurança, em qualquer Estado moderno, constitui uma função central e inalienável. É ela que sustenta o pacto social: os cidadãos aceitam renunciar a certos direitos individuais em troca da proteção contra ameaças externas e internas. Contudo, no norte de Moçambique, esse princípio encontra-se hoje profundamente questionado. O vídeo em causa expõe a perceção crescente de que a autoridade formal do Estado se encontra diluída, cedendo espaço a atores externos, em particular às forças militares do Ruanda.

A interrogação que ecoa nas ruas de Mocímboa da Praia – “quem tem autoridade?” – transcende o episódio local. Trata-se de um questionamento que atinge o âmago da soberania nacional e obriga a refletir sobre o lugar do Estado moçambicano na sua função mais elementar: garantir a segurança dos seus cidadãos (soberania em Moçambique).

 

CONTEXTO

O conflito em Cabo Delgado, iniciado em 2017, já não é novidade. Os grupos insurgentes, muitas vezes classificados como de inspiração jihadista, rapidamente expuseram a fragilidade das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique (FDS), incapazes de conter os ataques que devastaram vilas, destruíram infraestruturas e deslocaram centenas de milhares de pessoas.

Essa fragilidade não é apenas operacional. Estudos lembram que o Estado moçambicano sempre se caracterizou por um paradoxo: um partido dominante (Frelimo) relativamente forte, sustentado por um Estado fraco, incapaz de garantir serviços básicos e de se impor como autoridade legítima no terreno. O resultado é uma crise de confiança. Para muitas comunidades, as forças estatais não são sinónimo de proteção, mas sim de abusos: extorsões, confisco de bens e tratamento arbitrário. Essa erosão da legitimidade abriu espaço para que outros actores preenchessem o vazio.

O notório grupo Trovoada: Este padrão de comportamento das FADS não é exclusivo de Cabo Delgado. Ao longo da história recente que versa sobre a Guerra cívil, multiplicaram-se episódios semelhantes em outros pontos do país, em particular durante a guerra no centro de Moçambique. Investigações independents (IESE: Chaimite & Selemane, 2024) documentaram práticas recorrentes de pilhagem, extorsão e vandalização por parte de destacamentos militares, incluindo o notório grupo Trovoada. Essas acções, justificadas internamente como estratégias de sobrevivência – ou seja, uma forma de “desenrascar”-,  normalizaram a violência contra civis e criaram um ambiente em que a própria população passou a associar os militares não à protecção, mas ao medo e à perda de bens.

 

ENTRE COOPERAÇÃO E DEPENDÊNCIA

Perante o risco de colapso total da província, depois da tomada e controlo total do distrito de Mocímboa da Praia, o governo recorreu a forças externas. Primeiro o Grupo Wagner, de forma obscura e de curta duração. Depois, em 2021, sem acordos claros entre governos, chegaram os militares ruandeses, rapidamente seguidos pela Missão da SADC (SAMIM).

Os ruandeses destacaram-se não só pela disciplina e eficácia no combate, mas também pela proximidade com as comunidades locais. Falam suaíli, estabeleceram canais directos de comunicação com líderes comunitários e, segundo relatos, até implementaram pequenas iniciativas sociais, como escolas. Em contraste, as tropas moçambicanas continuam a ser vistas como predatórias, incapazes de estabelecer uma relação de confiança. Como vimos, no estudo acima referido, estes comportamentos são recorrentes em outros contextos. Assim, as forças armadas, em vez de se afirmarem como instituição de confiança nacional, acabam por reforçar a ideia de um Estado distante, que se impõe pela intimidação em vez de pela protecção. Ao reproduzir este padrão em diferentes contextos, o exército consolida a sua imagem de predador social e não de guardião público, corroendo a legitimidade do Estado e criando espaço para que actores alternativos – de líderes comunitários a tropas estrangeiras – se apresentem como autoridades mais fiáveis aos olhos da população.

 

POPULAÇÃO NEGA AS FADM?

Um vídeo que recentemente circulou nas redes sociais mostra supostamente moradores de Mocímboa da Praia a exigir a retirada das tropas moçambicanas e a permanência dos ruandeses. A cena é emblemática: cidadãos a pedirem a substituição do seu próprio exército por forças estrangeiras, por entenderem que só estas asseguram a ordem e respeitam a comunidade.

A resposta oficial do governo foi sintomática. O Ministério da Defesa manteve silêncio – como em tantas ocasiões sobre Cabo Delgado – e apenas o porta-voz do Conselho de Ministros se pronunciou, reafirmando que “é função das FDS guarnecer a população”. Contudo, a insistência retórica contrasta com a realidade prática: no terreno, quem garante segurança, quem é chamado para socorro, quem atende às comunidades, são os ruandeses.

 

A SUBSTITUIÇÃO SIMBÓLICA DO ESTADO E O RISCO EMINENTE

Se seguirmos a conceptualização de autoridade discutida por vários estudiosos (Chaimite et al, 2021) – entendida como qualquer actor capaz de resolver problemas concretos da comunidade e garantir serviços básicos – torna-se evidente que, em Cabo Delgado, a autoridade de facto já não reside no Estado moçambicano, pelo menos no caso de Mocimboa e, quiçá, Cabo Delgado.

Os ruandeses têm números de contacto que circulam livremente pelas aldeias, estão acessíveis em casos de emergência e são chamados directamente quando há assaltos, conflitos ou ataques insurgentes. Esse detalhe aparentemente banal é, na realidade, profundamente revelador: o recurso espontâneo das populações a forças estrangeiras demonstra que a confiança social já não se deposita nas instituições nacionais. Mais ainda, evidencia a internalização de uma nova hierarquia de autoridade, na qual o Estado moçambicano deixou de ser o primeiro interlocutor.

A confiança que os ruandeses gozam junto dos líderes comunitários reforça essa deslocação simbólica. Enquanto as forças nacionais são frequentemente associadas a práticas de extorsão, violência arbitrária ou desorganização, os militares ruandeses projectam-se como provedores de segurança, com disciplina, prontidão e uma postura de proximidade. O resultado é uma legitimidade que não nasce de leis ou normas constitucionais, mas da percepção popular de que cumprem a função essencial de proteger vidas e bens.

Trata-se de uma legitimidade empírica e performativa: ela constrói-se dia após dia, em cada intervenção bem-sucedida, em cada gesto de respeito pela população. E é justamente essa repetição de práticas eficazes que alimenta um ciclo de confiança cumulativo, contrastando com o ciclo de desconfiança que marca a relação entre as comunidades e as FADM.

Neste quadro, o exército moçambicano, embora formalmente soberano e reconhecido pela ordem jurídica nacional, é relegado a um papel secundário, quase decorativo, quando não mesmo hostil. Nas narrativas locais, os soldados nacionais não simbolizam a paz, mas o seu contrário: a ameaça de violência, a apropriação de bens, a ausência de proteção. A inversão é dramática: a instituição que deveria encarnar a soberania tornou-se, aos olhos dos cidadãos, uma fonte de insegurança.

Comparações internacionais ajudam a compreender a especificidade deste quadro. Em países como a Somália, a presença da AMISOM (Missão da União Africana) foi vista como indispensável para evitar o colapso completo de Mogadíscio. No entanto, apesar da sua relevância operacional, a AMISOM nunca foi percebida como autoridade de facto: era uma força de interposição, não o actor a quem os cidadãos recorriam para problemas quotidianos. Na República Centro-Africana, as forças da MINUSCA e os militares franceses asseguraram proteção pontual, mas sempre em regime de exceção, sem substituir de forma sistemática a autoridade local. Já no Mali, a operação Barkhane da França tinha grande capacidade militar, mas foi amplamente contestada pela população, acusada de ingerência e de pouco respeito pelas comunidades locais.

O caso moçambicano difere justamente porque as forças ruandesas, ao contrário dessas missões multinacionais ou bilaterais, conseguiram construir laços directos de confiança com as populações. Não se limitam a combater insurgentes: respondem a assaltos, a disputas comunitárias, a situações emergenciais do dia-a-dia. Tornaram-se parte do tecido social e, nesse processo, passaram a exercer funções que ultrapassam a lógica militar.

Essa distinção é crucial. Em Cabo Delgado não se assiste apenas à presença de uma força estrangeira complementar, mas à substituição gradual do Estado por um actor externo que ocupa o centro da função soberana. O resultado é um cenário em que a soberania jurídica permanece em Maputo, mas a soberania prática e vivida no quotidiano das comunidades pertence a Kigali.

 

O DILEMA DA SOBERANIA

Estado ausente, autoridades emergentes: A situação levanta uma questão incómoda para Moçambique e para a região: o que significa soberania quando um Estado depende estruturalmente de tropas estrangeiras para garantir segurança em parte do seu território? A resposta não é binária porque a soberania opera, aqui, em três planos que se desalinharam: o jurídico-constitucional (quem detém formalmente o monopólio da força), o político-institucional (quem comanda e presta contas) e o empírico-social (quem a população reconhece como capaz de resolver problemas e assegurar bens públicos). Quando este último plano se destaca – isto é, quando as comunidades deslocam a sua confiança para actores que “fazem acontecer” -, emerge uma autoridade de facto que não coincide com a autoridade de jure. Em Cabo Delgado, esse desfasamento já é visível: as populações recorrem aos ruandeses porque, no seu quotidiano, eles desempenham a função essencial de proteção, que a literatura identifica como critério prático de autoridade pública.

De um lado, há quem veja na presença ruandesa uma solução pragmática: melhor depender de aliados firmes do que permitir que o terrorismo prospere e que investimentos estratégicos (como o gás) permaneçam paralisados. Este argumento privilegia a eficácia imediata e reconhece que, em “contextos frágeis”, a entrega de serviços e a segurança são frequentemente asseguradas por uma constelação de actores – estatais e não-estatais – em arranjos de co-governação, enquanto o Estado reconstrói capacidades. Do outro, a dependência prolongada corrói a legitimidade do Estado e cria um precedente perigoso: comunidades reconhecerem actores externos como autoridades principais, internalizando novas hierarquias que, com o tempo, cristalizam-se em lealdades e rotinas institucionais difíceis de reverter.

Não se trata apenas de segurança. Em Mocímboa da Praia fala-se de escolas construídas pelos ruandeses, de relações de proximidade cultivadas com a população, de uma integração cultural facilitada pelo uso do suaíli. Estes sinais importam porque a autoridade também é performativa e simbólica: quem educa os filhos, quem atende a chamada de emergência, quem media conflitos locais, vai sendo percepcionado como “governo útil”. Passo a passo, funções simbólicas e práticas do Estado migram para outro actor, produzindo uma “dupla delegação”: da coerção (força armada) e da presença social (serviços e mediação). A médio prazo, instala-se um risco de “captura de legitimidade”: a autoridade formal permanece em Maputo, mas a autoridade vivida, no plano comunitário, passa a residir noutro centro de decisão.

Dito isto, o dilema não se resolve com proclamações. Requer uma estratégia de transição com três pilares. Primeiro, enquadramento jurídico e político claro da presença estrangeira: acordos de estatuto de forças, regras de empenhamento e cadeia de comando que preservem a primazia decisória nacional e estabeleçam mecanismos de responsabilização por abusos. Segundo, reconstrução de capacidades das FADM e da PRM com foco na disciplina, logística, comando unificado e doutrina de proximidade às populações – porque a legitimidade empírica ganha-se no terreno e não em comunicados. Terceiro, metas públicas e verificáveis para a transferência gradual de responsabilidades: tempos de resposta, redução de incidentes, queixas registadas e resolvidas, inquéritos de confiança comunitária. Sem indicadores e calendários, a “solução temporária” tende a tornar-se arranjo permanente.

Há ainda uma dimensão regional e estratégica. A entrada de um actor extra-SADC como provedor central de segurança no norte de Moçambique reconfigura equilíbrios de poder no Índico e cria dependências políticas que transcendem o teatro operacional. Se a narrativa oficial continuar a divergir do que as comunidades vivem – silêncio ministerial, reafirmações genéricas e ausência de prestação de contas -, a erosão de legitimidade tenderá a aprofundar-se. Em contrapartida, se o Estado assumir a realidade no terreno, comunicar com transparência, fixar um roteiro de transição e mostrar progressos visíveis na conduta e no desempenho das suas forças, poderá reconstituir a autoridade que hoje se encontra terceirizada.

Em síntese, a soberania não desapareceu de Cabo Delgado; fragmentou-se. Enquanto a soberania jurídica permanece com o Estado, a soberania prática — aquela que as pessoas reconhecem quando pedem ajuda, quando abrem a porta, quando entregam um conflito a quem pode resolvê-lo — está, neste momento, a ser exercida por um aliado estrangeiro. Sem uma estratégia séria de reaproximação às comunidades e de reforma das forças nacionais, o “pragmatismo” de hoje pode tornar-se o precedente que consolida, amanhã, uma autoridade paralela no território moçambicano.

CONCLUSÃO: RECONSTRUIR A AUTORIDADE DO ESTADO OU ACEITAR A SUBSTITUIÇÃO?

Enquanto o governo insiste em reafirmar prerrogativas formais, os cidadãos olham para os ruandeses como a verdadeira garantia de ordem. É uma inversão simbólica de soberania, que mina a legitimidade nacional e expõe a incapacidade estrutural das FDS.

Reconstruir a autoridade do Estado em Cabo Delgado exige mais do que retórica. Implica reformar profundamente as forças armadas, investir em logística, treino e disciplina, e sobretudo reconquistar a confiança das populações, chefes locais, comunitários e religiosos. Caso contrário, Moçambique arrisca-se a assistir, em silêncio, à consolidação de uma autoridade paralela no seu próprio território.

No fundo, a questão em Cabo Delgado não é apenas quem controla as armas, mas quem detém a confiança. Hoje, essa confiança pertence aos ruandeses. Se nada mudar, a resposta à pergunta central – quem tem autoridade em Mocímboa da Praia e em Palma? – não será mais o Estado moçambicano, mas um aliado estrangeiro que se tornou soberano de facto.

O sistema de justiça em Moçambique ainda é marcado por um padrão excessivamente punitivo. Na prática, observa-se que a resposta predominante diante do crime é o encarceramento. Essa postura reflecte uma ideia enraizada na sociedade: a de que a solução para o infractor passa, inevitavelmente, por colocá-lo atrás das grades. 

Esse entendimento, revela-se limitado e pouco eficaz, pois a prisão, por si só, raramente contribui para a reintegração social e, em muitos casos, agrava desigualdades e fragilidades já existentes. Um exemplo é a forma como o sistema lida com o crime de infanticídio em Moçambique.

O infanticídio é definido como o homicídio cometido pela mãe contra o filho nascente ou recém-nascido, sob influência do estado puerperal – um período de alterações fisiológicas e psicológicas profundas ligadas ao parto e ao pós-parto. Seguindo a lógica punitiva, a tendência imediata é submeter as mulheres acusadas a penas severas, sem considerar os contextos que as levaram a tal acto.

O pedido de posicionamento em relação a proposta de revisão do artigo 163° do CP, submetido ao Provedor de Justiça pela REFORMAR em colaboração com organizações da sociedade civil e individualidades que se destacam na defesa dos direitos humanos em Moçambique, propõe um olhar mais atento e sensibilizado evidenciando que, na maioria dos casos, não existe um desígnio criminoso deliberado. Muitas mulheres cometem infanticídio não por prazer, mas em razão de factores sociais, culturais e psicológicos. O abandono por parte do parceiro ou da família, a vulnerabilidade económica, a estigmatização dos filhos nascidos fora do casamento, ou ainda situações de deficiência e deformações físicas, geram sentimentos de desespero e exclusão que culminam em decisões extremas. Além disso, transtornos como depressão pós-parto ou psicose puerperal comprometem a percepção da ilicitude do acto, tornando imprescindível uma avaliação especializada e atenuação da responsabildade penal.

É necessário perguntar: será que prender é mesmo a melhor resposta? O grande desafio está em prevenir, educar e oferecer apoio, e não apenas em castigar. Continuar com a lógica da punição é manter um sistema que afasta as pessoas, sem resolver as causas do problema.

Ao observar outras jurisdições, nota-se que o infanticídio é tratado como um delito distinto do homicídio comum. Muitos países reconhecem que o estado puerperal pode reduzir ou mesmo excluir a responsabilidade penal da mãe.

Em alguns países o infanticídio é tratado de maneira isolada e noutros não, por exemplo, a Inglaterra possui uma lei que considera a influência de transtornos psicológicos ou emocionais decorrentes do parto e do aleitamento, prevendo penas mais brandas e adaptadas à condição psíquica da mãe. Nos Estados Unidos, embora não haja tipificação autónoma, tribunais permitem o uso de defesas baseadas em distúrbios mentais, ainda que de forma desigual entre os estados. Na África do Sul, também o estado psicológico da mãe no pós-parto pode atenuar a pena.

Já noutros sistemas, como Itália, Brasil e Peru, o infanticídio é tipificado de forma específica. O Código Penal brasileiro, por exemplo, prevê pena reduzida quando a mãe mata o filho “sob influência do estado puerperal”, exigindo comprovação técnica dessa condição. No Perú, a lei vincula o infanticídio ao contexto do parto ou puerpério, mesmo sem exigência de prova pericial detalhada.

Essa diversidade de modelos demonstra que, internacionalmente, o infanticídio não é tratado como um homicídio comum, mas como uma situação especial, em que factores fisiológicos, psicológicos e sociais têm papel determinante.

No âmbito legal, Moçambique tem avançado, mas ainda de forma tímida. O Código Penal de 1886 tratava o infanticídio como agravado pela qualidade das pessoas. O de 2014, no artigo 165º, previa pena de 20 a 24 anos de prisão para quem matasse um recém-nascido até 15 dias após o nascimento. Já o Código Penal de 2019, no artigo 163º, reduziu a pena para 1 a 5 anos, introduzindo critérios relacionados ao sujeito activo e à influência do parto. Apesar de ser um avanço, a abordagem continua centrada na punição, sem prever obrigatoriamente avaliação psicológica e medidas alternativas.

Essa mudança não ocorre no vazio: há suporte em instrumentos jurídicos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que protege a vida e a dignidade humana; a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que incentiva a compreensão dos contextos sociais e psicológicos; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), que garante igualdade e protecção jurídica às mulheres; as Regras de Bangkok, que defendem medidas não privativas de liberdade para mulheres presas; e o Protocolo de Maputo, que reconhece os direitos reprodutivos e a necessidade de apoio físico e mental antes, durante e após o parto.

Esses instrumentos reforçam a necessidade de uma abordagem mais humana e abrangente do infanticídio, valorizando o contexto emocional, social e econômico da mãe.

A reclusão não pode ser a resposta automática a crimes como o infanticídio. Tratar essas mulheres apenas como criminosas é negar a complexidade de suas realidades. Moçambique tem diante de si a oportunidade de construir uma justiça mais humanizada, preventiva e inclusiva, que tenha uma visão que vá além do encarceramento. Nesse sentido, torna-se urgente investir em medidas alternativas, que combinem responsabilização e possibilidades reais de transformação social e pessoal. O enfoque deve estar na reinserção da mulher, com suporte psicológico, económico e comunitário e reconhecimento dos problemas sociais que estão a volta da prática do crime.

A revisão do artigo 163.º do Código Penal é um passo decisivo para conciliar a protecção da criança com a dignidade da mãe, reconhecendo que a verdadeira justiça não se resume a punir, mas a compreender, prevenir e transformar.

A família constitui-se como a primeira e mais importante instituição social. É nela que se transmite o património simbólico, cultural e moral que estrutura a vida colectiva. Tal como sublinhou o sociólogo Émile Durkheim, a família é um facto social total, um espaço em que normas, valores e crenças são incorporados pelos indivíduos, moldando, não apenas as práticas presentes, mas também o destino das futuras gerações.

O lar, enquanto espaço material e simbólico, é mais do que uma residência: é um lugar de pertença, intimidade e protecção. É nele que se ensaiam papéis sociais, se exercita o diálogo e se projectam futuros comuns. A família nuclear — pai, mãe e filhos — consolidou-se, sobretudo na modernidade ocidental, como a forma central de organização da vida privada, ainda que em constante reconfiguração.

Contudo, na contemporaneidade, a família enfrenta desafios inéditos: a individualização (Beck e Beck-Gernsheim), a liquidez dos vínculos (Bauman), a globalização cultural e o avanço das tecnologias de comunicação. Estes factores ampliam as possibilidades de escolha, mas também intensificam as tensões no seio dos casais e das famílias.

A decisão de constituir família exige uma ruptura parcial de laços de dependência — tanto familiares como sociais — para se construir um projecto comum. Sociologicamente, este processo requer negociação contínua, tolerância, renúncia de absolutismos e capacidade de partilha.

Quem entra na vida conjugal apenas para “ter razão” ou para impor certezas absolutas demonstra imaturidade para a vida em casal. O sociólogo Anthony Giddens fala da “relação pura”: um vínculo que só se sustenta enquanto proporciona satisfação emocional e realização mútua, mas que exige altos níveis de comunicação e confiança.

No entanto, a prática mostra que a construção do lar exige enfrentar tensões concretas:

  • Comunicação: casais que atacam o problema, e não a pessoa, fortalecem a relação. O contrário gera ressentimento e hostilidade.
  • Gestão financeira: as finanças são um dos principais focos de conflito. A ausência de transparência ou de partilha de responsabilidades mina o equilíbrio do lar.
  • Papéis sociais: mesmo em lares onde a mulher assume o papel de provedora, a cooperação e o respeito mútuo são indispensáveis.
  • Infidelidade: além do peso espiritual que a palavra de Deus lhe atribui, a infidelidade desestrutura emocionalmente a família, corrompe a confiança e abre espaço a uma cultura de duplicidade.
  • Educação dos filhos: os filhos são a imagem dos pais e tendem a reproduzir comportamentos vivenciados no lar. A falha aqui é a mais grave, pois compromete a reprodução social.
  • Intimidade sexual: a ausência de cumplicidade sexual é, muitas vezes, prelúdio de distanciamento emocional.
  • Objectivos comuns: projectos de vida divergentes condenam o casal à fragmentação.
  • Interferências externas: terceiros — família, amigos ou redes sociais — podem destruir a privacidade e autonomia do lar.
  • Excesso de independência: quem não está disposto a abrir mão de uma vida de autonomia radical não deve casar-se.

A emergência das pseudofamílias promíscuas

O fenómeno que se observa hoje é o crescimento de pseudofamílias: lares que se apresentam publicamente como tradicionais e monogâmicos, mas que, na prática, são marcados pela promiscuidade.

Esta duplicidade, comum em contextos urbanos e nas elites profissionais, configura uma verdadeira patologia social: homens e mulheres que mantêm casamentos de fachada enquanto cultivam relações paralelas com colegas de trabalho, frequentadores de ginásio ou redes de contactos virtuais.

Nas últimas décadas, as redes sociais transformaram-se no grande palco da vida moderna, mas é nos bastidores — nos inbox privados de plataformas como Instagram, TikTok, Facebook e WhatsApp — que muitas histórias paralelas têm início. Esses espaços digitais, concebidos para a proximidade e a comunicação rápida, tornaram-se cada vez mais territórios férteis para a infidelidade, onde segredos são guardados a sete chaves e a fronteira entre o respeito e a traição se dilui.

O que começa, muitas vezes, com uma simples mensagem de cortesia ou um elogio aparentemente inocente pode rapidamente evoluir para uma troca de confidências, conversas íntimas e, não raramente, partilha de nudez. Pessoas que, socialmente, cultivam a imagem de serem sérias, monogâmicas e comprometidas acabam por adoptar, nos bastidores digitais, um comportamento promíscuo, dividido entre diferentes parceiros.

A comunicação nesses espaços é intensa, profunda e sedutora. Em muitos casos, os laços emocionais estabelecidos com amantes virtuais tornam-se mais fortes do que aqueles mantidos dentro do lar com o cônjuge. A dependência destas interacções digitais, não apenas mina a confiança, como também revela uma crise silenciosa nas relações modernas: a incapacidade de manter, no quotidiano partilhado, a mesma intensidade emocional que se vive atrás de um ecrã.

Mais do que simples “conversas secretas”, os inbox das redes sociais estão a reconfigurar o conceito de fidelidade. Ao proporcionarem anonimato, facilidade de contacto e a ilusão de uma segunda vida, criam um espaço onde o desrespeito se normaliza e onde a traição deixa de ser excepção para se tornar modo de vida.

O WhatsApp, ferramenta quase indispensável no dia-a-dia, também se tornou cúmplice desse fenómeno. Escondido na palma da mão, serve como canal discreto para encontros, promessas e desejos inconfessáveis, reforçando a ideia de que a infidelidade digital já não é um episódio isolado, mas sim um sintoma generalizado da era das redes.

No fundo, a questão que se coloca é simples, mas inquietante: estas plataformas são apenas veículos de um comportamento humano atemporal, ou estarão a moldar e transformar a própria forma como encaramos os compromissos e os valores relacionais?

Sociologicamente, este comportamento revela:

  • A tensão entre normas e práticas: a sociedade continua a valorizar o discurso da monogamia, mas tolera — e em certos meios até glamouriza — a traição e a multiplicidade de parceiros.
  • A normalização da infidelidade: escritórios transformados em lugares de “amantismo”, ginásios como espaços de conquista sexual, e redes sociais como facilitadores da duplicidade.
  • O impacto geracional: crianças e adolescentes que testemunham casamentos de fachada passam a ver o matrimónio, não como projecto de vida, mas como farsa social.

O sociólogo Bauman descreve esse fenómeno como expressão da “modernidade líquida”: vínculos frágeis, descartáveis, regidos pela lógica do consumo. O outro torna-se um objecto de satisfação momentânea, facilmente substituível.

As consequências são vastas. Do ponto de vista social, há erosão da confiança, aumento de divórcios, crescimento de lares monoparentais e uma geração de jovens cépticos quanto ao valor da família. Do ponto de vista espiritual, há leituras religiosas que associam a promiscuidade à acção de forças destrutivas — demónios que instigam soberba, vaidade e incapacidade de compromisso.

Assim, a promiscuidade contemporânea não é apenas questão moral, mas fenómeno sociológico que ameaça a estabilidade social e cultural.

As igrejas, como instâncias normativas, carregam a responsabilidade de reeducar os casais, dialogar sem tabus sobre fidelidade, intimidade, papéis sociais e compromisso. A sociedade civil, por sua vez, deve abrir espaço para discutir de forma honesta os desafios da vida conjugal, sem esconder as fragilidades.

É necessário enfrentar a hipocrisia social: aqueles que em público defendem a família, mas em privado vivem na contramão dos valores que proclamam. Mais grave ainda, a transmissão desta duplicidade aos filhos compromete o futuro da própria sociedade.

Num tempo em que a promiscuidade é apresentada como liberdade individual e até como sinal de modernidade, urge resgatar o valor da família como centro da vida social. Não se trata de negar as transformações contemporâneas, mas de reconhecer que a sobrevivência de sociedades equilibradas passa pela existência de lares estáveis, comprometidos e coerentes.

A família continua a ser a célula fundamental da sociedade. A sua destruição não gera apenas divórcios, mas compromete o tecido social, como um todo. O combate à promiscuidade e à duplicidade conjugal é, assim, um imperativo, não apenas religioso, mas profundamente sociológico.

Nos últimos vinte e cinco anos, Moçambique tem vivido uma verdadeira maratona de reformas constitucionais e legislativas. O país, que saiu de uma guerra civil devastadora em 1992 e se afirmou como democracia multipartidária a partir da Constituição de 1990, parecia determinado a alinhar-se com os padrões internacionais de direitos humanos e Estado de direito. Códigos coloniais centenários foram finalmente substituídos, novas leis sobre violência baseada no género e justiça juvenil foram aprovadas, e princípios de descentralização e pluralismo jurídico foram inscritos na Constituição. No papel, é um avanço notável.

Mas a realidade da sua implementação conta outra história. O relatório mais recente da REFORMAR – Research for Mozambique sobre o impacto das leis criminais, de segurança e excepcionais em Moçambique (2000–2024) revela uma contradição profunda: apesar das reformas, o sistema continua a reproduzir desigualdades, a reforçar privilégios e a servir como instrumento de repressão política. Em vez de um Estado de direito democrático, o que se observa é um quadro de “legalismo seletivo”, onde os pobres, os jovens e os críticos do regime enfrentam a lei com dureza, enquanto os poderosos permanecem blindados pela impunidade.

A reforma do Código Penal em 2014 foi celebrada como uma rutura com o passado colonial. Medidas como a descriminalização da mendicidade, a legalização parcial do aborto e a criação de penas alternativas, como o trabalho socialmente útil apontavam para uma justiça mais humana e proporcional. Porém, na prática, essas inovações beneficiam poucos.

O trabalho socialmente útil, por exemplo, raramente é aplicado de forma equitativa. Jovens pobres continuam a ser enviados para a prisão por delitos menores, enquanto réus com recursos financeiros ou conexões políticas conseguem escapar à detenção preventiva ou até negociar condições privilegiadas de encarceramento. O próprio Código de Execução da Penas legaliza um sistema dual, permitindo que presos com dinheiro paguem por condições melhores, institucionalizando assim uma desigualdade que contraria o princípio constitucional da igualdade perante a lei.

A descriminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo também foi apontada como sinal de modernidade. Contudo, organizações como a LAMBDA continuam sem reconhecimento legal, e a discriminação contra minorias sexuais persiste no acesso ao emprego, à proteção policial e ao respeito institucional. A lei mudou, mas a prática estatal continua a ignorar direitos básicos.

Se há um sector onde a distância entre teoria e prática é gritante, é o das forças de segurança. A Polícia da República de Moçambique, criada em 1992 e reformada em 2013 e 2019, deveria representar uma polícia republicana, voltada para a cidadania. Mas permanece impregnada de uma cultura militarizada e autoritária. O recurso excessivo à força, a corrupção endêmica e a instrumentalização política são recorrentes.

Os números da repressão após as eleições municipais de 2023 e gerais de 2024 são chocantes: mais de 300 manifestantes mortos por forças de segurança, segundo organizações de direitos humanos. Este episódio marca não apenas uma tragédia humana, mas também o uso explícito da lei — e da força policial — como ferramentas de intimidação política.

Nos tribunais, a situação não é muito diferente. A morosidade processual, a falta de magistrados e a desigualdade no acesso à justiça criam um sistema onde ser pobre é praticamente sinônimo de prisão preventiva. Embora a Constituição assegure o direito à defesa e à caução, a realidade é que a liberdade provisória é aplicada de forma restritiva e discriminatória. A justiça em Moçambique não é cega: ela enxerga claramente quem tem recursos e quem não tem.

Outro ponto revelador do relatório é o uso recorrente de leis de emergência, contra terrorismo e normas eleitorais como pretexto para restringir direitos fundamentais. Durante a pandemia da COVID-19, milhares de vendedores informais foram detidos por “desobediência” às regras de confinamento, mesmo quando estas eram impossíveis de cumprir para quem depende do trabalho diário para sobreviver. A repressão recaiu sobretudo sobre mulheres e jovens das periferias urbanas, transformando a precariedade em crime.

Da mesma forma, a legislação contra o terrorismo, aprovada em 2023 e alterada em 2024, é tão vaga que permite enquadrar pequenos comerciantes, mulheres coagidas por redes criminosas ou até crianças em situações de vulnerabilidade como cúmplices de “actos terroristas”. O resultado é a criminalização da pobreza e da marginalidade, em vez de uma resposta eficaz às ameaças reais de Cabo Delgado.

Nas eleições, repete-se o padrão da “excecionalidade permanente”. O período eleitoral torna-se um espaço de suspensão tácita de direitos: jornalistas intimidados, observadores impedidos, ativistas presos e protestos reprimidos. A violência de 2024 mostrou que, em Moçambique, a democracia convive com práticas de exceção que corroem a confiança pública e minam a legitimidade das instituições.

O paradoxo moçambicano é claro: um quadro jurídico progressista, mas aplicado de forma desigual e seletiva. Há um esforço notável de “descolonização legal” no plano normativo, mas este esforço é neutralizado por práticas herdadas do autoritarismo e por um Estado capturado por interesses partidários.

As instituições de fiscalização, como a Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), carecem de independência, recursos e vontade política. As visitas às prisões e as recomendações raramente se traduzem em mudanças concretas. O Provedor de Justiça, embora relevante, permanece limitado pela falta de poderes vinculativos. O resultado é um vazio de responsabilização que perpetua abusos.

Enquanto isso, a sociedade civil, embora vibrante e resiliente, opera sob crescente hostilidade política e restrições administrativas. É ela quem denuncia a superlotação prisional, os abusos policiais e a marginalização de mulheres, jovens e minorias. Mas sem espaço institucional para garantir mudanças, o seu impacto é limitado.

Moçambique vive hoje um dilema: entre o discurso do Estado de direito e a prática do Estado de excepção. As reformas jurídicas, por si só, não bastam se não houver independência judicial, policiamento democrático e fiscalização eficaz. Um país que descriminaliza a pobreza na lei, mas prende vendedores informais nas ruas; que proclama igualdade de género, mas ignora a vulnerabilidade das mulheres em prisões superlotadas; que se compromete com tratados internacionais, mas reprime manifestantes pacíficos — é um país preso no seu próprio labirinto legal.

O futuro dependerá da capacidade de romper com este padrão de legalismo seletivo. Isso exige coragem política para reformar a polícia, independência real para os tribunais, fiscalização efectiva das prisões e respeito pelos direitos fundamentais em tempos normais e excepcionais. Sem isso, Moçambique continuará a viver uma justiça para os poderosos e outra para os pobres — e a democracia permanecerá frágil, refém de uma legalidade que existe apenas no papel.

Resumo: Há datas que iluminam e ferem ao mesmo tempo. O 7 de Setembro foi libertação e amputação: soberania conquistada, pluralismo sufocado. A narrativa oficial exalta a vitória; a história, lida sem filtros, expõe o custo – um Estado moldado pela exclusividade, centralização e silenciamento de vozes. Revisitar esse “dia duplo” é compreender o presente: por que razão continuamos a confundir unidade com unanimidade? E que fazer, agora, para trocar a lógica da hegemonia pela lógica da inclusão?

Um país à beira da liberdade

O 7 de Setembro de 1974, hoje celebrado como Dia da Vitória, encerra uma contradição fundamental: no mesmo instante em que foi reconhecida a soberania nacional, selou-se a exclusão política. O Acordo de Lusaka, ao conferir à FRELIMO o estatuto de único representante legítimo do povo, abriu as portas da independência, mas fechou as do pluralismo.

Essa duplicidade raramente emerge no discurso oficial. As comemorações evocam a coragem da luta de libertação, mas omitem o outro lado da moeda: o nascimento de um Estado erguido sobre a hegemonia de um partido, relegando outras vozes ao silêncio. A independência foi uma conquista inegável, mas o preço foi a amputação da diversidade política.

Essa escolha marcou o futuro. A exclusão transformou-se em prática de governo, permitindo a captura do Estado por uma elite, afastando o partido da sociedade e enfraquecendo a promessa de bem-estar colectivo. A independência que deveria unir tornou-se também mecanismo de separação entre os que tinham acesso ao poder e os que foram afastados dele.

A pressa portuguesa e a exclusividade da FRELIMO

Portugal, recém-saído da Revolução dos Cravos (25 de Abril de 1974) e pressionado por uma guerra colonial insustentável em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, queria encerrar depressa conflitos que minavam recursos e credibilidade interna e externa. Em Moçambique, já em 1974, Lisboa sentia os efeitos da ofensiva militar da FRENTE e das baixas sucessivas no terreno, realidade que a obrigou a repensar o esforço de guerra e os seus custos humanos, políticos e económicos. No teatro moçambicano, desde 1964, a FRELIMO afirmara-se como a força mais organizada e a única com reconhecimento internacional; negociar apenas com ela pareceu, portanto, a solução mais expedita.

Assim nasceu o Acordo de Lusaka: cessar-fogo imediato, governo de transição dominado pela FRELIMO e transferência integral de poder em menos de um ano. No papel, parecia desfecho rápido; na realidade, foi a semente de uma longa exclusão. 

Ao consagrar a FRELIMO como “único representante legítimo do povo moçambicano”, Portugal eliminou de um só gesto colonos organizados, grupos regionais e dissidências internas. A independência foi reduzida a um acto bilateral entre Lisboa e FRELIMO (Maputo) — uma pressa que resolveu a guerra, mas hipotecou o pluralismo.

Tal como Portugal em Moçambique, também a Bélgica em Ruanda e o Reino Unido no Sudão optaram por soluções de conveniência, ditadas mais pela urgência de encerrar o capítulo colonial do que por um compromisso genuíno com a inclusão política. Em 1962, Bruxelas promoveu eleições apressadas que entregaram o poder aos hutus, marginalizando os tutsis; em 1956, Londres uniu de forma artificial o Egipto ao Sudão anglo-egípcio e precipitou uma independência que alimentou décadas de guerra civil. Nestes três casos, a pressa metropolitana resolveu a equação da soberania formal, mas hipotecou a construção de Estados plurais. 

O levante em Lourenço Marques

Enquanto em Lusaka se assinava a paz, em Lourenço Marques colonos armados tentavam reverter o curso da história. Organizados no movimento Moçambique Livre, proclamaram governo paralelo, ocuparam edifícios estratégicos e sonharam com um Estado multirracial que, na prática, manteria a dominação branca. Inspirados na Rodésia, acreditaram que podiam desafiar o Acordo.

O ensaio foi breve. A insurreição foi esmagada em poucas horas, deixando mortos, feridos e medo. A derrota consolidou a imagem da FRELIMO como força incontestável e reforçou a ideia de que qualquer oposição equivalia a nostalgia colonial. O episódio cristalizou uma narrativa binária: de um lado, os libertadores; do outro, os reaccionários. No meio, não houve espaço para alternativas moderadas. Dissidentes internos e elites regionais foram empurrados para o silêncio.

Dissidências silenciadas

A exclusão atingiu também o interior da própria FRELIMO. Uria Simango, antigo vice-presidente, afastado após a morte de Mondlane, tentou formar um pequeno movimento sem expressão militar. Outros, como Lázaro Nkavandame, romperam com a liderança de Samora Machel. Nenhum encontrou espaço na transição. Com a independência, a exclusividade radicalizou-se: alguns dissidentes foram presos e desapareceram em circunstâncias nunca esclarecidas. A unidade confundiu-se com unanimidade. A pluralidade foi tratada como traição.

 

O custo do monopólio

À primeira vista, a exclusividade parecia pragmática: a guerra terminava e a independência estava garantida. Porém, o preço foi alto. O Estado nasceu como propriedade de um partido. Essa concepção bloqueou desde cedo a construção de um pacto nacional inclusivo. O monopólio tornou-se princípio fundacional, moldando a política, a economia e a sociedade.

A marginalização de comunidades e elites regionais, sobretudo no Centro e Norte do país, alimentou frustrações que não encontraram canais institucionais de expressão. Foi nesse vazio que surgiu a RENAMO, em 1977, criada com apoio da Rodésia e, mais tarde, da África do Sul do apartheid. A sua capacidade de recrutar e expandir não se explicava apenas pelo patrocínio estrangeiro, mas também pelo sentimento real de exclusão vivido por milhares de moçambicanos. A guerra civil de dezasseis anos não foi, portanto, apenas uma imposição externa: foi também a tradução violenta das fracturas internas geradas no próprio momento fundacional do Estado.

O aparelho coercivo (polícia, serviços de informação e redes de vigilância) fora desenhado para controlar populações, não para as servir. Após 1975, mudaram-se nomes e bandeiras, mas manteve-se a lógica de comando: centralização extrema, cultura de segredo, prioridade da obediência sobre a legalidade, e um sistema de “classificação” dos cidadãos entre leais e desviantes. A vigilância capilar nos bairros, os comités locais, as estruturas de mobilização de base e a ligação orgânica entre partido e Estado replicaram, com sinais trocados, o princípio colonial de que a ordem precede o direito. 

Na prática, a segurança continuou a ser pensada como controlo da sociedade (e não como garantia de direitos), alimentando intimidação, autocensura e silêncios, perpetuando a exclusão de vozes dissonantes como ameaça, não como participação legítima. No campo económico, essa captura converteu-se em apropriação: o Estado tornou-se fonte de privilégios privados, e não de redistribuição. O sector privado floresceu apenas como prolongamento do aparelho político, reservado a quem orbitava em torno do poder. Daí resultou uma desigualdade estrutural que persiste até hoje: uma minoria acumula riqueza e influência, enquanto a maioria permanece afastada das oportunidades.

No plano económico, a economia de enclave erguida para servir uma minoria branca — exportações primárias, grandes concessões, mão-de-obra barata e extracção de rendas — foi reciclada sob novas tutelas. A nacionalização transformou o Estado no proprietário universal, mas sem romper a arquitectura extractiva: empresas públicas e paraestatais concentraram activos e decisões em Maputo; licenças, alvarás e contratos tornaram-se filtros de acesso, frequentemente mediados por lealdades partidárias; e as privatizações posteriores converteram património público em património de poucos, consolidando uma burguesia de Estado. As comunidades nos territórios de exploração continuaram a ver a riqueza partir e o desenvolvimento ficar por chegar. Assim, a “independência económica” operou mais como substituição de beneficiários do que como mudança de modelo: a lógica colonial de concentração e exclusão foi mantida, agora legitimada pela retórica nacional, e reproduzida no quotidiano através de preços administrados, monopólios de facto, barreiras regulatórias e dependência do favor político para investir, produzir e competir.

Caminhos para a frente

Se o 7 de Setembro marcou o nascimento de um Estado fundado na exclusão, o desafio de hoje é transformar essa herança em ponto de viragem. O passado não pode ser corrigido, mas pode ser reinterpretado. Pensar o futuro exige mais do que reformas técnicas: exige uma nova configuração do pacto social, substituindo hegemonia por inclusão.

Para valorizar plenamente o 7 de Setembro — não como ritual comemorativo, mas como promessa cumprida — é indispensável romper a lógica de exclusão que o sucedeu; essa ruptura é condição sine qua non para converter a vitória histórica num novo contrato social assente na dignidade e na igualdade de todos. Esse pacto deve colocar o bem-estar colectivo no centro da vida nacional, sem qualquer discriminação racial, étnica, político-partidário ou regional, substituindo a cultura do privilégio pela regra da imparcialidade, a proximidade ao poder (o compadrio) pelo mérito, e a retórica da unidade pela prática diária da inclusão. Significa reconhecer a diversidade como força, garantir acesso equitativo a oportunidades, proteger o espaço cívico e orientar o Estado para servir — e não seleccionar — os cidadãos. Só assim a data deixará de ser ambígua e passará a constituir o fundamento vivo da nossa moçambicanidade, a ética comum que nos une e orienta.

Finalmente, a pequena elite que controla a vida política e económica deste país deve compreender que erros foram cometidos e que “comer sozinhos” não é bom, e insistir nessa prática apenas agravará as consequências. A metáfora do vulcão em erupção ilustra bem a gravidade do momento: ainda é possível mitigar os danos, mas apenas através de medidas urgentes de inclusão e redistribuição.

(Zheng Xuan, Embaixadora da China em Moçambique)

Em 1 de setembro, S.E. Xi Jinping,Presidente da República Popular da China propôs solenemente a Iniciativa de Governança Global na reunião da Organização de Cooperação de Shanghai Plus. No mesmo dia, a China lançou oficialmente o Documento Conceitual sobre a Iniciativa de Governança Global. Isso marca mais um bem público significativo contribuído pela China para o mundo, após a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa de Civilizações Globais. Hoje, queria compartilhar as minhas perspetivas sobre esse importante conceito por meio de três perguntas: Por que a Iniciativa surgiu? Qual é a sua essência? Como será implementada?

  1. Por que surgiu: o valor de era da Iniciativa de Governança Global

O ano corrente marca o 80º aniversário das Nações Unidas. Há oitenta anos, a fundação da ONU iniciou uma nova era de governança global. Oitenta anos depois, o mundo entrou num novo período de turbulência e transformação, com as deficiências dos mecanismos internacionais existentes cada vez mais evidentes. A governança global encontra uma nova encruzilhada. Neste contexto, o Presidente Xi Jinping, com o objetivo de salvaguardar a segurança e a harmonia mundial e promover o desenvolvimento da sociedade dos seres humanos, focando com a questão crítica de “que tipo de sistema de governança global deve ser construído” e “como a governança global deve ser reformada e melhorada”, apresentou a Iniciativa de governança Global. Isso traçou o caminho para a reforma do sistema de governança global, apoiando a construção de um sistema de governança global mais justo e equitativo e contribuindo com a sabedoria e as soluções chinesas para o reforço e a melhoria da governança global.

2. Qual é a sua essência: os princípios fundamentais da Iniciativa de Governança Global

Os cinco princípios fundamentais da Iniciativa de Governança Global são: aderir à igualdade soberana,cumprir o Estado de direito internacional, praticar o multilateralismo, advogar a abordagem centrada no povo e focar em tomar ações reais. A igualdade soberana é o principal pré-requisito para a governança global, o Estado de direito internacional é a garantia fundamental, o multilateralismo é o caminho básico, a abordagem centrada no povo é a orientação de valores e ações reais contituem o princípio importante. A essência espiritual destes cinco princípios fundamentais é consistente com os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas. Visam apoiar firmemente as Nações Unidas no desempenho do seu papel central nos assuntos internacionais, incentivar os países a participar na reforma e no desenvolvimento do sistema de governança global por meio de mecanismos multilaterais, como as Nações Unidas, e responder de forma mais eficaz aos desafios da nossa era.

    3. Como será implementada: o bom exemplo da Iniciativa de Governança Global

A Iniciativa de Governança Global não busca derrubar a ordem internacional existente nem estabelecer um novo sistema separado da estrutura internacional atual. Em vez disso, visa aumentar a eficácia e a eficiência do sistema e dos mecanismos internacionais existentes para melhor servir aos interesses de todos os países, especialmente dos países em desenvolvimento. A China está disposta a defender a visão de governança global baseada na consulta, contribuição conjunta e benefícios partilhados. Contando com as Nações Unidas,as organizações internacionais relevantes e mecanismos multilaterais regionais e sub-regionais, a China fortalecerá os intercâmbios e cooperações com todos os países, incluindo Moçambique, nas áreas-chave como a reforma do quadro financeiro internacional, inteligência artificial, ciberespaço, mudanças climáticas e comércio. Vamos defender conjunta e resolutamente a autoridade e o papel central das Nações Unidas, apoiar a implementação do Pacto para o Futuro, praticar a Iniciativa de Governança Global, promovendo de mãos dadas a construção de um sistema de governança global mais justo e equitativo e uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade.

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

Resumo: Este artigo sustenta que, passadas três décadas de eleições regulares, o principal nó do sistema moçambicano não reside no acto de votar em si, mas na credibilidade dos processos que produzem o resultado. A confiança pública degrada-se quando o recenseamento cria incentivos para excesso de registos, quando a contagem não deixa rasto documental visível por mesa, quando o apuramento passa por etapas opacas e quando o calendário de anúncio se arrasta a ponto de transformar um procedimento administrativo em disputa de rua. O efeito cumulativo é previsível: percepção de violação, tensão social e erosão da legitimidade das próprias instituições que devem garantir a concorrência política.

Contextualização: Em democracia, eleições fazem duas coisas de natureza distinta: escolhem governantes e produzem prova de que essa escolha ocorreu. Portanto, a primeira dimensão é substantiva (preferências) e a segunda é processual (confiança). Sistemas estáveis tratam o resultado como um produto verificável, não como uma proclamação. Por isso, o valor das eleições depende de três pilares: regras claras, comportamentos previsíveis e evidência auditável. Quando uma destas falhas, o sistema converte-se numa máquina de suspeitas. É ilustrativo comparar: na Alemanha, cada mesa divulga os resultados preliminares no próprio dia, e a totalização nacional é apresentada horas depois, sem espaço para rumores. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral divulga resultados oficiais poucas horas após o encerramento das urnas electrónicas, e, em 2022, mais de 99% das secções estavam apuradas em menos de 24 horas, criando um consenso imediato que neutralizou narrativas de fraude.

Países com trajectórias turbulentas saíram do ciclo de contestação quando trataram o processo como engenharia institucional. O Quénia, por exemplo, após a crise pós-eleitoral de 2007, introduziu mecanismos de publicação de resultados por mesa com actas digitalizadas em portais públicos, reduzindo o espaço de manipulação ao nível provincial. Gana, depois de disputas renhidas em 2012, reforçou o regime de “pink sheets” acessíveis a partidos e cidadãos, tornando possível a conferência independente de cada mesa. Em ambos os casos, a mudança não foi cosmética: reduziram incentivos a manipular a base de eleitores, publicaram documentos primários por mesa, criaram centros de apuramento com painéis públicos e logs de auditoria, encurtaram prazos de contencioso e profissionalizaram os oficiais eleitorais. A regra de ouro é simples: quanto mais o processo for transparente, menor a utilidade da narrativa de teorias de conspiração.

E Moçambique?

Desde 1994, quando se realizaram as primeiras eleições multipartidárias em Moçambique, o voto foi apresentado como a prova mais visível da transição para a paz e a democracia. Esperava-se que as eleições servissem como mecanismo de canalização pacífica da disputa política, substituindo o recurso às armas pelo confronto no boletim de voto. Porém, o percurso histórico revela uma realidade distinta: em praticamente todos os ciclos eleitorais, surgiram acusações de fraude, manipulação dos resultados e parcialidade das instituições de governação eleitorais. Em vez de pacificar, as eleições tornaram-se em ignição de conflitos em todos os períodos de votação.

Ao longo do percurso eleitoralista, numa tentativa de calibrar o sistema, a composição da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) foi revista diversas vezes, sempre com a promessa de maior equilíbrio e independência. Contudo, a percepção pública manteve-se: órgãos capturados pela lógica partidária. Por outro lado, alteraram-se os prazos de litígio, criaram-se novas modalidades de recenseamento, ajustaram-se regras de apuramento, mas cada ciclo trouxe novos episódios de contestação. A lição que se impõe é clara: reformas formais não resolveram o défice de confiança estrutural de um sistema.

Neste contexto, a explicação não pode estar apenas na técnica ou na legislação, mas também na economia política do comportamento. As nossas regras, plasmadas na lei eleitoral vigente, não são neutras; elas próprias induzem estratégias oportunistas. Se o número de mandatos depende dos eleitores recenseados, como é o caso de Moçambique, e não do recenseamento da população ou outros mecanismos viáveis para o efeito, os partidos têm incentivos claros para inflacionar registos nas zonas onde controlam a máquina administrativa. Se a acta da mesa não é publicada de forma sistemática e acessível, a tentação natural é manipular os resultados em fases mais opacas, onde a fiscalização é mínima. E se a proclamação final demora semanas ou meses, cria-se um vazio político que é imediatamente ocupado pelo barulho na rua: quanto maior a mobilização e o barulho durante esse período, maior o peso de um actor na negociação política.

Assim, as eleições em Moçambique ilustram um problema que vai além das leis: é o comportamento racional dos actores diante de regras mal calibradas. A baixa qualidade do controlo amplia o espaço para oportunismo; a ausência de prova documental acessível torna tudo contestável; e a morosidade processual transforma o tempo em campo de batalha. Dito sem enrolação: a falta de credibilidade processual funciona como combustível da conflitualidade. Quando os cidadãos entendem que “a prova não está à vista”, a predisposição para contestar é generalizada. E quando tudo é contestável, nada é legitimador. O impacto extravasa o plano político: investimentos são adiados, prioridades nacionais desviam-se para a gestão de crises e repressão, e instituições corroem-se sob a suspeita permanente.

O processo eleitoral, o que é então?

Antes de avançar com o debate, gostaríamos de dar uma pausa para lembrar que processo eleitoral e sistema eleitoral não são sinónimos. O processo eleitoral é a sequência de actos administrativos, logísticos e jurídicos que transforma as preferências dos cidadãos em votos válidos e depois em resultados proclamados. Já o sistema eleitoral é a regra de conversão desses votos em assentos: pode ser maioritário, proporcional, misto ou híbrido, e determina se cada voto conta para eleger uma pessoa, uma lista ou para calcular percentagens nacionais. Dito de outro modo, o processo é o “como” se organiza uma eleição; o sistema é o “com que regra” os votos são transformados em representação.

Esta distinção é crucial, porque um sistema eleitoral pode ser tecnicamente justo, mas perder legitimidade se o processo que o antecede estiver fragilizado. Em contrapartida, um processo limpo e transparente pode ser insuficiente se as regras de conversão forem vistas como desiguais ou distorcidas. A integridade democrática exige, portanto, que ambos os objectos (processual e sistémico) estejam alinhados. O sistema define o desenho político, moldando incentivos de partidos e candidatos; o processo assegura que esses incentivos são traduzidos em resultados verificáveis e aceites socialmente. Em Moçambique, esta distinção raramente é explorada com profundidade, e isso ajuda a explicar a persistência de crises eleitorais. Reformas do sistema, como forma de distribuir mandatos ou os critérios de representação, pouco adiantam quando o processo permanece vulnerável a disputas no recenseamento, na contagem ou na validação dos resultados. 

Quais são as principais falhas no processo eleitoral em Moçambique?

O Recenseamento Eleitoral: o ponto de partida de qualquer processo eleitoral é o recenseamento. A credibilidade de todo o edifício depende, em larga medida, da integridade desta fase inicial, pois é ela que define quem poderá exercer o direito de voto. Em Moçambique, porém, o recenseamento eleitoral tem sido reiteradamente o elo mais frágil, não apenas por falhas administrativas, mas sobretudo pelos incentivos políticos que gera. O problema assume contornos mais graves quando o número de eleitores inscritos ultrapassa de forma desproporcional as projecções demográficas oficiais. O caso da província de Gaza, nas eleições de 2019, é emblemático: o número de eleitores recenseados ultrapassava a projecção populacional para o ano de 2050. Este desfasamento não pode ser explicado por erro técnico ou mobilização cívica extraordinária, mas por um padrão estrutural de inflacionamento deliberado dos registos.

A raiz do problema está inscrita na própria Lei Eleitoral. O modelo moçambicano de distribuição de mandatos utiliza o método de Hondt, aplicando-o à base do número de eleitores recenseados em cada círculo eleitoral. Assim, os 250 assentos da Assembleia da República são repartidos pelos 13 círculos provinciais em função do total de eleitores inscritos. Este mecanismo cria um incentivo perverso: quanto mais eleitores forem registados numa província, maior será o número de deputados a eleger. Em consequência, o recenseamento deixa de ser um exercício técnico e converte-se num campo de disputa política, onde cada aparelho provincial luta para maximizar o seu peso parlamentar. Não surpreende, portanto, que em 2024 todas as províncias tenham ultrapassado em mais de 120% as projecções de eleitores previstas — um indicador claro de manipulação competitiva entre administrações provinciais.

A distorção não é apenas estatística, mas profundamente política. Quando o recenseamento se torna um instrumento de competição, a confiança pública é corroída antes mesmo da abertura das urnas. A percepção de “jogo viciado” mina a aceitação dos resultados futuros e gera um clima de contestação latente. Em vez de uma fase administrativa destinada a garantir a inclusão de cidadãos, o recenseamento converte-se num mecanismo de exclusão e inflacionamento estratégico, ampliando desigualdades de representação e gerando suspeitas estruturais sobre a legitimidade do Parlamento.

A Votação: o acto de votação apresenta desafios de natureza distinta. A sua realização, ainda que frequentemente marcada por falhas logísticas, é menos problemática em termos de contestação política directa, já que se trata de um momento visível, acompanhado por representantes de partidos, observadores e pela própria comunidade. Contudo, a menor gravidade comparativa não deve ser confundida com irrelevância. A qualidade da experiência do eleitorado, o cumprimento dos horários e a eficiência das mesas de voto influenciam de modo decisivo a participação e a confiança pública.

Em Moçambique, os relatórios de observação eleitoral da União Europeia (UE), da União Africana (UA) e de organizações nacionais, como o Observatório Eleitoral, têm identificado padrões recorrentes: abertura tardia das mesas, falhas de materiais (urnas, boletins e tinta indelével), ausência de listas completas ou devidamente afixadas e dificuldades técnicas na organização das filas. Em muitos casos, estes atrasos levaram ao prolongamento do horário de funcionamento ou ao congestionamento de eleitores, criando frustração e potenciais constrangimentos à participação plena. A título de exemplo, no relatório da Missão de Observação Eleitoral da UE para as eleições de 2019, registou-se que mais de 25% das mesas visitadas abriram com atrasos superiores a uma hora, em grande medida, devido à logística deficiente.

No entanto, apesar dessas falhas, a votação em si decorre geralmente de forma pacífica, com episódios de violência reduzidos e níveis relativamente altos de conformidade com os procedimentos básicos. Ainda assim, convém sublinhar que demora, e as falhas na organização podem afectar de modo indirecto a legitimidade democrática, não pela suspeita de manipulação, mas pela redução da participação. 

Ainda sobre a abstenção, importa referir que, pela lei, cada caderno eleitoral deve conter, no máximo, 800 eleitores, correspondendo ao número de votantes atribuídos a uma mesa. O problema que se coloca é duplo. Por um lado, a capacidade técnica e a experiência limitada dos membros de mesa, tornando duvidosa a eficiência no processamento de tal volume de eleitores num único dia. Por outro, a morosidade natural do procedimento aumenta o risco de congestionamento, longas filas e, consequentemente, maior abstenção. 

O apuramento e proclamação dos resultados: o apuramento é a fase mais crítica de todo o ciclo eleitoral em Moçambique. É neste momento que as preferências individuais, previamente expressas nas urnas, se convertem em resultados formais com valor jurídico e político. A legislação é inequívoca: as actas devem ser assinadas por todos os membros de mesa, entregues às instâncias superiores e publicadas localmente, garantindo, assim, a rastreabilidade e a fiscalização pública. Todavia, a prática revela uma sistemática violação dessa norma, convertendo o apuramento no epicentro da manipulação eleitoral.

O problema central não é apenas técnico, mas estratégico: trata-se da tentativa deliberada de captura dos membros de mesa responsáveis pela contagem. Frequentemente jovens contratados de forma temporária, com frágil preparação e baixos níveis de resiliência institucional, como vimos acima, estes agentes tornam-se alvos fáceis de cooptação através de subornos, intimidação ou redes de clientelismo local. Quando a captura é bem-sucedida, os resultados são ajustados directamente na origem, tornando a fraude praticamente invisível nas fases subsequentes. Quando tal não é possível e os números se mostram desfavoráveis a certos partidos, recorre-se a expedientes alternativos: a recusa em assinar as actas, a sua ocultação ou até a destruição física dos documentos. Em qualquer dos casos, o efeito é o mesmo: a ausência de prova verificável abre espaço a uma narrativa incontornável de manipulação.

Importa sublinhar que a mesa de voto é a unidade mínima de decisão eleitoral. Como demonstra a literatura especializada em eleições competitivas em regimes híbridos, é precisamente ao nível mais micro da administração eleitoral que se jogam as batalhas decisivas de credibilidade. Os órgãos centrais (distritais, provinciais ou nacionais) dificilmente podem alterar resultados sem comprometer a sua consistência documental na base. Logo, se a integridade da mesa falha, todo o edifício subsequente é construído sobre alicerces de areia.

A esta vulnerabilidade soma-se um desenho institucional marcado pela morosidade e redundância. O percurso que os resultados seguem — da mesa para o distrito, do distrito para a província, daí ao nível central e, por fim, ao Conselho Constitucional — multiplica os pontos de opacidade e de contestação. As eleições de 2024 ilustram de forma eloquente esta patologia: realizadas em Outubro, só viram os resultados proclamados a 23 de Dezembro. Durante quase dois meses, o vazio informativo foi preenchido por rumores, protestos e violência, cuja intensidade apenas se dissipou após a validação final. Na África do Sul, quase 90% das mesas são processadas em menos de três dias, permitindo que o consenso social se forme rapidamente.

Por fim, a etapa de validação institucional agrava a desconfiança. A Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) e o próprio Conselho Constitucional são percepcionados como órgãos capturados pela lógica partidária. Em vez de desempenharem a função de árbitros imparciais, limitam-se a homologar resultados, raramente confrontando as irregularidades documentadas. Ao contrário do Malawi (2020) e do Quénia (2017), onde tribunais supremos anularam eleições presidenciais em nome da integridade democrática, Moçambique permanece refém de uma validação meramente ritualista, incapaz de restaurar a confiança pública.

Recomendações

Recenseamento: (i) usar dados censitários e projecções populacionais (não o número de recenseados) para distribuir mandatos, como fazem África do Sul e Namíbia e (ii) reduzir o número máximo de eleitores por mesa para facilitar a votação e reduzir filas, seguindo o exemplo do Brasil.

Apuramento: (i) profissionalizar os membros de mesa com formação contínua, à semelhança da África do Sul; (ii) tornar obrigatória a afixação das actas; se não forem assinadas ou publicadas, a mesa deve ser anulada ou recontada em até 24h, como no Gana; e (iii) eliminar apuramento distrital e provincial; transmitir resultados directamente para um centro nacional, inspirado no modelo do Quénia.

Proclamação: (i) criar um Centro Central de Apuramento independente, sob controlo e supervisão judicial do órgão responsável por validar as eleições; e (ii) rever e fixar prazo máximo de cinco dias úteis para a proclamação final, como no Brasil e na África do Sul.

Em síntese, a credibilidade das eleições em Moçambique não será alcançada por meio de proclamações políticas, mas pela reconfiguração institucional que reduza incentivos à fraude e fortaleça mecanismos de transparência. A adopção de critérios censitários para a distribuição de mandatos, a profissionalização dos membros de mesa, a obrigatoriedade da publicação imediata das actas, a eliminação de etapas redundantes no apuramento e a proclamação célere dos resultados são medidas que já provaram eficácia em várias democracias africanas e latino-americanas. Implementá-las é mais do que uma questão técnica: é condição indispensável para que o voto volte a ser, em Moçambique, um instrumento de legitimidade democrática, e não uma fonte recorrente de contestação e conflito.

O turismo é hoje reconhecido como uma das maiores forças económicas globais. Em torno dele, ocorrem fenómenos de consumo, formam-se mercados, originam-se rendas, criam-se empregos, movimentam-se cadeias de valor e consolida-se a confiança dos investidores. É um sector que vai muito além do lazer: constitui uma poderosa engrenagem de desenvolvimento económico e social. Países como Portugal, Cabo Verde, Maurícias ou Seychelles demonstraram que apostar no turismo pode transformar realidades, tornar-se a maior fonte de receitas nacionais e abrir horizontes internacionais para economias que, de outra forma, permaneceriam frágeis e limitadas.

Em Moçambique, a discussão sobre a diversificação da economia ganha cada vez mais força, e é neste contexto que surge a visão estratégica de projectar Inhambane como a Capital do Turismo de Moçambique. Não se trata apenas de um slogan político ou promocional: é um plano que pode redefinir a dinâmica da província e do país, tornando-a um verdadeiro pólo económico de referência regional e continental.

Inhambane reúne condições únicas que a diferenciam no mapa turístico africano. Ao longo do seu litoral, os Big Five Marinhos — tubarão-baleia, dugongo, raia manta, tartaruga e golfinho — atraem mergulhadores, cientistas e curiosos de todo o mundo, colocando a província entre os destinos mais procurados para o turismo subaquático. Já no interior, os Big Five Terrestres — leão, elefante, rinoceronte, leopardo e búfalo — oferecem experiências de safári autênticas, transformando Inhambane num dos raros locais onde natureza marinha e terrestre se cruzam de forma tão completa e espectacular.

Porém, Inhambane não é apenas biodiversidade. O seu património cultural é igualmente deslumbrante. A timbila, classificada pela UNESCO como Património Oral e Imaterial da Humanidade, ecoa em cerimónias e celebrações locais, acompanhando danças como o Zore e o Dzumba. Os sítios arqueológicos de Manyikeni e Chibuene testemunham uma história milenar de contactos e comércio, enquanto a arquitetura colonial da cidade confere-lhe um charme particular, resultado da fusão entre culturas e tempos. Quem visita Inhambane não encontra apenas paisagens idílicas, encontra também autenticidade cultural, hospitalidade ímpar e uma identidade que permanece viva.

Contudo, a estratégia de afirmação de Inhambane não pode restringir-se ao turismo internacional de luxo. É imperativo construir também um turismo de massa, acessível aos próprios moçambicanos, garantindo que cidadãos de diferentes rendimentos possam visitar e usufruir da província ao longo de todo o ano. Para isso, deve ser incentivado o investimento de nacionais em estâncias turísticas adaptadas às classes média e de menor rendimento, de modo a ampliar a circulação de rendimentos internos e consolidar um mercado interno dinâmico, base sólida para o crescimento sustentável do sector.

O turismo, porém, não pode ser visto isoladamente. Como motor da economia, deve impulsionar outras áreas estratégicas. A industrialização, associada ao processamento de produtos locais, é prioridade para acrescentar valor à produção agrícola e às matérias-primas da região. A agricultura deve ser estimulada para abastecer o sector turístico, garantindo cadeias curtas e sustentáveis de fornecimento. O mercado de seguros precisa de crescer, oferecendo garantias modernas para investidores, empresários e turistas. As clínicas e serviços de saúde devem ser fortalecidos para responder tanto às populações locais como à procura internacional. A modernização dos aeroportos, a revisão do modelo de concessão de vistos e a eficiência do sector dos transportes são condições indispensáveis para atrair fluxos turísticos consistentes.

Ao mesmo tempo, é necessário inovar na forma de envolver as comunidades. Uma ideia estratégica é associar estâncias turísticas a famílias locais, construindo programas bem definidos que ofereçam aos visitantes experiências únicas de interação cultural, social e gastronómica. Para isso, é essencial capacitar as famílias, criar sistemas de acompanhamento e certificação e garantir que estas vivências sejam organizadas e sustentáveis. Assim, o turista não encontra apenas um destino bonito, mas mergulha num universo humano e autêntico que só Inhambane pode oferecer.

A consolidação desta visão exige, porém, uma transformação profunda das infra-estruturas. Não há turismo competitivo sem estradas de qualidade, linhas férreas que liguem os distritos, energia estável, telecomunicações modernas e saneamento básico. Estas são condições estruturantes que determinam a hospitalidade e, sobretudo, a confiança de investidores que não podem arriscar em ambientes de fragilidade logística. Inhambane precisa de pensar em grande, construir com futuro e integrar o turismo numa lógica de desenvolvimento global.

O lançamento da Conferência Internacional de Turismo — Global Sustainable Tourism Summit — representa uma viragem estratégica. Prevista para se realizar de dois em dois anos, alternando entre Inhambane e Vilankulo, a conferência será mais do que uma vitrine: será uma plataforma de projecção internacional, de atracção de capital e de promoção de parcerias globais. Ao reunir decisores, investidores, empresários e comunidades, este encontro discutirá inovação digital, economia azul, turismo comunitário e conservação ambiental, projetando Inhambane como um destino que alia potencial económico à sustentabilidade.

Entretanto, o sucesso desta transformação depende de um factor decisivo: a confiança. Sem uma regulação fundiária clara e sem a eliminação da especulação de terra, nenhum grande investidor se fixará em Inhambane. É essencial que o Governo assuma uma postura firme, definindo áreas específicas para construção de hotéis e restaurantes, em especial junto ao mar, e garantindo que a concessão de licenças seja rápida, transparente e previsível — idealmente num único dia. O tempo da burocracia paralisante tem de dar lugar a um ambiente competitivo, capaz de atrair investimentos estruturantes e visionários.

Inhambane precisa de pensamento disruptivo. Precisa de autorizações especiais que acelerem a criação de resorts, hotéis e infra-estruturas turísticas modernas. Precisa de uma articulação inteligente entre Governo Provincial, Autoridade Tributária, APIEX, ANAC, sector bancário e curadores da conferência, para apresentar aos investidores — nacionais e estrangeiros — uma proposta verdadeiramente competitiva. Cada dia perdido em burocracias e indefinições é uma oportunidade desperdiçada de gerar empregos, receitas fiscais e divisas.

Se os projectos forem implementados com responsabilidade, transparência e envolvimento das comunidades locais, Inhambane deixará de ser apenas conhecida como “Terra da Boa Gente” para se afirmar como capital do turismo nacional e motor económico de Moçambique. A província tem todas as condições para ser, não apenas um destino turístico de referência em África, mas também um exemplo de como o turismo pode transformar sociedades, gerar riqueza, criar identidade e afirmar um país no mapa mundial.

Com mar, safáris, cultura vibrante, hospitalidade autêntica e investimentos à vista, Inhambane está perante uma oportunidade histórica. Transformar-se-á ou não numa capital do turismo? A resposta depende da capacidade de Moçambique acreditar no seu próprio potencial, romper com as barreiras do passado e construir um futuro em que o turismo seja, não apenas lazer, mas o verdadeiro motor da economia nacional.

Em “Tristânia, o rastilho de esperança”, o realizador Lutegardo Lampião apresenta-nos uma curta-metragem sobre revolução e resistência. A curta-metragem foi galardoada com o prémio de Melhor Realização no Concurso de Curtas-Metragens do CCMA em 2024, o que, para a presente análise, configura um contrassenso. 

Como crítico de cinema, João Lopes considera que a distinção pode ser entendida como um “prémio de compensação”, ou seja, neste caso, concedida por uma motivação externa à qualidade da curta em análise. 

Apesar do tema relevante, a produção não corresponde às expectativas, falhando em transmitir a força do movimento revolucionário, o que se torna evidente em vários aspectos.

Em termos de construção da narrativa e dos personagens, existem pontos bastante fracos. A construção do antagonista, Lorde Mafuta, é superficial, uma vez que o personagem, que deveria ser o segundo mais importante da trama, tem pouco enfoque ao longo dos cinco minutos da curta. 

Com apenas uma fala de 36 segundos, com pausas e sem profundidade, o antagonista contribui para um enredo superficial e vago, sem apresentar motivos suficientes para querer dominar a vila de Tristânia.

A narrativa é apressada e pouco clara, e a falta de desenvolvimento da personagem principal, Nhembete, que luta contra um tirano, mas age de forma tirana, é igualmente decepcionante.

A produção técnica também falha em cumprir a sua proposta, dando a impressão de que o projecto foi feito com pouco orçamento. 

A trilha sonora é também apressada e não se alinha com a proposta do filme, além de não haver um fade out e a música terminar de forma abrupta (o que demonstra pouco profissionalismo). 

A fotografia e a actuação também são fracas.

Adicionalmente, as cenas de combate são tão pouco convincentes que chegam a ser constrangedoras e a falta de participação activa de quatro personagens, que se limitam a ser meros figurantes numa das cenas, desaproveita o potencial do elenco.

Em suma, embora “Tristânia, o rastilho de esperança” aborde um tema de grande relevância social (revolução e resistência), o resultado final é comprometido pela má execução.

 

Caras confreiras e caros confrades

Queridas e queridos convidados

Jubiloso, ocorre-me um poema do nosso amigo Eduardo white, inserido no livro Homoíne, que tem um verso que diz qualquer coisa como, “Os nossos mortos são muitos. São muitos os nossos mortos.” 

À luz deste poema, no lugar de pedir um minuto de silêncio, peço um frémito pelos nossos mortos. 

É longa a lista dos nossos mortos. Queremos, contudo, evocá-los e convocá-los para que continuem a inspirar-nos no seu melhor. 

(Passo a ler a lista)

Agradecemos a confiança que depositaram em nós para juntos levarmos avante o que temos vindo a construir em comum, a nossa AEMO. Estamos cientes das mazelas que descaracterizaram a nossa agremiação, mas também sabemos que “não há mal que perdure”. Quer dizer que estamos cientes dos enormes desafios, ainda que tenhamos a certeza da nobreza da nossa missão: trazer de volta a aura da AEMO. Isso significa que temos que fazer jus ao ethos, ao espírito e à letra que nos caracterizam como grupo.

Foi por isso que aceitamos o convite formulado por membros representativos da AEMO, dos mais jovens aos fundadores, para juntos mudarmos o status quo na nossa agremiação. 

Anuímos ao desafio e desde logo elegemos 4 objectivos estratégicos a perseguir, mormente:

  • Coesão de grupo; 
  • Sustentabilidade inter-geracional; 
  • Sustentabilidade económico-financeira.

(Estes são factores extra literários)

  1. O fenómeno literário ele próprio (o escritor, o livro e os vários públicos fruidores).
  • Coesão de grupo

Vale lembrar as conversas tidas com o nosso Primeiro SG, Rui Nogar, que insistia: 

“Sejam o que quiserem ser, mas respeitem as idiossincrasias uns dos outros.” 

Nada mais certo, grande Rui, assertivo como nunca!

Sim, é esse o ADN que deve caracterizar a AEMO, esta instituição de pensamento, de debate, de artes e cultura.

Esta é uma instituição que sempre se assumiu activa no exercício da cidadania, no sentido de pensar e agir juntos, e individualmente, para o bem da confraria, contribuindo assim, modestamente, para que Moçambique mantenha vivo o sonho, a esperança, a utopia, a poeisis, o mirandum, o onírico das nossas gentes e da nossa terra. Assim revisitamos e reconfiguramos a nossa memória colectiva descrita no labor da escrita e da leitura. É isso que é esperado de nós. É esse o desafio, o empreendimento com que todos juntos estamos confrontados.

No decorrer da nossa campanha dissemos que queremos devolver a aura à AEMO. Portanto, reconhecemos que estamos perante uma aporia, uma realidade disfuncional. Por um lado, sabemos que algo vai mal na nossa Instituição literária, o que põe em causa a nossa identidade de grupo e o fenómeno literário em si. Portanto, a imagem da AEMO foi chamuscada.

Por outro lado, aceitamos o desafio de refundar a AEMO, revisitando os seus alicerces, seus objectivos e seus valores. Esta é a tarefa que temos em mãos. Todos nós. Repito, todos nós, juntos!

Reafirmamos que assumimos o compromisso de que a AEMO deve resgatar o prestígio que a define como uma agremiação, não unanimista, mas, sobretudo, de fraternidade. De civilidade. De interpelação. De valores nobres, tais sejam, a convivência sã, o respeito mútuo e o espírito gregário que nos caracteriza. 

Definimo-nos como confraria. A confraria implica comunhão de valores, partilha de significados, que ocorrem num campo comum de fraternidade e de reconhecimento mútuo.

A nossa associação é uma família de escritores, e como tal, devemos trabalhar juntos para fortalecer nossos laços e promover a literatura moçambicana. Resulta que a coesão de grupo é fundamental para o sucesso da nossa associação. Vamos trabalhar juntos para superar nossos desafios e alcançar os nossos objectivos.

É hora de reunir os nossos membros e fortalecer a nossa comunidade literária.

Vamos pugnar por trazer de volta aqueles, que por um motivo ou outro se afastaram da AEMO. 

Vamos promover um ambiente acolhedor para todos.

Acreditamos que a diversidade de vozes e perspectivas é fundamental para o enriquecimento da nossa literatura. 

Vamos trabalhar para incluir todos os membros e promover a colaboração.

Actualmente somos apenas 187 membros efectivos. Quantos mais formos, mais estaremos em condições de alargar o debate, melhorar os termos e a qualidade desse mesmo debate.

 Por isso vamos encorajar a admissão de novos membros de reconhecido mérito oriundos dos diferentes campos das artes, da cultura e da academia, sempre tendo em conta os referenciais do nosso passado, do nosso presente e do nosso devir. Afinal, existimos desde 1982. 

Dito de outro modo, temos um passado de glória atribulada, e reconhecemos este atribulado presente que vivenciamos. Contudo, Acalenta-nos a ideia desse futuro risonho que os sujeitos poéticos e personagens que povoam os nossos livros nos segredam. Esta é a nossa utopia, ainda que sonâmbula. É por isso que estamos aqui.

Estes são, quanto a nós, desafios extra literários estruturantes para os quais todos juntos somos intimados a dar o nosso contributo já que encimam toda a nossa acção, toda a nossa utopia. Sem coesão não há fruição.

  • Sustentabilidade Inter-geracional

Outra verdade a la palisse: o velho nasce do novo e vice-versa. Claro que sim!

É tendo essa verdade como premissa que vamos encorajar e promover a participação e a iniciativa criadora dos mais novos. 

Vamos, por isso, promover a partilha de experiências entre os mais novos e os mais velhos. 

Vamos propiciar momentos nos quais mais novos e mais velhos troquem experiências, vivências – alargando, assim, o nosso imaginário colectivo.

Vamos retomar a colecção Início, especificamente para os jovens.

Vamos retomar o nosso órgão oficial, Quenguelequezé, onde os jovens participarão numa rubrica criada para o efeito. 

Vamos criar uma comissão de leitura formada por individualidades de mérito e credenciais para aferir da literariedade dos textos; (regulação estética, cânone, entre outros elementos que apimentam a nossa criação).

Vamos retomar o Gabinete técnico (sugestões gráficas).

Vamos promover oficinas de escrita criativa. 

  • Sustentabilidade económico-financeira

Temos que ter Parceiros de diversa índole. Nacionais e internacionais. 

Temos que tirar mais proveito da lei do mecenato. 

É imprescindível a Parceria com o Ministério da Educação e Cultura.

É obrigatória a Parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação. Que o Ministério dos Negócios Estrangeiros nos facilite contactos com as Embaixadas acreditadas pelo mundo. 

Parceria com a LAM. O nosso livro deve saber viajar com os pés da nossa moçambicanidade. 

Parceria com Ministérios e outras instituições. Podemos levar o poema para os Ministérios. Podemos levar o teatro para a Assembleia. Podemos levar o texto literário para os banquetes da Presidência. 

Parceria com as escolas, Universidades…

Parceria com agentes económicos e outras instituições.

Parcerias com Editoras.

Parceria com Fundo Bibliográfico.

Outras parcerias que ao longo do nosso mandato tornar-se-ão possíveis e possíveis.   

  • Fenómeno literário

Quanto ao fenómeno literário em si, vamos ter que prestar mais atenção a tríade escritor, livro e leitor. Para nós isso significa: 

– Promover a publicação e a distribuição dos livros moçambicanos, tanto dentro quanto fora do país;

– Prestar mais atenção ao livro escrito nas línguas locais;

– Incentivar traduções nas diferentes línguas;

– Trabalhar na criação e educação de públicos.

Teremos que promover contactos com escolas primárias, secundárias, Universidades. 

Há que valorizarmos a Biblioteca da AEMO, e desde já aceitamos a doação de livros de quem tem mais em sua casa. Há que reconstituir esse espaço que já foi muito importante para todos nós, incluindo leitores de fora. 

Fundo Bibliográfico (parceria)

Temos em manga propostas de criação de programas de literatura junto as TVs, e já temos experiências dos programas que já foram concebidos pelos escritores Sara Jona e Jorge Oliveira. 

Em jeito de fecho

Vamos operacionalizar o nosso manifesto, traçando indicadores, dimensões e acções concretas.

Vamos continuar a ser o xiphefo, a charrua, a ECO, o oásis do nosso sonho, num processo dialógico.

Acabou a campanha, houve Assembleia Geral e com ela acabaram as listas A, B e C. A única lista agora é a dos nossos mortos, dos nossos membros efectivos, membros de honra e membros beneméritos. É essa a coligação que fará da AEMO uma instituição prestigiada, pertinente, que contribua, modestamente, para o crescimento de Moçambique, na senda do que nos diz o nosso hino: pedra a pedra construindo novo dia!

Pela confiança e carinho, muito obrigado a todos!

Vou chamar um a um os membros do secretariado que se apresentem e digam um parágrafo sobre o seu pelouro. 

Obrigado! Obrigado mesmo caros confrades pelos sonhos que semeiam em mim. 

Maputo, aos 28 de Agosto de 2025

Porque este debate importa: a controvérsia à volta do fornecimento de electricidade à Mozal deixou de ser uma negociação entre empresas para se tornar um teste de maturidade do Estado. O que está em causa não é apenas uma tarifa, é a forma como Moçambique decide usar um activo raro (energia limpa) para gerar valor público, emprego qualificado, divisas e capacidade industrial. 

Com base nos dados desagregados do Wood Mackenzie Smelter Report, com inflação ajustado e o custo de energia, a análise centra-se em dois cenários principais de preço da energia: USD 50/MWh, defendido pela Mozal, e USD 60/MWh, próximo à contraproposta apresentada pela HCB. Estes cenários são avaliados em função da curva global de custos de produção de alumínio, num universo que abrange cerca de 153 fundições mundiais, e considerando ainda a introdução obrigatória do Mecanismo Europeu de Ajustamento de Carbono na Fronteira (CBAM), principal destino das exportações da Mozal.

Os resultados mostram que, mesmo no cenário de USD 60/MWh, quando associado ao CBAM, a Mozal mantém-se entre os produtores mais competitivos a nível internacional, produzindo alumínio mais barato do que aproximadamente 111 empresas em todo o mundo. Esta constatação revela um falso dilema uma que embora o aumento tarifário represente um desafio, a combinação entre energia hídrica e a nova tributação do carbono reforça a posição relativa da empresa e continua a oferecer ao país uma base sólida de competitividade industrial.

 

O que nos trouxe até aqui?

É útil recordar por que razão a MOZAL se instalou em Moçambique a partir do ano 2000 e por que razão a energia está no centro da equação. A decisão de investimento da viragem do milénio combinou três elementos: 

  1. Energia abundante e barata: no início da década de 1990, a capacidade de geração da Eskom excedia a procura máxima da África do Sul (SA) em cerca de 30-40%, criando um grande excedente. Esse excedente resultou do forte investimento da empresa, nas décadas de 1970-80, em centrais a carvão, que antecipava um rápido crescimento da procura nas próximas décadas. Contudo, com o boicote internacional do regime racista sul-africano – pelas UN, Commonwealth, EUA, entre outros – a economia arrefeceu e consequentemente a procura real pela energia, contrariando projecções anteriores de crescimento. Esta situação gerou excedente energético.

 

Com o fim do Apartheid (na primeira metade dos anos 90), como forma de reaquecer a sua economia e “despachar” o excedente energético da ESKOM, a África do Sul apoiou investimentos intensivos em energia na região, e a Mozal, em Moçambique, foi o exemplo emblemático; e a energia foi negociada a tarifas especialmente descontadas para atrair o consumidor. Em 2013, a Mozal pagava cerca de 36 cêntimos por kWh ao abrigo de contratos especiais. Dados de 2012/13 mostram um custo operacional da ESKOM que era de aproximadamente R 54,2 cêntimos por kWh, o que significa que a tarifa aplicada à Mozal não cobria o custo.

 

Portanto, pode afirmar-se, com elevado grau de confiança e com base nos dados acima apresentados, que a instalação da MOZAL em Moçambique respondeu, antes de mais, aos interesses estratégicos da África do Sul e menos aos do próprio país. Em segundo plano, foi a disponibilidade de energia sul-africana, em quantidade e a preços reduzidos, o verdadeiro factor determinante que levou a Mozal a investir primeiramente na África Austral (assumindo a sensibilidade desta indústria ao preço da energia).

 

  1. Localização: presença de um porto dotado das condições adequadas para assegurar o manuseio eficiente de equipamentos, matérias-primas e produtos finais, tanto para importação como para exportação nos mercados internacionais. Com efeito, Beluluane oferece proximidade imediata ao Porto de Maputo e ao Corredor logístico EN4, reduzindo igualmente custos de escoamento de um produto denso em valor e em volume;

 

  1. Enquadramento institucional: compreende o quadro regulatório e os incentivos ao investimento, considerados altamente atractivos, oferecidos pelo então Governo de Moçambique, bem como a engenharia contratual de âmbito regional. Pagaria três a quatro vezes menos de impostos que uma empresa similar pagaria na Noruega.

 

  1. Disponibilidade de infra-estrutura: presença de uma infra-estrutura robusta e de elevada qualidade, capaz de garantir o transporte e o fornecimento da energia eléctrica disponibilizada pela Eskom, através MOTRACO. 

Como foi operacionalizado o potencial existente?

No seguimento dos princípios dos objectivos de integração regional emanados do SADC Treaty datado de Agosto de 1992, foi em Março de 1997 que o Governo de Moçambique e a Alusaf assinaram um Acordo de Princípios para o estabelecimento de uma fundição de alumínio em Moçambique.  Acto continuo, o Decreto n.º 45/97 criou a Zona Franca Industrial MOZAL (ZFIM), com regimes especiais aduaneiro, cambial e laboral que, goste-se ou não, eram comuns em megaprojectos do período. Tal decreto contribui para mitigar incertezas e funcionar como um relevante atrativo para o investimento da Mozal, num contexto em que Moçambique emergia de uma das mais devastadoras guerras civis do mundo e em que a confiança na segurança nacional permanecia fragilizada. Assim, a Mozal passaria a ser pioneiro e chamariz da industrialização no período pós-colonial. Seguiu-se a implantação da MOTRACO, joint venture em partes iguais (33,33% cada) das utilities EDM, ESKOM e Eswatini Electricity Company, a qual construiu e opera “auto-estrada” eléctrica de 400 kV que liga, com redundância técnica, o sistema sul-africano/ESKOM à carga electro-intensiva da fundição, bem como a restante carga elétrica da EDM no sul de Moçambique e da EEC em Eswatini, conferindo garantias de qualidade requeridas pela aluminaria ao mesmo. 

Na fundição moderna, a electricidade e a alumina respondem, cada uma, por cerca de 30% do custo “cash” total de fornecimento, totalizando assim cerca de 60% do custo; a logística e mão-de-obra têm, em regra, peso inferior (em média 10% cada). Em carga plena, a demanda elétrica da MOZAL é de 950 MW firmes – uma grandeza praticamente igual ao actual consumo total de energia de Moçambique, e cerca de 50% da capacidade total instalada na HCB.

Do lado societário, convém exatidão: actualmente, a operadora e accionista de referência é a australiana South32 (subsidiaria da multinacional BHP Billiton) com participação maioritária (cerca de 64%); o Industrial Development Corporation da África do Sul (cerca de 32%) mantém uma quota relevante; e o Estado moçambicano detém cerca de 3,9%. A cronologia também merece precisão: a construção arrancou no fim dos anos 1990, a produção iniciou-se em 2000 e a expansão foi concluída em 2003. Esta memória factual não é detalhe: é a base para aferir compromissos, avaliar benefícios e, sobretudo, renegociar com lucidez.

O problema de hoje: preço e quantidade 

O nó górdio, hoje, resulta da combinação de quatro vectores. A saber:

  • Load shedding: a África do Sul vive, desde 2007, ciclos de racionamento eléctrico (“load shedding”) que atingiram o seu pior registo em 2023, fruto da dependência do carvão, do envelhecimento das usinas de carvão responsáveis por aproximadamente 90% da energia no pais, de atrasos de manutenção e de problemas de gestão na ESKOM. O cenário anterior caracterizado por excesso de energia barata passa a dar lugar a profundas dificuldades de abastecimento de energia tanto a nível interno da Africa do Sul como a nível da capacidade de a Eskom continuar a servir e cumprir os níveis da SAPP, precipitando a recomposição tarifária que se seguiu e associada à necessidade da revisão de contratos, incluindo o fornecimento firme para grandes clientes. 

 

A este tsunami energético, apenas os termos e condições aplicáveis ao fornecimento à Mozal terão ficado blindados e quase intactos. Para justificar perante a opinião pública sul-africana a manutenção do fornecimento contínuo à Mozal, sem interrupções e alterações tarifárias a todos os outros aplicáveis, pesou o facto de a ESKOM ter acedido a incluir uma cláusula indicando que a energia a ser entregue à Mozal seria a mesma proveniente de Moçambique – a partir da HCB – recanalizada a Moçambique. Concomitantemente, ainda que sem vinculação contratual formal e direta da HCB, e para cumprir com os requisitos de entrega de um produto/alumínio verde aos mercados internacionais, terá sido estratégico emendar os termos contratuais no sentido de referir que a energia fornecida à Mozal a partir da África do Sul/ESKOM era de origem hídrica/limpa. De sublinhas que não há garantias de que tal energia consumida pela Mozal seja realmente limpa visto que o seu fornecedor recebe directamente da Eskom e não da HCB. 

 

  • Regime contratual e técnico: a arquitectura que alimenta a MOZAL separa, por desenho e configura duas relações jurídicas independentes no âmbito legal mas interdependentes no âmbito técnico e da cadeia de fornecimento, nomeadamente: (i) o PPA entre a HCB vs ESKOM, por um lado, e (ii) o PPA entre ESKOM – MOTRACO MOZAL, por outro lado, relações que relações exclusivas, ou seja, o que contracto entre A e B não influencia o contrato o contrato entre o B e o C, e assim sucessivamente. De referir que apesar da independência entre si, eles são economicamente interdependentes e politicamente sensíveis.

 

  • Sazonalidade e estratégia (económico/comercial): o principal contrato de exportação da HCB-ESKOM tem horizonte de 2030 e assenta em premissas tarifárias associadas ao comprador ESKOM, sendo que o contrato de fornecimento a ESKOM-MOZAL tem um horizonte de 2026 e assenta em premissas tarifarias associadas ao consumidor Mozal. Em algum momento observa-se um desalinhamento entre as duas relações jurídicas tanto do ponto de vista temporal como do ponto de vista económico, só resolvível mediante o recalibramento temporal e tarifário.    

 

  • O quatro tem a ver com o volume de energia requerido na capacidade de fornecimento dos 950 MW requeridos: tão ou mais do que o preço médio por megawatt-hora, o que define a viabilidade técnica e económica da fundição é a disponibilidade de potência firme e contínua. Decorrente da situação de seca no Zambzeze foram aventadas, no debate nacional, ofertas de volume na ordem de 350 MW a partir de 2026; com tal potência, a operação, tal como configurada, torna-se inviável, independentemente do preço. Discutir apenas tarifas, descurando o vector “quantidade”, é um falso conforto.

É neste quadro que se discutem valores e volumes. Notícia que circula na média indica que a Eskom terá informado ao seu cliente Motraco-Mozal, que a partir de Abril de 2026 a tarifa será revista em alta e poderá estar no tecto de cerca de USD 90 por MW. Uma subida exponencial, e que corresponde quase o dobro da tarifa anterior. A aluminaria admitiu uma subida até ao limite máximo de 50 dólares por MW – relevante face aos patamares anteriores – a qual a ESKOM ainda não aceitou. A mesma proposta da Mozal foi à Moçambique, mas a HCB objecta por considera-la abaixo do custo de fornecimento e que significaria passar a subsidiar uma multinacional com recurso a um activo público. Para esta uma tarifa de USD 64 por MW seria uma contraproposta a considerar. 

Entre esse vai e vem, o Estado fez bem em clarificar que não colocará a HCB a vender abaixo de um patamar que comprometa a sua solvência e a sua missão. A prudência financeira é, aqui, sinónimo de responsabilidade intergeracional: uma HCB fragilizada significaria menos capacidade de manutenção do activo, menor previsibilidade para a electrificação doméstica e menor margem de manobra para assegurar o reforço do seu balanço para catapultar e financiar investimentos de reabilitação e expansão. Também é sensato exigir que qualquer concessão de preço, se alguma vez ocorrer, não se traduza num subsídio a fundo perdido. Mas é igualmente verdadeiro que uma paragem abrupta da MOZAL teria custos macroeconómicos (e sociais não triviais: impacto na balança de pagamentos e nas entradas líquidas de divisas; desarticulação de um ecossistema de fornecedores, serviços e actividades a jusante). 

O interesse nacional não está nem em demonizar uma empresa que opera sob regras vigentes, nem em hipotecar um activo público que é, em linguagem simples, a nossa “galinha dos ovos de ouro” energética. O interesse nacional está em maximizar o valor social do nosso recurso escasso – energia limpa – num horizonte de longo prazo. Para o efeito, sem o prejuízo desta última, o governo deve tomar liderança e encontrar uma solução realmente interessa o país, que inclui a possibilidade de continuidade da Mozal.

Competitividade: o que dizem os números 

A controvérsia em torno da revisão da tarifa da eletricidade fornecida pela Hidroelétrica de Cahora Bassa (HCB) à Mozal pode ser analisada a partir de dois cenários alternativos de tarifa unitária: 50 USD MWh e 60 USD MWh. Em ambos os casos, importa compreender como a posição relativa de custos da Mozal muda na curva global de custos de produção de alumínio, em contextos “sem CBAM” e “com CBAM”. (Para mais detalhes sobre o CBAM veja: https://opais.co.mz/ou-tributamos-nos-ou-tributam-eles-como-mocambique-pode-sair-da-crise-fiscal-com-o-cbam-ue/).

Para a presente análise, recorremos à proposta e análise de Wolfram & Pereboom, investigadoras do MIT-EUA, desenvolvida no âmbito do seu trabalho com o International Growth Centre em Moçambique. O recurso a dados provenientes de terceiros confere à nossa abordagem maior solidez e credibilidade, permitindo-nos analisar a matéria com distanciamento crítico, livres de paixões e favoritismos, e reforçando de forma significativa a imparcialidade e a objetividade da interpretação apresentada.

Adicionalmente, antes de detalhar os cenários, convém esclarecer o conceito de percentil de forma prática. Quando se ordenam fundições de alumínio do custo mais baixo para o mais alto, a posição de uma empresa pode ser expressa pelo percentil. Dizer que uma fundição está no 15.º percentil significa que 15% dos concorrentes têm custos iguais ou inferiores e 85% têm custos superiores; estar no 39.º percentil significa que 39% são mais baratos e 61% mais caros (100%-39 = 61); no 69.º percentil, 69% são mais baratos e 31% mais caros. Percentis mais baixos traduzem vantagem relativa de custo; percentis mais altos refletem desvantagem. É um indicador de posição na fila de custos, não uma medida direta de lucro ou prejuízo. A leitura correta, portanto, é probabilística: quanto mais à esquerda na curva (percentil baixo), maior a folga potencial para competir em preços num mercado internacional.

Como estamos hoje?

Com base nos dados do Wood Mackenzie Smelter Report, que abrange aproximadamente 153 fundições de alumínio em 2023, a Mozal encontra-se posicionada no 18.º percentil. Em outras palavras, o seu custo de produção é inferior ao de aproximadamente 82% das empresas do setor (cerca de 125 empresas de fundições). Assim, a Mozal ocupa hoje o 28.º lugar, num universo de 153 empresas, como uma das unidades com menores custos de produção a nível mundial.

Fonte: MIT (Wolfram & Pereboom)

Como estaremos no futuro?

  • Primeiro Cenário USD 50 MWh

No cenário de USD 50 MWh, proposta feita pela Mozal, ela enfrentaria um custo unitário de energia superior ao observado em 2023 (32% mais cara). Quando se compara a sua posição relativa, sem considerar custos advindos do imposto de carbono nos concorrentes a ser introduzido a partir do próximo no da UE (isto é, assumindo apenas a atualização de eletricidade por inflação nos pares), a Mozal desloca-se para da posição 18. º para 39.º percentil com esta nova tarifa. Contudo, ficaria mais barato apenas do que 61% (cerca de 93 empresas) do mercado, passando a ocupar a 60 º posição. Em termos práticos, quase quatro em cada dez fundições ficariam com custos iguais ou inferiores, e seis em cada dez com custos superiores. 

A introdução do mecanismo europeu de tributação do carbono na fronteira (CBAM) altera substancialmente o cenário acima descrito. Com a aplicação deste instrumento, que obriga os concorrentes a suportar o imposto associado às suas emissões de carbono, a posição competitiva da empresa melhora para cerca do 15.º percentil. Esta evolução decorre do facto de a maioria das fundições recorrer a energia proveniente do carvão, sujeitando-se, portanto, a encargos fiscais elevados. Em contrapartida, a Mozal, cuja produção assenta maioritariamente em energia hídrica, enfrenta uma carga tributária bastante inferior, o que lhe permite reposicionar-se entre os produtores de alumínio com custos mais reduzidos a nível global. 

Fonte: MIT (Wolfram & Pereboom)

  • Segundo Cenário USD 60 MWh

No cenário de 60 USD/MWh (58% mais cara que 2023), a Mozal enfrenta um custo unitário de energia mais elevado. Sem CBAM, a sua posição relativa recua para a zona do 69.º percentil, ou seja, passa a estar entre o terço mais caro da distribuição, o que, num mercado internacional pressionado por preços de referência, pode exigir maior disciplina sobre eficiência operacional e contratos de fornecimento de matéria-prima. Mais continua mais eficiente que 31% (cerca de 47 empresas no mercado mundial).

Assim como no primeiro cenário, com CBAM, porém, observa-se recuperação exponencial para cerca de 26.º percentil (o custo passa a ser inferior a 74% de todas as empresas do sector): e a Mozal volta a situar-se no primeiro quartil de competitividade, ou seja, na elite das empresas de com custos mais baixo da industria. 

Fonte: MIT (Wolfram & Pereboom)

Em síntese, a indústria do alumínio revela-se extremamente sensível a variações no preço da energia, dada a sua relevância na estrutura de custos. A proposta da HCB implicaria um aumento de cerca de 58% no custo da eletricidade face a 2023, pressionando a competitividade da Mozal, ainda que com o mesmo ela possa permanecer dentro das fronteiras dos custos, tomando em consideração a dinâmica deste mercado. O aspeto mais relevante deste artigo, contudo, reside no facto de a Mozal beneficiar do uso de energia de origem hídrica (limpa), o que lhe confere uma vantagem comparativa em relação à maioria das fundições que recorrem a fontes não limpas que terão que pagar impostos mais altos sobre as emissões a partir de Janeiro de 2026. Assim, com implementação obrigatória e definitiva do CBAM, no mercado europeu, no próximo ano – principal destino de cerca de 90% da produção da Mozal- a Mozal continuar a ser uma das empresas com custos mais baixos do que 111 empresas, num total de 153 o nível mundial. Ou seja, considerando os cenários acima, a proposta da HCB não se revelou ainda um elemento critico per si que justifique a saída Mozal em Moçambique.  

Como decidir, então? 

No fim do dia, a pergunta certa não é “HCB ou Mozal?”. É: como transformamos a nossa energia limpa num pacto produtivo, justo e duradouro  que pague salários, forme jovens, fortaleça o Estado e dê ao país uma indústria que faça sentido num mundo que muda depressa? Longe de oferecer soluções acabadas, este artigo insta ao aprofundamento do debate, e uma análise mais ampla da situação com base em evidencias: Abaixo algumas sugestões se soluções:

  • Transparência entre as partes: tanto a Mozal como a HCB devem partilhar, de forma clara e aberta, os números e os desafios que atualmente enfrentam, sem isso não possível chegar-se a uma solução justas para as partes;
  • Arranque do mercado de carbono em Moçambique: com a implementação do CBAM europeu, uma parte do valor criado pela energia limpa pode “fugir” para fora se o país não tiver enquadramento legal e institucional que capture internamente a tributação de carbono. Em bom rigor: ou tributamos nós, ou tributam eles. A urgência está em criar as regras, a autoridade competente, o registro e os mecanismos de MRV (monitorização, reporte e verificação) que deem integridade ambiental e credibilidade comercial a esse mercado;
  • Fórum técnico-político sob liderança da Presidência: juntar os seguintes sec
  • 3T2 Ntores: Energia, Economia e Finanças, Indústria e Comércio, Trabalho, Ambiente, Banco de Moçambique, reguladores, universidades e centros de pesquisa. Um task force com prazo certo para produzir um parecer público: premissas auditáveis (trajetória de preços regionais e câmbio), OPEX/CAPEX da HCB (manutenção e amortização da reversão), compromissos Mozal (emprego, compras locais, formação), impacto fiscal em cada cenário, sensibilidade à cotação do alumínio e riscos de interrupção. A transparência técnica dá legitimidade política e estabiliza expectativas. Sem esta base comum, o país fica prisioneiro de narrativas interessadas, por vezes tecnicamente frágeis;
  • Preço (com partilha de risco): faz sentido procurar um valor médio que proteja a HCB e seja suportável para a Mozal, mas amarrado a uma indexação dupla: por um lado, ao custo de oportunidade da energia hidroelétrica exportável; por outro, a um índice internacional do alumínio (como as referências da LME). Assim, quando o alumínio cai e esmaga margens industriais, a tarifa ajusta-se em baixa dentro de uma banda; quando o alumínio sobe e gera rendas extraordinárias, a HCB captura parte desse ganho. Para o Estado, isto converte volatilidade em previsibilidade fiscal e financeira – e dá racionalidade ao debate público, hoje dominado por números soltos e pressões contrapostas.
  • Quantidade (com segurança de abastecimento): o acordo tem de assegurar potência firme suficiente (950 MW) combinando blocos da HCB com blocos regionais (ESKOM)por forma a perfazer o quantum requerido pela aluminaria, mas com regras claras de alocação de risco de interrupções e mecanismos automáticos de compensação. 

Contrapartidas do Estado: qualquer “desconto” relativo face ao preço ideal da HCB deve transformar-se em activo público verificável: por exemplo (i) articipação adicional do Estado (ou da HCB) no capital da Mozal: proporcional ao valor presente do benefício concedido-alinhando incentivos e criando upside para o país em ciclos de preços favoráveis; (ii) Compromissos vinculativos de investimento a jusante (indústria transformadora como laminação, janelas e portas de alumínio, entre outros) e conteúdo local (fornecedores, formação técnica, estágios), com metas e mecanismos de avaliação pública anual; (iii) Revisão do pacote fiscal: menos isenções horizontais e mais instrumentos calibrados a desempenho; (iv) Canalização de parte das receitas em divisas através do sistema financeiro nacional, reforçando reservas e profundidade do mercado cambial. e um calendário público de avaliação anual, com gatilhos de revisão automática se metas não forem cumpridas.

A contar para a sua 29ª. edição, o M’Saho – Festival da Timbila regressou às terras de Zavala, em Quissico, no dia 23 último, para mais uma celebração da cultura tradicional moçambicana e, sobretudo, de um dos patrimónios culturais imateriais da humanidade, a timbila.

Tal como nos anos anteriores, Quissico – a vila que acolhe o evento – vibrou com a presença de milhares de pessoas que, para além de acompanhar os diversos grupos e animação de mais uma edição do Festival da Timbila, experimentou as delícias gastronómicas locais e deslumbrou-se com os cenários paisagísticos que a vila apresenta, marcado por lagoa e árvores de coqueiros.

No palco, como de costume, os instrumentistas da timbila (e de outros instrumentos) juntaram-se aos bailarinos de todas as idades para uma simbiose performática de tirar o fôlego. Cada actuação era digna de aplausos e assobios ao estilo característico de quem se encanta com a vibração que combina, e muito bem, a música e a dança.

Quem esteve em Zavala de certeza o desejo é de regressar próximo ano, pois a experiência que se viveu em um dia cheio de música é convidativa. Aliás, é por isso que o Festival da Timbila é agenda obrigatória para muitos turistas, académicos, estudantes, artistas e diversos públicos apreciadores da música tradicional.

E os residentes de Zavala, todos os anos, esmeram-se para encantar os visitantes com o melhor que a vila tem para oferecer, desde comida típica, bebidas tradicionais, propostas de passeios em trilha ou de barco na lagoa e acomodação confortante e rústica em casas ou em tendas, bem como produtos e serviços diversos.

A economia de Zavala, e porque não de Inhambane, agradece quando chega a hora do festival, pois homens e mulheres conseguem fortalecer os seus diversos negócios – sobretudo materiais artesanais – para novos públicos, que não dispensam uma recordação local, levando para casa a herança do povo chope.

A edição deste ano, com a particularidade de juntar apenas artistas locais, contou com a participação de 17 grupos de timbila provenientes dos distritos de Quissico e de outros pontos de Inhambane, entre os quais Mkwaio, Timbila de Guilundo – Venâncio, Timbila de Muane, Timbila Mazivela, Timbila Banguza, Timbila Nhagutou, Timbila Mauaie, Ngalanga Chitondo, Ngalanga Ngomene, Ngalanga Vugane, Fusão Timbila Quissico, Grupo da Escola Graça Machel de Quissico, Timbila Chidzoho, Timbila Groove, Xigubo Ubanthu de Inhambane, a Companhia de Dança de Cambine e a Escola de Dança do ISArC.

Zavala foi, mais uma vez, um ponto de encontro para apreciadores da música e da dança moçambicana, oferecendo uma experiência autêntica, repleta de ritmos vibrantes, trajes tradicionais e expressões únicas. Até porque a timbila, neste contexto, deixou de ser apenas um símbolo identitário e passou para uma dimensão de atracção turística, inspirando novas visitas e fortalecendo o orgulho nacional.

Reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como Património Cultural Imaterial da Humanidade desde 2005, a timbila é mais do que um instrumento musical, é um legado vivo do povo chope, presente sobretudo na província de Inhambane. 

Trata-se de um conjunto de xilofones artesanais, construídos a partir de madeira local e cabaças ressonadoras, cuja sonoridade única acompanha cantos e danças que narram histórias, transmitem ensinamentos e reforçam laços comunitários.

E foi mesmo isto que se viveu no dia 23 de Agosto último, um pretexto para narrar histórias, transmitir ensinamentos e reforçar laços através do Festival da Timbila.

Festival da Timbila procura local apropriado Segundo Samuel Júnior, director provincial da Cultura e Turismo, para além do aspecto performativo e multidisciplinar, o Festival da Timbila terá outras valências, como exposições, palestras e seminários sobre a timbila e outros tipos de músicas e danças tradicionais.

“Para além da preservação da timbila, é também nosso interesse fazer deste evento uma montra para a exposição desta prática cultural de modo que ela possa permanecer por todo o sempre”, realçou Júnior, acrescentando que este festival é um espaço que serve de encontro para vários povos.

Um dos desafios partilhados por Samuel Júnior durante o seu discurso é encontrar um espaço definitivo para a realização deste evento, que tenha condições adequadas para este tipo de manifestações. 

 

Próxima edição será no dia 29 de Agosto e vai incorporar música ligeira

De acordo com o Governador de Inhambane, o Festival da Timbila é uma manifestação cultural que consagra os mais nobres valores da cultura chope e identidade moçambicana. “O festival M’Saho, que outrora foi símbolo da resistência, hoje é realizado anualmente nesta vila linda e rica de Quissico, como forma de resgatar, celebrar, preservar a timbila proclamada obra-prima do património oral e imaterial da humanidade pela UNESCO”, sublinhou Francisco Pagula.

“Durante a actuação dos grupos, a tradição se renova, num intercâmbio entre gerações interligando o passado e o presente, na construção de um futuro, bem como na reafirmação da timbila no panorama da cultura moçambicana”, por isso, “ao celebrar M’Saho, celebramos a cultura, a harmonia, a fraternidade e a força da nossa identidade como um povo”, disse Pagula durante a sua intervenção.

O Governador de Inhambane declarou ainda que a próxima edição do M’Saho, segundo a vontade do povo de Zavala, está marcada para o dia 29 de Agosto de 2026, justificando o facto de calhar no último fim-de-semana do mês. E a grande novidade partilhada por Pagula é que, a partir da 30ª. edição, o Festival da Timbila vai incorporar na sua programação artistas que apostam na música ligeira moçambicana.

Pagula não saiu do palco antes de dançar e aprender a tocar timbila, aliás, esta aula foi merecida, pois o governador ofereceu timbilas às escolas secundárias de Zavala, nomeadamente, Helene e Graça Machel, para além de kits de ferramentas de fabrico e manutenção deste instrumento a Domingos Venâncio e Luís Semende.

 

Sasol apoia Festival da Timbila pelo quarto ano consecutivo

Para o representante da Sasol, voltar a Quissico é regressar a um lugar onde o som de timbila não é apenas música, é a voz de um povo, é memória, é identidade, é um testemunho vivo da tradição chope. “O Festival de Timbila – M’Saho é uma celebração rara, onde a música e a dança se encontram com a história e a alma de uma comunidade”, destaca.

A Sasol, partilha o seu representante, associa-se ao festival pelo quarto ano consecutivo, pelo facto de ser um património que traduz a valorização da criatividade das comunidades de Inhambane, para além de apoiar as festividades dos distritos de Govuro, Vilânculos e Inhassoro e as diversas iniciativas desportivas que fortalecem laços e inspiram novas gerações. 

 

Parece que é o assunto da família? Quando o Estado trata os seus soldados como sobras de logística, a casa toda treme. Como confiar na porta da frente se quem a guarda reclama de fome? É como se tivéssemos um parente que trabalha noite e dia, protege a casa, mas quando regressa encontra o prato vazio e a porta fechada. A família, que deveria recebê-lo com água fresca, responde com silêncio. Esse parente é o soldado moçambicano, enviado ao norte para combater o terrorismo, e depois devolvido a casa sem soldo, sem assistência, sem dignidade.

O facto que nos convoca. Mais de trezentos militares afirmam que combateram o terrorismo em Cabo Delgado durante um ano inteiro, sem qualquer pagamento, e ao fim foram simplesmente mandados “aguardar em casa”. Não estamos a falar de rumores são denúncias feitas com rosto, voz e sofrimento. Relatam a falta de logística, de apoio, de reconhecimento. Sentem-se abandonados pelo Estado a quem juraram fidelidade. É uma situação amarga: soldados que deveriam representar a força e a segurança nacional transformam-se em pedintes de justiça. Como confiar na porta da frente se os guardiões da casa estão a reclamar de fome?

Do ponto de vista sociológico, isto é mais grave do que um simples atraso salarial. É um sinal de ruptura na confiança social. Se o Estado abandona quem o defende, o que sobra para o cidadão comum? É a pedagogia do cinismo: o povo aprende que promessas oficiais não valem nada, que a lealdade não compensa, que o esforço é descartável. Um Estado que deixa os seus militares “à espera” cria um precedente perigoso: instala-se a ideia de que a vida humana é negociável, e o contrato social é só retórica.

Uma sociedade mede-se também pelo modo como trata quem se sacrifica por ela. Quando o Estado falha em pagar salários ou garantir o mínimo de dignidade aos militares, instala-se uma pedagogia do cinismo. Se aqueles que arriscam a vida no terreno são tratados como descartáveis, porque razão o cidadão comum acreditaria na promessa pública? A confiança social não sobrevive a meses de espera sem pão. É um colapso silencioso, que não explode em manchetes, mas mina dia após dia a relação entre governantes e governados.

A filosofia lembra-nos que o contrato militar não é feito apenas de obediência. É um pacto de reciprocidade: o soldado entrega o corpo, o risco, a juventude; o Estado devolve dignidade, salário, cuidado, memória. Deixar de pagar não é mera falha administrativa, é uma quebra ontológica: é dizer ao soldado “tu não existes”. É reduzi-lo a cão de guarda que, depois do turno, é atirado à própria sorte. E quitar o soldo não é favor, é a forma mínima de dizer “tu existes”. Negar esse retorno é negar a própria ideia de contrato social.

Nas nossas comunidades tradicionais africanas, quem guarda a aldeia merece assento à sombra da árvore, merece água fresca, merece reconhecimento colectivo. Aquele que vigia contra o inimigo não volta para casa como indigente. Negar o básico aos militares é quebrar a ética comunitária do ubuntu: eu sou porque nós cuidamos. Quando a aldeia não cuida dos seus guardiões, quebra-se a reciprocidade cultural mais profunda. A lógica da honra é a lógica da sobrevivência da comunidade. O militar não é máquina de guerra, é filho, é irmão, é vizinho.

A moral africana ensina que a guerra começa na cozinha. Soldado faminto é soldado derrotado antes de disparar o primeiro tiro. Uniforme roto, atraso salarial, silêncio administrativo — tudo isso é violência prévia. A guerra não se trava apenas no campo de batalha, mas também na mesa onde se serve a comida e no hospital que deveria tratar as feridas.

Política sem eufemismos. Aqui a política não pode esconder-se atrás de frases feitas. Governar é priorizar. E quando o governo falha em pagar os seus próprios soldados, falha no mínimo do mínimo. Se o combate em Cabo Delgado ainda persiste, se a população continua a fugir, se aldeias são queimadas, não é possível, não é aceitável que se adicione a este quadro o abandono dos militares. Transparência não derruba governos, a teimosia sim.

Quem trata os seus militares como sobras, acabará por perder também a confiança do povo. E aqui não se trata de partidarismo, mas de sobrevivência nacional: um país que abandona os seus soldados está a abandonar-se a si próprio.

E que se diga com clareza: a via para mudar este estado de coisas deve ser constitucional, cívica e pacífica. Não se pede que a farda derrube governos; pede-se que ela continue a proteger o povo, mas com dignidade, com justiça e com reciprocidade.

Do ponto de vista jurídico, o caso dos militares abandonados tem pelo menos três dimensões: Direito laboral público – remuneração pelo serviço prestado é obrigação inadiável. Atrasar ou negar salários fere a lei e mina a confiança. Direitos humanos – o Estado tem dever de garantir alimentação, assistência médica, descanso e reintegração.Accountability – a Provedoria de Justiça, o Tribunal Administrativo e a Assembleia da República não podem fingir inocência. Precisam auditar, investigar e responsabilizar.

Militar: disciplina e dignidade. Os próprios militares, diante desta humilhação, sabem que não devem agir como massa descontrolada. A disciplina é a sua honra. Mas disciplina não significa silêncio cúmplice. Significa: Registar e reportar com documentos claros o tempo de missão, as ordens recebidas, os nomes dos responsáveis.

Usar os canais formais: Provedoria, comissões parlamentares, tribunais. Rejeitar ordens manifestamente ilegais. Exigir acompanhamento psicológico e reintegração social após missão. Manter a farda como símbolo de defesa do povo, não como instrumento de medo.

O que o Governo deve fazer já? Um Estado sério não espera protestos para agir. O que precisa ser feito é simples e imediato: Pagar o que deve – calendário público de quitação, com prazos claros. Auditar a logística – apurar onde se perdeu comida, fardamento, munições.

Criar um Estatuto do Combatente – seguro de vida, assistência médica, reintegração.

Transparência orçamental – publicar mensalmente a execução financeira do setor de defesa em Cabo Delgado. Ouvir quem esteve no terreno – não apenas generais, mas também praças e sargentos. Proteger denunciantes – garantir que quem fala a verdade não seja punido. Se a pátria é uma casa comum, então primeiro se alimenta quem guardou a porta a noite inteira.

Depois conversa-se. Depois corrige-se. Só assim a aldeia volta a dormir. Só assim Moçambique poderá chamar-se, verdadeiramente, um Estado. Porque, afinal, como confiar num país onde até os soldados reclamam de fome?

 

Eis-me aqui para fazer uma segunda leitura de um livro autêntico. Um segundo procedimento, em Maputo, depois do primeiro, na Galiza (Espanha). Uma segunda leitura – que se apresenta como um posfácio – pois sou prefaciador do livro. Creio – aceito retificar-me pelo erro – estou a alimentar-me de um caso inédito: apresentar um livro onde o prefácio foi cunhado pela minha mão direita. Expor Mãos de Medo é aceitar «bordar o tempo» (Rosário, 2005, p. 41). Negar tal acto seria «como um anti-poema» (Rosário, 2005, p. 45) que se mostra como uma pedra que assume ter temor de tudo. [As citações feitas ao longo do texto são do livro: Mãos de Medo (autor, Nick do Rosário; edição, Gala-Gala Edições)].  

Antes de tudo irei expor a sentença: este livro é sobre amor. É, também, sobre memória. Sobre as pessoas que Nick decidiu amar e que estão expostas na dedicatória (Rosário, 2005, p. 7). Sobre outras pessoas – incluindo amores da vida do poeta – que souberam vencer o medo. Mas, por causa desse amor ele é preso e deve provar que sabe bem-querer os seus e nós os outros. Por isso, vamos nos colocar no lugar do poeta. Imaginemos um pouco o protótipo de construção dos poemas que fazem este livro. Será uma idealização injusta. Todavia, necessária. Consideremos, estou a ser amável ao dizer «consideremos» – pois, gostava de dizer «maldizer» – que Nick se encontra preso por uma semana porque decidiu amar. Decidiu nos amar. [O lugar da prisão deixo ao vosso critério]. Como castigo, durante seis dias – pois será liberto no sétimo dia para descansar na paz celestial –, deve fazer uma refeição para um «sublime-autocrata». [Uso «sublime-autocrata» entre aspas para não dizer «ditador»]. Na segunda-feira, deve fazer galinha-cafreal com almôndegas, para Omar Bongo. Na terça-feira, pão-ricipe com molho ao sugo, para Hastings Banda. Na quarta-feira, matapa de siri-siri com molho velouté, para Samuel Doe. Na quinta-feira, xiguinha de cacana com molho pesto, para Mobuto Sese Seko. Na sexta-feira, tepwe com xima com molho chutney, para Francisco Nguema. E, no sábado, para fechar e conquistar a sua alforria, sugere repolho com quiabo regado de molho béchamel, que é saboreado por Idi Amin Dada. Como acompanhante, os «sublimes-autocratas» só tem direito a um copo de xivhotxongua, uma taça de vinho de palma, uma lata de pepsi-cola ou um duplo de Macallan 1926. [Tendencialmente, todos preferem bebidas do ocidente pois só assim se nutrem da civilização ideal]. Contudo, de Nick, para além de anuírem as refeições, recebem versos. Ele disfarça sua deficiência culinária com dotes poéticos. Nick, com as suas Mãos de Medo, tece poemas para ganhar alforria. É aqui onde o «medo» – parte do título do livro que temos nas nossas «mãos» – começa a ser o azimute para a emancipação do poeta. Ele, em tom de epigrama versificada, oferece um poema para cada «sublime-autocrata». Por amor fazemos tudo que estiver ao nosso alcance. Daí que, para cada dia de refeição Nick, em nome doa amor, predispõe-se a ler um poema. Óbvio que os poemas não enchem estômago de ninguém. Também, os poemas nunca terão esse propósito. 

Partindo deste desenho culinário, convida-vos para a segundo parte da nossa concepção. Vamos cogitar que para Omar Bongo Nick oferece «o calor das húmidas [verdades]/ […] / como uvas fermentadas» (Rosário, 2005, p. 70). Mimoseia Hastings Banda com «a eternidade / [que] trincou o fruto dos ramos» (Rosário, 2005, p. 33). Presenteia Samuel Doe com «mágoas / forcas / de forças» (Rosário, 2005, p. 81).  Para além da xiguinha de cacana Mobuto Sese Seko ouve o poema Dedicatória (Rosário, 2005, p. 31): «a noite cabe em ti / o ritual da alvorada / com o estímulo das emoções // Cabe a ti todo o astro / o acorde das estelas / a música mística da noite / o flautim do poema / numa inacabada casa». Francisco Nguema, se deleita com o poema Composição (Rosário, 2005, p. 30): «a árvore dos ossos / ou o fruto dentro das raízes como sinuosas mãos / a embalar o berço / a semente / e o corpo». E, no sábado, todos os «sublimes-autocratas», sob comando do auto-intitulado «o último rei da Escócia», Idi Amin Dada, ouvem o poema Desabafo (Rosário, 2005, p. 41): «a tua lua vermelha / arde de sol tarde / um desabafo arde / de saudade teu sol tarde / e não tarda».    

Ao convocar a culinária para a apresentação do livro de Niclk quero evidenciar o poder de ultrapassar fronteiras, por meio da gastronomia poética. Assumo, que estou a coagir, quiçá constranger os apaixonados, com uma comparação desdenhável para falar de amor que liberta. Quiçá, a constranger os chefes de cozinha. Mas, saber preparar um bom poema que atrai e adquire leveza mediada pelo manuseio criativo das mãos do poeta, ao ponto de até os mais incessíveis e insaciáveis se deslocarem e se deleitarem para outros lugares verbais, tal como é o anseio dos poetas e da própria literatura, é saber ultrapassar fronteiras, é saber experimentar outros portos, pois saber reanimar uma linguagem criando novas imagens, novos sabores é a função da literatura e da poesia. É neste pedestal, de doçura poética, de iguaria do verbo, que coloco o livro Mãos de Medo de Nick de Rosário. Não estou a dizer é o melhor. Estou a dizer, ele sabe falar de amor para ganhar alforria. Dirão: os prefácios, os posfácios e as apresentações nunca apontam erros? Nunca encontram defeitos na poesia do autor apresentado. Para responder estas e outras questões irei me socorrer num ditado chope que, sempre, oiço da minha mãe, Clara Jango, quando estou desanimado e a perder o controle das coisas. O ditado diz: «ka mandza ya inthu kuka milu mwassi» (numa tradução contextual ficaria, «nas mãos de alguém não nasce capim». É nesta mísula que coloco a poesia que se encontra em nossas mãos. Uma poesia que sabe falar de amor e usa as mãos para nos libertar. Repito, não estou a dizer «melhor poesia de Moçambique». Não estou a declarar poesia para Nobel. Quiçá, um dia! Estou, apenas, a afirmar: uma poesia que sabe ser doce perante tanta ditadura literária e tanta falta de doçura poética. 

Permitam-me, para terminar, dizer que o trabalho poético de Nick é feito numa linguagem assinalada nos paladares que nos ultrapassam o medo.  Portanto, com estes versos ficamos conscientes que a criação literária deve ter por base um trabalho exigente de selecionar os melhores ingredientes, de lapidar e de dar forma às inúmeras possibilidades que as iguarias oferecem até o mais ignóbil cidadão, o mais tirano indivíduo e quem sabe rodear-se da pólvora para ser amado. Ou quem encarcera os outros por saberem amar e expressar afecto. Nick tem mãos com autonomia própria. Tem mãos que, apesar do medo, não teme a ditadura de quem não sabe amar. Por isso nos oferece – e faz-me ter vontade de amar – versos frescos e com sabores de amor como grafa no poema Desabafo (Rosário, 2005, p. 40): «apenas o amor é justo / cúmplice da palavra». Só quem é cúmplice da palavra sabe usar do medo, das mãos para fazer a melhor refeição poética, o melhor amor. 

Kanimambo Gala-Gala pela ousadia editorial. Nimbonguile Nick do Rosário por oferecer-nos uma das melhores refeições num mundo cheio de pólvora e despotismo. 

Literatura Moçambicana! Bayete! 

 P.S.:  Que prática é essa de roubar o brilho aos escritores advindos depois de 1980 para dar à geração-Charrua a consagração como prova, inequívoca, de que a áurea da literatura moçambicana continua ancorada, particularmente, nesse movimento literário!

A curta-metragem Ontogenesis, de Jared Nota, não precisa de mais do que cinco minutos para nos lançar diante do abismo. A preto e branco, com tensão crescente e estrutura quase circular, o filme constrói uma narrativa que desafia a lógica linear do tempo, da denúncia e da sobrevivência.

A protagonista, Khensa, é uma jornalista. Mas também é muito mais do que isso: é o eco de todas as vozes silenciadas, é a memória dos que tombaram por ousar dizer a verdade. Quando recebe uma chamada que lhe implora para desistir, “Khensa, não faças isso”, já sabemos que ela não vai recuar. Porque recuar seria morrer em vida. Seria curvar-se.

Vestida com o que parece ser um uniforme ético: sobretudo, bicicleta, câmara fotográfica, Khensa fotografa pessoas a despejarem petróleo na água, sob vigilância armada. É a imagem crua da destruição ambiental patrocinada, e de uma denúncia silenciosa feita pela lente. 

A câmara, no universo, não é apenas um instrumento: é uma arma ética.

A narrativa brinca com o tempo. A protagonista retorna à cena inicial, fotografa outro crime, e a realidade embaralha-se. Não sabemos se são dias diferentes, repetições mentais, ou se o próprio tempo está ferido. O que permanece constante é o ciclo: a verdade é revelada, o sistema reage com violência, e a resistência renasce, ainda que à beira da morte.

O que amplifica essa sensação de urgência é a trilha sonora minimalista e incessante, um pulsar grave, seco, como um coração em estado de alerta: dum, dum, dum, dum. 

Do início ao fim, o som embala a narrativa com um suspense tenso, contínuo. Não há descanso para os olhos, nem para os nervos. O espectador, tal como Khensa, sente que algo terrível está prestes a acontecer.

A viragem acontece quando a cor retorna à imagem. Após uma perseguição e uma ameaça de morte, Khensa afirma com clareza quase profética: “Sempre que atacamos o planeta, ele arranja um mecanismo para se defender de nós”. É nesse instante que o filme rasga a monocromia e pinta-se, não de esperança, mas de lucidez. 

A terra sobrevive, mesmo quando os seus filhos a envenenam. Somos nós os descartáveis.

Ontogénesis dedica-se à memória de Carlos Cardoso, jornalista moçambicano assassinado em 2000, após denunciar corrupção ao mais alto nível. A escolha não é gratuita. A personagem Khensa carrega em si o arquétipo dos jornalistas mártires, das vozes que não cabem no silêncio. É uma homenagem, mas também um alerta: a verdade custa caro em países onde a justiça é selectiva e o poder é armado.

Jared Nota constrói um filme de poucos minutos, mas de longa permanência na consciência de quem o vê. A escolha estética do preto e branco, a trilha sonora opressiva e constante, a ausência de explicações fáceis, tudo converge para uma atmosfera de brutalidade realista.

No fim, Khensa ri. Um riso sarcástico, ferido, talvez já entregue à morte. Mas também é um riso que afirma: mesmo que me calem, o planeta há-de responder. Mesmo que me matem, a imagem foi registada. E, como bem sabemos, uma imagem nunca morre sozinha.

 

A PREOCUPAÇÃO sobre a qualidade do Sistema de Ensino e Aprendizagem, em particular em Moçambique, continua a ser agenda de destaque por parte do Governo, dos profissionais do campo da educação, dos pesquisadores do campo da educação, dos académicos, dos movimentos sociais, pais, estudantes e da sociedade em geral.

Sucede-se que várias vozes reclamam que a qualidade de ensino oferecido nas nossas escolas não é de desejar, pois, segundo elas, os alunos concluem ensino primário sem saber escrever, ler e fazer as primeiras quatro operações matemáticas (Zucula, 2021).

A sociedade ainda avança dizendo que as escolas públicas do sistema nacional não oferecem condições para o decurso dos processos de ensino-aprendizagem. Também, têm aparecido alguns artigos científicos e de opinião a nível dos meios de informação e/ou comunicação social chamando a atenção para a situação da qualidade no sistema nacional da educação.

Juliatto (2005) sustenta que a preocupação com a qualidade da educação não é um assunto isolado de um único país. Ela existe como crescente desafio mundial. Para o autor, este assunto vem recebendo mais atenção em todos os sistemas educacionais, e se tornando um tema frequente e objecto de recomendações dos organismos internacionais voltadas para a educação.

Os estudos realizados por Oliveira e Araújo (2005) mostram que a política pública da educação adotada por alguns países subdesenvolvidos na expansão da rede escolar, ao longo dos últimos trinta anos, não tem acompanhado a demanda dos professores, ou seja, a demanda pela ampliação quantitativa das escolas não permitiu que houvesse uma reflexão mais profunda sobre a forma que deveria assumir o processo educativo visando a promoção de um ensino de qualidade.

Além disso, cabe-nos sublinhar que a qualidade do Sistema de Ensino e Aprendizagem em Moçambique constitui um dos principais desafios do Governo, que desde a independência tem priorizado a criação e a expansão de oportunidades para assegurar que todas as crianças possam ter acesso e completar uma educação básica de nove anos (Zucula, 2021).

Apesar dessa universalização, importa destacar, a qualidade do sistema de Ensino e Aprendizagem ainda tem sido reduzida à identificação de uma série de standards de produtividade e de rendimento, pois ainda existem alunos que terminam o ensino primário, de seis classes, sem dominar a leitura, a escrita e aritmética-, primeiras quatro operações matemáticas.

Outrossim, em algumas escolas verifica-se a falta de condições básicas mínimas para o desenvolvimento normal do processo de ensino e aprendizagem. Note-se que há ainda escolas primárias a funcionarem em baixo de árvores e uma boa parte das escolas não dispõe de carteiras para os alunos sentarem convenientemente, isto apenas para citar alguns dos problemas. 

Por seu turno, o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA) refere-se à qualidade da educação como elemento fundamental que contribui para aumentar a capacidade dos cidadãos de resolverem os seus problemas e melhorarem o seu nível de participação na vida da sociedade. É por essa razão que o plano em alusão refere que o Governo deve investir em todos os níveis e subsistemas da educação para aumentar a qualidade dos seus recursos humanos.

Importa referir que para Ishii (2011) e Lopes (2012), a concepção de qualidade no contexto da educação é voltada para eficiência e eficácia do próprio sistema e, por ser assim, defendem a criação de sistemas de avaliação da aprendizagem e a garantia de livros didácticos, textos de apoio, equipamentos, laboratórios e formação pedagógica e com a garantia de que os professores sejam capazes de atingir metas do currículo.

Sendo assim, apontam que o sucesso escolar pode ser aliado a factores tais como: liderança educacional, flexibilidade e autonomia, clima escolar, apoio da comunidade, processo ensino-aprendizagem adequado, avaliação do desempenho acadêmico, supervisão de professores, materiais e textos de apoio psicopedagógico e espaço adequado para aprendizagem do aluno. 

Nesse contexto, uma educação de qualidade pode significar tanto aquela que possibilita o domínio eficaz dos conteúdos previstos nos planos curriculares de um sistema educacional; como aquela que possibilita a aquisição de uma cultura científica ou literária; ou aquela que desenvolve a máxima capacidade técnica para servir ao sistema produtivo; ou ainda, aquela que promove o espírito crítico e fortalece o compromisso para transformar a realidade social, por exemplo.

A terminar, temos a referir que para se garantir a qualidade no Sistema de Ensino e Aprendizagem em Moçambique, na visão de Zucula (2021), o Governo deve nomeadamente: continuar a construir infra-estruturas escolares com acesso a tecnologias de informação; continuar a empreender esforços no sentido de se garantir uma remuneração satisfatória para os professores; garantir continuamente o envolvimento da comunidade e outras instâncias educativas na vida escolar; assegurar a redução de falta de vagas em Instituições do Ensino Superior e do número de alunos em sala de aulas; assegurar a capacitação permanente dos professores, bem como o acesso a água e luz nas instituições escolares.

 

“(…) Há feridas que parecem não sarar. Sangram, vertem pus,

voltam a sangrar, surpreendem-nos a magoar a alma quando

está já deveria estar habituada e imune a tanta dor”

– José Rodrigues dos Santos (A ilha das trevas, 2007)

 

Luzes apagadas. Silêncio estampado em cada olhar atento. Respiração enterrada no fundo dos pulmões. Suspense. E, como a vida é feita nesses meios do contraste, luz e voz surgem. Mais suspense ainda. É nesse ambiente introspectivo e poético em que a peça “sobreviventes” começa, pegando-nos a todos pelo susto, que é mais movido pela intensidade da fragilidade, numa insustentável leveza de existir, diria Kundera, que nos pesa do que outra coisa. Um drama com apenas duas personagens, performada por Sufaida Moyane e Samuel Nhamatate, que fazem aquilo que Aristóteles chama de mimeses (imitação) de várias realidades que, de uma e outra forma, são esses carrosséis na distribuição de feridas. Várias feridas, outras que doem enquanto sangram e outras que apenas doem, sem sangue.

Que realidade foi aqui imitada? Numa única peça duas realidades dialogam, o psicológico e a material, apesar da, claro, materialidade também ter influência do psicológico. A peça teatral inicia com uma luz dramática, um tom azul que cria uma atmosfera muito introspectiva, que nos leva para esses bandos da dramaticidade da vida, aqui já se pode afirmar sem vieses de dúvidas nas margens das palavras que a luz, muito mais do que um recurso técnico para iluminar o cenário, também abre espaço para o ambiente ser poético, a atmosfera ser onírica assumindo uma função psicológica, em que mergulhamos dentro da psique humana até a profundidade onde encontramos o medo, os nossos desejos mais profundos e reprimidos, e as feridas que não vertem — os traumas.

Essa peça é divida em dois momentos diferentes que eu nomeio “a caminhada na longa noite”, inspirada na fala da própria personagem feminina, e a outra parte que é a condição de ser sobrevivente. Na primeira parte a personagem que aparece, a feminina, narra o antes, como e quando a guerra chega. Primeiro viviam desinteressados, ouviam sobre a guerra de longe, ouviam pela rádio, como se fosse algo que nunca pudesse os alcançar. Mas ela avança, entre aldeias, atravessando montanhas e rios — aqui que servem como uma amostra de como a guerra não é detida por qualquer barreira, aliás, ultrapassa-as — e ela seguiu consumindo tudo e deixava “os seus e levava os outro”, e eles ouviam pela rádio, até que a rádio também foi consumida. Se antes antes havia quem avisasse e espalhava as notícias para alertar, já não havia quem alertasse; antes do caos, o pânico toma conta, e foi o que aconteceu. Ela, a personagem, fugiu como os outros antes que a guerra chegasse, e a vida dela cabia “em duas malas”, demonstrando esse pânico, a correria para deixar a guerra para trás. Antes dela chegar até ela, a guerra mandava recados com mortos “numa carroça puxada por um burro exausto”. A personagem corria, e quando se deu a descansar um pouco, encontrou-lhe a guerra, e a matou. Aqui está a coisa interessante, a personagem não fala da morte física, mas talvez do psicológico já desgastado pelo pânico, o caos, o cansaço, e a desesperança que também mata. A guerra o faz juntar-se aos outros condenados por ela mesma que estão na mesma condição e cansados.

Só que para ser sobrevivente, a personagem teve de passar por muitas provações ou provocações que, já na segunda parte vê-se, deixaram ruínas nela e em outros; é a esse caminhar que me refiro. A longa noite, que já é o segundo motivo, lembra-me a era das trevas na Europa, que é caracterizada por morte, guerra, e forte crença. Mas o que me interessa aqui é a morte e guerra que fizeram duma era ser considerada das trevas, e as trevas significam noite. Então a noite — de guerra, mortes, privações, cansaço, terrores e perda — foi muito longa para a personagem feminina. O caminhar na longa noite não é, assim sendo, somente um período do dia, mas um tempo em que não havia luz, apenas dores que marcam.

Uma primeira parte emocionante devido a luz, ao silêncio de música, além do momento em que ela começa a contorcer-se de dores e depois cai no chão. Acima de tudo, a emoção deve-se a forma pela qual a personagem narra tudo isso de forma tão marcante que toca a qualquer um. A forma acelerada que adotou também imprimiu esse sentimento de urgência, e deu para sentir a dor, o desespero advindo daquela voz trémula e ofegante. Isso justifica a “caminhada na longa noite” por dois motivos, o segundo não se trata bem de um motivo. Primeiro porque essa primeira parte, na verdade, é apenas uma justificativa da segunda parte, mostra o que aconteceu para se chegar na condição de sobrevivente. Ao assistir a peça, ainda no início, perguntava-me, “sobrevivente de quê?”, a resposta para essa pergunta está precisamente nessa primeira parte: sobreviventes da guerra que consumiu tudo e deixou apenas cinzas.

Falando da narrativa, em particular, porque a primeira parte é exactamente isso, a narração de tudo o que aconteceu. Parece-me que a narração é um recurso que foi usado para colmatar a falta de meios para mostrar, no lugar de dizer, que é a função do teatro. Contudo, a Sufaida o faz numa mestria sem igual, que acaba se esquecendo essa toda coisa de “mostrar, no lugar de dizer”, e fez-nos sentir o drama todo de alguém perseguido pela guerra, ou pela “longa noite”.

Essa observação faz sentido porque os personagens, ambos, iriam aparecer no segundo momento que dá o título à peca, por isso a parte central da história. Se por um lado temos essa luz dramática, um azul que cria uma atmosfera onírica — agora já posso dizer, que remete ao passado, ou a um evento que passou e que foi doloroso e traumático — por outro lado temos a claridade, que contrasta a primeira parte. Se lá retrata eventos passados, aqui temos o presente, a condição já de ser sobrevivente sendo imitada.

O segundo momento inicia com a protagonista, interpretado por Samuel Nhamatate, a sonhar alto com gasolina, catana, máscara, combustível, etc. Ao acordar, este depara-se com a personagem feminina e assusta-se por terem mais um “cadáver vivo” naquela “multidão compacta”. Aqui o drama, a desconfiança, a incerteza, o medo, são sentimentos que lideram esses lugares onde pessoas como a personagem feminina sobrevivem, mas, acima de tudo, o trauma. Chego nessa parte e lembro da entrevista do Mia Couto em Óbidos, quando perguntado sobre manifestações que assolaram o país durante muito tempo, disse: “seja quem for que vá governar a seguir, vai governar ruínas, ruínas humanas e ruínas físicas” (Diário Notícias, 2024).

Nessa parte trata-se dessas ruínas humanas e físicas que a guerra sempre deixa para trás, e é essa a condição de ser sobrevivente: viver sobre ruínas sendo também ruína humana.

O personagem masculino, que parece ser quem está em vias de restruturação, ainda apresenta sequelas, fissuras na sua alma, e isso reflectiu-se no sonhos, por exemplo. Aquele não é um sonho qualquer, segundo a psicologia, é um sonho traumático, que revive momentos ou eventos estressantes, como é o caso da guerra. E a esse nível, o encenador fez cá um belo trabalho, e os artistas interpretaram bem essas emoções dolorosas.

O ponto mais alto é quando o essa personagem coça-se, como se tivesse alguma alergia ou mesmo de algo, e diz, “isso a mim enerva”, e parece que já vai vivendo por um longo tempo naquela condição pois “nem a água nem o sabão” já tem um efeito, que é de limpar. Uma cena com uma profundidade imensa porque a coceira não é bem no corpo em si, mas no espírito. Há algo no espírito que não lhe deixa sossegar, e pergunta se “a outra não sente, pois estão nisso juntos”; ou seja, estão naquela condição de sobreviventes juntos, cheios de traumas e outras dores, então também deveria sentir o que ele sente, a coceira infernal que sente.

A peça termina com a tentativa de aproximação, já mais física, delicada, como se percebesse que a personagem não se passa de mais uma produzida pela guerra, e que ela viu aquele lugar com aquela “multidão compacta” como um lugar em que estaria com outros degenerados gerados pela guerra. Aqui onde a peça contraria-se, se por um lado, apresenta apenas dois sobreviventes que não se conhece nem o nome, na narração a personagem fala de “nós” como povo, e que depois longa caminhada ela foi juntada aos outros “cansados” e no alto duma colina ela viu “uma multidão compacta” à qual se iria juntar. Ou seja, são apenas eles dois, representam pessoas e uma multidão traumatizada, por isso a observação, se tivesses alguns personagens só para fazerem figurino, seria mais claro e haveria um tanto de coerência.

Assim sendo, a peça teatral “sobreviventes” apresentada num contexto sombrio, da pandemia de COVID e da guerra em Cabo Delgado, e no mundo, leva-nos para esse drama de ser um sobrevivente depois de passar por uma longa noite, vivendo uma ‘ilha das trevas’, como escreveu José Rodrigues dos Santos, apresentando, inclusivamente, um personagem chamado Paulino de Jesus Conceição vivendo com traumas que o fazem sempre acordar num susto como o faz o personagem de “sobreviventes”, ambos, o Paulino de Jesus e a personagem masculino da peça passaram viveram em períodos de guerra.

Mais do que uma peça teatral, é uma chamada humana, uma forma para pararmos e pensar sobre os efeitos da guerra, em como essa coisa de ser sobrevivente não é uma das melhores coisas, apesar de não ser das piores, pois poderá se pensar que o pior é a morte. Será? Alguns dos jovens que serviram em Cabo Delgado e andam deixados por aí “cadáveres vivos” teriam uma palavra para dizer.

Assim, Sobreviventes revela-se mais do que um retrato de dois indivíduos marcados pela guerra: é um espelho coletivo onde se reconhecem as ruínas humanas e físicas que qualquer conflito deixa para trás. Entre a escuridão azul da “longa noite” e a claridade desconfortável da sobrevivência, a peça mostra que viver após a guerra não significa estar ileso, mas carregar no corpo e no espírito as feridas que não saram. Ao condensar, num dueto intenso, o peso de uma “multidão compacta” de traumas, a encenação convida o espectador a atravessar, junto das personagens, essa fronteira difusa entre estar vivo e apenas continuar a existir.

 

“Je suis malade déjá”, ou seja, “Já estou doente”, é o que se ouve durante pouco mais de três minutos, na voz de Assa Matusse; incrivelmente, não é o que parece. A escolha do francês como língua principal na música Je suis malade déjàrevela-se muito inteligente e profundamente ousada.

Em cerca de três trechos ocorre algo único: a fusão de três idiomas: o francês, o português e o xangana/ronga, o que não deve ser visto apenas como algo fortuito, mas também como uma estratégia para transmitir uma mensagem universal, capaz de alcançar diferentes públicos sem perder as raízes. Mais do que isso, as transições são tão fluídas que não basta ouvir a música apenas uma vez para perceber que não se trata de uma só língua.

Contrariando a melodia, que nos faz querer sair por aí aos saltos e conquistar o mundo, a letra aponta para a direção contrária: traz à tona uma crítica a este mesmo mundo, que vai nos adoecendo gradualmente. É um exercício artístico muito bem articulado, justamente porque instiga no ouvinte a necessidade de compreender o intuito da composição.

O eu-lírico não tem gênero: é a própria humanidade em crise. Homens e mulheres que dedicam suas vidas ao sistema, vivem em prol da opinião alheia, despem-se de qualquer escrúpulo e acabam perdendo-se de si mesmos. A noção de inevitabilidade é quase dilacerante: o “já” presente no coro representa a consciência de que a doença está escrita no percurso e no destino final da humanidade.

Ao fundo, ouve-se uma batida constante e imponente, cujo som assemelha-se ao de um coração. Entretanto, esse coração não é frágil: é pulsante, resistente, quase teimoso, e acompanha cada denúncia da cantora. A batida, assim, simboliza não apenas um corpo individual, mas um corpo social esperançoso que insiste em viver, mesmo ferido.

É nessa esperança social que a luz atravessa a escuridão. A esperança nas crianças é um elemento sutil, mas poderoso, pois elas não são apenas símbolo de futuro, mas também professoras silenciosas para os adultos sobre conceitos como sinceridade, liberdade, empatia, amor e solidariedade.

Ocorre na música uma batalha tão equilibrada entre a crítica e a romantização da melodia, através da voz ancestral da cantora moçambicana, que, a priori, pode ser comparada a uma dança de salão. Ambas movem-se sobre passos excitantes aos ouvidos; juntas, são tão divergentes que tornam-se complementares, formando um jogo de xadrez que termina em um merecido empate.

Por outro lado, em Je suis malade, Dalida canta “Eu estou doente” de forma melancólica e dramática, quase como um teatro de voz. A interpretação da cantora francesa desperta a sensação de angústia e tristeza profunda através da oscilação do timbre entre fragilidade e explosão, encenando a própria instabilidade da dor.

Dentre as diversas interpretações possíveis, o eu-lírico é feminino: uma mulher carregada de tamanha sensibilidade que mantém o ouvinte em um eterno estado de empatia. E essa sensibilidade está diretamente relacionada ao fundo: é cristalino, translúcido e etéreo, como lágrimas que caem sobre uma peça de cristal.

A composição não nega o nome: retrata uma doença destruidora e avassaladora; entretanto, individual e introspectivamente triste. Nem tão pesada, mas emocionalmente dependente, ilustrada no trecho inicial: Je ne rêve plus / Je ne fume plus / Je n’ai même plus d’histoire. É, sem dúvidas, uma espécie de desfile de enumeração de perdas. Paradoxalmente, algumas dessas perdas não são necessariamente prejudiciais, mas sua ausência reforça a sensação de vazio e de transformação involuntária, uma evolução disfarçada pela dor.

O sujeito não sonha mais, o que, em certa perspectiva, pode até ser positivo, porque alguns sonhos transformam seus portadores em estátuas de sal. Acredita que não tem mais histórias para contar, mas canta uma ao público. E, acima de tudo, não fuma mais, algo incrível e tão difícil de superar quanto todo vício.

Há também uma reflexão mais profunda: focarmo-nos tanto nas perdas faz-nos perder, de facto, o caminho brilhante que ainda poderíamos trilhar, presos a uma vida de ilusões e imaginações, uma espécie de prisão perpétua ao “e se…?”. É essa tensão entre dor, reflexão e negação da possibilidade de transformação que torna a interpretação de Dalida tão potente e atemporal.

Assa Matusse e Dalida cantam sobre doenças, mas de maneiras profundamente distintas. Em Je suis malade déjà, de Assa Matusse, a doença é coletiva, inscrita no corpo social, e precisa ser enfrentada, denunciada e combatida. É uma condição inevitável, mas também um convite à resistência, que encontra esperança nas crianças e na pulsação firme do ritmo, caminhando para a regeneração.

Por outro lado, em Je suis malade, de Dalida, a doença é individual, introspectiva e quase autodiagnosticada. Ela afoga o eu-lírico em emoções devastadoras, tornando cada ausência de gesto uma evidência da fragilidade humana diante da perda amorosa. A interpretação dramática e melancólica da cantora transforma a dor em experiência estética e emocional, mantendo o ouvinte imerso no teatro da tristeza.

Apesar de nomes parecidos e do compartilhamento do idioma francês, as duas obras conduzem a condutas divergentes após o “diagnóstico”: enquanto Assa inspira ação, reflexão social e esperança coletiva, Dalida entrega-se à doença absoluta, sem resiliência, e parece sucumbir à própria ilusão.

Ambas exploram a metáfora da doença, mas com objetivos e efeitos distintos, revelando as múltiplas facetas da condição humana diante de um processo doloroso. Enquanto uma abordagem enfatiza a dimensão íntima e subjetiva, transformando a dor em espelho da vulnerabilidade individual, a outra projeta essa experiência no plano coletivo, questionando estruturas sociais e culturais que perpetuam o sofrimento. Assim, a metáfora não se limita ao corpo adoecido, mas se expande como recurso crítico e poético, capaz de iluminar tanto a fragilidade pessoal quanto as feridas históricas e sociais que atravessam o ser humano.

 

 

 

 

 

 

Foto: Mariano Silva

As portas da Sala Grande do Franco abriram às 18h37. Entre a curiosidade e a expectativa, como que telecomandados, todos, em sintonia consentida, lá se acomodaram para uma noite que poucos sabiam como terminaria.

Ao contrário do que tem sido recorrente, os bailarinos, perto dos assentos, é que receberam o público, sempre com cantos vibrantes. Os homens, de tronco nu. A exibirem o peito, os músculos, a aura e o vigor bantu.

– Ui, irmã, veja só que pecado!

Meio perdida numa chamada telefónica despropositada, a menina ao lado, uns 27 anos de idade, tentou relacionar o suspiro da amiga à personagem à sua frente. Viu um barrigudo meio parecido com Ngungunhane: gordo, não tão baixinho, feio e rude. Não compreendeu a afirmação.

– Não esse, sua distraída, aquele…

Como se tivesse escutado, Osvaldo Passirivo endureceu a expressão. Aparentemente envaidecido, encheu o peito, imerso na personagem e na representação. As marandzas perceberam e não gostaram da indiferença. Então caminharam e sentaram-se na quarta fila, contando a partir do palco.

– É um passarinho…

Disse apaixonada.

Passirivo

 Sem importar-se com a correcção, a outra continuou.

– O gajo leva-te directamente ao céu.

O diálogo das marandzas era muito interessante. Mas até elas perceberam que, se quisessem curtir a noite, tinham de se calar. Afinal, o coreógrafo do espectáculo, Ídio Chichava, decidiu surpreender o auditório desde o princípio. Assim, sem que ninguém anunciasse nada, a performance foi imergindo todos no miserável universo dos Vagabundus. No qual, à excepção da alegria no coração, não há mais nada.

Ao todo, 13 bailarinos apresentaram-se no palco, nomeadamente, Açucena Chemane, Arminda Teimezira, Calton Muholove, Cristina Matola, Fernando Machaieie, Judite Novela, Mauro Sigauque, Martins Tuvanji, Nilégio Cossa, Osvaldo Passirivo, Patrick Manuel Sitoe, Stela Matsombe e Vasco Sitoe. Portanto, além de um certo pecado, havia alguma redenção disfarçada no corpo de mulheres. Elas também estavam trajadas de uns calções curtos, brilhantes e sugestivos. Mas não “imitaram” os homens em tudo, que o leitor mais pervertido pode estar a pensar coisas… Traziam um top preto e curto, com os umbigos de todas à vista, inspirando conforto e comodidade.

Ali estavam todos eles. Enigmáticos, cantando uma cancão popular que soa à acção de graça. Em ronga, diziam eles, “Não temos nada, além de alegria no coração”. E o refrão foi interpretado tantas vezes, numa afinação coral contagiante e surpreendente.

– Esses gajos cantam bem!

Disse um jornalista armado em crítico de arte. Joana Mbalango, actriz de primeira água, anuiu e, sem saber porquê, deixou-se invadir por sentimentos misturados, vivendo o espectáculo como se ela própria fosse uma encenação. Só despertou daquele devaneio longo quando a amiga, num sussurro, disparou:

– Suka, john, Vagabundus são maus! Socorro…

Joana tornou-se John. Um John que, em Moçambique, também é bay e bro. Mas, quanto ao socorro, na Sala Grande ninguém estava para socorrer a ninguém. Todas as atenções estavam no palco. Entre os espectadores, um silêncio que nem lembrava um mosquito a buzinar-nos a orelha. De facto, Ídio Chichava conseguiu montar uma coreografia “asfixiante”, que capta a atenção das pessoas quase na sua totalidade.

Como se viu, na verdade, Vagabundus não é sobre dança. O espectáculo estreado na Europa há três anos, apresentado pela primeira vez em Moçambique, por um lado, é muito mais do que um exercício coreográfico. Vagabundus é uma narrativa total e completa, uma analogia cruel sobre o drama humano em situações de abandono ou indiferença. O que começa com uma canção popular, rapidamente se transforma numa encenação de sentimentos e emoções complexas, nas quais o corpo é a bênção e a doação.

Por outro lado, Vagabundus é um jogo de equilíbrios, entre a arte de encenar com tão poucos adereços e a vocação dos artistas. Em sintonia, os 13 contaram uma narrativa que abraça o caos, e, paradoxalmente, a razão. Por isso o espectáculo questiona o sentido da existência quando pouco ou nada se tem para sorrir.

O som desempenha um papel fundamental. Além das canções, todas entoadas pelos próprios bailarinos num fôlego invejável, afinados mais do que muitas estrelas da música, a intensidade eufónica imprime na coreografia condições atmosféricas dissemelhantes. Num momento, os Vagabundus são miseravelmente elegíacos, revelando-se incapazes de disfarçar a dor que os invade as entranhas. Noutros momentos, são tão porta-vozes das lágrimas que gelam o mundo quanto mensageiros da esperança resumida no refrão da canção inaugural. Por conseguinte, Vagabundus evoluiu da melancolia para a vivacidade. Pelo meio, há macomias, mediterrâneos, gazas e dombass… Gente moribunda, esquecida e largada à sua sorte. Pelo meio, há um enredo com bifurcações extraordinárias, nas quais os movimentos (coordenados e aparentemente improvisados) materializam a intensidade do que é sentido. Nesse aspecto, o som e o ritmo são importantes. Dependendo da forma como os pés tocam o palco, a emoção sugerida ganha  consistência.

Vagabundus é o resultado de maningue cenas: xigubo, makwaela, mapiko, canto coral e representação. No mínimo…

Visualmente intrigante, o espectáculo também é um conjunto de fotografias em movimento, num cenário em que o todo, de facto, é a totalidade de uma maioria oprimida pela vida que se esvai a cada grito pela liberdade. É uma produção agridoce, que faz chorar, porque chorar também é bom, e faz sorrir como um meio de sobrevivência. A narrativa é o centro de tudo. Os corpos, diria Roman Jakobson, são pretextos para expressarem lições sobre o som e o sentido – Nos corpos dos bailarinos nos revemos na nossa intimidade e no nosso preconceito.

Com os Vagabundus, consciente ou inconscientemente, Ídio Chichava homenageia os peregrinos do mundo, aqueles que valem as trochas que levam à cabeça ou o sonho que lhes é proibido. No fundo, a coreografia é sobre os invisíveis, sobre o grito dos marginalizados que o mundo não quer e não sabe ouvir. É uma ode à dignidade, uma peça onde se cruzam teorias coreográficas tradicionais e contemporâneas numa linguagem universal.

Entre o dramático e trágico, a obra explora as crises existenciais dos mafunda djonis espalhados por além-fronteiras. Talvez, por encarnarem tantas vidas, os bailarinos fartam-se de transpirar pelos poros da pele. É um espectáculo fisicamente exigente. Em 80 minutos, os artistas exploram um pouco de tudo, desde a existência à resistência. Sempre em ascensão. Há-de ser por isso que facilmente manipulam o público, que sofre, chora, grita, canta e dança a plenos pulmões. Foi o que se viu lá mais para fim:

Ho lo lo lo lo lo lo lo... Ho lo lo lo

Cantando o ininteligível, numa só voz, os bailarinos convidaram os espectadores ao palco. Inclusive, as duas marandzas.

– Irmã, é agora ou nunca. Me acompanha para não ouvires dizer…

Entretanto Passarinho, quer dizer, Passirivo não sentiu o toque às costas. Devia estar a pensar que, de certa forma, somos todos Vagabundus.

 

 

 

 

 

Crítica comparativa entre Hlalelane Xtisungo (Olhar a População) e O Preto, de Ivo Mabjaia 

 

Entrar na sala onde se encontra a escultura Hlalelane Xtisungo é como ser fixado por cem olhos que não se abrem totalmente. Não há apenas um rosto, mas muitos, aglomerados na mesma pele de barro, repetindo olhos semicerrados e bocas circulares. É barro vivo, modelado para parecer povo, mas povo ensardinhado, indistinto, algo pior que um “My Love”. 

As bocas não emitem som, mas a sua forma parece preparar-se para um grito que nunca se solta, há nessa figura um grito engasgado, mas não mudo. Aquela e mais esculturas estão expostas na Fundação Fernando Leite Couto, Cidade de Maputo, entre os dias 6 e 30 de Agosto, pelos artistas Mapfara e Phamby, com curadoria de Yolanda Couto.

O título, “Olhar a População”, é provocação directa: quem observa quem? E, mais ainda, para quê? Se olhamos, é para entender ou para confirmar o que já decidimos não ouvir? Mapfara, com a aglomeração de faces, parece dizer que olhar não basta, é preciso escutar e escutar implica aceitar que a voz do outro perturbe o nosso conforto.

Essa perturbação encontra eco em O Preto, curta-metragem de Ivo Mabjaia, premiada no Fórum de Cinema de Moçambique (Kugoma), filmada em preto e branco, onde o silêncio é quase absoluto. Corpos jovens estão deitados, imóveis, encostados uns aos outros como se fossem um único organismo adormecido. Entre eles circulam três figuras: um homem negro, uma asiática e um homem branco. quem são essas três figuras? Por que olham com tanto desprezo? O que cochicham? Uma leitura possível é ver nessas figuras três principais forças institucionais de poder: o executivo, o legislativo, e o judicial, consecutivamente.

Eles observam, mexem, retiram objectos, roupas, como quem revira a vida alheia sem pressa nem pudor, retiram a dignidade, as riquezas e a liberdade de se expressar. Há aqui uma economia de palavras e sons que força a atenção para o gesto e para a imagem, há também morte e traição, somos roubados pelos nossos semelhantes. O espectador é colocado no lugar de quem vê, mas não intervém. Até que algo se rompe: um dos jovens desperta, ergue-se e olha ao seu redor e depois diretamente para a câmara. É o momento em que a quarta parede cai, e o filme deixa de ser sobre “eles” para ser sobre “nós”. O olhar é acusação.

Logo depois, a única voz do filme irrompe um grito em changana: “a muhive, a muhive” (“Ladrão, ladrão”). É uma nomeação e uma sentença. É também a cor preta a falar, não apenas pela pele ou pelo enquadramento, mas pela densidade histórica que carrega, é um grito cultural, mas logo foi calado, subornado, obrigado a gritar em silêncio.

Tanto na escultura como no filme, há um jogo de olhares que devolvem ao espectador a sua própria imagem. Na peça cerâmica, esse olhar está fossilizado no barro; no filme, ele é vivo e directo. Mas em ambos, quem vê é também visto, quem observa é interrogado. E é aí que o silêncio se torna linguagem: um silêncio denso, que não significa ausência, mas acúmulo de coisas não ditas. 

Na figura de Mapfara, quem olha toma o acento das três figuras do curta-metragem, ou por outra, nem olha se mistura, se identifica, se perde.

O grito, por sua vez, vai além da voz audível. Na escultura, está insinuado nas bocas abertas; no filme, é contido e breve, mas potente. É cor, é gesto, é olhar, é nudez de quem foi roubado tudo até a voz. É também metáfora de vozes reais que, no país, enfrentam tentativas de silenciamento. É impossível não pensar no caso recente da jornalista Selma Inocência, que em sua página de facebook denunciou ter sido envenenada com metais pesados durante uma estadia em Maputo, num contexto de ameaças relacionadas ao seu trabalho investigativo. A Amnistia Internacional e outras organizações exigiram investigação urgente. Quando este dado entra em cena, a ligação é inevitável: o silêncio estético das obras encontra o silêncio forçado da vida real, e o grito contido da arte encontra o grito abafado de quem denuncia injustiças.

A repetição de formas olhos, bocas, corpos nas duas obras também não é acidental. Aponta para a perda da singularidade: o indivíduo é absorvido pelo colectivo, que tanto pode ser força como pode ser invisibilidade. Nos dois casos, essa massa humana não é anónima por natureza; é tornada anónima por olhares que a recusam a sua individualidade. O papel do artista é devolver-lhe rosto, ainda que seja um rosto partilhado com muitos outros; o papel do espectador é reconhecer que o rosto que olha pode ser o seu.

Em todas as esculturas de Mapfara, coincidem os olhos fechados e a boca aberta, como quem insinua que os olhos nos foram vendados a voz roubada, mas até o silêncio grita. Não se trata de consumir a obra, mas de responder-lhe. 

“Olhar a População” é convite e aviso: se olhas, tens de escutar; e se escutas, tens de agir. O Preto reforça o mesmo aviso com outra gramática: se assistes ao roubo, és cúmplice; se és olhado por quem sofre, és interpelado. Ambas as obras se tornam espelhos que não devolvem a imagem que queremos ver, mas a que precisamos enfrentar.

Por isso, falar de “a estética do silêncio e o grito do preto” não é apenas dar nome a uma leitura possível; é afirmar um campo de acção. É reconhecer que a arte, quando verdadeira, não nos deixa em paz. Obriga-nos a ouvir o que não queríamos ouvir, a olhar para onde não queríamos olhar, e a admitir que o silêncio pode ser tão violento quanto o som que o rompe. No barro e no filme, no olhar e no grito, está a mesma exigência: não basta ver é preciso escutar, e não apenas escutar é preciso responder. Porque olhar sem escutar é veyorismo e escutar sem agir é cumplicidade.

 

Na história bíblica, Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia, quando pressionado para decidir sobre a crucificação de Cristo, lavou as mãos diante da multidão, dizendo-se inocente do sangue do justo. Esse gesto atravessou séculos como símbolo da covardia travestida de neutralidade, da renúncia à responsabilidade moral. Desde ai, dos tempos bíblicos, Pilatos ficou marcado na história como aquele que, diante da verdade e da justiça, lavou as mãos e deixou o povo decidir o destino de Cristo. Não assumiu responsabilidade, não tomou decisão corajosa; preferiu a neutralidade cúmplice. Daí nasce o que podemos chamar de Síndrome de Pilatos ou Pilatismo: a atitude de quem sabe o que deve ser feito, mas escolhe lavar as mãos para não se comprometer. Eis a essência do Pilatismo: a recusa de assumir as consequências das decisões, preferindo o silêncio ou a omissão diante da injustiça.

Historicamente, esse comportamento repetiu-se de diversas formas: reis que deixavam o povo à fome, mas viviam em banquetes; académicos que escreviam tratados sobre liberdade, mas nunca se levantaram contra a opressão; líderes que se diziam defensores da pátria, mas na hora da verdade venderam-na a interesses estrangeiros. Filósofos como Marx já dizia que “o Estado moderno não passa de um comitê de negócios da burguesia”. Fanon advertia que as elites pós-coloniais preferem a comodidade da retórica a enfrentar as contradições estruturais. Amílcar Cabral lembrava: “as armas mais eficazes do inimigo são as nossas próprias fraquezas”. O pilatismo é exactamente isso: a fraqueza transformada em hábito, a renúncia erigida em sistema.

Na modernidade africana — e em particular em Moçambique — o Pilatismo tornou-se hábito político e social. Governos lavam as mãos diante da pobreza, elites intelectuais lavam as mãos diante da opressão, e o povo, por cansaço ou medo, aprende a reproduzir a mesma omissão. O Pilatismo é, portanto, uma doença colectiva da consciência.

  1. O Pilatismo Acadêmico

Nossas universidades estão cheias de “professores-doutores” que produzem teses que ninguém lê e discursos herméticos que nada mudam. Quando se trata de enfrentar a miséria, a violência ou a corrupção, a maioria prefere recitar teorias estrangeiras. Bourdieu já dizia que o campo acadêmico muitas vezes serve para autopreservação e não para transformação. Gramsci falava dos “intelectuais orgânicos” — mas em Moçambique temos intelectuais burocráticos, que falam de transformação em congressos, mas se calam diante das injustiças. É o pilatismo académico: saber muito, mas calar-se quando o saber precisa virar acção.

Os chamados professores, doutores e académicos de prestígio, quando confrontados com problemas estruturais do país — corrupção, violência, fraudes eleitorais — recorrem a um vocabulário enfeitado, “emblemágico”, que pouco ou nada transforma. Falam em “resiliência democrática”, em “desafios conjunturais”, mas na prática nada se move. A academia, que deveria ser farol crítico e motor de mudança, muitas vezes se torna cúmplice pela omissão. Paulo Freire alertava: “A neutralidade é impossível. Quem se diz neutro já escolheu o lado do opressor.”

III. O Pilatismo Político.

Os partidos políticos multiplicam-se em Moçambique como igrejas de esquina: cada um com a sua bandeira, mas poucos com ideologia clara. Aqui, a política tornou-se palco onde partidos e dirigentes praticam pilatismo todos os dias. Prometem servir o povo, mas no fundo, exigem quotas, reproduzem clientelismos e procuram apenas ocupar espaço no banquete do poder. Fala-se em democracia, mas as decisões são tomadas em salas fechadas, em negociações de elites. Fala-se em povo, mas os problemas do povo só servem de slogan em campanhas. Quando há denúncias de corrupção, todos lavam as mãos: “não é comigo”, “é assunto da justiça”. O resultado? Um sistema de anacronismo social, onde a política deixou de ser representação da coletividade e tornou-se apenas sobrevivência individual.

Maquiavel já avisava: “A política não tem relação com a moral.” E, de fato, vemos líderes que falam de ética em público, mas em privado conspiram para manter privilégios. Pilatos sorri neles. O contrato social em Marx já era considerado uma utopia — e aqui é farsa.

Cada partido que nasce promete ser “a alternativa”, mas no fundo se transforma em ONG eleitoral, dependente de quotas, doações externas ou patrocínios obscuros. Pilatismo político é isso: vestir a bandeira para esconder a ausência de ideologia clara.

  1. O Pilatismo Jornalístico.

O jornalismo, em vez de fiscalizar o poder, muitas vezes prefere a corrida da fofoca,

publicando rumores não verificados. Casos recentes — como a falsa notícia da morte de figuras públicas — revelam o jornalismo predatório, que alimenta o imediatismo e a desinformação. Ortega y Gasset já denunciava: “O imbecil coletivo lança foguetes antes da festa.” O jornalismo que se rende ao sensacionalismo contribui para o Pilatismo, pois lava as mãos diante da missão de informar com rigor. A imprensa lava as mãos: “nós só noticiamos, não fazemos justiça”. Mas como dizia Kapuściński, o jornalista não pode ser neutro diante do sofrimento humano. Neutralidade aqui é pilatismo.

  1. O Pilatismo Religioso.

As igrejas em Moçambique — católicas, evangélicas, pentecostais — muitas vezes

reproduzem o Pilatismo ao prometer o céu enquanto ignoram as injustiças na terra.

Pastores e padres enriquecem, enquanto fiéis empobrecem. A teologia da prosperidade transforma a fé em mercado. Marx, em sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, já definira: “A religião é o ópio do povo.” E no nosso contexto, é também um anestésico social.

Ainda la nas igrejas pregam a salvação, mas muitas vivem da exploração da miséria espiritual e material. Pastores lavam as mãos diante da corrupção, do desemprego, da guerra — “é vontade de Deus”. Enquanto Cristo expulsava os vendilhões do templo, hoje vemos líderes religiosos a negociar lugares no Parlamento. A fé vira comércio e o silêncio cúmplice se mascara de oração. Isso é pilatismo religioso: abençoar a injustiça e chamar-lhe destino.

  1. Pilatismo das ONGs.

As ONGs entram nos cenários de guerra, fome ou desespero como se fossem salvadoras. Distribuem mantas, arroz e slogans. Mas no fundo, muitas vivem de prolongar o sofrimento — pois sem desgraça não há financiamento. Fanon já denunciava a burguesia nacional que, em vez de libertar, se ajoelha às potências estrangeiras. Muitas ONGs funcionam como “lavanderias de consciência” do Ocidente. É pilatismo humanitário: fingir ajudar para manter a dependência.

VII. Pilatismo dos Movimentos e Associações.

Quantas associações de jovens, de mulheres, de trabalhadores existem? Muitas. Mas quantas realmente transformam? Poucas. Há movimentos que aparecem só em época de projectos financiados. Há líderes associativos que usam a causa como trampolim para cargos políticos. Quando a base clama, eles lavam as mãos: “não temos meios”, “é o governo que decide”. Esse pilatismo associativo mata a confiança social e deixa o povo órfão de representatividade.

VIII. O Pilatismo Popular.

Não apenas líderes e intelectuais, mas também o povo aprende a lavar as mãos: “Esse problema não é meu, é deles.” Mas como dizia Rousseau: “O povo engana-se, mas nunca corrompe-se.” A contradição é que hoje o povo já se corrompe pela passividade. O povo, cansado, também cai no pilatismo: Reclamam nos mercados, nos chapas, nas filas, mas calam-se na hora do voto. Dizem “nada vai mudar”, e assim confirmam a vitória do opressor. Cada um lava as mãos: “o problema não é meu”. Como dizia Marx: “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Mas se o povo lava as mãos, ninguém fará por ele. Cada povo merece o líder que tem — não porque Deus escolheu assim, mas porque a omissão coletiva permite que o pior se imponha.

  1. Pilatismo Cultural e Artístico.

Mesmo a cultura sofre: Muitos artistas falam em “denúncia social”, mas só até onde não compromete o patrocínio. Prefere-se o espetáculo vazio em vez da arte que incomoda. O teatro virou entretenimento, não consciência. A arte, que deveria ser faca afiada contra a injustiça, muitas vezes é reduzida a selfie e performance vazia. Isso também é pilatismo.

Com isso, o pilatismo é a doença de uma sociedade que se acostumou a delegar responsabilidade. É mais fácil lavar as mãos do que sujar-se na luta. Mas cada vez que um líder, um acadêmico, um padre, um jornalista, uma ONG, um artista ou um cidadão comum lava as mãos, alguém paga com sangue, fome ou silêncio. A síndrome de Pilatos é a epidemia do nosso tempo. Só se rompe quando alguém decide não lavar as mãos, mas sujá-las — não de covardia, mas de coragem.

Corrupção institucionalizada: todos sabem, poucos denunciam; quem denuncia é silenciado. Eleições contestadas: os relatórios se acumulam, mas nada se faz; Pilatos lavou as mãos. Pobreza rural: discursos acadêmicos, programas governamentais de fachada, ONGs que mais beneficiam a si próprias. Juventude desempregada: discursos sobre “empreendedorismo”, mas nenhum plano estrutural; apenas slogans. O Pilatismo é a doença do nosso tempo. Uma sociedade que não assume responsabilidade pela sua história é condenada a repeti-la. É preciso denunciar, escrever, falar e agir, mesmo que doa, mesmo que custe amizades. Porque lavar as mãos é perpetuar o crime. Porque calar-se é ser cúmplice. 

A luta contra o Pilatismo não é contra um homem, um partido ou uma igreja — é contra a mentalidade de omissão que mata mais do que a bala. Quem se cala diante da injustiça já escolheu o lado do opressor. O Pilatismo é o nosso pecado colectivo. A história nos julgará não pelo que sofremos, mas pelo que deixamos de fazer. Se Pilatos lavou as mãos, nós não podemos. Pois cada vez que o silêncio vence, o futuro morre um pouco mais.

 

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

Na última década, a descentralização voltou ao centro do debate político em Moçambique, ocupando espaço em diferentes fóruns nacionais, universidades e movimentos cívicos. Recentemente, ganhou um novo fôlego, após a intervenção do Presidente da República no Dia Africano da Descentralização e do Desenvolvimento Local, a 10 de Agosto de 2025, quando defendeu uma governação participativa e o reforço do papel das comunidades no desenvolvimento local sustentável.

Este artigo insere-se nesse contexto, como uma contribuição para um debate que ultrapassa a esfera técnica. Trata-se, acima de tudo, de discutir o modelo de desenvolvimento e a arquitectura política de Moçambique, num momento em que o Compromisso Nacional de Diálogo Inclusivo 2025 coloca a descentralização como peça-chave da reconciliação e da estabilidade nacional. A urgência deste debate é o próprio Acordo Político de 2025, que exige repensar o desenho actual da descentralização e construir um sistema que combine participação, inclusão e eficiência. 

A pergunta central, por isso, já não é apenas como descentralizar, mas para quê, para quem e, urgente no país, que modelo? O modelo vigente, embora inclua medidas que sugerem maior autonomia local, continua amarrado a mecanismos de controlo central, sobreposição de competências e limitações orçamentais que reduzem o seu alcance. O verdadeiro desafio é desenhar um sistema capaz de converter a descentralização de promessa (e/ou retórica) política em acções concretas, aproximando o Estado das comunidades, devolvendo-lhes poder real, e tornando-o mais ágil e sensível às diversas realidades territoriais.

 

Descentralização: o que é?

A descentralização é comummente entendida como a transferência de poderes, responsabilidades e recursos do governo central para níveis inferiores de governação, como regionais, provinciais, distritais ou municipais. O conceito per si assenta na premissa de que governos mais próximos dos cidadãos estão em melhores condições para identificar necessidades, formular respostas eficazes e reforçar a legitimidade democrática e a comunidade em melhores condições de se fazer ouvir e fiscalizar os seus líderes. A literatura distingue, também, três dimensões fundamentais: (i) descentralização política, quando o poder decisório é confiado a órgãos eleitos localmente; (ii) descentralização administrativa, que delega funções e gestão a serviços desconcentrados; e (iii) descentralização fiscal, que atribui receitas próprias e capacidade orçamental aos governos subnacionais ou simplesmente locais.

Entre estas, a última (componente fiscal) é crítica, ou seja, sem autonomia financeira qualquer forma de descentralização política ou administrativa se torna incompleta e, muitas vezes, ineficaz. A ausência de recursos próprios deixa os governos locais dependentes de transferências condicionadas, reduzindo a sua margem de manobra para responder a prioridades locais e comprometendo a capacidade de planear a médio e longo prazo.

A experiência internacional confirma este aspecto. Casos relativamente bem-sucedidos – como os da Suíça, Canadá e Alemanha – mostram que a descentralização só produz ganhos reais quando combinada com três condições essenciais: clareza nas competências, evitando sobreposição de funções e conflitos institucionais; autonomia fiscal sólida, assegurando receitas adequadas e previsíveis; e mecanismos robustos de responsabilização, que garantem que o poder transferido se traduza em melhor governação, maior transparência e confiança social acrescida.

Em África, experiências como as do Quénia e da África do Sul mostram que, quando bem concebida, a descentralização pode ser um motor de inclusão, eficiência e coesão nacional – no caso do Quénia, a criação de cerca de 47 condados, cada um com governo próprio eleito (governador, assembleia local e órgãos administrativos). Eles são próximos a províncias, no caso moçambicano, mas com competências claras e orçamentos próprios, o que trouxe avanços na prestação de serviços e na redução de disparidades locais. Na África do Sul, o sistema de transferências fiscais (Provincial Equitable Share-PES), um mecanismo que distribui automaticamente uma porção das receitas nacionais entre as províncias com base em critérios objectivos (população, alunos em idade escolar, despesas com educação e saúde, necessidades institucionais, nível de pobreza e actividade económica) ajudou a equilibrar recursos entre municípios, permitindo políticas mais adaptadas às necessidades de cada comunidade.

Porém, o continente também oferece exemplos de descentralizações falhadas ou incompletas. No Mali, a transferência de responsabilidades não foi acompanhada de recursos adequados, deixando governos locais dependentes do centro e enfraquecendo a confiança pública. Na Nigéria, estruturas descentralizadas foram capturadas por elites partidárias, transformando autoridades locais em extensões do poder central e mantendo desigualdades regionais profundas.

Perante este cenário de sucessos e insucessos, Moçambique encontra-se numa zona cinzenta. Apesar de avanços institucionais, como a eleição de governadores provinciais, persistem desafios: dependência fiscal excessiva, sobreposição de competências e fraca responsabilização. O momento exige aprender com as lições internacionais, e africanas em particular, para construir um modelo de descentralização que una autonomia efectiva, gestão responsável e participação pública, garantindo desenvolvimento equilibrado e estabilidade política.

 

A prática em Moçambique

Em Moçambique, a descentralização não nasceu de um impulso democrático genuíno, mas sim como subproduto de sucessivos acordos de paz entre elites políticas rivais. Embora o discurso oficial a apresente como um instrumento para estimular o desenvolvimento local e ampliar a participação cidadã, na prática, ela tem servido como moeda de troca em negociações de cessar-fogo e partilha de poder. A narrativa tem sido apelativa e de grande valor para o marketing político, sobretudo para os doadores internacionais que, há décadas, defendem e financiam agendas de governação inclusiva. No entanto, a realidade é bem mais complexa. No terreno, o processo tem servido, sobretudo, para acomodar os interesses das lideranças da Frelimo e da Renamo, que procuram preservar as suas zonas de domínio no campo político moçambicano, ou seja, mudam-se as regras do jogo enquanto se mantêm as posições no tabuleiro. Tudo isto decorre num contexto marcado por profunda desconfiança política e pela exclusão sistemática de actores independentes.

Este padrão repete-se desde o Acordo de Roma, em 1992, passando por Maputo, em 2014 e 2019. A cada ciclo, reformas anunciadas como marcos históricos acabam por se revelar essencialmente cosméticas ou meramente administrativas, com impacto limitado, ou nulo, na efectiva redistribuição do poder. Quando posta à prova, a vontade popular enfrenta barreiras estruturais: processos eleitorais pouco transparentes, controlo centralizado das instituições e, mais recentemente, as eleições autárquicas de 2023, marcadas por denúncias generalizadas de fraude. Estes episódios, não só alimentam protestos e instabilidade, como corroem progressivamente a confiança dos cidadãos nas regras do jogo democrático e nas instituições públicas.

O Acordo de Paz e Reconciliação de 2019 ilustra de forma paradigmática esta tendência. Assinado por Filipe Nyusi e Ossufo Momade, prometia reforçar a governação local através da eleição de governadores provinciais e, no futuro, de administradores distritais. No entanto, o quadro legislativo do novo “paradigma de descentralização” que se seguiu incorporou dispositivos de controlo central que diluíram o alcance antes pretendido da reforma. O caso mais emblemático é a criação do cargo de secretário de Estado na província, nomeado pelo Presidente da República e dotado de poderes executivos paralelos aos do governador eleito, instaurando uma estrutura bicéfala que gera sobreposição de funções, conflitos institucionais e esvaziamento silencioso da autoridade de representantes legitimados pelo voto popular. Assim, a descentralização proclamada no papel converteu-se, na prática, num arranjo institucional que preserva a lógica centralista do poder, adiando, mais uma vez, a construção de uma governação local autónoma e capaz de reforçar a coesão nacional.

 

Desafios actuais da descentralização em Moçambique

O quadro actual de governação local em Moçambique é marcado por um arranjo institucional híbrido e de elevada complexidade. As províncias operam sob um sistema bicéfalo, como referimos antes, de um lado, governadores eleitos, e, de outro, secretários de Estado nomeados pelo Presidente, ambos com estruturas administrativas próprias e competências que frequentemente se cruzam. Nos distritos, mantém-se a administração desconcentrada, sob forte tutela do poder central, e a promessa constitucional de eleições locais dos administradores foi adiada sem horizonte temporal definido.

Estes mecanismos, inscritos na legislação aprovada após o Acordo de Paz e Reconciliação de 2019, foram concebidos para equilibrar a distribuição de poder entre o governo central e a oposição. No entanto, na prática, funcionam como barreiras à autonomia dos órgãos eleitos. A figura do secretário de Estado na província, com acesso directo ao Conselho de Ministros e poder de supervisão administrativa e financeira, subordina, de facto, a agenda provincial à aprovação central. No plano fiscal, a dependência de transferências discricionárias – sem fórmula legal implementada para distribuição de recursos – torna as prioridades locais vulneráveis a decisões políticas tomadas em Maputo.

As consequências são visíveis na gestão quotidiana. No sector da saúde, a duplicação de estruturas provinciais gera atrasos na execução orçamental e dispersão de responsabilidades; no abastecimento de água e saneamento, disputas por meios humanos e materiais reduzem a eficácia dos serviços, sobretudo em zonas rurais. Estas ineficiências não resultam apenas de limitações de capacidade técnica, mas de um desenho institucional que privilegia o controlo central e enfraquece a coordenação territorial.

A descentralização, concebida para aproximar o poder dos cidadãos e integrar politicamente as regiões historicamente contestadas, acabou por reforçar a centralização por outros meios. Ao limitar a margem de decisão e os recursos dos governos subnacionais, o modelo compromete, não só o potencial de desenvolvimento local, mas também a credibilidade da descentralização como ferramenta de reconciliação e coesão social. Uma descentralização de faz de conta não congela apenas o desenvolvimento; pode reabrir feridas políticas e sociais que o país acreditava já ter cicatrizado.

 

Que saídas? Alguns pontos para reflexão

Corrigir a trajectória da descentralização moçambicana requer reformas profundas, que vão além de ajustes administrativos. É preciso enfrentar as distorções estruturais que a transformaram num mecanismo de gestão de conflitos entre elites e devolvê-la ao seu propósito original: aproximar o poder das comunidades e promover o desenvolvimento territorial equilibrado. A experiência internacional oferece lições claras sobre como fazê-lo.

  1. Clarificar e unificar competências: a coexistência de governadores eleitos e secretários de Estado nas províncias (SEP) gera redundâncias, conflitos de autoridade e dilui a responsabilização perante o eleitorado. O ideal é consolidar as funções executivas numa única autoridade legitimada pelo voto popular, garantindo que as decisões provinciais reflictam prioridades locais. Alternativamente, seria imperioso redefinir as funções dos SEP, circunscrevendo-as a actividades de coordenação, sem poderes executivos, focada em articulação interministerial e representação protocolar do Estado central. Países como Cabo Verde demonstram que a coordenação central pode existir sem subordinar a autoridade local.
  2. Reduzir estruturas paralelas desconcentradas: além da figura do SEP, há, no terreno, múltiplas estruturas desconcentradas – desde direcções provinciais a delegações sectoriais – que respondem directamente a Maputo, ignorando a cadeia de comando local. Isso cria feudos administrativos e dificulta a integração de políticas. A reforma deve estabelecer que todas as unidades técnicas a nível provincial estejam sob supervisão do governo provincial eleito, mantendo apenas representações centrais (SEP) para funções estratégicas (defesa, segurança, política externa).
  3. Instituir uma fórmula obrigatória de repartição de receitas: a descentralização sem recursos previsíveis é uma ficção. É urgente aprovar, por lei, uma fórmula transparente de transferências intergovernamentais baseada em critérios objectivos – população, indicadores de pobreza, extensão territorial, necessidades de investimento – e blindada contra manipulação política. O exemplo do Quénia, onde a Constituição fixa 15% da receita nacional para os condados, mostra que a previsibilidade orçamental permite planeamento de longo prazo e atrai investimento local.
  4. Estabelecer calendário vinculativo para eleições distritais: o adiamento indefinido das eleições distritais mina a confiança nos acordos de paz e perpetua a exclusão política a nível local. É fundamental aprovar um calendário fixo e um quadro legal que assegure as condições técnicas, logísticas e de segurança para a sua realização, de forma a consolidar o princípio de que o poder local deve emanar do voto popular.

Portanto, sem reformas profundas e compromissos reais, que permitam maior inclusão e, quiçá, partilha de poder, a descentralização em Moçambique pode ser incapaz de reduzir desigualdades, fortalecer a governação local ou consolidar a paz. Pior: pode alimentar novas frustrações, fragilizar a confiança nas instituições e reabrir divisões que o país tentou superar ao longo de décadas. O momento de agir é agora. Cabe ao governo, aos partidos políticos, aos parceiros internacionais e à sociedade civil unir esforços para garantir que este processo cumpra o seu propósito original e se torne um verdadeiro instrumento de desenvolvimento, coesão social e estabilidade duradoura.

Introdução

O desenvolvimento de uma nação não é obra do acaso, nem pode ser apenas um discurso político. O desenvolvimento nacional é um processo planificado e não pode ser reduzido a slogans políticos ou proclamações administrativas. Em Moçambique, a afirmação do distrito como “pólo de desenvolvimento” permanece, em grande medida, um exercício retórico, sem a correspondente materialização em termos de políticas, recursos e liderança transformadora. Durante décadas, o debate em torno da descentralização e do desenvolvimento local ficou preso a questões meramente administrativas e à retórica política.

Entretanto, o futuro de Moçambique exige uma mudança de paradigma: o distrito não deve ser apenas uma unidade administrativa; deve ser transformado em motor de crescimento económico, inovação social e soberania produtiva.

Neste artigo, defendemos que a elevação do distrito a pólo de desenvolvimento e base da planificação nacional constitui uma reforma estratégica decisiva para assegurar a independência económica e o desenvolvimento endógeno do país. Para tal, torna-se imperativo conjugar três elementos fundamentais: planificação territorial, liderança transformacional e alocação inteligente de recursos.Um país constrói-se a partir da base. O distrito, enquanto célula administrativa e social, deve ser transformado em núcleo de crescimento económico, inovação e produção. A descentralização apenas formal não é suficiente. O que propomos é:

  • Atribuir ao distrito o estatuto de base da planificação nacional, garantindo que os planos de desenvolvimento se construam a partir das potencialidades locais;
  • Alocar ao distrito os recursos necessários para que o crescimento económico não seja exógeno ou dependente, mas sim endógeno, inclusivo e sustentável;
  • Transformar o distrito num laboratório nacional de inovação, onde se desenham e testam soluções de impacto para a agricultura, indústria, urbanismo, habitação, turismo, serviços e emprego;

A experiência internacional demonstra que nenhuma estratégia de desenvolvimento se concretiza sem liderança forte, visionária e disruptiva.

Neste sentido, defendemos a necessidade de:

  • Criar um corpo de administradores distritais exclusivamente escolhidos pelo Presidente da República, garantindo confiança política e clareza de missão

Estes administradores seriam submetidos a um processo rigoroso de capacitação inicial e contínua, ministrada por especialistas nacionais e estrangeiros com experiência comprovada em modelos de governação descentralizada e desenvolvimento local. O objectivo será dotá-los de ferramentas modernas de liderança, gestão pública e inovação administrativa, preparando-os para agir como motores de transformação nos distritos.

Cada administrador teria a obrigação de definir métricas claras de desempenho, alinhadas ao plano de desenvolvimento distrital e provincial, que seriam avaliadas em prazos previamente definidos. Esta prática garantiria responsabilidade, transparência e foco em resultados concretos. Além disso, a capacitação não seria um processo pontual, mas contínuo e dinâmico: periodicamente, os administradores passariam por programas de actualização, partilha de experiências e aprendizagem de novas soluções adaptáveis à realidade moçambicana. 

Para reforçar o acompanhamento e a disciplina institucional, estes administradores manteriam uma linha directa de comunicação com o Presidente da República, assegurando alinhamento estratégico, rapidez de decisão e eficácia na execução. Paralelamente, seriam regularmente escrutinados pelo Ministério da Planificação e Desenvolvimento (MPD) e pelo Gabinete de Reformas e Projectos Estuturantes, garantindo uma fiscalização independente e permanente.

Com este modelo, cada distrito deixaria de ser apenas uma estrutura administrativa e passaria a ser um pólo activo de desenvolvimento, liderado por gestores públicos de confiança, preparados para inovar e transformar o território, contribuindo, assim, para o fortalecimento da independência económica nacional.

  • Nomear jovens líderes altamente capacitados, comprometidos com ética, ousadia e resultados concretos, para dirigir distritos-pólo.
  • Conferir a esses administradores poderes especiais, que lhes permitam atrair investimentos, estabelecer parcerias estratégicas e mobilizar as comunidades locais.

Esses líderes seriam apoiados por um comité nacional de peritos e estrategas, actuando como think-tank dedicado ao desenho de políticas para a independência económica e para a aceleração do desenvolvimento endógeno.

Para a reforma estratégica “distritos-pólo de desenvolvimento”, propomos que sejam seleccionados cinco distritos por ciclo de governação em cada província para funcionarem como pólos de desenvolvimento. Nesses distritos:

  • O Fundo de Desenvolvimento Económico Local (FDEL) deve ser aplicado de forma exclusiva em projectos de crescimento produtivo e geração de emprego;
  • Os investimentos devem privilegiar pequenas e microempresas locais, evitando a drenagem de capitais para as capitais provinciais;
  • Deve ser promovida a instalação de empresas e serviços que criem empregos locais e reforcem o tecido económico distrital.

Com esta estratégia, o distrito deixa de ser apenas um espaço administrativo e passa a constituir um motor real de crescimento económico provincial e nacional.

O desenvolvimento exige ordem, visão e racionalidade espacial. Por isso, defendemos que:

  • Cada administrador distrital, em articulação com pequenas empresas nacionais de arquitectura, urbanismo e paisagismo, redesenhe o plano distritital de uso da terra (PDUT);
  • O território distrital seja organizado em zonas claramente definidas para habitação, indústria, serviços, agricultura, infra-estruturas sociais e reservas ambientais;
  • Os investimentos públicos e privados sejam canalizados apenas para as áreas previamente definidas como centrais e estratégicas, garantindo maior eficiência e impacto.

Esta abordagem não só reforça a sustentabilidade ambiental como cria um ecossistema propício à atracção de capitais e inovação. O alcance dos objectivos propostos exige medidas ousadas:

  • Conferir aos administradores distritais dos pólos de desenvolvimento autonomia para negociar investimentos nacionais e internacionais;
  • Permitir a constituição de parcerias público-privadas estratégicas a nível distrital;
  • Transformar a população local em agente activo do desenvolvimento, promovendo o envolvimento comunitário e a apropriação das políticas públicas.

O futuro de Moçambique constrói-se no distrito. É nele que se encontra a terra fértil, a juventude, o capital humano e o potencial produtivo que podem sustentar o salto histórico do país rumo à independência económica.

Transformar o distrito em pólo de desenvolvimento e base da planificação nacional não é apenas uma proposta política: é uma necessidade estratégica, que responde às exigências da descentralização, à urgência da industrialização e à luta pela redução das desigualdades regionais.

Com liderança transformacional, planificação endógena e recursos devidamente alocados, cada distrito pode tornar-se num motor de crescimento e inovação, contribuindo para que Moçambique alcance, de forma sustentável, o desenvolvimento que a sua história e o seu povo exigem. O distrito deve ser o laboratório do futuro nacional, onde se testam soluções inovadoras para educação, saúde, agricultura, indústria, turismo, habitação e emprego.

O dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e jornalista George Bernar Saw dizia que o progresso é impossível sem mudança; e aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada. Vamos mudar?

 

Há viagens que não se fazem apenas com o corpo, são travessias que deslocam a língua, a memória, o imaginário. Entre Moçambique e África do Sul, o vaivém de homens e mulheres, primeiro, nas minas, depois, nas cidades e periferias, construiu um arquivo sensível de canções, poemas e narrativas que resistem ao esquecimento. “Magaíça” (1950), de Noémia de Sousa, “Mufolhe” (2013), da Banda Kakana, e “Ntxintxile” (2017), de Assa Matusse, são fragmentos desse arquivo. 

As três obras em questão estão separadas por décadas, mas unidas pela mesma ferida: o desencanto diante de uma promessa que sempre se revelou menor do que o sacrifício exigido.

No seu poema, Noémia de Sousa abre a narrativa com a figura de mampara: o homem simples, carregado de sonhos, que embarca num comboio rumo a um desconhecido, vestido de promessa. Na sua trouxa, leva “a ânsia enorme” e, no olhar, o pasmo diante da máquina colonial. Mas, quando regressa, o brilho é falso, a mala é pesada de bugigangas inúteis e, no corpo, a juventude ficou para sempre soterrada no fundo da mina. É o retrato de uma inocência devorada, como se o ouro extraído não fosse senão a cor pálida da própria vida a esvair-se. 

A mãe dos poetas moçambicanos denuncia, com imagens concretas sugeridas pela palavra, a brutalidade da exploração e a desilusão.

Meio século depois, a música “Mufolhe”, do álbum Serenata, retoma o fio condutor do sujeito magaíça proposto por Noémia de Sousa. Entretanto, no caso, esse sujeito tem voz audível. Já não é apenas um ser observado. Agora confessa, canta a ilusão comprada com rands e carnes, refere-se à mulher talvez perdida, ao filho que só o conhece pela fotografia. 

A melodia nostálgica da Banda Kakana, somada ao refrão repetitivo, imprime o peso da saudade e a consciência de que “não há dinheiro que compre o amor”. E, por via disso, dialoga com o mampara do poema de 1950.

Quanto ao tema “Ttxintxile”, de Assa Matusse, parece uma música com o tom mais endurecido em relação às propostas de Noémia de Sousa e da Banda Kakana. No entanto, a melodia é suave, quase embalada, um paradoxo, pois a letra trata de desprezo, de presentes humilhantes, de violência física. É uma doçura que esconde navalhas.

O contraste amplifica o impacto emocional, exigindo atenção sensível do ouvinte. O refrão, traduzindo, que diz “Eu, então, já mudei” não é uma simples constatação, mas encerramento de ciclo.

O mampara ingénuo, de Noémia de Sousa, e o arrependido, da Banda Kakana, convertem-se nessa voz que já não busca reparo, mas sim ruptura. 

Lidas em sequência, as três propostas formam um triângulo equilátero. Em “Magaíça”, vemos o sonho antes e depois da mina. Em “Mufolhe”, vemos o arrependimento a tentar ainda salvar o que resta. Em “Txintxile” vemos o olhar que já não pede salvação, apenas reconhece a cicatriz. É como se cada obra completasse a anterior e preparasse o chão para a seguinte, num diálogo que atravessa o tempo e a língua, provando que a ferida migratória não se cura apenas com o passar dos anos.

As três autoras apresentam três perspectivas ramificadas na mesma verdade. A  denúncia é a mesma e, no final, é como se todas as autoras dissessem que a estrada entre Moçambique e África do Sul não é só geografia, é também o mapa daquilo que deixamos para trás e daquilo que nos torna, para sempre, diferentes.

 

Persiste, há séculos, uma tradição muda e insidiosa: a de revestir o fel com verniz de doçura. Na literatura, a miséria social é frequentemente adornada com metáforas fulgurantes e eufemismos dóceis. Essa complacência travestida de lirismo permite falar do sofrimento como se fosse possível polir a dor, maquilhar a injustiça e atenuar a violência.

Quando se fala de punições extrajudiciais, agressões sexuais, violência nas ruas ou dependências, o gesto comum é temperar o impacto, como se a verdade fosse demasiado intensa para a sensibilidade da comunidade. Mas quando a arte se acomoda nesse refúgio, renuncia, ainda que sem intenção, à sua função mais transformadora que é desvendar o manto das aparências e expor, sob plena evidência, a essência das realidades que se tenta ocultar.

Francisco Chuquela rompe com a tradição de suavizar o real e apresenta, em “Tchambalakati e Outras Crónicas”, uma visão directa, oferecendo ao leitor o contacto com a vida em sua forma mais autêntica e contundente.

Chuquela constrói as suas crónicas a partir de um olhar atento sobre o quotidiano, capaz de transfigurar acções banais em registos literários de relevância cultural e estética, porque, na verdade, “somos todos actores e actrizes neste cinema sociedade” (Alcione Thulani, in Grito o Mundo Gagueja). O autor alia economia verbal, mantendo um equilíbrio entre simplicidade e elaboração, e estruturando as narrativas com cadência oral.

A estrutura narrativa é, em grande parte, circular, ou seja, inicia-se com uma imagem concreta, desenvolve-se por gestos, pequenos diálogos, e encerra retomando o ponto de partida, agora impregnado de novos factos. Esse formato é evidente no capítulo que empresta o título a obra, “Tchambalakati”, que começa com as crianças a “encherem o quintal espaçoso, subiam e desciam às árvores pequenas e grandes” e termina com a partilha colectiva do prato.

A identidade estética da obra evidencia um realismo depurado, por vezes entremeado de lirismo, que permite caracterizar as cenas do dia a dia com clareza e precisão. Chuquela descreve objectos e acções tal como são, fazendo o uso escasso de metáforas ou outras figuras de linguagem. Por exemplo, a passagem “a vovó dirigiu-se para dentro da casa de caniço e zinco e de lá trouxe para a sombra da mangueira frondosa no centro do quintal a esteira velha que fizera parte de xiguiane no dia do seu lobolo”. Com isso, é mostrado, de forma directa, sem transformações poéticas, o ritmo real da vida.

A linguagem combina o português com termos vernaculares como “Dzukuta, Pandza e Xigubu”, desta forma, preservando a autenticidade cultural moçambicana.

No capítulo A “Miss” Alcoólatra, Francisco Chuquela conduz o leitor por uma odisseia de peripécias que começa com o retrato quase exótico de Sarita, mulher bela, dançante, alvo de todos os olhares, e termina numa cena voraz de degradação, onde uma fila de homens embriagados se dirige ao banheiro para usufruir do corpo vulnerável da protagonista, saindo “leves e satisfeitos” enquanto ajustam as fivelas aos cintos das calças.

A narrativa esmera-se na descrição estética da ascensão e queda da “miss”, mas omite qualquer acção que confronte ou denuncie o abuso implícito. O lirismo minimiza a gravidade do ocorrido, tornando natural o sofrimento da personagem e falhando em provocar a indignação necessária. Ademais, Sarita é extremamente erotizada, a crónica foca mais no corpo dela do que nos seus pensamentos ou na sua história de fundo.

A ausência de uma uma voz interior da personagem torna-a mais imagem do que pessoa. Essa escolha, portanto, enfraquece a crónica e compromete um dos papéis essenciais da literatura, que é confrontar e incomodar para gerar mudanças. 

No entanto, o autor demonstra habilidade na construção de imagens vívidas e sensoriais, ao dar voz a personagens que habitam as margens da sociedade e ao revelar as consequências das tragédias urbanas, como se mostra no capítulo “Mbhoromani”, o personagem homónimo, ultrapassa a condição de mera figura narrativa e adquire uma presença quase lendária: é ladrão, violador, assassino, ou seja, uma sombra apocalíptica que segundo o texto, rivalizava apenas com Matsanga (pessoa considerada uma ameaça à ordem estabelecida), no imaginário popular.

A descrição da morte de Mbhoromani, amarrado com um “troféu de mabir ao pescoço”, queimado com petróleo, gritando enquanto a multidão celebrava, não é uma ode à justiça, mas sim uma demonstração da atrocidade social travestida de moralidade. A presença de nyangas (curandeiros) que invadem a cena com pancadas rituais e diagnósticos metafísicos, desloca o conflito da esfera da justiça para a do oculto, onde os demónios não são julgados, mas exorcizados.

Ao término deste “Tchambalakati e Outras Crónicas” ainda que misturado com o sabor da criminalidade, superstição, o linchamento, a violação sexual e outras dores do quotidiano, o gosto do chá permanece para fortalecer a vontade de seguir tomando, aprendendo e transformando, porque é nesse líquido quente que reside a força da verdade cultural que a literatura tem o poder de despertar.

 

O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória da Guerra Antifascista Mundial. Essa devastação humana alterou o mapa geopolítico do século XX, e deu origem à ordem internacional centrada nas Nações Unidas. Nessa guerra, a China foi a primeira a acender a chama da resistência no Oriente e ainda se tornou um pilar do campo de batalha oriental principal. Hoje, diante de conflitos geopolíticos e desafios globais cada vez mais complexos, a China continua a ser força vital e firme na defesa da ordem mundial do pós-guerra, veio a propor o conceito de formar uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade, respondendo de forma clara e efetiva à indagação importante como “que tipo de mundo vamos construir e como podemos construí-lo?”.

  1. Catorze anos de resistência sangrenta: a China é “fundadora” da ordem do pós-guerra

Dos lamentos no Nordeste da China em 1931 até os clarins da vitória que ecoaram por toda a China, os 14 anos da Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa são uma epopeia grandiosa escrita com a vida pela nação chinesa. Confrontados com os invasores, os 35 milhões de militares e civis feridos e mortos representam uma promessa solene ao futuro da humanidade: a China busca a justiça pela humanidade.

Nos tempos mais difíceis da Guerra de Resistência, a China imobilizou mais de 70% das forças terrestres japonesas, ganhando um espaço estratégico tão crucial para a União Soviética e as forças aliadas ocidentais. Se a China tivesse colapsado logo no início, o Japão poderia ter dirigido suas forças contra a União Soviética mais cedo ou avançado para a Índia e teria sido alterada completamente a configuração do mundo. Foi precisamente essa contribuição estratégica que fez a China figurar entre os países fundadores das Nações Unidas de cabeça erguida. Signatário da Carta das Nações Unidas que estabeleceu a ordem do pós-guerra, a China se tornou membro permanente do Conselho de Segurança.

  1. Promover a paz e buscar o desenvolvimento: a China é “guardião” da ordem internacional

 

Na década de 1950, a China propôs pela primeira vez os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica, hoje normas básicas universalmente reconhecidas pela comunidade internacional. Sendo o maior contribuinte de tropas para manutenção da paz entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a China é aclamada como “elemento crítico e força chave em operações de manutenção da paz”. Nos últimos anos, em questões regionais candentes como no Oriente Médio e na África, a China tem desempenhado papel proativo nos bons ofícios e na mediação, e envidado todos os esforços pela paz. A Iniciativa Cinturão e Rota conta com a participação de mais de 150 países e abrange as áreas vitais como infraestrutura, energia e economia digital, injetando forte impulso no desenvolvimento dos países do Sul Global. Em áreas de grande relevância para o bem-estar da humanidade, como mudanças climáticas e transformação digital, a China vem contribuindo ativamente produtos, tecnologias e soluções de governança, disponibilizando um volume significativo de bens públicos internacionais.

Enquanto contracorrentes de desglobalização e ruídos de “desacoplamento e corte de cadeia de suprimentos” ganham força, cabe perguntar: Quem está formando barreiras? Quem está construindo pontes? A China, firme no caminho da abertura, inclusão e benefícios mútuos, envia uma mensagem clara a todos aqueles que trilham a árdua jornada da modernização: a China busca o progresso pela humanidade.

III. Propor a formação de uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade: a China é pioneiro da promoção de uma nova evolução da ordem internacional

Em um mundo com mudanças nunca vistas em um século, a competitividade coletiva dos países em desenvolvlimento está em ascensão, enquanto os mecanismos internacionais, estabelecidos com a sociedade ocidental como ator principal, revelam deficiências na governança global, isto é, mecanismos incompletos, conceitos ultrapassados e métodos ineficazes. A nossa era exige, portanto, uma nova percepção de ordem internacional. A proposta chinesa é formar uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade. Devemos promover um mundo multipolar equitativo e ordenado, uma globalização econômica universalmente benéfica e inclusiva, e defender o verdadeiro multilateralismo. Os assuntos internacionais devem ser tratados por meio de consultas entre todos os países, em vez de ser ditados por aqueles que têm os maiores músculos .

A China, forjada nas chamas de guerras, segue inabalavelmente seu caminho em defesa da equidade, justiça, desenvolvimento e progresso para toda a sociedade humana.

Hoje em dia,a tecnologia de Inteligência Artificial (IA) está a crescer de forma explosiva,influenciando profundamente o desenvolvimento sócio-económico e o progresso da civilização humana. Ao mesmo tempo, a tecnologia de IA também traz riscos e desafios imprevisíveis. Alcançar um equilíbrio dinâmico entre o desenvolvimento e a segurança tornou-se numa questão comum para o mundo.

Para promover a cooperação internacional global na IA, o Presidente chinês Xi Jinping propôs a Iniciativa Global de Governança da IA em 2023. Com base nesta iniciativa, a Conferência Mundial sobre IA de 2025 e a Reunião de Alto Nível sobre a Governança Global da IA realizaram-se recentemente em Shanghai,China. Foi divulgado o Plano de Ação para a Governança Global da IA, que absorvou amplamente as experiências e práticas efetivas da Governança da IA em vários países. Visa promover o desenvolvimento e a aplicação da IA e garantir a sua segurança,controlabilidade e equidade, sublinha os princípios do respeito pela soberania,equidade e universalidade,atribui importância ao papel do Sul Global e apela à cooperação internacional para promover conjuntamente o desenvolvimento e a Governança da IA mundial.

O Plano de Ação contribui para a implementação do Pacto Digital Global das Nações Unidas. O ano corrente marca o 80º aniversário da fundação das Nações Unidas. O Plano de Ação sublinha a adesão às Nações Unidas como canal principal e apresenta os seis princípios de boa vontade para povos, respeito pela soberania, orientação pelo desenvolvimento, segurança e controlabilidade, equidade e universalidade, bem como abertura e cooperação, o que cria um futuro digital e inteligente inclusivo, aberto, sustentável, justo, seguro e crível para o mundo global, incluindo o grande número dos países em desenvolvimento. O Plano de Ação salienta a implementação da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, ajudando o Sul global a contatar e aplicar genuinamente a IA, e apoiando os países em desenvolvimento no reforço do aumento de capacidades abrangentes na inovação, aplicação e Governança da IA, com vista a colmatar o fosso digital e inteligente, alcançar um desenvolvimento comum e promover a construção de uma comunidade com o futuro compartilhado para a humanidade.

O Plano de Ação trará novas oportunidades para a China e África no sentido de aprofundar a cooperação da IA. Nos últimos anos, a China tem respondido ativamente às solicitações da África para o desenvolvimento digital e inteligente. Em 2024, A China e 26 países africanos, incluindo Moçambique, publicaram o Plano de Ação para o Desenvolvimento da Cooperação Digital China-África, no qual as duas partes decidiram explorar a cooperação na IA,computação de alto desempenho e comunicações quânticas. Durante a Cimeira de Beijing do Fórum de Cooperação China-África(FOCAC),o Presidente Xi Jinping anunciou que vai construir em conjunto o Centro de Cooperação da Tecnologia Digital China-África e construir 20 projetos de demonstração de infraestruturas digitais e de transformação digital na África. Em junho deste ano, o Presidente Xi Jinping sublinhou mais uma vez na sua mensagem à Conferência Ministerial dos Coordenadores para a Implementação dos Frutos do FOCAC que a China vai reforçar a cooperação com África nas áreas importantes como a IA e fomentar o desenvolvimento de alta qualidade da cooperação China-África. Ao mesmo tempo, a China acrescentou ou aperfeiçoou 150 mil quilómetros de rede arterial de comunicações para os países africanos, bem como construiu um grande número de locais de rede sem fios e de banda larga móvel de alta velocidade, o que lançou uma boa base para a cooperação China-África na IA. Com a implementação do Plano de Ação, a China continuará a aproveitar plenamente as suas vantagens na tecnologia e outras áreas,promovendo continuamente o intercâmbio e a cooperação com os países africanos na construção das infraestruturas digitais, da formação de talentos e da experiência de gestão, de modo a transformar a inteligência artificial num novo ponto de crescimento da cooperação China-África.

O Plano de Ação dá um novo impulso à cooperação pragmática China-Moçambique. A China atribui grande atenção à vontade de Moçambique de intensificar a cooperação nas infraestruturas de comunicações e transformação digital. Implementou vários projetos em Moçambique, tais como o centro de dados do governo eletrónico,o acesso da rede de telecomunicações aos rurais, a estação de receção de dados por satélite Fengyun-2 e a modernização das redes móveis, que melhoraram consideravelmente a taxa de cobertura da rede em Moçambique e o nível de digitalização do governo, impulsionaram o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique e melhoraram o nível de vida do povo moçambicano. Em janeiro do ano corrente, o Presidente Daniel Francisco Chapo propôs no seu discurso de investidura criar um governo orientado para a tecnologia e estabalecer um Ministério das Comunicações e Transformação Digital. A China está disposta a reforçar a cooperação com Moçambique na IA,impulsionando o desenvolvimento da IA para beneficiar melhor Moçambique e os países africanos.

Não existe uma consonância possível entre a poesia e o vazio. Não podem rimar porque a poesia serve para preencher os vazios. Mesmo que a poesia, insistentemente, fale do vazio, o seu último cargo é preenchê-lo. Agora, tentar a mesma harmonização com a anatomia – e todos os seus derivados – tornou-se comum para a poesia nacional. E o mais comum é «ler poetas» que descrevem a mulher e suas qualidades redondas (e.g., aqui cabe muito bem o Eduardo White). Inédito é «ler uma poetisa» que fale dos músculos duros e as canoas do seu amado (e.g., quiçá cabe nesta antonomásia literária, a «multi-irreverente» trovadora Énia Lipanga). Essa tentativa deixou de ser vã, pois abre horizontes para construção de um conhecimento sensível possibilitando uma melhor compreensão do mundo e de nós mesmos. É aqui onde se situa o livro: «Anatomia do vazio» (Sanjane, 20025).

Eusébio Sanjane, minimiza as explosões de expressividade, com os movimentos das coisas indeterminadas, sempre por se fazer e se refazer a cada instante. Um exemplo: «Você que atravessa as noites em silêncio, / que toca as paredes frágeis da memória, você que escuta os meus murmúrios / […] / salve-me» (poema «O grito das sombras», p. 11). Eis aqui um rebuço de pedido de socorro que o poeta mostra para o mundo de forma mais sensível a partir do que nós somos e do que poderemos ser. Até agora, aparentemente, não vemos nenhuma relação entre a poesia e essa anatomia que se faz no vazio. Portanto, podemos dar mais um passo onde percebemos a expressão preceptiva na metafísica da carne. Por meio do estado poético, vemos um enlaçar de algumas partes do corpo à poesia, e ambos se tornam sujeitos para uma existência una, sempre em movimento: «cegos os olhos escalam a escuridão, / também memórias ainda não nascidas. / é sempre o mesmo ciclo: / começo / quase-vida, despedida» (poema «A Pele do infinito», p. 13). Parte do corpo (e.g., olhos) é movida pela expressão criativa e se realiza na experiência sensível (e.g., escalar a escuridão para se encaixar no período da vida). Aqui, Sanjane nos oferece uma fenomenologia de parte dessa anatomia, do sensível que é profundamente marcada pelo encontro do olhar com a significação. Um processo em que não há separação entre expressão e o expresso, entre o acto e a significação de fazer parte de um vazio. Ou seja, quem é cego (parte da deficiência da nossa anatomia) não vê, óbvio, e para preencher esse vácuo de não enxergar escala montanhas da escuridão. Se nesta etapa ainda flutua a incerteza da conexão entre a poesia e essa anatomia que se faz no desocupado, podemos avançar para o passo derradeiro. Ele é nítido no poema que oferece o título ao livro («Anatomia do vazio», p. 13).

O poema «Anatomia do vazio» (Sanjane, 2025, pp.15-16) é composto por quatro partes: I (duas estrofes de 7 versos & 4 versos), II (duas estrofes de 5 versos, cada), III (duas estrofes de 4 versos, cada) e IV (duas estrofes de 4 versos & 5 versos). Sem nos agarrarmos à numerologia poética podemos compreender como o poeta atesta e preenche o oco anatómico. Com ousadia se aproximarmos os primeiros versos de cada parte teremos a resposta. Dessa soma ficamos com a seguinte versificação: «No princípio não havia palavras, / [No] ponto onde o vazio pulsa, / O que é o vazio senão um desejo inverso, / [De] uma dor que mora na falta» (juncão dos versos inicias das fracções do poema «Anatomia do vazio», Sanjane, 2025, pp. 15-16). Credencio, que é aqui onde reside o epicentro do livro. Não pelo facto de ser o poema que é homónimo, com alguma extensão, ao título. No entanto, por oferecer uma profundidade de uma busca que é imersa no mundo ideal das ideias e das nossas vidas. Não é o poema que responde ao vago. É a transcendência, por meio da metafísica do desejo, onde cada experiência vivida se transforma e se expande revelando novos sentidos e significados (e.g., «o que é o vazio senão um desejo inverso»).

Sem máculas, estamos cônscias que hodiernamente vivemos e reclamamos dos diversos vazios das nossas anatomias. O vazio da moral por isso nos completámos com xivhotxongwas (que são hostis a nossa espiritualidade). O vazio de preencher o cabelo com cabelo dos outros. O vazio de clarear a pele para ter a epiderme do outro. O vazio de não aceitar a minha anatomia e tomar anabolizantes para ter a fitotomia do Schwarzenegger. [Abstenho-me de falar do vazio de ser nação. Vazio da moçambicanidade]. Vivemos um espetáculo do preenchimento da anatomia onde nos custa perceber que o corpo pode ser tomado pela estesia de um oco que não tem volta. Pelo estranhamento, pelo silêncio e pela fluidez do movimento da vida. Um vazio que depois de preenchido desaba no «primeiro sopro» (Sanjane, 2025, p. 32).

Para cerrar essa transitória leitura sobre «Anatomia do vazio» (Sanjane, 2025) torna-se injuntivo concordar que por mais que haja uma plenitude do corpo em movimento e que busca um auto-preechiemnto, o estado poético da criação de Sanjane se ocultará no silêncio que reside no intervalo dos gestos que fazemos quando fingimos não aceitar a verdadeira essência dos nossos corpos. A anatomia «desse vazio», é sobre as ações tácitas, do mover-se com compromisso e determinação para o que não foi estabelecido. A anatomia «desse vazio» é sobre o nosso corpo. Como ele revela-se e se oculta ao mesmo tempo. É sobre a aurora espetacular que perdemos por ocultar-se à nossa essência, que se tornou repleto de imprevisibilidade e jornadeia com a mediocridade que exibimos porque nos tornamos «museu das coisas invisíveis» (Sanjane, 2025, p. 42). Na palavra poética o conteúdo nunca se mostra como se espera. A abundância ganha e incorpora o significado quando, em vez de copiar o outrem, deixamo-nos fazer e refazer por aquilo que é endogénico a nossa estirpe. De contrário, seguiremos vazios e não teremos, sempre, um Sanjane para nos chamar ao preenchimento essencial.

P.S.: há quem diga que o erro do poeta é fazer um espaçamento assustador de uma obra para outra. E, contrariamente, há quem diga que os intervalos são necessários. Sanjane vacila entre esses dois ciclos. Mas, como sempre existe um, «mas», Eusébio Sanjane protela o risco dos enormes intervalos: «Rosas e lágrimas» (Ndjira, 2006), «Frenesim: poesia em pétala de lume» (Ndjira, 2013) e «Anatomia do Vazio» (Estação-8, 2025). Bom, para não deixar passar em branco: o «frenesim» passou pelas minhas mãos na minha fase de editor-neófito (Ndjira).

“… o que é que diferencia um romance escrito por

um africano de um romance […] produzido por um

europeu?” Brunel & Chevrel (2004)

“… se deve exigir do escritor, antes de tudo, certo

sentimento íntimo que o torne homem do seu

tempo e do seu país.” Carvalhal (1991)

 

Literaturas africanas e emergentes

Como ponto de partida, Noa (2008) esclarece-nos, referindo-se às literaturas africanas, que elas não escapam àquele que parece ser facto transversal da arte em África e que as mesmas vivem uma profunda interacção e contaminação do meio em que emergem. Diz, ainda, o autor supracitado, que as literaturas africanas têm conformidade conquistada e alargando os seus universo de recepção, levam, em parte, uma tradição estética assimilada do outro, traduzindo elementos de ordem linguística, estética, cultural e vivencial decorrentes da pertença de escritores a um espaço físico determinado.

Dizem Brunel & Chevrel (2004), que as literaturas emergentes africanas têm uma espécie de missão simbólica para com o seu povo. Consideram os autores, olhando para a relação entre a literatura e a sociedade, que nos interroguemos com benefício sobre a própria noção de literatura, sobre a relação que esta mantém com o envasamento da tradição, ou ainda sobre o estatuto do escritor, todavia, Carvalhal (1991) diz que se deve exigir do escritor, antes de tudo, certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país.

Para Matussse (1998), Chevrier concebe-se as literaturas africanas como um campo privilegiado para o estudo das relações entre a literatura e a sociedade. Diz o autor que o estatuto do escritor vem frequentemente ligado à ideologia de descolonização, investe de uma missão simbólica perante o seu povo.

Para Noa (2008), tratando-se de literaturas surgidas no contexto colonial em situação de dominação há mais de cem anos, elas acabaram por incorporar a preocupação com a delimitação de um território estético próprio que, naturalmente impõe o recuso a estratégias de afirmação identitária que questionavam e se distanciavam da ordem cultural e política dominante. Trigo (1992) diz que as literaturas africanas assumem-se contra outras, no momento em que desejam ganhar distância e afirmar-se como diferencial da literatura colonial. Frisa o autor a ideia de que nascendo de um recurso e alternativa a literatura colonial, as literaturas africanas têm de se olhar como uma negatividade, como um momento da dialéctica busca de identidade que lhes está subjacente.

Ainda para Noa (2008), o processo de criação é sempre uma reinvenção de estruturas, temas, perspectivas, linguagens e que garante sempre a legitimidade de uma obra, o que nos remete a ideia de Brunel & Chevrel (2004), que dizem que a emergência das literaturas africanas apresenta uma ambiguidade, quer na sua génese quer na sua recepção, dizem ainda que certos críticos insistem no carácter revolucionário desta literatura, na qual se vêem expressões de um despertar de uma tomada de consciência , no entanto, dizem os autores que há os que sublinham os laços de filiação que unem as literaturas africanas nascentes com a corrente da literatura colonial. Os autores laçam um apelo dizendo que é necessário definir as características susceptíveis de separar as literaturas africanas da tutela ocidental e, portanto, conferir-lhes uma real autonomia. 

Se para Brunel & Chevrel (2004), as literaturas escritas em línguas europeias colocam-se evidentemente em problemas de identificação, sob ponto de vista de que “o que é que diferencia um romance escrito por um africano de um romance colonial produzido por um europeu?”, Trigo (1992) diz que as literaturas africanas de expressão portuguesa buscavam justamente a africanidade, esta que a semelhança da brasilidade, resultaria de um longo processo de maturação cultural.

No entanto, considera Matusse (1998) que as reflexões apresentadas insistem na complexibilidade do contexto em que emergem as novas literaturas, de diversas práticas semióticas, de diferentes domínios de práticas sociais.

Diz o autor imediatamente supracitado, que a emergência de literaturas geradas de situações coloniais nas línguas da colonização, coloca a necessidade de suprimir a condição que implica a fronteira linguística e cultural das mesmas.

No diz respeito à emergência da literatura moçambicana escrita, Matusse (1998), diz que tal facto só se deve a introdução da escrita e com a formação de uma civilização urbana a que a escrita está sempre associada. A assimilação dos valores civilizacionais, a educação orientada segundo os modelos europeus foi o que impulsionou o aparecimento dos primeiros escritores moçambicanos.

No que diz respeito à literatura ligada ao urbanismo, Trigo (1992) diz que as literaturas africanas modernas, as que se exprimem na língua do colonizador, emergem ligadas ao urbanismo enquanto fenómeno semiótico, que se liga a questões de organização social do espaço e que introduz uma forma da realidade característica da África pré-colonial. No entanto, diz o autor que a cidade passa a ser a meta a atingir por aqueles que vêm nela a possibilidade de melhorar o seu estatuto social económico, o que, portanto, provoca o êxodo rural. De forma categórica. O autor afirma que as literaturas emergentes africanas são, de facto, um fenómeno do urbanismo colonial, quer no aspecto temático quer, sobretudo, no aspecto formal, por estas terem surgido de um conflito humano e cultural, que termina com as independências.

Segundo Trigo (1992), as literaturas africanas modernas emergem duma situação de alteridade, todavia, diz o autor que nas literaturas africanas escritas na língua do colonizador, a alteridade é mais do que um simples processo discursivo, é o resultado duma situação conflituante do ponto de vista histórico e antropológico. Em concordância como o autor imediatamente supracitado está Magnolo (1991), que diz que a situação colonial contribuiu para a definição e pluralidade das tradições e que da relação entre colonizador e colonizado emergiu transculturalização, os membros de culturas diferentes participaram de uma interacção semiótica.

 

O desafio ao cânone

Para Noa (2008), um dos factores que faz com que as literaturas emergentes tenham um desafio ao cânone é a língua portuguesa, por ser a língua de comunicação e língua literária. O autor diz que o hibridismo linguístico que as obras dos autores emergentes, como por exemplo, os que usam a língua bantu e a língua portuguesa nas suas produções literárias, projecta-os ao hibridismo cultural que caracteriza um espaço existencial.

Diz o autor imediatamente supracitado, que autores que escrevem em línguas bantu como língua literária, mais do que pretender atingir um determinado público, praticam um acto performativo, que carrega uma visão do mundo, um imaginário colectivo, e, portanto, um sentido de vida que só a língua nativa pode traduzir.

O autor vê como desafio ao cânone, a problemática dos jovens criadores nos países africanos, que têm a língua portuguesa como língua oficial, vendo-se obrigados a escreverem como mandam as regras gramaticais da língua portuguesa, nisto tudo, considera ao autor que alguns jovens criadores têm seus textos rejeitados pelas editoras e pelos júris dos concursos literários, sob pretexto de salvaguardar o critério da correcção linguística, ou por outras, salvaguardar a língua portuguesa.

Portanto, entende-se que um dos elementos que constitui um dos desafios para que as literaturas africanas de língua portuguesa, emergentes, ascendam ao cânone é a língua portuguesa, no entanto, as editoras também têm um papel importante, pois são elas que catapultam a imagem de um determinado autor e sua obra literária. Se houvesse uma ruptura com os modelos de validação de obras literárias sob ponto de vista ocidental, visto que há ainda a problemática de que as literaturas africanas descendem dos colonizadores, haveria uma margem maior de obras literárias que entrariam no cânone universal.

Ainda na linha das literaturas africanas e o desafio ao cânone, Brunel & Chevrel (2004) dizem que a África literária, que a adjectivam como sendo azarada, não tem um melhor acolhimento nos quadros da instituição universitária clássica onde faz ainda muitas vezes a figura de uma intrusa, os mesmos autores voltam a dizer que a bibliografia crítica consagrada as literaturas africanas não pára de crescer, e que a integração das novas literaturas no sistema crítico foi inicialmente caracterizada por universitários e intelectuais ocidentais, no entanto, há o problema da identidade própria das literaturas africanas. Referente a esse problema de identidade, Carvalhal (1991), diz que é preciso “ser” para afirmar-se no conjunto, que é o cânone.

A ideia de “ser” está ligada a naturalidade necessária de expressão nacional, para ser integrada na literatura universal, a autora defende que deve haver uma conquista progressiva que parte de uma consciência de identidade própria. Dá-nos a entender que para se chegar ao cânone universal, primeiro tem de se chegar ao cânone nacional.

Pare se chegar ao cânone universal, tem se passar pelo cânone nacional, de novo, precisa-se do papel das editoras, para venderem a imagem dos autores. Nisto tudo, as universidades também têm uma tarefa no que diz respeito à elevação, numa primeira fase, de uma obra ao cânone nacional, e posteriormente ao cânone universal, porém, o maior desafio dessas literaturas é a língua herdada do colonizador.

Para Carvalhal (1991), as manifestações de inspiração nacional são uma marca das literaturas em sua formação, o que, ao seu entender, sinaliza o processo de afirmação e busca de autonomia.

Se para Brunel & Chevrel (2004), as literaturas africanas podem chegar ao cânone através do valor que lhes é dado no ensino, nas publicações de trabalhos universitários, pela literatura comparada, que designa tal acto de “processo de reconhecimento das literaturas africanas”, para Carvalhal (1991), o conflito entre tendências locais e influências externas, além de transparecerem em obras literárias, também modelam os primeiros textos historiográficos, determinam as escolhas de obras para a fixação do cânone. Magnolo (1991) diz que o cânone literário que constitui o campo dos estudos literários e comparativos é uma produção cultural regional dentro do corpus universal das práticas semióticas.

 

Bibliografia

Brunel, Pierre & Chevrel, Yves. (2004). Compêndio da literatura Comparada. Lisboa: Colouste Grulbenkian.

Carvalhal, Tânia Franco. (1991). Dedalus. Revista portuguesa de literatura comparada, n.1, pp. 49-61.

Matusse, Gilberto. (1998). A construção da imagem da moçambicanidade em José Craveirinha Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: UEM.

Magnolo, Walter D. (1991). Dedalus. Revista portuguesa de literatura comparada, n.1.pp. 219-244.

Noa, Francisco. (2008). Perto do fragmento a totalidade olhares sobre a literatura e o mundo. Maputo: Ndjira.

Trigo, Salvato. (1992). Ensaios da literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Veja. 

 

O que inicia com o som dos sapatos, termina com um grito de medo. Em “Sinédoque do silêncio”, o realizador Gil Nota explora a complexidade de traumas e faz uma crítica ao sistema (conjunto de instituições e relações sociais) que falha em escutar as vítimas. 

A curta-metragem, galardoada com um prémio KUGOMA, baseia-se na figura de linguagem sinédoque, onde uma parte de algo é usado para representar o todo e vice-versa. Essa figura de linguagem é o cerne da narrativa e da crítica presentes na obra.

A protagonista, Khaci, dialoga com a psicóloga que, mais do que uma personagem individual, representa o sistema. Fundamentalmente, a sinédoque manifesta-se nesse diálogo de forma directa, pois Khaci responde às questões considerando a sua própria condição, que, igualmente, reflecte a situação por que passam várias mulheres.  

Como evidência, no início da curta, após a psicóloga perguntar se podiam começar a consulta, Khaci faz o seguinte resumo: “O meu pai matou a minha mãe… O meu irmão me estuprava todos os dias”. Nesse instante, a psicóloga sugere que a vítima comece a narração dos factos desde o início, o que evidencia a função da figura de linguagem e o quadro completo da dor da vítima.

A língua de sinais utilizada por Khaci surge, na verdade, como uma encenação inconsciente da psicóloga, actuando como uma metáfora poderosa para a sensação de não perceber e não como incapacidade de fala. Para reforçar a metáfora, é crucial considerar o contexto temporal da narrativa. 

Após ter sido salva de uma tentativa de suicídio, pelo namorado, Khaci foi internada

durante quase um ano e, subsequentemente, foi viver com ele, sendo vítima de abusos sexuais diários. Khaci cometeu os assassinatos (o do namorado, em legítima defesa, e o da irmã dele, única testemunha ocular). Por conseguinte, começou a fazer as sessões de terapia.

Não existe, por isso, qualquer possibilidade de Khaci ter tido tempo ou condições psicológicas para aprender a língua de sinais. A sua comunicação, através de gestos, portanto, não é uma incapacidade real.

A psicóloga, que representa a sociedade e o sistema, não escuta a profundidade do trauma de Khaci, pois está ali para cumprir um trabalho superficial, uma função burocrática. A falta de empatia é evidente no modo mecânico como faz as questões e, até mesmo, ao interromper a Khaci (cena 06:18). A violência do pai (que era polícia), os abusos do irmão, do amigo do irmão e do namorado, e a apatia da madre e da psicóloga, representam um sistema que a deveria ter protegido, mas falhou tragicamente. 

A falha de comunicação atinge o clímax quando a psicóloga finalmente dá atenção a Khaci, mas não enquanto vítima, e sim como criminosa, pois o momento em que ela escuta Khaci coincide com o relato dos assassinatos que ela cometeu. 

Na curta, Nota revela que o sistema ignora a violência que a personagem sofreu, mas, imediatamente, presta atenção quando ela se torna uma ameaça. 

A frase dita por Khaci: “Eu não tive culpa” ganha um significado ainda mais dramático. Não é apenas uma justificação, mas um indício claro de que a psicóloga a escuta, ainda que seja pelas piores razões. A psicóloga está a ouvir agora, mas a protagonista já está para além da terapia. A sua voz foi ignorada por tanto tempo que, quando finalmente é ouvida, já é tarde demais. Essa falha fundamental leva Khaci a cometer mais um acto de violência, porque percebe que o sistema não ajuda nem a entende.

Apesar da genialidade em abordar temas sensíveis, a curta-metragem apresenta alguns problemas técnicos e de actuação. Há um furo de roteiro no minuto 2:37, no qual Khaci diz: “O meu tio matou o meu pai com um tiro” e, depois, no minuto 4:12, quando a psicóloga diz: “Khaci, tu disseste que o teu tio deu dois tiros ao teu pai” e ela acena positivamente, o que não corresponde ao que foi dito. Além disso, a actuação da protagonista carece de naturalidade, com a tristeza a parecer forçada e falta de foco no olhar.

Em síntese, “Sinédoque do silêncio” é uma curta-metragem marcante pela abordagem crítica e criativa do silêncio sistémico, apesar de algumas falhas pontuais que não desvalorizam o mérito da obra.

 

O espaço não é realida de em si, mas sim a experiência do homem, e a perspectiva não é lei constante do espírto humano” – 

Maria Raposo (1999)

 

Há quem, de longe, olhando-nos como quem decifra qualquer coisa que mereça essa investida calculada, interpela-nos com algumas palavras como “você vai escrever sobre isso”. Uma pergunta não aberta, até porque, sabe-se, a convenção não segue para esse caminho, mas uma pergunta deixada ao acaso, e sem nenhuma tonalidade de pergunta, e que se conflui nessa ambiguidade de recomendação, pergunta e afirmação; convenhamos, o silêncio que daí advém é a única coisa sensata.  Esse augúrio de quem deixa tudo para o lado e faz uma imersão naquele singular momento revela muito da exposição. E essa coisa bela deu-se na inauguração da exposição colectiva “mahanhela” (vivências em ronga/changana)   na última quarta-feira (06/08), na Fundação Fernando Leite Couto.

Já tendo exposto cá o título que carrega esta exposição, considero que já estejam criadas as condições para esse retomar de juízos. Sim, juízos, pois são muitos. Por um dado momento paramos com um pensamento em mãos, e num outro instante atropela-nos um outro, e assim acabamos nesse baile de parar e sermos atropelados. E eu ter escrito sobre aquele preciso momento em que alguém me falou sobre escrever sobre a exposição, talvez sem uma explicação consciente — e como dá-nos regozijo ter o Freud para explicar algumas das nossas incoerências somente com a palavra inconsciente — era mesmo para esse fim de retratar e fotografar pensamentos instantâneos, o que é o pano de fundo da técnica e proposta pictórica de Phamby.

Vamos falar da obra “A nsati ni lovholile”, que, traduzindo para português, signfica “eu lobolei a mulher”, com as dimensões 98cm x 90cm, um acrílico sobre tela. Primeiro que, tal como nas outras obras, Phamby usa o pincel com muita rapidez. Essa rápida pincelada pode suscitar ideias de que Phamby “despacha” o seu trabalho. Contudo, em algumas vezes, em artes, nem todos os adereços estão inseridos na obra para esse jogo dialógico que visa balbuciar qualquer significado que seja, às vezes, está apenas para o ornamento da própria obra, nesse olhar atento à estética. Essa falta de sensibilidade criva no apreciador, que está nessa incessante procura pelo que se diz, a ideia de que uma obra está, como se pode pensar, no caso de Phamby, “despachado” (feito sem cauto).

Com pinceladas rápidas — e que se entenda bem o que quis dizer, porque é mesmo isso, pinceladas rápidas — Phamby, nessa sua missão pictórica, pinta um homem carregando nas costas uma mulher, a sua já mulher. Os talvezes aqui também se misturam (darão-me, por agora, um tempo para ser Mia Couto): por um lado nesse gesto pode interpretar-se carinho que um homem tem pela mulher a qual lobola, por um outro lado pode trazer à tona o sentimento generalizado que se tem quando um homem, finalmente, paga o dote, então ‘carrega’ a sua mulher. E esse carregar pode não ser mais de carinho, mas de ‘coisificação’ da própria mulher, em que o homem já se sente o proprietário da mulher. Ou mesmo um outro terceiro lado: pode ser interpretado como uma simbologia de como o casamento é visto; neste ponto a biblia, que é uma tradição outra, e a tradição africana andam de mãos como marido e mulher pintados no quadro “casamento” do mesmo artista na mesma exposição: ambos concordam que o homem é o provedor. Em palavras outras, talvez, há aqui a representação de como, no casamento, quem “carrega” quem. Esse carregar já é diferente do primeiro e do segundo, esse carregar tem o sentido outro ainda, que é do homem alimentando a mulher, e a mulher vivendo nas costas do marido, como quem não anda com os próprios pés, aliás, não vive com os próprios pés.

Se há aqui uma suposta bifurcação (sendo mais fiel à realidade semântica do quadro, trifurcação), há também um ponto de confluência de todos esses três caminhos: o lobolo, que se torna um regozijo para ambos. Essa temática pasmada e clara para todos encontra suporte nos cabritos, simbolizando o dote que sempre se dá, o “xibakela” de vinho que também é um requisito para essas cerimónias, e a caixa de cervejas e algum e outro objecto que trazem à tona a ideia de bens, que reflectem também os valores (monetários) usados para honrar aos pais da mulher.

Essas todas coisas no quadro, o cabrito, o vinho, as cervejas, criam essa atmosfera mais ponderada, mais mediada e meditada, que foge um pouco da proposta que Phambyra nos dá nessa exposição, quando, por exemplo, ele pinta a “sala azul” e o “tipo 1”. O primeiro pode ser uma captação do silêncio, tanto sonoro como de movimento, simbolizada por objectos no seu devido lugar, e o outro, o “tipo 1” que pode projectar o modo de viver de pessoas de média baixa renda.

Vê-se, por exemplo, nessas duas pinturas a captura não da mensagem, mas a tentativa de trazer o instante, aquele momento que ocorre em qualquer lugar mas passa despercebido, e quantos instantes nos passam despercebidos (!). O instante do silêncio na “sala azul”, o instante em que um homem e uma mulher dão-se as mãos no quadro “A mutchato”, os instantes de apreensão e início de emoções como a felicidade  nos “rostos familiares III e V”. No caso de “A nsati ni lovholile” esse instante é muito dilatado por detalhes como cabrito, o vinho, as cervejas que não dão o sentido de um momento em específico no evento todo, de um piscar de olho em toda a cerimônia, mas são quadros significativos que se complementam e criam “the bigger picture”, que é uma expressão em inglês usada para referir ao entendimento duma situação que inclui mais do que é imediatamente aparente. Ou seja, Phamby, nesse quadro, “A nsati ni lovholile”, não é imediato, mas ponderado; os críticos franceses diriam que ele foi mais um ‘Peintre d’atelier plutôt que de plein air, celui qui observe la nature et saisit l’instant (pintor de oficina do que de ar livre, aquele que olha a natureza e capta o instante).

Tendo em conta o imediatismo que caracteriza os quadros, e menos conseguido nesse quadro em particular por excesso de detalhes que, no lugar de captar o instante, captam toda a forma do acto de lobolar ou a sua completa e metódica significação, o diálogo do cotidiano presente nas suas mostras como o próprio lobolo, os rostos familiares, o casamento, a sala azul e o tipo 1, alia-se também as pinceladas que são rápidas, como que o artista não dá importância à perfeição, onde a luz e a cor são mais importantes na criação de formas do que linhas, aliás nem há linhas. Esse é um outro ponto a segurar, também para rever a ideia do despachar que se possa pensar nos quadros de Phamby: este não usa da linha para criar formas, mas deixa com que a cor e o pincel dêem formas aos seus próprios desenhos.

Phamby não é, como se pode dizer, um retratista. De lado a lado, Maria Chale, no quadro “disponível por encomenda”, é/foi uma retratista, sendo por isso passível de se encaixar nessas exigências de perfeição linear nos traços que fazem as formas. Se a Maria Chale está mais para uma realista, tendo como ponto de análise a obra em alusão, Phamby já é um impressionista, tendo em conta essa exposição, e tudo que já disse atrás. Se por um lado há esse capturar do que é realidade e suas vivências, por outro lado esse capturar vai divergir de formas/caminhos entre as duas formas de fazer a pintura. A Chale é fiel à realidade, então há essa tentativa de se retratar na perfeição, e essa não é a oficina de Phamby, esse foca-se nos instantes, nos momentos singulares e imediatos, ou seja, “como o tempo possui apenas uma realidade, a do instante, os atos de criação dos impressionistas são instantâneos” (RAPOSO, 1999), em que a rapidez nas pinceladas dão-se pela razão de querer captar o segundo em que tudo muda.

Já tendo esse ponto de pressuposição, Phamby, em “a nsati ni lovholile” não se foca no todo, mas contraria, diria eu, o gestaltismo (uma teoria de formas da psicologia) quando enfatiza a parte isolada e pouco lhe interessa a percepção holística da experiência humana sobre o lobolo. E se for isso, aqui se teria a falta de profundidade da própria obra. Mas, todas as minhas crenças apontam para esse destino: o artista nos dá o instante de exultação do casal quando se finaliza todo o processo de lobolar, e eles podem, finalmente, ficar juntos.

Phamby não pinta com régua e esquadro, não é a sua intenção procurar perfeição linear nos traços, mas procura capturar uma imagem que, por ser executada sem preparo, acaba desfocada. Como o tempo que é um tecido feito de instantes, o artista procura capturar esses momentos instantâneos, como se dissesse que a vida, muitas das vezes, não se explica, mas passa, então procura perenizar estes instantes que justifacam a vida e que passam, o revirar dos olhos, o bocejar numa conversa entediante, ou mesmo a exultação quando se casa, finalmente, quem se ama.

 

 

Referência:

Raposo, M. T. R. (1998/1999). O conceito de imitação na pintura renascentista e impressionista. Revista Eletrônica Print by FUNREI, Metavnoia, (1), 43–50. http://www.funrei.br/revistas/filosofia

 

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