A 5 de Outubro de 2017, Moçambique mudou por completo. De uma jóia do gás natural ainda por explorar para um conflito armado que começou com ataques na vila de Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado.
Em bom rigor, a invasão ao comando distrital da PRM em Mocímboa da Praia começou por volta das 23 horas do dia 4 de Outubro (segundo fontes orais no local), quando o país celebrava mais um aniversário da assinatura do Acordo Geral de Paz. Este pormenor não me parece uma mera coincidência.
No dia 5 de Outubro de 2025, o conflito em Cabo Delgado completa oito anos – metade do tempo que durou a guerra civil em Moçambique. Neste transcurso, muita coisa aconteceu. A mais grave delas é a morte brutal de cerca de 3 mil pessoas, entre civis, militares e polícias, para além do drama humanitário resultante do deslocamento forçado de mais de um milhão e quatrocentas mil pessoas.
Para assinalar este marco sombrio da nossa história contemporânea, propus-me a exercer o meu direito de cidadania, partilhando este artigo de opinião, que é, na verdade, um olhar a alguns pontos que me parecem essenciais para uma discussão colectiva.
O primeiro aspecto que me inquieta é a (aparente) normalização da barbárie que está a acontecer em Cabo Delgado. Todos, sem excepção, passámos a encarar o terrorismo como algo normal. A sociedade já não mais se comove tanto quando circulam imagens brutas de pessoas decapitadas em Cabo Delgado. Fica como se fosse apenas mais uma pessoa morta pelos terroristas, e a vida segue em frente.
Para a maioria dos jovens de Maputo, por exemplo, a situação de Cabo Delgado não lhes diz absolutamente nada. Todos os fins-de-semana são festas de rua, na praia, na discoteca, com direito a ostentação nas redes sociais.
A sociedade civil, que em Maputo levanta a voz por tudo e por nada, pouco fala do assunto de Cabo Delgado, e nunca vi uma marcha convocada para pressionar o Governo a encontrar melhores soluções para o problema.
Ah, do Governo já ouvi altos dirigentes (incluindo o antigo Presidente da República, Filipe Nyusi) a dizer que o terrorismo é um fenómeno que não acaba – uma clara sugestão de que devemos aprender a conviver com o mal como se se tratasse de um tumor benigno.
Imagino um dirigente do Governo a ser convidado, numa entrevista no estrangeiro, a caracterizar Moçambique. Acho que a resposta não fugiria desta: “O país está bem, as instituições do Estado estão a funcionar, é um país com um povo trabalhador, com muitas oportunidades para investir”. Isto diz muito do que ocorre no nosso substrato social, quando em contrapartida há crianças, jovens e idosos que vivem debaixo do espectro da violência, de dia e de noite, há oito anos.
Não é normal para um país que se espera uno e indivisível. A natureza está cheia de exemplos dos quais podemos aprender. Uma simples picada num pé é suficiente para pôr todo o corpo doente, porque não é um problema apenas do pé. É de todo o corpo.
A população de Cabo Delgado tornou-se carne de canhão, com a violência a chegar de todos os lados. Quando não morre pela brutalidade dos terroristas, morre de fome nas zonas de reassentamento ou morre vítima de balas dos militares que demonstram fraca capacidade de lidar com o terrorismo, devido à sua complexidade.
A Marinha de Guerra de Moçambique é citada em muitas notícias nacionais e internacionais como estando a promover mortes indiscriminadas de pescadores em Macomia, Mocímboa da Praia, na ilha de Ibo, em Palma e noutros sítios. O Exército (Infantaria) também é acusado de sistemáticas violações dos direitos humanos.
Porque é assim? Esta é a questão sobre a qual se mostra relevante reflectir.
O que me parece é que os nossos militares são formados apenas para impregnar a força bruta, e as comunidades não escapam a essa brutalidade. Depois são acusadas de não colaborarem na denúncia da movimentação dos terroristas, o que em si não faz muito sentido. Um Exército com uma estratégia bem definida não usa apenas a força das armas; recorre também ao chamado “soft power” para conquistar os corações das populações.
Há alguns anos, circulou um vídeo de militares ruandeses que apareceram a pilar numa casa, em Cabo Delgado. Não se tratava de um “show off” dos ruandeses. É aquele engajamento social que faz parte do “soft power” a que me refiro.
A diferença de actuação entres os ruandeses e a tropa moçambicana está a abrir caminhos para uma situação muito perigosa. Em Julho deste ano, a população do povoado de Namacande, distrito de Muibumbe, expulsou os militares moçambicanos, acusando-os de inoperância quando são chamados para intervir em casos de ataques terroristas.
A 11 de Setembro, na vila de Mocímboa da Praia, durante um encontro que juntou a administração do distrito, a população, os militares nacionais e os ruandeses, a população irrompeu aos gritos dizendo que prefere os ruandeses aos militares moçambicanos. O encontro terminou nessa confusão que por pouco não resvalou em violência.
Estes episódios são graves, porquanto demonstram sinais de quebra de confiança entre o Estado e a população. A ideia do contrato social está a esvair-se aos poucos e, com ela, a soberania nacional.
Quando um povo aliena a sua segurança aos estrangeiros, deve-nos envergonhar, como nação. A soberania não reside apenas nos discursos políticos, é um contrato que liga o povo à sua pátria-mãe. Garantir segurança das populaçõs é tarefa primordial do Estado moçambicano, e não de forças externas.
Nas Ciências Políticas, ensina-se que os três fins do Estado são: garantir (i) a segurança; (ii) a justiça e (iii) o bem-estar económico, social e espiritual. Nesta ordem de consideração, será que a população de Cabo Delgado sente efectivamente essas garantias?
A fechar esta parte, quero, de forma objectiva, dizer a todos os estratos da sociedade que devem indignar-se com o que está a acontecer em Cabo Delgado e devem levantar a voz até ser ouvida pelo poder político, que tem a obrigação de resolver os problemas da população. O silêncio é cúmplice.
João Saltiel coloca no seu livro O Pensar Social a seguinte pergunta: “qual é a fórmula mágica que o ex-presidente Joaquim Chissano utilizou para manter a paz por esses longos anos? Por que não pedir ao Presidente Chissano essa fórmula. Não queremos ser beefsteak de ninguém. É altura de pensarmos num Moçambique melhor, num país sem vukuvuko. Temos que pensar grande”.
UM OLHAR ÀS FORÇAS ARMADAS
O actual estágio das Forças Armadas de Defesa de Moçambique é resultado de um processo histórico que começou no tempo de Samora Machel e se agudizou depois do Acordo Geral de Paz.
Durante a Luta Armada de Libertação Nacional, Moçambique recebeu muito apoio da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), hoje Rússia, China, Cuba entre outros países socialistas. O apoio foi em termos de formação e equipamento militar (as famosas AKM e AK47 são herança desse passado), para além da logística que incluía o fardamento, botas e alimentação. Este apoio estende-se até ao período da guerra civil, que começou em 1977 e terminou em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), a 4 de Outubro.
Quando a guerra civil se iniciou, Moçambique tinha uma logística militar aceitável, porque as Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM) herdaram instalações militares e meios de guerra do regime colonial português. A título ilustrativo, a Marinha de Guerra era forte. Contava com a Base Naval de Metangula, em Niassa, que era a melhor do país, com oficinas para a reparação de navios de guerra. Destaca-se, igualmente, a Base Naval de Pemba, em Cabo Delgado.
Para aprimorar os conhecimentos de gestão logística militar, Samora Machel optou por enviar em massa militares para a URSS e Cuba, para estudarem a gestão e manutenção de equipamentos militares.
A partir de 1984, o apoio da URSS a Moçambique baixou consideravelmente, depois de Samora Machel assinar o Acordo de Nkomati com o regime do Apartheid, da África do Sul, como parte da estratégia para a África do Sul deixar de apoiar a Renamo.
Este acordo não foi bem visto pela URSS, que entendeu que era uma traição às causas do socialismo, agudizado pela visita histórica de Samora Machel aos Estados Unidos da América, em 1985.
Para a União Soviética, Moçambique estava a piscar para o Ocidente, seu inimigo ideológico. Nessa altura, a economia de Moçambique estava de rastos, devido à intensificação da guerra civil.
A morte de Samora Machel, em Outubro de 1986, piorou a situação logística dos militares. Esta crise de logística estendeu-se até ao consulado de Joaquim Chissano, que assumiu a Presidência da República em 1986.
A guerra terminou em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), e foi estabelecida a missão de pacificação de Moçambique, através da ONUMOZ (sobre este assunto recomendo a leitura do livro Democracia e Outras Coisas de Moçambique, do cientista político Arcénio Cuco).
O Protocolo IV do AGP foi a base para a criação das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), como um Exército republicano, apartidário, com a missão de defender a soberania e a integridade territorial do país.
O AGP previa a constituição de uma Defesa com um efectivo de 30 mil homens até à tomada de posse do Governo democraticamente eleito (depois das eleições de 1994). Esse efectivo estaria distribuído da seguinte forma: 24 000 do Exército; 4000 da Força Aérea e 2000 da Marinha. Esses efectivos, descreve a Lei do AGP, seriam fornecidos, 50% pelas então Forças Armadas de Moçambique e 50% pela Renamo (para mais informação pode-se consultar a Lei n.°13/92, de 14 de Outubro).
A composição das FADM nos moldes do AGP foi determinante para aquilo a que se assistiu a seguir nos governos da Frelimo – um autêntico abandono das Forças Armadas.
A Força Aérea, em particular, morreu literalmente em 1992. Quando foi assinado o AGP, Moçambique tinha stock de motores de aviões militares MiG-17 e MiG-21, que sumiram misteriosamente, e nunca mais foi visto um MiG no ar.
É muito provável que a existência de muitos militares provenientes da Renamo até nos cargos de topo das Forças Armadas tenha sido a causa desse desleixo, pois a possibilidade de interferir na sua actuação era menor. Em contrapartida, o Governo investiu bastante na Polícia da República de Moçambique, onde tem controlo de toda a cadeia de comando.
Quando Armando Guebuza assumiu o poder, em 2005, tentou mudar este paradigma, mas, porque tinha passado muito tempo sem investimento, não foi a tempo de revitalizar por completo este sector nevrálgico do Estado, de tal forma que, quando o terrorismo começou, em 2017, as Forças Armadas praticamente não tinham meios de combate.
Esta viagem no tempo era para chegar ao essencial: Moçambique secundarizou a Defesa ao longo dos anos que se seguiram ao AGP e foi encontrado em contrapé pelo terrorismo, por isso enfrenta o fenómeno aos improvisos.
Há um adágio militar bastante interessante que diz que “em tempos de guerra não se limpam armas”. Ou seja, a Defesa deve estar nas prioridades de qualquer governo, mesmo em tempos de paz.
A falta de logística para os militares que combatem em Cabo Delgado é uma realidade idisfarçável. Falo de logística, no seu todo (equipamento bélico, munições, aprumo e comida).
Recentemente, 300 militares que estiveram a combater o terrorismo em Macomia foram mandados voltar à sua procedência, depois de terem combatido sem receberem salário ou qualquer subsídio, e até relataram falta de comida, armamento e munições.
O Estado-Maior General disse, em comunicado de imprensa, que o processo de (re)integração daqueles jovens não obedeceu à lei e demais regulamentos que regem as Forças Armadas, porque alguns passaram para a reserva de disponibilidade, cumprido o Serviço Militar, e outros estão na situação de expulsos das FADM por diversos actos de indisciplina, incluindo a deserção.
Este episódio é grave e revelador de desorganização na liderança das Forças Armadas. É que, mesmo ignorando a questão de logística, da mesma forma que aqueles militares “ilegais” estiveram no teatro operacional, com acesso a armas e estratégias de combate, então podiam estar envolvidos também terroristas.
Mais grave ainda é que esses militares foram esbulhados do teatro operacional quando ainda tinham vontade de combater o inimigo e mostraram bravura nos combates que travaram. A pergunta que faço é: afinal, o que queremos concretamente, como país?
E se por via das armas não se ganha o conflito, porque não empreender esforços sinceros para o diálogo? Filipe Nyusi disse outrora que não havia rostos do terrorismo em Moçambique, por isso era difícil dialogar.
Entretanto, tenho sérias dúvidas de que o Estado não conheça os líderes ou, pelo menos, alguns líderes. Até porque alguns discursos dos próprios governantes são contraditórios. Uma dessas contradições está relacionada ao facto de, em Agosto de 2023, Filipe Nyusi ter anunciado o abate de Ibin Omar, que era tido como um dos moçambicanos líderes da insurgência em Cabo Delgado. Com este facto, a pergunta que não quer calar é: afinal, são ou não conhecidos os líderes da insurgência em Cabo Delgado?
Tal como se sabia de Ibin, estou a crer que o Estado, através da Inteligência Militar e dos Serviços de Informação e Segurança do Estado, conhece os líderes ou, no mínimo, alguns líderes. E, se realmente não os conhece, que se alie à população que em várias circunstâncias, na imprensa ou nos encontros públicos, relaciona a insurgência com jovens locais e bem conhecidos. Contudo, para que a população colabore, mais uma vez, deve haver uma estratégia do Estado para conquistar a sua confiança.
INSURGÊNCIA ISLÂMICA?
Outro aspecto de realce é a frequente associação da insurgência ao Islão – narrativa da qual discordo, porque não encontro sinais claros de tentativa de estabelecimento de um califado (uma República governada com base em princípios e normas islâmicas). O que a leitura do fenómeno me sugere é a utilização da religião islâmica como veículo para facilmente conseguir militantes, porque talvez usar a narrativa de pobreza e exclusão social não fosse mexer tanto com as pessoas quanto a fé religiosa.
Lembremo-nos de que a radicalização teve os seus indícios em Mocímboa da Praia, de onde alguns jovens terão ido ao Sudão, supostamente estudar o Islão “puro”. Mocímboa da Praia é o distrito de Cabo Delgado onde a religião islâmica é professada por mais de 80% da população, algo que terá sido devidamente estudado e explorado pelos cérebros da insurgência.
Outro elemento que suporta a minha posição é o facto de os primeiros “al-shabaab” se comportarem de forma anti-islâmica, entrando nas mesquitas com sapatos, catanas, facas e de vestes que não respeitavam o padrão dos muçlmanos. Estes factos foram denunciados pela população em Mocímboa da Praia.
“Moçambique é um país predominantemente cristão (5,7 milhões de católicos, 2,5 milhões de protestantes), com uma grande comunidade muçulmana (3,6 milhões, majoritariamente sunitas), majoritária nas províncias nortenhas de Niassa (61%) e Cabo Delgado (54%) e nas zonas costeiras. O Sul de Moçambique e as suas principais cidades são predominantemente cristãos. A Igreja Universal do Reino de Deus, neopentecostal brasileira, tem conhecido uma rápida expansão no país, e a religião sionista é praticada por 3,1 milhões de moçambicanos. As comunidades religiosas tradicionais africanas estão também fortemente representadas, particularmente nas regiões rurais. Na província de Cabo Delgado, onde ocorreu a maior parte dos ataques jihadistas, os católicos são muito numerosos (cerca de 36%), estando também presentes comunidades menores de outras denominações religiosas (protestantes e sionistas)” – https://www.acn.org.br/mocambique/.
Estes dados levam a pensar noutras geografias que deviam ser o ponto “legítimo” para o início da insurgência islâmica no Norte de Moçambique, e não necessariamente Cabo Delgado, que, no cômputo geral, não tem a população maioritariamente islâmica, salvo melhor entendimento.
A guerra em Cabo Delgado, em meu entender, está associada aos recursos naturais, marinhos, energéticos e florestais que abundam na sua extensão. A religião pode ser uma estratégia de distracção para dissimular os reais interesses neste conflito.
Alguém consegue responder com objectividade quem explorava os rubis em Montepuez? Não eram os estrangeiros que dominavam o circuito de contrabando de gemas e fomentavam o garimpo? Para onde foram os garimpeiros e compradores que foram, várias vezes, alvo de ofensivas da Unidade de Intervenção Rápida? Será que esses estrangeiros que lucravam com o negócio ilegal ficaram felizes com essas ofensivas visando retirá-los do local? Seria ingenuidade demais dizer que “sim”.
E, mais do que ofensivas de repressão policial, que alternativas de sobrevivência foram dadas aos jovens garimpeiros moçambicanos? Nenhuma. Penso que é aqui que reside o erro que o Estado cometeu e continua a cometer, ao ignorar alguns sinais, como é o caso da insatisfação da população de Palma e Mocímboa da Praia, que não vê as suas expectativas satisfeitas na pretensa retoma do projecto de construção da fábrica de liquefação de gás natural em Palma.
SOLUÇÕES SINUOSAS
No auge do terrorismo (2020-2021), o desgaste das Forças de Defesa e Segurança foi notório, com a intensificação dos ataques, alastramento do terrorismo por mais pontos de Cabo Delgado, Nampula e Niassa e sucessivas baixas no campo de batalha.
Moçambique accionou a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), que, através do mecanismo de cooperação militar, respondeu positivamente, anunciando a criação da Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM).
Entretanto, antes mesmo do posicionamento da força da SAMIM em Cabo Delgado, Filipe Nyusi confirmou a chegada a Moçambique de mil militares ruandeses. Esta situação não agradou à SADC, que não entendeu a posição de Moçambique de estabelecer um “acordo” bilateral com um país que (i) não faz parte do bloco regional e (ii) tem um conflito militar com um Estado-membro da SADC, a República Democrática do Congo.
De facto, foi uma situação deselegante, mas há que reconhecer que a chegada de militares ruandeses foi determinante para a recuperação da vila de Mocímboa da Praia em Agosto de 2021, depois de ter sido ocupada pelos terroristas por um ano.
A SAMIM acabou por deixar Moçambique em Julho de 2024, e ficaram os ruandeses em Cabo Delgado. Que Ruanda é, neste momento, uma potência militar em África, é inquestionável. Esta foi, diga-se, a estratégia de sobrevivência que aquele país adoptou por estar localizado num “anel de fogo”, com conflitos constantes com os seus vizinhos, especificamente, Burundi e República Democrática do Congo.
Ruanda aperfeiçoou a sua estratégia de guerra ao longo do tempo, sobretudo depois do genocídio de 1994. Há quem entenda que, para Paul Kagamé sobreviver depois daquele evento, tinha de formar um exército forte.
Outrossim, Ruanda é um satélite da França e da Inglaterra naquela região de África, razão pela qual recebe equipamento militar de ponta.
Este histórico faz-me apreciar, num primeiro plano, a presença dos ruandeses em território nacional se olharmos na perspectiva de cooperação e capacitação do Exército de Moçambique.
Entretanto, fico perplexo quando noto o secretismo em torno dessa cooperação militar. Ainda que digam que assuntos de defesa fazem parte do segredo de Estado, não encontro cabimento para esta falta de prestação de informação aos moçambicanos.
O Presidente da República, quando toma posse, jura respeitar e fazer cumprir a Constituição da República de Moçambique. É esta Constituição que, no n.° 1 do art. 2, dispõe que “A soberania reside no povo”.
O Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva (32ª edição) define soberania como “…a qualidade do que é soberano, ou possui a autoridade suprema; o poderio supremo, ou o poder sobre todos”. Nesta ordem de ideias, era expectável que antes de uma decisão deste nível fosse ouvido o povo que está formalmente representado na Assembleia da República. Até porque o anterior Presidente tinha um slogan interessante: o povo é o meu patrão!
Assuntos de defesa mexem com o sentido existencial de todos nós, como país. A história pode-nos penalizar se no futuro acontecerem situações graves derivadas destes acordos secretos. Lembremo-nos de que António Carlos do Rosário (operativo do SISE) disse, durante o julgamento do caso das dívidas ocultas, que havia um plano em marcha de divisão de Moçambique. Verdade ou não, a sucessão de acontecimentos em Cabo Delgado faz-me não desvalorizar aquelas palavras.
Analisando atentamente os factos, parece-me evidente que Filipe Nyusi correu para buscar apoio militar do Ruanda por pressão da TotalEnergies, que tem interesses comerciais em Palma.
Em tudo isto, Moçambique deve proteger a sua soberania. Está claro que não vamos contar eternamente com o Exército dos outros para garantir a nossa segurança, daí que deve haver clareza nos objectivos que o país tem com o Ruanda: por quanto tempo será esta intervenção militar e quais são as contrapartidas que os ruandeses recebem.
Foi assim no passado. Aquando do processo de pacificação de Moçambique depois da guerra civil, as Nações Unidas intervieram com 7 mil soldados. A missão era bem clara em termos de cronograma, e, depois da realização das primeiras eleições em 1994, essa missão terminou.
O mesmo se verificou aquando da constituição da SAMIM. Tudo era claro: número de soldados de cada país, o mandato, e, antes de qualquer prorrogação da missão, o Órgão da SADC de Cooperação nas áreas de Defesa, Política e Segurança reunia-se para discutir e deliberar.
O Presidente da República, Daniel Chapo, (também com um slogan interessante inspirado no físico Albert Einstein (fazer diferente para obter resultados diferentes) tem a responsabilidade, neste momento, de fazer verdadeiramente diferente. Até para não carregar sozinho, no futuro, os pecados que se forem revelando.
É que está claro que o Ruanda ganha alguma coisa com a presença militar em Cabo Delgado. E, se um dia se decidir por sua retirada, será que Kigali vai deixar Moçambique de ânimo leve? Duvido! E, no meio disso, o que pode vir a acontecer em Cabo Delgado? Só o futuro responderá.
Uma coisa é certa: não há nada que os ruandeses fazem que os soldados moçambicanos não possam fazer, desde que haja boa formação, disciplina, tecnologia militar e logística adequada. Dito de outra forma, haja criação de condições para que as nossas Forças de Defesa e Segurança possam actuar sem dificuldades.
Por falar em logística, um soldado altamente equipado é um factor dissuasor do inimigo. Quem vê um soldado ruandês ao lado de um soldado moçambicano nota uma diferença extrema.
Quando o inimigo planeia um ataque a uma posição, naturalmente, faz a leitura da forma como os militares estão equipados, e isso é determinante para decidir por atacar ou não. Um exemplo mais ilucidativo é quando se repara para um soldado norte-americano num teatro operacional. A forma como se apresenta faz o inimigo pensar duas vezes para atacá-lo. É isto que Moçambique precisa de fazer com os seus homens.
*Esta opinião resulta das minhas reflexões enquanto jornalista com passagem pelo TON e contou com ideias de pessoas abalizadas nas Relações Internacionais; Ciências Políticas e na área militar, por isso agradeço a todos pela disponibilidade para conversa. Agradecimentos também ao cientista político Arcénio Cuco pela discussão de ideias e correcção do artigo.