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ARTIGOS DE OPINIÃO

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

Resumo: Este artigo sustenta que, passadas três décadas de eleições regulares, o principal nó do sistema moçambicano não reside no acto de votar em si, mas na credibilidade dos processos que produzem o resultado. A confiança pública degrada-se quando o recenseamento cria incentivos para excesso de registos, quando a contagem não deixa rasto documental visível por mesa, quando o apuramento passa por etapas opacas e quando o calendário de anúncio se arrasta a ponto de transformar um procedimento administrativo em disputa de rua. O efeito cumulativo é previsível: percepção de violação, tensão social e erosão da legitimidade das próprias instituições que devem garantir a concorrência política.

Contextualização: Em democracia, eleições fazem duas coisas de natureza distinta: escolhem governantes e produzem prova de que essa escolha ocorreu. Portanto, a primeira dimensão é substantiva (preferências) e a segunda é processual (confiança). Sistemas estáveis tratam o resultado como um produto verificável, não como uma proclamação. Por isso, o valor das eleições depende de três pilares: regras claras, comportamentos previsíveis e evidência auditável. Quando uma destas falhas, o sistema converte-se numa máquina de suspeitas. É ilustrativo comparar: na Alemanha, cada mesa divulga os resultados preliminares no próprio dia, e a totalização nacional é apresentada horas depois, sem espaço para rumores. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral divulga resultados oficiais poucas horas após o encerramento das urnas electrónicas, e, em 2022, mais de 99% das secções estavam apuradas em menos de 24 horas, criando um consenso imediato que neutralizou narrativas de fraude.

Países com trajectórias turbulentas saíram do ciclo de contestação quando trataram o processo como engenharia institucional. O Quénia, por exemplo, após a crise pós-eleitoral de 2007, introduziu mecanismos de publicação de resultados por mesa com actas digitalizadas em portais públicos, reduzindo o espaço de manipulação ao nível provincial. Gana, depois de disputas renhidas em 2012, reforçou o regime de “pink sheets” acessíveis a partidos e cidadãos, tornando possível a conferência independente de cada mesa. Em ambos os casos, a mudança não foi cosmética: reduziram incentivos a manipular a base de eleitores, publicaram documentos primários por mesa, criaram centros de apuramento com painéis públicos e logs de auditoria, encurtaram prazos de contencioso e profissionalizaram os oficiais eleitorais. A regra de ouro é simples: quanto mais o processo for transparente, menor a utilidade da narrativa de teorias de conspiração.

E Moçambique?

Desde 1994, quando se realizaram as primeiras eleições multipartidárias em Moçambique, o voto foi apresentado como a prova mais visível da transição para a paz e a democracia. Esperava-se que as eleições servissem como mecanismo de canalização pacífica da disputa política, substituindo o recurso às armas pelo confronto no boletim de voto. Porém, o percurso histórico revela uma realidade distinta: em praticamente todos os ciclos eleitorais, surgiram acusações de fraude, manipulação dos resultados e parcialidade das instituições de governação eleitorais. Em vez de pacificar, as eleições tornaram-se em ignição de conflitos em todos os períodos de votação.

Ao longo do percurso eleitoralista, numa tentativa de calibrar o sistema, a composição da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) foi revista diversas vezes, sempre com a promessa de maior equilíbrio e independência. Contudo, a percepção pública manteve-se: órgãos capturados pela lógica partidária. Por outro lado, alteraram-se os prazos de litígio, criaram-se novas modalidades de recenseamento, ajustaram-se regras de apuramento, mas cada ciclo trouxe novos episódios de contestação. A lição que se impõe é clara: reformas formais não resolveram o défice de confiança estrutural de um sistema.

Neste contexto, a explicação não pode estar apenas na técnica ou na legislação, mas também na economia política do comportamento. As nossas regras, plasmadas na lei eleitoral vigente, não são neutras; elas próprias induzem estratégias oportunistas. Se o número de mandatos depende dos eleitores recenseados, como é o caso de Moçambique, e não do recenseamento da população ou outros mecanismos viáveis para o efeito, os partidos têm incentivos claros para inflacionar registos nas zonas onde controlam a máquina administrativa. Se a acta da mesa não é publicada de forma sistemática e acessível, a tentação natural é manipular os resultados em fases mais opacas, onde a fiscalização é mínima. E se a proclamação final demora semanas ou meses, cria-se um vazio político que é imediatamente ocupado pelo barulho na rua: quanto maior a mobilização e o barulho durante esse período, maior o peso de um actor na negociação política.

Assim, as eleições em Moçambique ilustram um problema que vai além das leis: é o comportamento racional dos actores diante de regras mal calibradas. A baixa qualidade do controlo amplia o espaço para oportunismo; a ausência de prova documental acessível torna tudo contestável; e a morosidade processual transforma o tempo em campo de batalha. Dito sem enrolação: a falta de credibilidade processual funciona como combustível da conflitualidade. Quando os cidadãos entendem que “a prova não está à vista”, a predisposição para contestar é generalizada. E quando tudo é contestável, nada é legitimador. O impacto extravasa o plano político: investimentos são adiados, prioridades nacionais desviam-se para a gestão de crises e repressão, e instituições corroem-se sob a suspeita permanente.

O processo eleitoral, o que é então?

Antes de avançar com o debate, gostaríamos de dar uma pausa para lembrar que processo eleitoral e sistema eleitoral não são sinónimos. O processo eleitoral é a sequência de actos administrativos, logísticos e jurídicos que transforma as preferências dos cidadãos em votos válidos e depois em resultados proclamados. Já o sistema eleitoral é a regra de conversão desses votos em assentos: pode ser maioritário, proporcional, misto ou híbrido, e determina se cada voto conta para eleger uma pessoa, uma lista ou para calcular percentagens nacionais. Dito de outro modo, o processo é o “como” se organiza uma eleição; o sistema é o “com que regra” os votos são transformados em representação.

Esta distinção é crucial, porque um sistema eleitoral pode ser tecnicamente justo, mas perder legitimidade se o processo que o antecede estiver fragilizado. Em contrapartida, um processo limpo e transparente pode ser insuficiente se as regras de conversão forem vistas como desiguais ou distorcidas. A integridade democrática exige, portanto, que ambos os objectos (processual e sistémico) estejam alinhados. O sistema define o desenho político, moldando incentivos de partidos e candidatos; o processo assegura que esses incentivos são traduzidos em resultados verificáveis e aceites socialmente. Em Moçambique, esta distinção raramente é explorada com profundidade, e isso ajuda a explicar a persistência de crises eleitorais. Reformas do sistema, como forma de distribuir mandatos ou os critérios de representação, pouco adiantam quando o processo permanece vulnerável a disputas no recenseamento, na contagem ou na validação dos resultados. 

Quais são as principais falhas no processo eleitoral em Moçambique?

O Recenseamento Eleitoral: o ponto de partida de qualquer processo eleitoral é o recenseamento. A credibilidade de todo o edifício depende, em larga medida, da integridade desta fase inicial, pois é ela que define quem poderá exercer o direito de voto. Em Moçambique, porém, o recenseamento eleitoral tem sido reiteradamente o elo mais frágil, não apenas por falhas administrativas, mas sobretudo pelos incentivos políticos que gera. O problema assume contornos mais graves quando o número de eleitores inscritos ultrapassa de forma desproporcional as projecções demográficas oficiais. O caso da província de Gaza, nas eleições de 2019, é emblemático: o número de eleitores recenseados ultrapassava a projecção populacional para o ano de 2050. Este desfasamento não pode ser explicado por erro técnico ou mobilização cívica extraordinária, mas por um padrão estrutural de inflacionamento deliberado dos registos.

A raiz do problema está inscrita na própria Lei Eleitoral. O modelo moçambicano de distribuição de mandatos utiliza o método de Hondt, aplicando-o à base do número de eleitores recenseados em cada círculo eleitoral. Assim, os 250 assentos da Assembleia da República são repartidos pelos 13 círculos provinciais em função do total de eleitores inscritos. Este mecanismo cria um incentivo perverso: quanto mais eleitores forem registados numa província, maior será o número de deputados a eleger. Em consequência, o recenseamento deixa de ser um exercício técnico e converte-se num campo de disputa política, onde cada aparelho provincial luta para maximizar o seu peso parlamentar. Não surpreende, portanto, que em 2024 todas as províncias tenham ultrapassado em mais de 120% as projecções de eleitores previstas — um indicador claro de manipulação competitiva entre administrações provinciais.

A distorção não é apenas estatística, mas profundamente política. Quando o recenseamento se torna um instrumento de competição, a confiança pública é corroída antes mesmo da abertura das urnas. A percepção de “jogo viciado” mina a aceitação dos resultados futuros e gera um clima de contestação latente. Em vez de uma fase administrativa destinada a garantir a inclusão de cidadãos, o recenseamento converte-se num mecanismo de exclusão e inflacionamento estratégico, ampliando desigualdades de representação e gerando suspeitas estruturais sobre a legitimidade do Parlamento.

A Votação: o acto de votação apresenta desafios de natureza distinta. A sua realização, ainda que frequentemente marcada por falhas logísticas, é menos problemática em termos de contestação política directa, já que se trata de um momento visível, acompanhado por representantes de partidos, observadores e pela própria comunidade. Contudo, a menor gravidade comparativa não deve ser confundida com irrelevância. A qualidade da experiência do eleitorado, o cumprimento dos horários e a eficiência das mesas de voto influenciam de modo decisivo a participação e a confiança pública.

Em Moçambique, os relatórios de observação eleitoral da União Europeia (UE), da União Africana (UA) e de organizações nacionais, como o Observatório Eleitoral, têm identificado padrões recorrentes: abertura tardia das mesas, falhas de materiais (urnas, boletins e tinta indelével), ausência de listas completas ou devidamente afixadas e dificuldades técnicas na organização das filas. Em muitos casos, estes atrasos levaram ao prolongamento do horário de funcionamento ou ao congestionamento de eleitores, criando frustração e potenciais constrangimentos à participação plena. A título de exemplo, no relatório da Missão de Observação Eleitoral da UE para as eleições de 2019, registou-se que mais de 25% das mesas visitadas abriram com atrasos superiores a uma hora, em grande medida, devido à logística deficiente.

No entanto, apesar dessas falhas, a votação em si decorre geralmente de forma pacífica, com episódios de violência reduzidos e níveis relativamente altos de conformidade com os procedimentos básicos. Ainda assim, convém sublinhar que demora, e as falhas na organização podem afectar de modo indirecto a legitimidade democrática, não pela suspeita de manipulação, mas pela redução da participação. 

Ainda sobre a abstenção, importa referir que, pela lei, cada caderno eleitoral deve conter, no máximo, 800 eleitores, correspondendo ao número de votantes atribuídos a uma mesa. O problema que se coloca é duplo. Por um lado, a capacidade técnica e a experiência limitada dos membros de mesa, tornando duvidosa a eficiência no processamento de tal volume de eleitores num único dia. Por outro, a morosidade natural do procedimento aumenta o risco de congestionamento, longas filas e, consequentemente, maior abstenção. 

O apuramento e proclamação dos resultados: o apuramento é a fase mais crítica de todo o ciclo eleitoral em Moçambique. É neste momento que as preferências individuais, previamente expressas nas urnas, se convertem em resultados formais com valor jurídico e político. A legislação é inequívoca: as actas devem ser assinadas por todos os membros de mesa, entregues às instâncias superiores e publicadas localmente, garantindo, assim, a rastreabilidade e a fiscalização pública. Todavia, a prática revela uma sistemática violação dessa norma, convertendo o apuramento no epicentro da manipulação eleitoral.

O problema central não é apenas técnico, mas estratégico: trata-se da tentativa deliberada de captura dos membros de mesa responsáveis pela contagem. Frequentemente jovens contratados de forma temporária, com frágil preparação e baixos níveis de resiliência institucional, como vimos acima, estes agentes tornam-se alvos fáceis de cooptação através de subornos, intimidação ou redes de clientelismo local. Quando a captura é bem-sucedida, os resultados são ajustados directamente na origem, tornando a fraude praticamente invisível nas fases subsequentes. Quando tal não é possível e os números se mostram desfavoráveis a certos partidos, recorre-se a expedientes alternativos: a recusa em assinar as actas, a sua ocultação ou até a destruição física dos documentos. Em qualquer dos casos, o efeito é o mesmo: a ausência de prova verificável abre espaço a uma narrativa incontornável de manipulação.

Importa sublinhar que a mesa de voto é a unidade mínima de decisão eleitoral. Como demonstra a literatura especializada em eleições competitivas em regimes híbridos, é precisamente ao nível mais micro da administração eleitoral que se jogam as batalhas decisivas de credibilidade. Os órgãos centrais (distritais, provinciais ou nacionais) dificilmente podem alterar resultados sem comprometer a sua consistência documental na base. Logo, se a integridade da mesa falha, todo o edifício subsequente é construído sobre alicerces de areia.

A esta vulnerabilidade soma-se um desenho institucional marcado pela morosidade e redundância. O percurso que os resultados seguem — da mesa para o distrito, do distrito para a província, daí ao nível central e, por fim, ao Conselho Constitucional — multiplica os pontos de opacidade e de contestação. As eleições de 2024 ilustram de forma eloquente esta patologia: realizadas em Outubro, só viram os resultados proclamados a 23 de Dezembro. Durante quase dois meses, o vazio informativo foi preenchido por rumores, protestos e violência, cuja intensidade apenas se dissipou após a validação final. Na África do Sul, quase 90% das mesas são processadas em menos de três dias, permitindo que o consenso social se forme rapidamente.

Por fim, a etapa de validação institucional agrava a desconfiança. A Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) e o próprio Conselho Constitucional são percepcionados como órgãos capturados pela lógica partidária. Em vez de desempenharem a função de árbitros imparciais, limitam-se a homologar resultados, raramente confrontando as irregularidades documentadas. Ao contrário do Malawi (2020) e do Quénia (2017), onde tribunais supremos anularam eleições presidenciais em nome da integridade democrática, Moçambique permanece refém de uma validação meramente ritualista, incapaz de restaurar a confiança pública.

Recomendações

Recenseamento: (i) usar dados censitários e projecções populacionais (não o número de recenseados) para distribuir mandatos, como fazem África do Sul e Namíbia e (ii) reduzir o número máximo de eleitores por mesa para facilitar a votação e reduzir filas, seguindo o exemplo do Brasil.

Apuramento: (i) profissionalizar os membros de mesa com formação contínua, à semelhança da África do Sul; (ii) tornar obrigatória a afixação das actas; se não forem assinadas ou publicadas, a mesa deve ser anulada ou recontada em até 24h, como no Gana; e (iii) eliminar apuramento distrital e provincial; transmitir resultados directamente para um centro nacional, inspirado no modelo do Quénia.

Proclamação: (i) criar um Centro Central de Apuramento independente, sob controlo e supervisão judicial do órgão responsável por validar as eleições; e (ii) rever e fixar prazo máximo de cinco dias úteis para a proclamação final, como no Brasil e na África do Sul.

Em síntese, a credibilidade das eleições em Moçambique não será alcançada por meio de proclamações políticas, mas pela reconfiguração institucional que reduza incentivos à fraude e fortaleça mecanismos de transparência. A adopção de critérios censitários para a distribuição de mandatos, a profissionalização dos membros de mesa, a obrigatoriedade da publicação imediata das actas, a eliminação de etapas redundantes no apuramento e a proclamação célere dos resultados são medidas que já provaram eficácia em várias democracias africanas e latino-americanas. Implementá-las é mais do que uma questão técnica: é condição indispensável para que o voto volte a ser, em Moçambique, um instrumento de legitimidade democrática, e não uma fonte recorrente de contestação e conflito.

O turismo é hoje reconhecido como uma das maiores forças económicas globais. Em torno dele, ocorrem fenómenos de consumo, formam-se mercados, originam-se rendas, criam-se empregos, movimentam-se cadeias de valor e consolida-se a confiança dos investidores. É um sector que vai muito além do lazer: constitui uma poderosa engrenagem de desenvolvimento económico e social. Países como Portugal, Cabo Verde, Maurícias ou Seychelles demonstraram que apostar no turismo pode transformar realidades, tornar-se a maior fonte de receitas nacionais e abrir horizontes internacionais para economias que, de outra forma, permaneceriam frágeis e limitadas.

Em Moçambique, a discussão sobre a diversificação da economia ganha cada vez mais força, e é neste contexto que surge a visão estratégica de projectar Inhambane como a Capital do Turismo de Moçambique. Não se trata apenas de um slogan político ou promocional: é um plano que pode redefinir a dinâmica da província e do país, tornando-a um verdadeiro pólo económico de referência regional e continental.

Inhambane reúne condições únicas que a diferenciam no mapa turístico africano. Ao longo do seu litoral, os Big Five Marinhos — tubarão-baleia, dugongo, raia manta, tartaruga e golfinho — atraem mergulhadores, cientistas e curiosos de todo o mundo, colocando a província entre os destinos mais procurados para o turismo subaquático. Já no interior, os Big Five Terrestres — leão, elefante, rinoceronte, leopardo e búfalo — oferecem experiências de safári autênticas, transformando Inhambane num dos raros locais onde natureza marinha e terrestre se cruzam de forma tão completa e espectacular.

Porém, Inhambane não é apenas biodiversidade. O seu património cultural é igualmente deslumbrante. A timbila, classificada pela UNESCO como Património Oral e Imaterial da Humanidade, ecoa em cerimónias e celebrações locais, acompanhando danças como o Zore e o Dzumba. Os sítios arqueológicos de Manyikeni e Chibuene testemunham uma história milenar de contactos e comércio, enquanto a arquitetura colonial da cidade confere-lhe um charme particular, resultado da fusão entre culturas e tempos. Quem visita Inhambane não encontra apenas paisagens idílicas, encontra também autenticidade cultural, hospitalidade ímpar e uma identidade que permanece viva.

Contudo, a estratégia de afirmação de Inhambane não pode restringir-se ao turismo internacional de luxo. É imperativo construir também um turismo de massa, acessível aos próprios moçambicanos, garantindo que cidadãos de diferentes rendimentos possam visitar e usufruir da província ao longo de todo o ano. Para isso, deve ser incentivado o investimento de nacionais em estâncias turísticas adaptadas às classes média e de menor rendimento, de modo a ampliar a circulação de rendimentos internos e consolidar um mercado interno dinâmico, base sólida para o crescimento sustentável do sector.

O turismo, porém, não pode ser visto isoladamente. Como motor da economia, deve impulsionar outras áreas estratégicas. A industrialização, associada ao processamento de produtos locais, é prioridade para acrescentar valor à produção agrícola e às matérias-primas da região. A agricultura deve ser estimulada para abastecer o sector turístico, garantindo cadeias curtas e sustentáveis de fornecimento. O mercado de seguros precisa de crescer, oferecendo garantias modernas para investidores, empresários e turistas. As clínicas e serviços de saúde devem ser fortalecidos para responder tanto às populações locais como à procura internacional. A modernização dos aeroportos, a revisão do modelo de concessão de vistos e a eficiência do sector dos transportes são condições indispensáveis para atrair fluxos turísticos consistentes.

Ao mesmo tempo, é necessário inovar na forma de envolver as comunidades. Uma ideia estratégica é associar estâncias turísticas a famílias locais, construindo programas bem definidos que ofereçam aos visitantes experiências únicas de interação cultural, social e gastronómica. Para isso, é essencial capacitar as famílias, criar sistemas de acompanhamento e certificação e garantir que estas vivências sejam organizadas e sustentáveis. Assim, o turista não encontra apenas um destino bonito, mas mergulha num universo humano e autêntico que só Inhambane pode oferecer.

A consolidação desta visão exige, porém, uma transformação profunda das infra-estruturas. Não há turismo competitivo sem estradas de qualidade, linhas férreas que liguem os distritos, energia estável, telecomunicações modernas e saneamento básico. Estas são condições estruturantes que determinam a hospitalidade e, sobretudo, a confiança de investidores que não podem arriscar em ambientes de fragilidade logística. Inhambane precisa de pensar em grande, construir com futuro e integrar o turismo numa lógica de desenvolvimento global.

O lançamento da Conferência Internacional de Turismo — Global Sustainable Tourism Summit — representa uma viragem estratégica. Prevista para se realizar de dois em dois anos, alternando entre Inhambane e Vilankulo, a conferência será mais do que uma vitrine: será uma plataforma de projecção internacional, de atracção de capital e de promoção de parcerias globais. Ao reunir decisores, investidores, empresários e comunidades, este encontro discutirá inovação digital, economia azul, turismo comunitário e conservação ambiental, projetando Inhambane como um destino que alia potencial económico à sustentabilidade.

Entretanto, o sucesso desta transformação depende de um factor decisivo: a confiança. Sem uma regulação fundiária clara e sem a eliminação da especulação de terra, nenhum grande investidor se fixará em Inhambane. É essencial que o Governo assuma uma postura firme, definindo áreas específicas para construção de hotéis e restaurantes, em especial junto ao mar, e garantindo que a concessão de licenças seja rápida, transparente e previsível — idealmente num único dia. O tempo da burocracia paralisante tem de dar lugar a um ambiente competitivo, capaz de atrair investimentos estruturantes e visionários.

Inhambane precisa de pensamento disruptivo. Precisa de autorizações especiais que acelerem a criação de resorts, hotéis e infra-estruturas turísticas modernas. Precisa de uma articulação inteligente entre Governo Provincial, Autoridade Tributária, APIEX, ANAC, sector bancário e curadores da conferência, para apresentar aos investidores — nacionais e estrangeiros — uma proposta verdadeiramente competitiva. Cada dia perdido em burocracias e indefinições é uma oportunidade desperdiçada de gerar empregos, receitas fiscais e divisas.

Se os projectos forem implementados com responsabilidade, transparência e envolvimento das comunidades locais, Inhambane deixará de ser apenas conhecida como “Terra da Boa Gente” para se afirmar como capital do turismo nacional e motor económico de Moçambique. A província tem todas as condições para ser, não apenas um destino turístico de referência em África, mas também um exemplo de como o turismo pode transformar sociedades, gerar riqueza, criar identidade e afirmar um país no mapa mundial.

Com mar, safáris, cultura vibrante, hospitalidade autêntica e investimentos à vista, Inhambane está perante uma oportunidade histórica. Transformar-se-á ou não numa capital do turismo? A resposta depende da capacidade de Moçambique acreditar no seu próprio potencial, romper com as barreiras do passado e construir um futuro em que o turismo seja, não apenas lazer, mas o verdadeiro motor da economia nacional.

Em “Tristânia, o rastilho de esperança”, o realizador Lutegardo Lampião apresenta-nos uma curta-metragem sobre revolução e resistência. A curta-metragem foi galardoada com o prémio de Melhor Realização no Concurso de Curtas-Metragens do CCMA em 2024, o que, para a presente análise, configura um contrassenso. 

Como crítico de cinema, João Lopes considera que a distinção pode ser entendida como um “prémio de compensação”, ou seja, neste caso, concedida por uma motivação externa à qualidade da curta em análise. 

Apesar do tema relevante, a produção não corresponde às expectativas, falhando em transmitir a força do movimento revolucionário, o que se torna evidente em vários aspectos.

Em termos de construção da narrativa e dos personagens, existem pontos bastante fracos. A construção do antagonista, Lorde Mafuta, é superficial, uma vez que o personagem, que deveria ser o segundo mais importante da trama, tem pouco enfoque ao longo dos cinco minutos da curta. 

Com apenas uma fala de 36 segundos, com pausas e sem profundidade, o antagonista contribui para um enredo superficial e vago, sem apresentar motivos suficientes para querer dominar a vila de Tristânia.

A narrativa é apressada e pouco clara, e a falta de desenvolvimento da personagem principal, Nhembete, que luta contra um tirano, mas age de forma tirana, é igualmente decepcionante.

A produção técnica também falha em cumprir a sua proposta, dando a impressão de que o projecto foi feito com pouco orçamento. 

A trilha sonora é também apressada e não se alinha com a proposta do filme, além de não haver um fade out e a música terminar de forma abrupta (o que demonstra pouco profissionalismo). 

A fotografia e a actuação também são fracas.

Adicionalmente, as cenas de combate são tão pouco convincentes que chegam a ser constrangedoras e a falta de participação activa de quatro personagens, que se limitam a ser meros figurantes numa das cenas, desaproveita o potencial do elenco.

Em suma, embora “Tristânia, o rastilho de esperança” aborde um tema de grande relevância social (revolução e resistência), o resultado final é comprometido pela má execução.

 

Caras confreiras e caros confrades

Queridas e queridos convidados

Jubiloso, ocorre-me um poema do nosso amigo Eduardo white, inserido no livro Homoíne, que tem um verso que diz qualquer coisa como, “Os nossos mortos são muitos. São muitos os nossos mortos.” 

À luz deste poema, no lugar de pedir um minuto de silêncio, peço um frémito pelos nossos mortos. 

É longa a lista dos nossos mortos. Queremos, contudo, evocá-los e convocá-los para que continuem a inspirar-nos no seu melhor. 

(Passo a ler a lista)

Agradecemos a confiança que depositaram em nós para juntos levarmos avante o que temos vindo a construir em comum, a nossa AEMO. Estamos cientes das mazelas que descaracterizaram a nossa agremiação, mas também sabemos que “não há mal que perdure”. Quer dizer que estamos cientes dos enormes desafios, ainda que tenhamos a certeza da nobreza da nossa missão: trazer de volta a aura da AEMO. Isso significa que temos que fazer jus ao ethos, ao espírito e à letra que nos caracterizam como grupo.

Foi por isso que aceitamos o convite formulado por membros representativos da AEMO, dos mais jovens aos fundadores, para juntos mudarmos o status quo na nossa agremiação. 

Anuímos ao desafio e desde logo elegemos 4 objectivos estratégicos a perseguir, mormente:

  • Coesão de grupo; 
  • Sustentabilidade inter-geracional; 
  • Sustentabilidade económico-financeira.

(Estes são factores extra literários)

  1. O fenómeno literário ele próprio (o escritor, o livro e os vários públicos fruidores).
  • Coesão de grupo

Vale lembrar as conversas tidas com o nosso Primeiro SG, Rui Nogar, que insistia: 

“Sejam o que quiserem ser, mas respeitem as idiossincrasias uns dos outros.” 

Nada mais certo, grande Rui, assertivo como nunca!

Sim, é esse o ADN que deve caracterizar a AEMO, esta instituição de pensamento, de debate, de artes e cultura.

Esta é uma instituição que sempre se assumiu activa no exercício da cidadania, no sentido de pensar e agir juntos, e individualmente, para o bem da confraria, contribuindo assim, modestamente, para que Moçambique mantenha vivo o sonho, a esperança, a utopia, a poeisis, o mirandum, o onírico das nossas gentes e da nossa terra. Assim revisitamos e reconfiguramos a nossa memória colectiva descrita no labor da escrita e da leitura. É isso que é esperado de nós. É esse o desafio, o empreendimento com que todos juntos estamos confrontados.

No decorrer da nossa campanha dissemos que queremos devolver a aura à AEMO. Portanto, reconhecemos que estamos perante uma aporia, uma realidade disfuncional. Por um lado, sabemos que algo vai mal na nossa Instituição literária, o que põe em causa a nossa identidade de grupo e o fenómeno literário em si. Portanto, a imagem da AEMO foi chamuscada.

Por outro lado, aceitamos o desafio de refundar a AEMO, revisitando os seus alicerces, seus objectivos e seus valores. Esta é a tarefa que temos em mãos. Todos nós. Repito, todos nós, juntos!

Reafirmamos que assumimos o compromisso de que a AEMO deve resgatar o prestígio que a define como uma agremiação, não unanimista, mas, sobretudo, de fraternidade. De civilidade. De interpelação. De valores nobres, tais sejam, a convivência sã, o respeito mútuo e o espírito gregário que nos caracteriza. 

Definimo-nos como confraria. A confraria implica comunhão de valores, partilha de significados, que ocorrem num campo comum de fraternidade e de reconhecimento mútuo.

A nossa associação é uma família de escritores, e como tal, devemos trabalhar juntos para fortalecer nossos laços e promover a literatura moçambicana. Resulta que a coesão de grupo é fundamental para o sucesso da nossa associação. Vamos trabalhar juntos para superar nossos desafios e alcançar os nossos objectivos.

É hora de reunir os nossos membros e fortalecer a nossa comunidade literária.

Vamos pugnar por trazer de volta aqueles, que por um motivo ou outro se afastaram da AEMO. 

Vamos promover um ambiente acolhedor para todos.

Acreditamos que a diversidade de vozes e perspectivas é fundamental para o enriquecimento da nossa literatura. 

Vamos trabalhar para incluir todos os membros e promover a colaboração.

Actualmente somos apenas 187 membros efectivos. Quantos mais formos, mais estaremos em condições de alargar o debate, melhorar os termos e a qualidade desse mesmo debate.

 Por isso vamos encorajar a admissão de novos membros de reconhecido mérito oriundos dos diferentes campos das artes, da cultura e da academia, sempre tendo em conta os referenciais do nosso passado, do nosso presente e do nosso devir. Afinal, existimos desde 1982. 

Dito de outro modo, temos um passado de glória atribulada, e reconhecemos este atribulado presente que vivenciamos. Contudo, Acalenta-nos a ideia desse futuro risonho que os sujeitos poéticos e personagens que povoam os nossos livros nos segredam. Esta é a nossa utopia, ainda que sonâmbula. É por isso que estamos aqui.

Estes são, quanto a nós, desafios extra literários estruturantes para os quais todos juntos somos intimados a dar o nosso contributo já que encimam toda a nossa acção, toda a nossa utopia. Sem coesão não há fruição.

  • Sustentabilidade Inter-geracional

Outra verdade a la palisse: o velho nasce do novo e vice-versa. Claro que sim!

É tendo essa verdade como premissa que vamos encorajar e promover a participação e a iniciativa criadora dos mais novos. 

Vamos, por isso, promover a partilha de experiências entre os mais novos e os mais velhos. 

Vamos propiciar momentos nos quais mais novos e mais velhos troquem experiências, vivências – alargando, assim, o nosso imaginário colectivo.

Vamos retomar a colecção Início, especificamente para os jovens.

Vamos retomar o nosso órgão oficial, Quenguelequezé, onde os jovens participarão numa rubrica criada para o efeito. 

Vamos criar uma comissão de leitura formada por individualidades de mérito e credenciais para aferir da literariedade dos textos; (regulação estética, cânone, entre outros elementos que apimentam a nossa criação).

Vamos retomar o Gabinete técnico (sugestões gráficas).

Vamos promover oficinas de escrita criativa. 

  • Sustentabilidade económico-financeira

Temos que ter Parceiros de diversa índole. Nacionais e internacionais. 

Temos que tirar mais proveito da lei do mecenato. 

É imprescindível a Parceria com o Ministério da Educação e Cultura.

É obrigatória a Parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação. Que o Ministério dos Negócios Estrangeiros nos facilite contactos com as Embaixadas acreditadas pelo mundo. 

Parceria com a LAM. O nosso livro deve saber viajar com os pés da nossa moçambicanidade. 

Parceria com Ministérios e outras instituições. Podemos levar o poema para os Ministérios. Podemos levar o teatro para a Assembleia. Podemos levar o texto literário para os banquetes da Presidência. 

Parceria com as escolas, Universidades…

Parceria com agentes económicos e outras instituições.

Parcerias com Editoras.

Parceria com Fundo Bibliográfico.

Outras parcerias que ao longo do nosso mandato tornar-se-ão possíveis e possíveis.   

  • Fenómeno literário

Quanto ao fenómeno literário em si, vamos ter que prestar mais atenção a tríade escritor, livro e leitor. Para nós isso significa: 

– Promover a publicação e a distribuição dos livros moçambicanos, tanto dentro quanto fora do país;

– Prestar mais atenção ao livro escrito nas línguas locais;

– Incentivar traduções nas diferentes línguas;

– Trabalhar na criação e educação de públicos.

Teremos que promover contactos com escolas primárias, secundárias, Universidades. 

Há que valorizarmos a Biblioteca da AEMO, e desde já aceitamos a doação de livros de quem tem mais em sua casa. Há que reconstituir esse espaço que já foi muito importante para todos nós, incluindo leitores de fora. 

Fundo Bibliográfico (parceria)

Temos em manga propostas de criação de programas de literatura junto as TVs, e já temos experiências dos programas que já foram concebidos pelos escritores Sara Jona e Jorge Oliveira. 

Em jeito de fecho

Vamos operacionalizar o nosso manifesto, traçando indicadores, dimensões e acções concretas.

Vamos continuar a ser o xiphefo, a charrua, a ECO, o oásis do nosso sonho, num processo dialógico.

Acabou a campanha, houve Assembleia Geral e com ela acabaram as listas A, B e C. A única lista agora é a dos nossos mortos, dos nossos membros efectivos, membros de honra e membros beneméritos. É essa a coligação que fará da AEMO uma instituição prestigiada, pertinente, que contribua, modestamente, para o crescimento de Moçambique, na senda do que nos diz o nosso hino: pedra a pedra construindo novo dia!

Pela confiança e carinho, muito obrigado a todos!

Vou chamar um a um os membros do secretariado que se apresentem e digam um parágrafo sobre o seu pelouro. 

Obrigado! Obrigado mesmo caros confrades pelos sonhos que semeiam em mim. 

Maputo, aos 28 de Agosto de 2025

Porque este debate importa: a controvérsia à volta do fornecimento de electricidade à Mozal deixou de ser uma negociação entre empresas para se tornar um teste de maturidade do Estado. O que está em causa não é apenas uma tarifa, é a forma como Moçambique decide usar um activo raro (energia limpa) para gerar valor público, emprego qualificado, divisas e capacidade industrial. 

Com base nos dados desagregados do Wood Mackenzie Smelter Report, com inflação ajustado e o custo de energia, a análise centra-se em dois cenários principais de preço da energia: USD 50/MWh, defendido pela Mozal, e USD 60/MWh, próximo à contraproposta apresentada pela HCB. Estes cenários são avaliados em função da curva global de custos de produção de alumínio, num universo que abrange cerca de 153 fundições mundiais, e considerando ainda a introdução obrigatória do Mecanismo Europeu de Ajustamento de Carbono na Fronteira (CBAM), principal destino das exportações da Mozal.

Os resultados mostram que, mesmo no cenário de USD 60/MWh, quando associado ao CBAM, a Mozal mantém-se entre os produtores mais competitivos a nível internacional, produzindo alumínio mais barato do que aproximadamente 111 empresas em todo o mundo. Esta constatação revela um falso dilema uma que embora o aumento tarifário represente um desafio, a combinação entre energia hídrica e a nova tributação do carbono reforça a posição relativa da empresa e continua a oferecer ao país uma base sólida de competitividade industrial.

 

O que nos trouxe até aqui?

É útil recordar por que razão a MOZAL se instalou em Moçambique a partir do ano 2000 e por que razão a energia está no centro da equação. A decisão de investimento da viragem do milénio combinou três elementos: 

  1. Energia abundante e barata: no início da década de 1990, a capacidade de geração da Eskom excedia a procura máxima da África do Sul (SA) em cerca de 30-40%, criando um grande excedente. Esse excedente resultou do forte investimento da empresa, nas décadas de 1970-80, em centrais a carvão, que antecipava um rápido crescimento da procura nas próximas décadas. Contudo, com o boicote internacional do regime racista sul-africano – pelas UN, Commonwealth, EUA, entre outros – a economia arrefeceu e consequentemente a procura real pela energia, contrariando projecções anteriores de crescimento. Esta situação gerou excedente energético.

 

Com o fim do Apartheid (na primeira metade dos anos 90), como forma de reaquecer a sua economia e “despachar” o excedente energético da ESKOM, a África do Sul apoiou investimentos intensivos em energia na região, e a Mozal, em Moçambique, foi o exemplo emblemático; e a energia foi negociada a tarifas especialmente descontadas para atrair o consumidor. Em 2013, a Mozal pagava cerca de 36 cêntimos por kWh ao abrigo de contratos especiais. Dados de 2012/13 mostram um custo operacional da ESKOM que era de aproximadamente R 54,2 cêntimos por kWh, o que significa que a tarifa aplicada à Mozal não cobria o custo.

 

Portanto, pode afirmar-se, com elevado grau de confiança e com base nos dados acima apresentados, que a instalação da MOZAL em Moçambique respondeu, antes de mais, aos interesses estratégicos da África do Sul e menos aos do próprio país. Em segundo plano, foi a disponibilidade de energia sul-africana, em quantidade e a preços reduzidos, o verdadeiro factor determinante que levou a Mozal a investir primeiramente na África Austral (assumindo a sensibilidade desta indústria ao preço da energia).

 

  1. Localização: presença de um porto dotado das condições adequadas para assegurar o manuseio eficiente de equipamentos, matérias-primas e produtos finais, tanto para importação como para exportação nos mercados internacionais. Com efeito, Beluluane oferece proximidade imediata ao Porto de Maputo e ao Corredor logístico EN4, reduzindo igualmente custos de escoamento de um produto denso em valor e em volume;

 

  1. Enquadramento institucional: compreende o quadro regulatório e os incentivos ao investimento, considerados altamente atractivos, oferecidos pelo então Governo de Moçambique, bem como a engenharia contratual de âmbito regional. Pagaria três a quatro vezes menos de impostos que uma empresa similar pagaria na Noruega.

 

  1. Disponibilidade de infra-estrutura: presença de uma infra-estrutura robusta e de elevada qualidade, capaz de garantir o transporte e o fornecimento da energia eléctrica disponibilizada pela Eskom, através MOTRACO. 

Como foi operacionalizado o potencial existente?

No seguimento dos princípios dos objectivos de integração regional emanados do SADC Treaty datado de Agosto de 1992, foi em Março de 1997 que o Governo de Moçambique e a Alusaf assinaram um Acordo de Princípios para o estabelecimento de uma fundição de alumínio em Moçambique.  Acto continuo, o Decreto n.º 45/97 criou a Zona Franca Industrial MOZAL (ZFIM), com regimes especiais aduaneiro, cambial e laboral que, goste-se ou não, eram comuns em megaprojectos do período. Tal decreto contribui para mitigar incertezas e funcionar como um relevante atrativo para o investimento da Mozal, num contexto em que Moçambique emergia de uma das mais devastadoras guerras civis do mundo e em que a confiança na segurança nacional permanecia fragilizada. Assim, a Mozal passaria a ser pioneiro e chamariz da industrialização no período pós-colonial. Seguiu-se a implantação da MOTRACO, joint venture em partes iguais (33,33% cada) das utilities EDM, ESKOM e Eswatini Electricity Company, a qual construiu e opera “auto-estrada” eléctrica de 400 kV que liga, com redundância técnica, o sistema sul-africano/ESKOM à carga electro-intensiva da fundição, bem como a restante carga elétrica da EDM no sul de Moçambique e da EEC em Eswatini, conferindo garantias de qualidade requeridas pela aluminaria ao mesmo. 

Na fundição moderna, a electricidade e a alumina respondem, cada uma, por cerca de 30% do custo “cash” total de fornecimento, totalizando assim cerca de 60% do custo; a logística e mão-de-obra têm, em regra, peso inferior (em média 10% cada). Em carga plena, a demanda elétrica da MOZAL é de 950 MW firmes – uma grandeza praticamente igual ao actual consumo total de energia de Moçambique, e cerca de 50% da capacidade total instalada na HCB.

Do lado societário, convém exatidão: actualmente, a operadora e accionista de referência é a australiana South32 (subsidiaria da multinacional BHP Billiton) com participação maioritária (cerca de 64%); o Industrial Development Corporation da África do Sul (cerca de 32%) mantém uma quota relevante; e o Estado moçambicano detém cerca de 3,9%. A cronologia também merece precisão: a construção arrancou no fim dos anos 1990, a produção iniciou-se em 2000 e a expansão foi concluída em 2003. Esta memória factual não é detalhe: é a base para aferir compromissos, avaliar benefícios e, sobretudo, renegociar com lucidez.

O problema de hoje: preço e quantidade 

O nó górdio, hoje, resulta da combinação de quatro vectores. A saber:

  • Load shedding: a África do Sul vive, desde 2007, ciclos de racionamento eléctrico (“load shedding”) que atingiram o seu pior registo em 2023, fruto da dependência do carvão, do envelhecimento das usinas de carvão responsáveis por aproximadamente 90% da energia no pais, de atrasos de manutenção e de problemas de gestão na ESKOM. O cenário anterior caracterizado por excesso de energia barata passa a dar lugar a profundas dificuldades de abastecimento de energia tanto a nível interno da Africa do Sul como a nível da capacidade de a Eskom continuar a servir e cumprir os níveis da SAPP, precipitando a recomposição tarifária que se seguiu e associada à necessidade da revisão de contratos, incluindo o fornecimento firme para grandes clientes. 

 

A este tsunami energético, apenas os termos e condições aplicáveis ao fornecimento à Mozal terão ficado blindados e quase intactos. Para justificar perante a opinião pública sul-africana a manutenção do fornecimento contínuo à Mozal, sem interrupções e alterações tarifárias a todos os outros aplicáveis, pesou o facto de a ESKOM ter acedido a incluir uma cláusula indicando que a energia a ser entregue à Mozal seria a mesma proveniente de Moçambique – a partir da HCB – recanalizada a Moçambique. Concomitantemente, ainda que sem vinculação contratual formal e direta da HCB, e para cumprir com os requisitos de entrega de um produto/alumínio verde aos mercados internacionais, terá sido estratégico emendar os termos contratuais no sentido de referir que a energia fornecida à Mozal a partir da África do Sul/ESKOM era de origem hídrica/limpa. De sublinhas que não há garantias de que tal energia consumida pela Mozal seja realmente limpa visto que o seu fornecedor recebe directamente da Eskom e não da HCB. 

 

  • Regime contratual e técnico: a arquitectura que alimenta a MOZAL separa, por desenho e configura duas relações jurídicas independentes no âmbito legal mas interdependentes no âmbito técnico e da cadeia de fornecimento, nomeadamente: (i) o PPA entre a HCB vs ESKOM, por um lado, e (ii) o PPA entre ESKOM – MOTRACO MOZAL, por outro lado, relações que relações exclusivas, ou seja, o que contracto entre A e B não influencia o contrato o contrato entre o B e o C, e assim sucessivamente. De referir que apesar da independência entre si, eles são economicamente interdependentes e politicamente sensíveis.

 

  • Sazonalidade e estratégia (económico/comercial): o principal contrato de exportação da HCB-ESKOM tem horizonte de 2030 e assenta em premissas tarifárias associadas ao comprador ESKOM, sendo que o contrato de fornecimento a ESKOM-MOZAL tem um horizonte de 2026 e assenta em premissas tarifarias associadas ao consumidor Mozal. Em algum momento observa-se um desalinhamento entre as duas relações jurídicas tanto do ponto de vista temporal como do ponto de vista económico, só resolvível mediante o recalibramento temporal e tarifário.    

 

  • O quatro tem a ver com o volume de energia requerido na capacidade de fornecimento dos 950 MW requeridos: tão ou mais do que o preço médio por megawatt-hora, o que define a viabilidade técnica e económica da fundição é a disponibilidade de potência firme e contínua. Decorrente da situação de seca no Zambzeze foram aventadas, no debate nacional, ofertas de volume na ordem de 350 MW a partir de 2026; com tal potência, a operação, tal como configurada, torna-se inviável, independentemente do preço. Discutir apenas tarifas, descurando o vector “quantidade”, é um falso conforto.

É neste quadro que se discutem valores e volumes. Notícia que circula na média indica que a Eskom terá informado ao seu cliente Motraco-Mozal, que a partir de Abril de 2026 a tarifa será revista em alta e poderá estar no tecto de cerca de USD 90 por MW. Uma subida exponencial, e que corresponde quase o dobro da tarifa anterior. A aluminaria admitiu uma subida até ao limite máximo de 50 dólares por MW – relevante face aos patamares anteriores – a qual a ESKOM ainda não aceitou. A mesma proposta da Mozal foi à Moçambique, mas a HCB objecta por considera-la abaixo do custo de fornecimento e que significaria passar a subsidiar uma multinacional com recurso a um activo público. Para esta uma tarifa de USD 64 por MW seria uma contraproposta a considerar. 

Entre esse vai e vem, o Estado fez bem em clarificar que não colocará a HCB a vender abaixo de um patamar que comprometa a sua solvência e a sua missão. A prudência financeira é, aqui, sinónimo de responsabilidade intergeracional: uma HCB fragilizada significaria menos capacidade de manutenção do activo, menor previsibilidade para a electrificação doméstica e menor margem de manobra para assegurar o reforço do seu balanço para catapultar e financiar investimentos de reabilitação e expansão. Também é sensato exigir que qualquer concessão de preço, se alguma vez ocorrer, não se traduza num subsídio a fundo perdido. Mas é igualmente verdadeiro que uma paragem abrupta da MOZAL teria custos macroeconómicos (e sociais não triviais: impacto na balança de pagamentos e nas entradas líquidas de divisas; desarticulação de um ecossistema de fornecedores, serviços e actividades a jusante). 

O interesse nacional não está nem em demonizar uma empresa que opera sob regras vigentes, nem em hipotecar um activo público que é, em linguagem simples, a nossa “galinha dos ovos de ouro” energética. O interesse nacional está em maximizar o valor social do nosso recurso escasso – energia limpa – num horizonte de longo prazo. Para o efeito, sem o prejuízo desta última, o governo deve tomar liderança e encontrar uma solução realmente interessa o país, que inclui a possibilidade de continuidade da Mozal.

Competitividade: o que dizem os números 

A controvérsia em torno da revisão da tarifa da eletricidade fornecida pela Hidroelétrica de Cahora Bassa (HCB) à Mozal pode ser analisada a partir de dois cenários alternativos de tarifa unitária: 50 USD MWh e 60 USD MWh. Em ambos os casos, importa compreender como a posição relativa de custos da Mozal muda na curva global de custos de produção de alumínio, em contextos “sem CBAM” e “com CBAM”. (Para mais detalhes sobre o CBAM veja: https://opais.co.mz/ou-tributamos-nos-ou-tributam-eles-como-mocambique-pode-sair-da-crise-fiscal-com-o-cbam-ue/).

Para a presente análise, recorremos à proposta e análise de Wolfram & Pereboom, investigadoras do MIT-EUA, desenvolvida no âmbito do seu trabalho com o International Growth Centre em Moçambique. O recurso a dados provenientes de terceiros confere à nossa abordagem maior solidez e credibilidade, permitindo-nos analisar a matéria com distanciamento crítico, livres de paixões e favoritismos, e reforçando de forma significativa a imparcialidade e a objetividade da interpretação apresentada.

Adicionalmente, antes de detalhar os cenários, convém esclarecer o conceito de percentil de forma prática. Quando se ordenam fundições de alumínio do custo mais baixo para o mais alto, a posição de uma empresa pode ser expressa pelo percentil. Dizer que uma fundição está no 15.º percentil significa que 15% dos concorrentes têm custos iguais ou inferiores e 85% têm custos superiores; estar no 39.º percentil significa que 39% são mais baratos e 61% mais caros (100%-39 = 61); no 69.º percentil, 69% são mais baratos e 31% mais caros. Percentis mais baixos traduzem vantagem relativa de custo; percentis mais altos refletem desvantagem. É um indicador de posição na fila de custos, não uma medida direta de lucro ou prejuízo. A leitura correta, portanto, é probabilística: quanto mais à esquerda na curva (percentil baixo), maior a folga potencial para competir em preços num mercado internacional.

Como estamos hoje?

Com base nos dados do Wood Mackenzie Smelter Report, que abrange aproximadamente 153 fundições de alumínio em 2023, a Mozal encontra-se posicionada no 18.º percentil. Em outras palavras, o seu custo de produção é inferior ao de aproximadamente 82% das empresas do setor (cerca de 125 empresas de fundições). Assim, a Mozal ocupa hoje o 28.º lugar, num universo de 153 empresas, como uma das unidades com menores custos de produção a nível mundial.

Fonte: MIT (Wolfram & Pereboom)

Como estaremos no futuro?

  • Primeiro Cenário USD 50 MWh

No cenário de USD 50 MWh, proposta feita pela Mozal, ela enfrentaria um custo unitário de energia superior ao observado em 2023 (32% mais cara). Quando se compara a sua posição relativa, sem considerar custos advindos do imposto de carbono nos concorrentes a ser introduzido a partir do próximo no da UE (isto é, assumindo apenas a atualização de eletricidade por inflação nos pares), a Mozal desloca-se para da posição 18. º para 39.º percentil com esta nova tarifa. Contudo, ficaria mais barato apenas do que 61% (cerca de 93 empresas) do mercado, passando a ocupar a 60 º posição. Em termos práticos, quase quatro em cada dez fundições ficariam com custos iguais ou inferiores, e seis em cada dez com custos superiores. 

A introdução do mecanismo europeu de tributação do carbono na fronteira (CBAM) altera substancialmente o cenário acima descrito. Com a aplicação deste instrumento, que obriga os concorrentes a suportar o imposto associado às suas emissões de carbono, a posição competitiva da empresa melhora para cerca do 15.º percentil. Esta evolução decorre do facto de a maioria das fundições recorrer a energia proveniente do carvão, sujeitando-se, portanto, a encargos fiscais elevados. Em contrapartida, a Mozal, cuja produção assenta maioritariamente em energia hídrica, enfrenta uma carga tributária bastante inferior, o que lhe permite reposicionar-se entre os produtores de alumínio com custos mais reduzidos a nível global. 

Fonte: MIT (Wolfram & Pereboom)

  • Segundo Cenário USD 60 MWh

No cenário de 60 USD/MWh (58% mais cara que 2023), a Mozal enfrenta um custo unitário de energia mais elevado. Sem CBAM, a sua posição relativa recua para a zona do 69.º percentil, ou seja, passa a estar entre o terço mais caro da distribuição, o que, num mercado internacional pressionado por preços de referência, pode exigir maior disciplina sobre eficiência operacional e contratos de fornecimento de matéria-prima. Mais continua mais eficiente que 31% (cerca de 47 empresas no mercado mundial).

Assim como no primeiro cenário, com CBAM, porém, observa-se recuperação exponencial para cerca de 26.º percentil (o custo passa a ser inferior a 74% de todas as empresas do sector): e a Mozal volta a situar-se no primeiro quartil de competitividade, ou seja, na elite das empresas de com custos mais baixo da industria. 

Fonte: MIT (Wolfram & Pereboom)

Em síntese, a indústria do alumínio revela-se extremamente sensível a variações no preço da energia, dada a sua relevância na estrutura de custos. A proposta da HCB implicaria um aumento de cerca de 58% no custo da eletricidade face a 2023, pressionando a competitividade da Mozal, ainda que com o mesmo ela possa permanecer dentro das fronteiras dos custos, tomando em consideração a dinâmica deste mercado. O aspeto mais relevante deste artigo, contudo, reside no facto de a Mozal beneficiar do uso de energia de origem hídrica (limpa), o que lhe confere uma vantagem comparativa em relação à maioria das fundições que recorrem a fontes não limpas que terão que pagar impostos mais altos sobre as emissões a partir de Janeiro de 2026. Assim, com implementação obrigatória e definitiva do CBAM, no mercado europeu, no próximo ano – principal destino de cerca de 90% da produção da Mozal- a Mozal continuar a ser uma das empresas com custos mais baixos do que 111 empresas, num total de 153 o nível mundial. Ou seja, considerando os cenários acima, a proposta da HCB não se revelou ainda um elemento critico per si que justifique a saída Mozal em Moçambique.  

Como decidir, então? 

No fim do dia, a pergunta certa não é “HCB ou Mozal?”. É: como transformamos a nossa energia limpa num pacto produtivo, justo e duradouro  que pague salários, forme jovens, fortaleça o Estado e dê ao país uma indústria que faça sentido num mundo que muda depressa? Longe de oferecer soluções acabadas, este artigo insta ao aprofundamento do debate, e uma análise mais ampla da situação com base em evidencias: Abaixo algumas sugestões se soluções:

  • Transparência entre as partes: tanto a Mozal como a HCB devem partilhar, de forma clara e aberta, os números e os desafios que atualmente enfrentam, sem isso não possível chegar-se a uma solução justas para as partes;
  • Arranque do mercado de carbono em Moçambique: com a implementação do CBAM europeu, uma parte do valor criado pela energia limpa pode “fugir” para fora se o país não tiver enquadramento legal e institucional que capture internamente a tributação de carbono. Em bom rigor: ou tributamos nós, ou tributam eles. A urgência está em criar as regras, a autoridade competente, o registro e os mecanismos de MRV (monitorização, reporte e verificação) que deem integridade ambiental e credibilidade comercial a esse mercado;
  • Fórum técnico-político sob liderança da Presidência: juntar os seguintes sec
  • 3T2 Ntores: Energia, Economia e Finanças, Indústria e Comércio, Trabalho, Ambiente, Banco de Moçambique, reguladores, universidades e centros de pesquisa. Um task force com prazo certo para produzir um parecer público: premissas auditáveis (trajetória de preços regionais e câmbio), OPEX/CAPEX da HCB (manutenção e amortização da reversão), compromissos Mozal (emprego, compras locais, formação), impacto fiscal em cada cenário, sensibilidade à cotação do alumínio e riscos de interrupção. A transparência técnica dá legitimidade política e estabiliza expectativas. Sem esta base comum, o país fica prisioneiro de narrativas interessadas, por vezes tecnicamente frágeis;
  • Preço (com partilha de risco): faz sentido procurar um valor médio que proteja a HCB e seja suportável para a Mozal, mas amarrado a uma indexação dupla: por um lado, ao custo de oportunidade da energia hidroelétrica exportável; por outro, a um índice internacional do alumínio (como as referências da LME). Assim, quando o alumínio cai e esmaga margens industriais, a tarifa ajusta-se em baixa dentro de uma banda; quando o alumínio sobe e gera rendas extraordinárias, a HCB captura parte desse ganho. Para o Estado, isto converte volatilidade em previsibilidade fiscal e financeira – e dá racionalidade ao debate público, hoje dominado por números soltos e pressões contrapostas.
  • Quantidade (com segurança de abastecimento): o acordo tem de assegurar potência firme suficiente (950 MW) combinando blocos da HCB com blocos regionais (ESKOM)por forma a perfazer o quantum requerido pela aluminaria, mas com regras claras de alocação de risco de interrupções e mecanismos automáticos de compensação. 

Contrapartidas do Estado: qualquer “desconto” relativo face ao preço ideal da HCB deve transformar-se em activo público verificável: por exemplo (i) articipação adicional do Estado (ou da HCB) no capital da Mozal: proporcional ao valor presente do benefício concedido-alinhando incentivos e criando upside para o país em ciclos de preços favoráveis; (ii) Compromissos vinculativos de investimento a jusante (indústria transformadora como laminação, janelas e portas de alumínio, entre outros) e conteúdo local (fornecedores, formação técnica, estágios), com metas e mecanismos de avaliação pública anual; (iii) Revisão do pacote fiscal: menos isenções horizontais e mais instrumentos calibrados a desempenho; (iv) Canalização de parte das receitas em divisas através do sistema financeiro nacional, reforçando reservas e profundidade do mercado cambial. e um calendário público de avaliação anual, com gatilhos de revisão automática se metas não forem cumpridas.

A contar para a sua 29ª. edição, o M’Saho – Festival da Timbila regressou às terras de Zavala, em Quissico, no dia 23 último, para mais uma celebração da cultura tradicional moçambicana e, sobretudo, de um dos patrimónios culturais imateriais da humanidade, a timbila.

Tal como nos anos anteriores, Quissico – a vila que acolhe o evento – vibrou com a presença de milhares de pessoas que, para além de acompanhar os diversos grupos e animação de mais uma edição do Festival da Timbila, experimentou as delícias gastronómicas locais e deslumbrou-se com os cenários paisagísticos que a vila apresenta, marcado por lagoa e árvores de coqueiros.

No palco, como de costume, os instrumentistas da timbila (e de outros instrumentos) juntaram-se aos bailarinos de todas as idades para uma simbiose performática de tirar o fôlego. Cada actuação era digna de aplausos e assobios ao estilo característico de quem se encanta com a vibração que combina, e muito bem, a música e a dança.

Quem esteve em Zavala de certeza o desejo é de regressar próximo ano, pois a experiência que se viveu em um dia cheio de música é convidativa. Aliás, é por isso que o Festival da Timbila é agenda obrigatória para muitos turistas, académicos, estudantes, artistas e diversos públicos apreciadores da música tradicional.

E os residentes de Zavala, todos os anos, esmeram-se para encantar os visitantes com o melhor que a vila tem para oferecer, desde comida típica, bebidas tradicionais, propostas de passeios em trilha ou de barco na lagoa e acomodação confortante e rústica em casas ou em tendas, bem como produtos e serviços diversos.

A economia de Zavala, e porque não de Inhambane, agradece quando chega a hora do festival, pois homens e mulheres conseguem fortalecer os seus diversos negócios – sobretudo materiais artesanais – para novos públicos, que não dispensam uma recordação local, levando para casa a herança do povo chope.

A edição deste ano, com a particularidade de juntar apenas artistas locais, contou com a participação de 17 grupos de timbila provenientes dos distritos de Quissico e de outros pontos de Inhambane, entre os quais Mkwaio, Timbila de Guilundo – Venâncio, Timbila de Muane, Timbila Mazivela, Timbila Banguza, Timbila Nhagutou, Timbila Mauaie, Ngalanga Chitondo, Ngalanga Ngomene, Ngalanga Vugane, Fusão Timbila Quissico, Grupo da Escola Graça Machel de Quissico, Timbila Chidzoho, Timbila Groove, Xigubo Ubanthu de Inhambane, a Companhia de Dança de Cambine e a Escola de Dança do ISArC.

Zavala foi, mais uma vez, um ponto de encontro para apreciadores da música e da dança moçambicana, oferecendo uma experiência autêntica, repleta de ritmos vibrantes, trajes tradicionais e expressões únicas. Até porque a timbila, neste contexto, deixou de ser apenas um símbolo identitário e passou para uma dimensão de atracção turística, inspirando novas visitas e fortalecendo o orgulho nacional.

Reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como Património Cultural Imaterial da Humanidade desde 2005, a timbila é mais do que um instrumento musical, é um legado vivo do povo chope, presente sobretudo na província de Inhambane. 

Trata-se de um conjunto de xilofones artesanais, construídos a partir de madeira local e cabaças ressonadoras, cuja sonoridade única acompanha cantos e danças que narram histórias, transmitem ensinamentos e reforçam laços comunitários.

E foi mesmo isto que se viveu no dia 23 de Agosto último, um pretexto para narrar histórias, transmitir ensinamentos e reforçar laços através do Festival da Timbila.

Festival da Timbila procura local apropriado Segundo Samuel Júnior, director provincial da Cultura e Turismo, para além do aspecto performativo e multidisciplinar, o Festival da Timbila terá outras valências, como exposições, palestras e seminários sobre a timbila e outros tipos de músicas e danças tradicionais.

“Para além da preservação da timbila, é também nosso interesse fazer deste evento uma montra para a exposição desta prática cultural de modo que ela possa permanecer por todo o sempre”, realçou Júnior, acrescentando que este festival é um espaço que serve de encontro para vários povos.

Um dos desafios partilhados por Samuel Júnior durante o seu discurso é encontrar um espaço definitivo para a realização deste evento, que tenha condições adequadas para este tipo de manifestações. 

 

Próxima edição será no dia 29 de Agosto e vai incorporar música ligeira

De acordo com o Governador de Inhambane, o Festival da Timbila é uma manifestação cultural que consagra os mais nobres valores da cultura chope e identidade moçambicana. “O festival M’Saho, que outrora foi símbolo da resistência, hoje é realizado anualmente nesta vila linda e rica de Quissico, como forma de resgatar, celebrar, preservar a timbila proclamada obra-prima do património oral e imaterial da humanidade pela UNESCO”, sublinhou Francisco Pagula.

“Durante a actuação dos grupos, a tradição se renova, num intercâmbio entre gerações interligando o passado e o presente, na construção de um futuro, bem como na reafirmação da timbila no panorama da cultura moçambicana”, por isso, “ao celebrar M’Saho, celebramos a cultura, a harmonia, a fraternidade e a força da nossa identidade como um povo”, disse Pagula durante a sua intervenção.

O Governador de Inhambane declarou ainda que a próxima edição do M’Saho, segundo a vontade do povo de Zavala, está marcada para o dia 29 de Agosto de 2026, justificando o facto de calhar no último fim-de-semana do mês. E a grande novidade partilhada por Pagula é que, a partir da 30ª. edição, o Festival da Timbila vai incorporar na sua programação artistas que apostam na música ligeira moçambicana.

Pagula não saiu do palco antes de dançar e aprender a tocar timbila, aliás, esta aula foi merecida, pois o governador ofereceu timbilas às escolas secundárias de Zavala, nomeadamente, Helene e Graça Machel, para além de kits de ferramentas de fabrico e manutenção deste instrumento a Domingos Venâncio e Luís Semende.

 

Sasol apoia Festival da Timbila pelo quarto ano consecutivo

Para o representante da Sasol, voltar a Quissico é regressar a um lugar onde o som de timbila não é apenas música, é a voz de um povo, é memória, é identidade, é um testemunho vivo da tradição chope. “O Festival de Timbila – M’Saho é uma celebração rara, onde a música e a dança se encontram com a história e a alma de uma comunidade”, destaca.

A Sasol, partilha o seu representante, associa-se ao festival pelo quarto ano consecutivo, pelo facto de ser um património que traduz a valorização da criatividade das comunidades de Inhambane, para além de apoiar as festividades dos distritos de Govuro, Vilânculos e Inhassoro e as diversas iniciativas desportivas que fortalecem laços e inspiram novas gerações. 

 

Parece que é o assunto da família? Quando o Estado trata os seus soldados como sobras de logística, a casa toda treme. Como confiar na porta da frente se quem a guarda reclama de fome? É como se tivéssemos um parente que trabalha noite e dia, protege a casa, mas quando regressa encontra o prato vazio e a porta fechada. A família, que deveria recebê-lo com água fresca, responde com silêncio. Esse parente é o soldado moçambicano, enviado ao norte para combater o terrorismo, e depois devolvido a casa sem soldo, sem assistência, sem dignidade.

O facto que nos convoca. Mais de trezentos militares afirmam que combateram o terrorismo em Cabo Delgado durante um ano inteiro, sem qualquer pagamento, e ao fim foram simplesmente mandados “aguardar em casa”. Não estamos a falar de rumores são denúncias feitas com rosto, voz e sofrimento. Relatam a falta de logística, de apoio, de reconhecimento. Sentem-se abandonados pelo Estado a quem juraram fidelidade. É uma situação amarga: soldados que deveriam representar a força e a segurança nacional transformam-se em pedintes de justiça. Como confiar na porta da frente se os guardiões da casa estão a reclamar de fome?

Do ponto de vista sociológico, isto é mais grave do que um simples atraso salarial. É um sinal de ruptura na confiança social. Se o Estado abandona quem o defende, o que sobra para o cidadão comum? É a pedagogia do cinismo: o povo aprende que promessas oficiais não valem nada, que a lealdade não compensa, que o esforço é descartável. Um Estado que deixa os seus militares “à espera” cria um precedente perigoso: instala-se a ideia de que a vida humana é negociável, e o contrato social é só retórica.

Uma sociedade mede-se também pelo modo como trata quem se sacrifica por ela. Quando o Estado falha em pagar salários ou garantir o mínimo de dignidade aos militares, instala-se uma pedagogia do cinismo. Se aqueles que arriscam a vida no terreno são tratados como descartáveis, porque razão o cidadão comum acreditaria na promessa pública? A confiança social não sobrevive a meses de espera sem pão. É um colapso silencioso, que não explode em manchetes, mas mina dia após dia a relação entre governantes e governados.

A filosofia lembra-nos que o contrato militar não é feito apenas de obediência. É um pacto de reciprocidade: o soldado entrega o corpo, o risco, a juventude; o Estado devolve dignidade, salário, cuidado, memória. Deixar de pagar não é mera falha administrativa, é uma quebra ontológica: é dizer ao soldado “tu não existes”. É reduzi-lo a cão de guarda que, depois do turno, é atirado à própria sorte. E quitar o soldo não é favor, é a forma mínima de dizer “tu existes”. Negar esse retorno é negar a própria ideia de contrato social.

Nas nossas comunidades tradicionais africanas, quem guarda a aldeia merece assento à sombra da árvore, merece água fresca, merece reconhecimento colectivo. Aquele que vigia contra o inimigo não volta para casa como indigente. Negar o básico aos militares é quebrar a ética comunitária do ubuntu: eu sou porque nós cuidamos. Quando a aldeia não cuida dos seus guardiões, quebra-se a reciprocidade cultural mais profunda. A lógica da honra é a lógica da sobrevivência da comunidade. O militar não é máquina de guerra, é filho, é irmão, é vizinho.

A moral africana ensina que a guerra começa na cozinha. Soldado faminto é soldado derrotado antes de disparar o primeiro tiro. Uniforme roto, atraso salarial, silêncio administrativo — tudo isso é violência prévia. A guerra não se trava apenas no campo de batalha, mas também na mesa onde se serve a comida e no hospital que deveria tratar as feridas.

Política sem eufemismos. Aqui a política não pode esconder-se atrás de frases feitas. Governar é priorizar. E quando o governo falha em pagar os seus próprios soldados, falha no mínimo do mínimo. Se o combate em Cabo Delgado ainda persiste, se a população continua a fugir, se aldeias são queimadas, não é possível, não é aceitável que se adicione a este quadro o abandono dos militares. Transparência não derruba governos, a teimosia sim.

Quem trata os seus militares como sobras, acabará por perder também a confiança do povo. E aqui não se trata de partidarismo, mas de sobrevivência nacional: um país que abandona os seus soldados está a abandonar-se a si próprio.

E que se diga com clareza: a via para mudar este estado de coisas deve ser constitucional, cívica e pacífica. Não se pede que a farda derrube governos; pede-se que ela continue a proteger o povo, mas com dignidade, com justiça e com reciprocidade.

Do ponto de vista jurídico, o caso dos militares abandonados tem pelo menos três dimensões: Direito laboral público – remuneração pelo serviço prestado é obrigação inadiável. Atrasar ou negar salários fere a lei e mina a confiança. Direitos humanos – o Estado tem dever de garantir alimentação, assistência médica, descanso e reintegração.Accountability – a Provedoria de Justiça, o Tribunal Administrativo e a Assembleia da República não podem fingir inocência. Precisam auditar, investigar e responsabilizar.

Militar: disciplina e dignidade. Os próprios militares, diante desta humilhação, sabem que não devem agir como massa descontrolada. A disciplina é a sua honra. Mas disciplina não significa silêncio cúmplice. Significa: Registar e reportar com documentos claros o tempo de missão, as ordens recebidas, os nomes dos responsáveis.

Usar os canais formais: Provedoria, comissões parlamentares, tribunais. Rejeitar ordens manifestamente ilegais. Exigir acompanhamento psicológico e reintegração social após missão. Manter a farda como símbolo de defesa do povo, não como instrumento de medo.

O que o Governo deve fazer já? Um Estado sério não espera protestos para agir. O que precisa ser feito é simples e imediato: Pagar o que deve – calendário público de quitação, com prazos claros. Auditar a logística – apurar onde se perdeu comida, fardamento, munições.

Criar um Estatuto do Combatente – seguro de vida, assistência médica, reintegração.

Transparência orçamental – publicar mensalmente a execução financeira do setor de defesa em Cabo Delgado. Ouvir quem esteve no terreno – não apenas generais, mas também praças e sargentos. Proteger denunciantes – garantir que quem fala a verdade não seja punido. Se a pátria é uma casa comum, então primeiro se alimenta quem guardou a porta a noite inteira.

Depois conversa-se. Depois corrige-se. Só assim a aldeia volta a dormir. Só assim Moçambique poderá chamar-se, verdadeiramente, um Estado. Porque, afinal, como confiar num país onde até os soldados reclamam de fome?

 

Eis-me aqui para fazer uma segunda leitura de um livro autêntico. Um segundo procedimento, em Maputo, depois do primeiro, na Galiza (Espanha). Uma segunda leitura – que se apresenta como um posfácio – pois sou prefaciador do livro. Creio – aceito retificar-me pelo erro – estou a alimentar-me de um caso inédito: apresentar um livro onde o prefácio foi cunhado pela minha mão direita. Expor Mãos de Medo é aceitar «bordar o tempo» (Rosário, 2005, p. 41). Negar tal acto seria «como um anti-poema» (Rosário, 2005, p. 45) que se mostra como uma pedra que assume ter temor de tudo. [As citações feitas ao longo do texto são do livro: Mãos de Medo (autor, Nick do Rosário; edição, Gala-Gala Edições)].  

Antes de tudo irei expor a sentença: este livro é sobre amor. É, também, sobre memória. Sobre as pessoas que Nick decidiu amar e que estão expostas na dedicatória (Rosário, 2005, p. 7). Sobre outras pessoas – incluindo amores da vida do poeta – que souberam vencer o medo. Mas, por causa desse amor ele é preso e deve provar que sabe bem-querer os seus e nós os outros. Por isso, vamos nos colocar no lugar do poeta. Imaginemos um pouco o protótipo de construção dos poemas que fazem este livro. Será uma idealização injusta. Todavia, necessária. Consideremos, estou a ser amável ao dizer «consideremos» – pois, gostava de dizer «maldizer» – que Nick se encontra preso por uma semana porque decidiu amar. Decidiu nos amar. [O lugar da prisão deixo ao vosso critério]. Como castigo, durante seis dias – pois será liberto no sétimo dia para descansar na paz celestial –, deve fazer uma refeição para um «sublime-autocrata». [Uso «sublime-autocrata» entre aspas para não dizer «ditador»]. Na segunda-feira, deve fazer galinha-cafreal com almôndegas, para Omar Bongo. Na terça-feira, pão-ricipe com molho ao sugo, para Hastings Banda. Na quarta-feira, matapa de siri-siri com molho velouté, para Samuel Doe. Na quinta-feira, xiguinha de cacana com molho pesto, para Mobuto Sese Seko. Na sexta-feira, tepwe com xima com molho chutney, para Francisco Nguema. E, no sábado, para fechar e conquistar a sua alforria, sugere repolho com quiabo regado de molho béchamel, que é saboreado por Idi Amin Dada. Como acompanhante, os «sublimes-autocratas» só tem direito a um copo de xivhotxongua, uma taça de vinho de palma, uma lata de pepsi-cola ou um duplo de Macallan 1926. [Tendencialmente, todos preferem bebidas do ocidente pois só assim se nutrem da civilização ideal]. Contudo, de Nick, para além de anuírem as refeições, recebem versos. Ele disfarça sua deficiência culinária com dotes poéticos. Nick, com as suas Mãos de Medo, tece poemas para ganhar alforria. É aqui onde o «medo» – parte do título do livro que temos nas nossas «mãos» – começa a ser o azimute para a emancipação do poeta. Ele, em tom de epigrama versificada, oferece um poema para cada «sublime-autocrata». Por amor fazemos tudo que estiver ao nosso alcance. Daí que, para cada dia de refeição Nick, em nome doa amor, predispõe-se a ler um poema. Óbvio que os poemas não enchem estômago de ninguém. Também, os poemas nunca terão esse propósito. 

Partindo deste desenho culinário, convida-vos para a segundo parte da nossa concepção. Vamos cogitar que para Omar Bongo Nick oferece «o calor das húmidas [verdades]/ […] / como uvas fermentadas» (Rosário, 2005, p. 70). Mimoseia Hastings Banda com «a eternidade / [que] trincou o fruto dos ramos» (Rosário, 2005, p. 33). Presenteia Samuel Doe com «mágoas / forcas / de forças» (Rosário, 2005, p. 81).  Para além da xiguinha de cacana Mobuto Sese Seko ouve o poema Dedicatória (Rosário, 2005, p. 31): «a noite cabe em ti / o ritual da alvorada / com o estímulo das emoções // Cabe a ti todo o astro / o acorde das estelas / a música mística da noite / o flautim do poema / numa inacabada casa». Francisco Nguema, se deleita com o poema Composição (Rosário, 2005, p. 30): «a árvore dos ossos / ou o fruto dentro das raízes como sinuosas mãos / a embalar o berço / a semente / e o corpo». E, no sábado, todos os «sublimes-autocratas», sob comando do auto-intitulado «o último rei da Escócia», Idi Amin Dada, ouvem o poema Desabafo (Rosário, 2005, p. 41): «a tua lua vermelha / arde de sol tarde / um desabafo arde / de saudade teu sol tarde / e não tarda».    

Ao convocar a culinária para a apresentação do livro de Niclk quero evidenciar o poder de ultrapassar fronteiras, por meio da gastronomia poética. Assumo, que estou a coagir, quiçá constranger os apaixonados, com uma comparação desdenhável para falar de amor que liberta. Quiçá, a constranger os chefes de cozinha. Mas, saber preparar um bom poema que atrai e adquire leveza mediada pelo manuseio criativo das mãos do poeta, ao ponto de até os mais incessíveis e insaciáveis se deslocarem e se deleitarem para outros lugares verbais, tal como é o anseio dos poetas e da própria literatura, é saber ultrapassar fronteiras, é saber experimentar outros portos, pois saber reanimar uma linguagem criando novas imagens, novos sabores é a função da literatura e da poesia. É neste pedestal, de doçura poética, de iguaria do verbo, que coloco o livro Mãos de Medo de Nick de Rosário. Não estou a dizer é o melhor. Estou a dizer, ele sabe falar de amor para ganhar alforria. Dirão: os prefácios, os posfácios e as apresentações nunca apontam erros? Nunca encontram defeitos na poesia do autor apresentado. Para responder estas e outras questões irei me socorrer num ditado chope que, sempre, oiço da minha mãe, Clara Jango, quando estou desanimado e a perder o controle das coisas. O ditado diz: «ka mandza ya inthu kuka milu mwassi» (numa tradução contextual ficaria, «nas mãos de alguém não nasce capim». É nesta mísula que coloco a poesia que se encontra em nossas mãos. Uma poesia que sabe falar de amor e usa as mãos para nos libertar. Repito, não estou a dizer «melhor poesia de Moçambique». Não estou a declarar poesia para Nobel. Quiçá, um dia! Estou, apenas, a afirmar: uma poesia que sabe ser doce perante tanta ditadura literária e tanta falta de doçura poética. 

Permitam-me, para terminar, dizer que o trabalho poético de Nick é feito numa linguagem assinalada nos paladares que nos ultrapassam o medo.  Portanto, com estes versos ficamos conscientes que a criação literária deve ter por base um trabalho exigente de selecionar os melhores ingredientes, de lapidar e de dar forma às inúmeras possibilidades que as iguarias oferecem até o mais ignóbil cidadão, o mais tirano indivíduo e quem sabe rodear-se da pólvora para ser amado. Ou quem encarcera os outros por saberem amar e expressar afecto. Nick tem mãos com autonomia própria. Tem mãos que, apesar do medo, não teme a ditadura de quem não sabe amar. Por isso nos oferece – e faz-me ter vontade de amar – versos frescos e com sabores de amor como grafa no poema Desabafo (Rosário, 2005, p. 40): «apenas o amor é justo / cúmplice da palavra». Só quem é cúmplice da palavra sabe usar do medo, das mãos para fazer a melhor refeição poética, o melhor amor. 

Kanimambo Gala-Gala pela ousadia editorial. Nimbonguile Nick do Rosário por oferecer-nos uma das melhores refeições num mundo cheio de pólvora e despotismo. 

Literatura Moçambicana! Bayete! 

 P.S.:  Que prática é essa de roubar o brilho aos escritores advindos depois de 1980 para dar à geração-Charrua a consagração como prova, inequívoca, de que a áurea da literatura moçambicana continua ancorada, particularmente, nesse movimento literário!

A curta-metragem Ontogenesis, de Jared Nota, não precisa de mais do que cinco minutos para nos lançar diante do abismo. A preto e branco, com tensão crescente e estrutura quase circular, o filme constrói uma narrativa que desafia a lógica linear do tempo, da denúncia e da sobrevivência.

A protagonista, Khensa, é uma jornalista. Mas também é muito mais do que isso: é o eco de todas as vozes silenciadas, é a memória dos que tombaram por ousar dizer a verdade. Quando recebe uma chamada que lhe implora para desistir, “Khensa, não faças isso”, já sabemos que ela não vai recuar. Porque recuar seria morrer em vida. Seria curvar-se.

Vestida com o que parece ser um uniforme ético: sobretudo, bicicleta, câmara fotográfica, Khensa fotografa pessoas a despejarem petróleo na água, sob vigilância armada. É a imagem crua da destruição ambiental patrocinada, e de uma denúncia silenciosa feita pela lente. 

A câmara, no universo, não é apenas um instrumento: é uma arma ética.

A narrativa brinca com o tempo. A protagonista retorna à cena inicial, fotografa outro crime, e a realidade embaralha-se. Não sabemos se são dias diferentes, repetições mentais, ou se o próprio tempo está ferido. O que permanece constante é o ciclo: a verdade é revelada, o sistema reage com violência, e a resistência renasce, ainda que à beira da morte.

O que amplifica essa sensação de urgência é a trilha sonora minimalista e incessante, um pulsar grave, seco, como um coração em estado de alerta: dum, dum, dum, dum. 

Do início ao fim, o som embala a narrativa com um suspense tenso, contínuo. Não há descanso para os olhos, nem para os nervos. O espectador, tal como Khensa, sente que algo terrível está prestes a acontecer.

A viragem acontece quando a cor retorna à imagem. Após uma perseguição e uma ameaça de morte, Khensa afirma com clareza quase profética: “Sempre que atacamos o planeta, ele arranja um mecanismo para se defender de nós”. É nesse instante que o filme rasga a monocromia e pinta-se, não de esperança, mas de lucidez. 

A terra sobrevive, mesmo quando os seus filhos a envenenam. Somos nós os descartáveis.

Ontogénesis dedica-se à memória de Carlos Cardoso, jornalista moçambicano assassinado em 2000, após denunciar corrupção ao mais alto nível. A escolha não é gratuita. A personagem Khensa carrega em si o arquétipo dos jornalistas mártires, das vozes que não cabem no silêncio. É uma homenagem, mas também um alerta: a verdade custa caro em países onde a justiça é selectiva e o poder é armado.

Jared Nota constrói um filme de poucos minutos, mas de longa permanência na consciência de quem o vê. A escolha estética do preto e branco, a trilha sonora opressiva e constante, a ausência de explicações fáceis, tudo converge para uma atmosfera de brutalidade realista.

No fim, Khensa ri. Um riso sarcástico, ferido, talvez já entregue à morte. Mas também é um riso que afirma: mesmo que me calem, o planeta há-de responder. Mesmo que me matem, a imagem foi registada. E, como bem sabemos, uma imagem nunca morre sozinha.

 

A PREOCUPAÇÃO sobre a qualidade do Sistema de Ensino e Aprendizagem, em particular em Moçambique, continua a ser agenda de destaque por parte do Governo, dos profissionais do campo da educação, dos pesquisadores do campo da educação, dos académicos, dos movimentos sociais, pais, estudantes e da sociedade em geral.

Sucede-se que várias vozes reclamam que a qualidade de ensino oferecido nas nossas escolas não é de desejar, pois, segundo elas, os alunos concluem ensino primário sem saber escrever, ler e fazer as primeiras quatro operações matemáticas (Zucula, 2021).

A sociedade ainda avança dizendo que as escolas públicas do sistema nacional não oferecem condições para o decurso dos processos de ensino-aprendizagem. Também, têm aparecido alguns artigos científicos e de opinião a nível dos meios de informação e/ou comunicação social chamando a atenção para a situação da qualidade no sistema nacional da educação.

Juliatto (2005) sustenta que a preocupação com a qualidade da educação não é um assunto isolado de um único país. Ela existe como crescente desafio mundial. Para o autor, este assunto vem recebendo mais atenção em todos os sistemas educacionais, e se tornando um tema frequente e objecto de recomendações dos organismos internacionais voltadas para a educação.

Os estudos realizados por Oliveira e Araújo (2005) mostram que a política pública da educação adotada por alguns países subdesenvolvidos na expansão da rede escolar, ao longo dos últimos trinta anos, não tem acompanhado a demanda dos professores, ou seja, a demanda pela ampliação quantitativa das escolas não permitiu que houvesse uma reflexão mais profunda sobre a forma que deveria assumir o processo educativo visando a promoção de um ensino de qualidade.

Além disso, cabe-nos sublinhar que a qualidade do Sistema de Ensino e Aprendizagem em Moçambique constitui um dos principais desafios do Governo, que desde a independência tem priorizado a criação e a expansão de oportunidades para assegurar que todas as crianças possam ter acesso e completar uma educação básica de nove anos (Zucula, 2021).

Apesar dessa universalização, importa destacar, a qualidade do sistema de Ensino e Aprendizagem ainda tem sido reduzida à identificação de uma série de standards de produtividade e de rendimento, pois ainda existem alunos que terminam o ensino primário, de seis classes, sem dominar a leitura, a escrita e aritmética-, primeiras quatro operações matemáticas.

Outrossim, em algumas escolas verifica-se a falta de condições básicas mínimas para o desenvolvimento normal do processo de ensino e aprendizagem. Note-se que há ainda escolas primárias a funcionarem em baixo de árvores e uma boa parte das escolas não dispõe de carteiras para os alunos sentarem convenientemente, isto apenas para citar alguns dos problemas. 

Por seu turno, o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA) refere-se à qualidade da educação como elemento fundamental que contribui para aumentar a capacidade dos cidadãos de resolverem os seus problemas e melhorarem o seu nível de participação na vida da sociedade. É por essa razão que o plano em alusão refere que o Governo deve investir em todos os níveis e subsistemas da educação para aumentar a qualidade dos seus recursos humanos.

Importa referir que para Ishii (2011) e Lopes (2012), a concepção de qualidade no contexto da educação é voltada para eficiência e eficácia do próprio sistema e, por ser assim, defendem a criação de sistemas de avaliação da aprendizagem e a garantia de livros didácticos, textos de apoio, equipamentos, laboratórios e formação pedagógica e com a garantia de que os professores sejam capazes de atingir metas do currículo.

Sendo assim, apontam que o sucesso escolar pode ser aliado a factores tais como: liderança educacional, flexibilidade e autonomia, clima escolar, apoio da comunidade, processo ensino-aprendizagem adequado, avaliação do desempenho acadêmico, supervisão de professores, materiais e textos de apoio psicopedagógico e espaço adequado para aprendizagem do aluno. 

Nesse contexto, uma educação de qualidade pode significar tanto aquela que possibilita o domínio eficaz dos conteúdos previstos nos planos curriculares de um sistema educacional; como aquela que possibilita a aquisição de uma cultura científica ou literária; ou aquela que desenvolve a máxima capacidade técnica para servir ao sistema produtivo; ou ainda, aquela que promove o espírito crítico e fortalece o compromisso para transformar a realidade social, por exemplo.

A terminar, temos a referir que para se garantir a qualidade no Sistema de Ensino e Aprendizagem em Moçambique, na visão de Zucula (2021), o Governo deve nomeadamente: continuar a construir infra-estruturas escolares com acesso a tecnologias de informação; continuar a empreender esforços no sentido de se garantir uma remuneração satisfatória para os professores; garantir continuamente o envolvimento da comunidade e outras instâncias educativas na vida escolar; assegurar a redução de falta de vagas em Instituições do Ensino Superior e do número de alunos em sala de aulas; assegurar a capacitação permanente dos professores, bem como o acesso a água e luz nas instituições escolares.

 

“(…) Há feridas que parecem não sarar. Sangram, vertem pus,

voltam a sangrar, surpreendem-nos a magoar a alma quando

está já deveria estar habituada e imune a tanta dor”

– José Rodrigues dos Santos (A ilha das trevas, 2007)

 

Luzes apagadas. Silêncio estampado em cada olhar atento. Respiração enterrada no fundo dos pulmões. Suspense. E, como a vida é feita nesses meios do contraste, luz e voz surgem. Mais suspense ainda. É nesse ambiente introspectivo e poético em que a peça “sobreviventes” começa, pegando-nos a todos pelo susto, que é mais movido pela intensidade da fragilidade, numa insustentável leveza de existir, diria Kundera, que nos pesa do que outra coisa. Um drama com apenas duas personagens, performada por Sufaida Moyane e Samuel Nhamatate, que fazem aquilo que Aristóteles chama de mimeses (imitação) de várias realidades que, de uma e outra forma, são esses carrosséis na distribuição de feridas. Várias feridas, outras que doem enquanto sangram e outras que apenas doem, sem sangue.

Que realidade foi aqui imitada? Numa única peça duas realidades dialogam, o psicológico e a material, apesar da, claro, materialidade também ter influência do psicológico. A peça teatral inicia com uma luz dramática, um tom azul que cria uma atmosfera muito introspectiva, que nos leva para esses bandos da dramaticidade da vida, aqui já se pode afirmar sem vieses de dúvidas nas margens das palavras que a luz, muito mais do que um recurso técnico para iluminar o cenário, também abre espaço para o ambiente ser poético, a atmosfera ser onírica assumindo uma função psicológica, em que mergulhamos dentro da psique humana até a profundidade onde encontramos o medo, os nossos desejos mais profundos e reprimidos, e as feridas que não vertem — os traumas.

Essa peça é divida em dois momentos diferentes que eu nomeio “a caminhada na longa noite”, inspirada na fala da própria personagem feminina, e a outra parte que é a condição de ser sobrevivente. Na primeira parte a personagem que aparece, a feminina, narra o antes, como e quando a guerra chega. Primeiro viviam desinteressados, ouviam sobre a guerra de longe, ouviam pela rádio, como se fosse algo que nunca pudesse os alcançar. Mas ela avança, entre aldeias, atravessando montanhas e rios — aqui que servem como uma amostra de como a guerra não é detida por qualquer barreira, aliás, ultrapassa-as — e ela seguiu consumindo tudo e deixava “os seus e levava os outro”, e eles ouviam pela rádio, até que a rádio também foi consumida. Se antes antes havia quem avisasse e espalhava as notícias para alertar, já não havia quem alertasse; antes do caos, o pânico toma conta, e foi o que aconteceu. Ela, a personagem, fugiu como os outros antes que a guerra chegasse, e a vida dela cabia “em duas malas”, demonstrando esse pânico, a correria para deixar a guerra para trás. Antes dela chegar até ela, a guerra mandava recados com mortos “numa carroça puxada por um burro exausto”. A personagem corria, e quando se deu a descansar um pouco, encontrou-lhe a guerra, e a matou. Aqui está a coisa interessante, a personagem não fala da morte física, mas talvez do psicológico já desgastado pelo pânico, o caos, o cansaço, e a desesperança que também mata. A guerra o faz juntar-se aos outros condenados por ela mesma que estão na mesma condição e cansados.

Só que para ser sobrevivente, a personagem teve de passar por muitas provações ou provocações que, já na segunda parte vê-se, deixaram ruínas nela e em outros; é a esse caminhar que me refiro. A longa noite, que já é o segundo motivo, lembra-me a era das trevas na Europa, que é caracterizada por morte, guerra, e forte crença. Mas o que me interessa aqui é a morte e guerra que fizeram duma era ser considerada das trevas, e as trevas significam noite. Então a noite — de guerra, mortes, privações, cansaço, terrores e perda — foi muito longa para a personagem feminina. O caminhar na longa noite não é, assim sendo, somente um período do dia, mas um tempo em que não havia luz, apenas dores que marcam.

Uma primeira parte emocionante devido a luz, ao silêncio de música, além do momento em que ela começa a contorcer-se de dores e depois cai no chão. Acima de tudo, a emoção deve-se a forma pela qual a personagem narra tudo isso de forma tão marcante que toca a qualquer um. A forma acelerada que adotou também imprimiu esse sentimento de urgência, e deu para sentir a dor, o desespero advindo daquela voz trémula e ofegante. Isso justifica a “caminhada na longa noite” por dois motivos, o segundo não se trata bem de um motivo. Primeiro porque essa primeira parte, na verdade, é apenas uma justificativa da segunda parte, mostra o que aconteceu para se chegar na condição de sobrevivente. Ao assistir a peça, ainda no início, perguntava-me, “sobrevivente de quê?”, a resposta para essa pergunta está precisamente nessa primeira parte: sobreviventes da guerra que consumiu tudo e deixou apenas cinzas.

Falando da narrativa, em particular, porque a primeira parte é exactamente isso, a narração de tudo o que aconteceu. Parece-me que a narração é um recurso que foi usado para colmatar a falta de meios para mostrar, no lugar de dizer, que é a função do teatro. Contudo, a Sufaida o faz numa mestria sem igual, que acaba se esquecendo essa toda coisa de “mostrar, no lugar de dizer”, e fez-nos sentir o drama todo de alguém perseguido pela guerra, ou pela “longa noite”.

Essa observação faz sentido porque os personagens, ambos, iriam aparecer no segundo momento que dá o título à peca, por isso a parte central da história. Se por um lado temos essa luz dramática, um azul que cria uma atmosfera onírica — agora já posso dizer, que remete ao passado, ou a um evento que passou e que foi doloroso e traumático — por outro lado temos a claridade, que contrasta a primeira parte. Se lá retrata eventos passados, aqui temos o presente, a condição já de ser sobrevivente sendo imitada.

O segundo momento inicia com a protagonista, interpretado por Samuel Nhamatate, a sonhar alto com gasolina, catana, máscara, combustível, etc. Ao acordar, este depara-se com a personagem feminina e assusta-se por terem mais um “cadáver vivo” naquela “multidão compacta”. Aqui o drama, a desconfiança, a incerteza, o medo, são sentimentos que lideram esses lugares onde pessoas como a personagem feminina sobrevivem, mas, acima de tudo, o trauma. Chego nessa parte e lembro da entrevista do Mia Couto em Óbidos, quando perguntado sobre manifestações que assolaram o país durante muito tempo, disse: “seja quem for que vá governar a seguir, vai governar ruínas, ruínas humanas e ruínas físicas” (Diário Notícias, 2024).

Nessa parte trata-se dessas ruínas humanas e físicas que a guerra sempre deixa para trás, e é essa a condição de ser sobrevivente: viver sobre ruínas sendo também ruína humana.

O personagem masculino, que parece ser quem está em vias de restruturação, ainda apresenta sequelas, fissuras na sua alma, e isso reflectiu-se no sonhos, por exemplo. Aquele não é um sonho qualquer, segundo a psicologia, é um sonho traumático, que revive momentos ou eventos estressantes, como é o caso da guerra. E a esse nível, o encenador fez cá um belo trabalho, e os artistas interpretaram bem essas emoções dolorosas.

O ponto mais alto é quando o essa personagem coça-se, como se tivesse alguma alergia ou mesmo de algo, e diz, “isso a mim enerva”, e parece que já vai vivendo por um longo tempo naquela condição pois “nem a água nem o sabão” já tem um efeito, que é de limpar. Uma cena com uma profundidade imensa porque a coceira não é bem no corpo em si, mas no espírito. Há algo no espírito que não lhe deixa sossegar, e pergunta se “a outra não sente, pois estão nisso juntos”; ou seja, estão naquela condição de sobreviventes juntos, cheios de traumas e outras dores, então também deveria sentir o que ele sente, a coceira infernal que sente.

A peça termina com a tentativa de aproximação, já mais física, delicada, como se percebesse que a personagem não se passa de mais uma produzida pela guerra, e que ela viu aquele lugar com aquela “multidão compacta” como um lugar em que estaria com outros degenerados gerados pela guerra. Aqui onde a peça contraria-se, se por um lado, apresenta apenas dois sobreviventes que não se conhece nem o nome, na narração a personagem fala de “nós” como povo, e que depois longa caminhada ela foi juntada aos outros “cansados” e no alto duma colina ela viu “uma multidão compacta” à qual se iria juntar. Ou seja, são apenas eles dois, representam pessoas e uma multidão traumatizada, por isso a observação, se tivesses alguns personagens só para fazerem figurino, seria mais claro e haveria um tanto de coerência.

Assim sendo, a peça teatral “sobreviventes” apresentada num contexto sombrio, da pandemia de COVID e da guerra em Cabo Delgado, e no mundo, leva-nos para esse drama de ser um sobrevivente depois de passar por uma longa noite, vivendo uma ‘ilha das trevas’, como escreveu José Rodrigues dos Santos, apresentando, inclusivamente, um personagem chamado Paulino de Jesus Conceição vivendo com traumas que o fazem sempre acordar num susto como o faz o personagem de “sobreviventes”, ambos, o Paulino de Jesus e a personagem masculino da peça passaram viveram em períodos de guerra.

Mais do que uma peça teatral, é uma chamada humana, uma forma para pararmos e pensar sobre os efeitos da guerra, em como essa coisa de ser sobrevivente não é uma das melhores coisas, apesar de não ser das piores, pois poderá se pensar que o pior é a morte. Será? Alguns dos jovens que serviram em Cabo Delgado e andam deixados por aí “cadáveres vivos” teriam uma palavra para dizer.

Assim, Sobreviventes revela-se mais do que um retrato de dois indivíduos marcados pela guerra: é um espelho coletivo onde se reconhecem as ruínas humanas e físicas que qualquer conflito deixa para trás. Entre a escuridão azul da “longa noite” e a claridade desconfortável da sobrevivência, a peça mostra que viver após a guerra não significa estar ileso, mas carregar no corpo e no espírito as feridas que não saram. Ao condensar, num dueto intenso, o peso de uma “multidão compacta” de traumas, a encenação convida o espectador a atravessar, junto das personagens, essa fronteira difusa entre estar vivo e apenas continuar a existir.

 

“Je suis malade déjá”, ou seja, “Já estou doente”, é o que se ouve durante pouco mais de três minutos, na voz de Assa Matusse; incrivelmente, não é o que parece. A escolha do francês como língua principal na música Je suis malade déjàrevela-se muito inteligente e profundamente ousada.

Em cerca de três trechos ocorre algo único: a fusão de três idiomas: o francês, o português e o xangana/ronga, o que não deve ser visto apenas como algo fortuito, mas também como uma estratégia para transmitir uma mensagem universal, capaz de alcançar diferentes públicos sem perder as raízes. Mais do que isso, as transições são tão fluídas que não basta ouvir a música apenas uma vez para perceber que não se trata de uma só língua.

Contrariando a melodia, que nos faz querer sair por aí aos saltos e conquistar o mundo, a letra aponta para a direção contrária: traz à tona uma crítica a este mesmo mundo, que vai nos adoecendo gradualmente. É um exercício artístico muito bem articulado, justamente porque instiga no ouvinte a necessidade de compreender o intuito da composição.

O eu-lírico não tem gênero: é a própria humanidade em crise. Homens e mulheres que dedicam suas vidas ao sistema, vivem em prol da opinião alheia, despem-se de qualquer escrúpulo e acabam perdendo-se de si mesmos. A noção de inevitabilidade é quase dilacerante: o “já” presente no coro representa a consciência de que a doença está escrita no percurso e no destino final da humanidade.

Ao fundo, ouve-se uma batida constante e imponente, cujo som assemelha-se ao de um coração. Entretanto, esse coração não é frágil: é pulsante, resistente, quase teimoso, e acompanha cada denúncia da cantora. A batida, assim, simboliza não apenas um corpo individual, mas um corpo social esperançoso que insiste em viver, mesmo ferido.

É nessa esperança social que a luz atravessa a escuridão. A esperança nas crianças é um elemento sutil, mas poderoso, pois elas não são apenas símbolo de futuro, mas também professoras silenciosas para os adultos sobre conceitos como sinceridade, liberdade, empatia, amor e solidariedade.

Ocorre na música uma batalha tão equilibrada entre a crítica e a romantização da melodia, através da voz ancestral da cantora moçambicana, que, a priori, pode ser comparada a uma dança de salão. Ambas movem-se sobre passos excitantes aos ouvidos; juntas, são tão divergentes que tornam-se complementares, formando um jogo de xadrez que termina em um merecido empate.

Por outro lado, em Je suis malade, Dalida canta “Eu estou doente” de forma melancólica e dramática, quase como um teatro de voz. A interpretação da cantora francesa desperta a sensação de angústia e tristeza profunda através da oscilação do timbre entre fragilidade e explosão, encenando a própria instabilidade da dor.

Dentre as diversas interpretações possíveis, o eu-lírico é feminino: uma mulher carregada de tamanha sensibilidade que mantém o ouvinte em um eterno estado de empatia. E essa sensibilidade está diretamente relacionada ao fundo: é cristalino, translúcido e etéreo, como lágrimas que caem sobre uma peça de cristal.

A composição não nega o nome: retrata uma doença destruidora e avassaladora; entretanto, individual e introspectivamente triste. Nem tão pesada, mas emocionalmente dependente, ilustrada no trecho inicial: Je ne rêve plus / Je ne fume plus / Je n’ai même plus d’histoire. É, sem dúvidas, uma espécie de desfile de enumeração de perdas. Paradoxalmente, algumas dessas perdas não são necessariamente prejudiciais, mas sua ausência reforça a sensação de vazio e de transformação involuntária, uma evolução disfarçada pela dor.

O sujeito não sonha mais, o que, em certa perspectiva, pode até ser positivo, porque alguns sonhos transformam seus portadores em estátuas de sal. Acredita que não tem mais histórias para contar, mas canta uma ao público. E, acima de tudo, não fuma mais, algo incrível e tão difícil de superar quanto todo vício.

Há também uma reflexão mais profunda: focarmo-nos tanto nas perdas faz-nos perder, de facto, o caminho brilhante que ainda poderíamos trilhar, presos a uma vida de ilusões e imaginações, uma espécie de prisão perpétua ao “e se…?”. É essa tensão entre dor, reflexão e negação da possibilidade de transformação que torna a interpretação de Dalida tão potente e atemporal.

Assa Matusse e Dalida cantam sobre doenças, mas de maneiras profundamente distintas. Em Je suis malade déjà, de Assa Matusse, a doença é coletiva, inscrita no corpo social, e precisa ser enfrentada, denunciada e combatida. É uma condição inevitável, mas também um convite à resistência, que encontra esperança nas crianças e na pulsação firme do ritmo, caminhando para a regeneração.

Por outro lado, em Je suis malade, de Dalida, a doença é individual, introspectiva e quase autodiagnosticada. Ela afoga o eu-lírico em emoções devastadoras, tornando cada ausência de gesto uma evidência da fragilidade humana diante da perda amorosa. A interpretação dramática e melancólica da cantora transforma a dor em experiência estética e emocional, mantendo o ouvinte imerso no teatro da tristeza.

Apesar de nomes parecidos e do compartilhamento do idioma francês, as duas obras conduzem a condutas divergentes após o “diagnóstico”: enquanto Assa inspira ação, reflexão social e esperança coletiva, Dalida entrega-se à doença absoluta, sem resiliência, e parece sucumbir à própria ilusão.

Ambas exploram a metáfora da doença, mas com objetivos e efeitos distintos, revelando as múltiplas facetas da condição humana diante de um processo doloroso. Enquanto uma abordagem enfatiza a dimensão íntima e subjetiva, transformando a dor em espelho da vulnerabilidade individual, a outra projeta essa experiência no plano coletivo, questionando estruturas sociais e culturais que perpetuam o sofrimento. Assim, a metáfora não se limita ao corpo adoecido, mas se expande como recurso crítico e poético, capaz de iluminar tanto a fragilidade pessoal quanto as feridas históricas e sociais que atravessam o ser humano.

 

 

 

 

 

 

Foto: Mariano Silva

As portas da Sala Grande do Franco abriram às 18h37. Entre a curiosidade e a expectativa, como que telecomandados, todos, em sintonia consentida, lá se acomodaram para uma noite que poucos sabiam como terminaria.

Ao contrário do que tem sido recorrente, os bailarinos, perto dos assentos, é que receberam o público, sempre com cantos vibrantes. Os homens, de tronco nu. A exibirem o peito, os músculos, a aura e o vigor bantu.

– Ui, irmã, veja só que pecado!

Meio perdida numa chamada telefónica despropositada, a menina ao lado, uns 27 anos de idade, tentou relacionar o suspiro da amiga à personagem à sua frente. Viu um barrigudo meio parecido com Ngungunhane: gordo, não tão baixinho, feio e rude. Não compreendeu a afirmação.

– Não esse, sua distraída, aquele…

Como se tivesse escutado, Osvaldo Passirivo endureceu a expressão. Aparentemente envaidecido, encheu o peito, imerso na personagem e na representação. As marandzas perceberam e não gostaram da indiferença. Então caminharam e sentaram-se na quarta fila, contando a partir do palco.

– É um passarinho…

Disse apaixonada.

Passirivo

 Sem importar-se com a correcção, a outra continuou.

– O gajo leva-te directamente ao céu.

O diálogo das marandzas era muito interessante. Mas até elas perceberam que, se quisessem curtir a noite, tinham de se calar. Afinal, o coreógrafo do espectáculo, Ídio Chichava, decidiu surpreender o auditório desde o princípio. Assim, sem que ninguém anunciasse nada, a performance foi imergindo todos no miserável universo dos Vagabundus. No qual, à excepção da alegria no coração, não há mais nada.

Ao todo, 13 bailarinos apresentaram-se no palco, nomeadamente, Açucena Chemane, Arminda Teimezira, Calton Muholove, Cristina Matola, Fernando Machaieie, Judite Novela, Mauro Sigauque, Martins Tuvanji, Nilégio Cossa, Osvaldo Passirivo, Patrick Manuel Sitoe, Stela Matsombe e Vasco Sitoe. Portanto, além de um certo pecado, havia alguma redenção disfarçada no corpo de mulheres. Elas também estavam trajadas de uns calções curtos, brilhantes e sugestivos. Mas não “imitaram” os homens em tudo, que o leitor mais pervertido pode estar a pensar coisas… Traziam um top preto e curto, com os umbigos de todas à vista, inspirando conforto e comodidade.

Ali estavam todos eles. Enigmáticos, cantando uma cancão popular que soa à acção de graça. Em ronga, diziam eles, “Não temos nada, além de alegria no coração”. E o refrão foi interpretado tantas vezes, numa afinação coral contagiante e surpreendente.

– Esses gajos cantam bem!

Disse um jornalista armado em crítico de arte. Joana Mbalango, actriz de primeira água, anuiu e, sem saber porquê, deixou-se invadir por sentimentos misturados, vivendo o espectáculo como se ela própria fosse uma encenação. Só despertou daquele devaneio longo quando a amiga, num sussurro, disparou:

– Suka, john, Vagabundus são maus! Socorro…

Joana tornou-se John. Um John que, em Moçambique, também é bay e bro. Mas, quanto ao socorro, na Sala Grande ninguém estava para socorrer a ninguém. Todas as atenções estavam no palco. Entre os espectadores, um silêncio que nem lembrava um mosquito a buzinar-nos a orelha. De facto, Ídio Chichava conseguiu montar uma coreografia “asfixiante”, que capta a atenção das pessoas quase na sua totalidade.

Como se viu, na verdade, Vagabundus não é sobre dança. O espectáculo estreado na Europa há três anos, apresentado pela primeira vez em Moçambique, por um lado, é muito mais do que um exercício coreográfico. Vagabundus é uma narrativa total e completa, uma analogia cruel sobre o drama humano em situações de abandono ou indiferença. O que começa com uma canção popular, rapidamente se transforma numa encenação de sentimentos e emoções complexas, nas quais o corpo é a bênção e a doação.

Por outro lado, Vagabundus é um jogo de equilíbrios, entre a arte de encenar com tão poucos adereços e a vocação dos artistas. Em sintonia, os 13 contaram uma narrativa que abraça o caos, e, paradoxalmente, a razão. Por isso o espectáculo questiona o sentido da existência quando pouco ou nada se tem para sorrir.

O som desempenha um papel fundamental. Além das canções, todas entoadas pelos próprios bailarinos num fôlego invejável, afinados mais do que muitas estrelas da música, a intensidade eufónica imprime na coreografia condições atmosféricas dissemelhantes. Num momento, os Vagabundus são miseravelmente elegíacos, revelando-se incapazes de disfarçar a dor que os invade as entranhas. Noutros momentos, são tão porta-vozes das lágrimas que gelam o mundo quanto mensageiros da esperança resumida no refrão da canção inaugural. Por conseguinte, Vagabundus evoluiu da melancolia para a vivacidade. Pelo meio, há macomias, mediterrâneos, gazas e dombass… Gente moribunda, esquecida e largada à sua sorte. Pelo meio, há um enredo com bifurcações extraordinárias, nas quais os movimentos (coordenados e aparentemente improvisados) materializam a intensidade do que é sentido. Nesse aspecto, o som e o ritmo são importantes. Dependendo da forma como os pés tocam o palco, a emoção sugerida ganha  consistência.

Vagabundus é o resultado de maningue cenas: xigubo, makwaela, mapiko, canto coral e representação. No mínimo…

Visualmente intrigante, o espectáculo também é um conjunto de fotografias em movimento, num cenário em que o todo, de facto, é a totalidade de uma maioria oprimida pela vida que se esvai a cada grito pela liberdade. É uma produção agridoce, que faz chorar, porque chorar também é bom, e faz sorrir como um meio de sobrevivência. A narrativa é o centro de tudo. Os corpos, diria Roman Jakobson, são pretextos para expressarem lições sobre o som e o sentido – Nos corpos dos bailarinos nos revemos na nossa intimidade e no nosso preconceito.

Com os Vagabundus, consciente ou inconscientemente, Ídio Chichava homenageia os peregrinos do mundo, aqueles que valem as trochas que levam à cabeça ou o sonho que lhes é proibido. No fundo, a coreografia é sobre os invisíveis, sobre o grito dos marginalizados que o mundo não quer e não sabe ouvir. É uma ode à dignidade, uma peça onde se cruzam teorias coreográficas tradicionais e contemporâneas numa linguagem universal.

Entre o dramático e trágico, a obra explora as crises existenciais dos mafunda djonis espalhados por além-fronteiras. Talvez, por encarnarem tantas vidas, os bailarinos fartam-se de transpirar pelos poros da pele. É um espectáculo fisicamente exigente. Em 80 minutos, os artistas exploram um pouco de tudo, desde a existência à resistência. Sempre em ascensão. Há-de ser por isso que facilmente manipulam o público, que sofre, chora, grita, canta e dança a plenos pulmões. Foi o que se viu lá mais para fim:

Ho lo lo lo lo lo lo lo... Ho lo lo lo

Cantando o ininteligível, numa só voz, os bailarinos convidaram os espectadores ao palco. Inclusive, as duas marandzas.

– Irmã, é agora ou nunca. Me acompanha para não ouvires dizer…

Entretanto Passarinho, quer dizer, Passirivo não sentiu o toque às costas. Devia estar a pensar que, de certa forma, somos todos Vagabundus.

 

 

 

 

 

Crítica comparativa entre Hlalelane Xtisungo (Olhar a População) e O Preto, de Ivo Mabjaia 

 

Entrar na sala onde se encontra a escultura Hlalelane Xtisungo é como ser fixado por cem olhos que não se abrem totalmente. Não há apenas um rosto, mas muitos, aglomerados na mesma pele de barro, repetindo olhos semicerrados e bocas circulares. É barro vivo, modelado para parecer povo, mas povo ensardinhado, indistinto, algo pior que um “My Love”. 

As bocas não emitem som, mas a sua forma parece preparar-se para um grito que nunca se solta, há nessa figura um grito engasgado, mas não mudo. Aquela e mais esculturas estão expostas na Fundação Fernando Leite Couto, Cidade de Maputo, entre os dias 6 e 30 de Agosto, pelos artistas Mapfara e Phamby, com curadoria de Yolanda Couto.

O título, “Olhar a População”, é provocação directa: quem observa quem? E, mais ainda, para quê? Se olhamos, é para entender ou para confirmar o que já decidimos não ouvir? Mapfara, com a aglomeração de faces, parece dizer que olhar não basta, é preciso escutar e escutar implica aceitar que a voz do outro perturbe o nosso conforto.

Essa perturbação encontra eco em O Preto, curta-metragem de Ivo Mabjaia, premiada no Fórum de Cinema de Moçambique (Kugoma), filmada em preto e branco, onde o silêncio é quase absoluto. Corpos jovens estão deitados, imóveis, encostados uns aos outros como se fossem um único organismo adormecido. Entre eles circulam três figuras: um homem negro, uma asiática e um homem branco. quem são essas três figuras? Por que olham com tanto desprezo? O que cochicham? Uma leitura possível é ver nessas figuras três principais forças institucionais de poder: o executivo, o legislativo, e o judicial, consecutivamente.

Eles observam, mexem, retiram objectos, roupas, como quem revira a vida alheia sem pressa nem pudor, retiram a dignidade, as riquezas e a liberdade de se expressar. Há aqui uma economia de palavras e sons que força a atenção para o gesto e para a imagem, há também morte e traição, somos roubados pelos nossos semelhantes. O espectador é colocado no lugar de quem vê, mas não intervém. Até que algo se rompe: um dos jovens desperta, ergue-se e olha ao seu redor e depois diretamente para a câmara. É o momento em que a quarta parede cai, e o filme deixa de ser sobre “eles” para ser sobre “nós”. O olhar é acusação.

Logo depois, a única voz do filme irrompe um grito em changana: “a muhive, a muhive” (“Ladrão, ladrão”). É uma nomeação e uma sentença. É também a cor preta a falar, não apenas pela pele ou pelo enquadramento, mas pela densidade histórica que carrega, é um grito cultural, mas logo foi calado, subornado, obrigado a gritar em silêncio.

Tanto na escultura como no filme, há um jogo de olhares que devolvem ao espectador a sua própria imagem. Na peça cerâmica, esse olhar está fossilizado no barro; no filme, ele é vivo e directo. Mas em ambos, quem vê é também visto, quem observa é interrogado. E é aí que o silêncio se torna linguagem: um silêncio denso, que não significa ausência, mas acúmulo de coisas não ditas. 

Na figura de Mapfara, quem olha toma o acento das três figuras do curta-metragem, ou por outra, nem olha se mistura, se identifica, se perde.

O grito, por sua vez, vai além da voz audível. Na escultura, está insinuado nas bocas abertas; no filme, é contido e breve, mas potente. É cor, é gesto, é olhar, é nudez de quem foi roubado tudo até a voz. É também metáfora de vozes reais que, no país, enfrentam tentativas de silenciamento. É impossível não pensar no caso recente da jornalista Selma Inocência, que em sua página de facebook denunciou ter sido envenenada com metais pesados durante uma estadia em Maputo, num contexto de ameaças relacionadas ao seu trabalho investigativo. A Amnistia Internacional e outras organizações exigiram investigação urgente. Quando este dado entra em cena, a ligação é inevitável: o silêncio estético das obras encontra o silêncio forçado da vida real, e o grito contido da arte encontra o grito abafado de quem denuncia injustiças.

A repetição de formas olhos, bocas, corpos nas duas obras também não é acidental. Aponta para a perda da singularidade: o indivíduo é absorvido pelo colectivo, que tanto pode ser força como pode ser invisibilidade. Nos dois casos, essa massa humana não é anónima por natureza; é tornada anónima por olhares que a recusam a sua individualidade. O papel do artista é devolver-lhe rosto, ainda que seja um rosto partilhado com muitos outros; o papel do espectador é reconhecer que o rosto que olha pode ser o seu.

Em todas as esculturas de Mapfara, coincidem os olhos fechados e a boca aberta, como quem insinua que os olhos nos foram vendados a voz roubada, mas até o silêncio grita. Não se trata de consumir a obra, mas de responder-lhe. 

“Olhar a População” é convite e aviso: se olhas, tens de escutar; e se escutas, tens de agir. O Preto reforça o mesmo aviso com outra gramática: se assistes ao roubo, és cúmplice; se és olhado por quem sofre, és interpelado. Ambas as obras se tornam espelhos que não devolvem a imagem que queremos ver, mas a que precisamos enfrentar.

Por isso, falar de “a estética do silêncio e o grito do preto” não é apenas dar nome a uma leitura possível; é afirmar um campo de acção. É reconhecer que a arte, quando verdadeira, não nos deixa em paz. Obriga-nos a ouvir o que não queríamos ouvir, a olhar para onde não queríamos olhar, e a admitir que o silêncio pode ser tão violento quanto o som que o rompe. No barro e no filme, no olhar e no grito, está a mesma exigência: não basta ver é preciso escutar, e não apenas escutar é preciso responder. Porque olhar sem escutar é veyorismo e escutar sem agir é cumplicidade.

 

Na história bíblica, Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia, quando pressionado para decidir sobre a crucificação de Cristo, lavou as mãos diante da multidão, dizendo-se inocente do sangue do justo. Esse gesto atravessou séculos como símbolo da covardia travestida de neutralidade, da renúncia à responsabilidade moral. Desde ai, dos tempos bíblicos, Pilatos ficou marcado na história como aquele que, diante da verdade e da justiça, lavou as mãos e deixou o povo decidir o destino de Cristo. Não assumiu responsabilidade, não tomou decisão corajosa; preferiu a neutralidade cúmplice. Daí nasce o que podemos chamar de Síndrome de Pilatos ou Pilatismo: a atitude de quem sabe o que deve ser feito, mas escolhe lavar as mãos para não se comprometer. Eis a essência do Pilatismo: a recusa de assumir as consequências das decisões, preferindo o silêncio ou a omissão diante da injustiça.

Historicamente, esse comportamento repetiu-se de diversas formas: reis que deixavam o povo à fome, mas viviam em banquetes; académicos que escreviam tratados sobre liberdade, mas nunca se levantaram contra a opressão; líderes que se diziam defensores da pátria, mas na hora da verdade venderam-na a interesses estrangeiros. Filósofos como Marx já dizia que “o Estado moderno não passa de um comitê de negócios da burguesia”. Fanon advertia que as elites pós-coloniais preferem a comodidade da retórica a enfrentar as contradições estruturais. Amílcar Cabral lembrava: “as armas mais eficazes do inimigo são as nossas próprias fraquezas”. O pilatismo é exactamente isso: a fraqueza transformada em hábito, a renúncia erigida em sistema.

Na modernidade africana — e em particular em Moçambique — o Pilatismo tornou-se hábito político e social. Governos lavam as mãos diante da pobreza, elites intelectuais lavam as mãos diante da opressão, e o povo, por cansaço ou medo, aprende a reproduzir a mesma omissão. O Pilatismo é, portanto, uma doença colectiva da consciência.

  1. O Pilatismo Acadêmico

Nossas universidades estão cheias de “professores-doutores” que produzem teses que ninguém lê e discursos herméticos que nada mudam. Quando se trata de enfrentar a miséria, a violência ou a corrupção, a maioria prefere recitar teorias estrangeiras. Bourdieu já dizia que o campo acadêmico muitas vezes serve para autopreservação e não para transformação. Gramsci falava dos “intelectuais orgânicos” — mas em Moçambique temos intelectuais burocráticos, que falam de transformação em congressos, mas se calam diante das injustiças. É o pilatismo académico: saber muito, mas calar-se quando o saber precisa virar acção.

Os chamados professores, doutores e académicos de prestígio, quando confrontados com problemas estruturais do país — corrupção, violência, fraudes eleitorais — recorrem a um vocabulário enfeitado, “emblemágico”, que pouco ou nada transforma. Falam em “resiliência democrática”, em “desafios conjunturais”, mas na prática nada se move. A academia, que deveria ser farol crítico e motor de mudança, muitas vezes se torna cúmplice pela omissão. Paulo Freire alertava: “A neutralidade é impossível. Quem se diz neutro já escolheu o lado do opressor.”

III. O Pilatismo Político.

Os partidos políticos multiplicam-se em Moçambique como igrejas de esquina: cada um com a sua bandeira, mas poucos com ideologia clara. Aqui, a política tornou-se palco onde partidos e dirigentes praticam pilatismo todos os dias. Prometem servir o povo, mas no fundo, exigem quotas, reproduzem clientelismos e procuram apenas ocupar espaço no banquete do poder. Fala-se em democracia, mas as decisões são tomadas em salas fechadas, em negociações de elites. Fala-se em povo, mas os problemas do povo só servem de slogan em campanhas. Quando há denúncias de corrupção, todos lavam as mãos: “não é comigo”, “é assunto da justiça”. O resultado? Um sistema de anacronismo social, onde a política deixou de ser representação da coletividade e tornou-se apenas sobrevivência individual.

Maquiavel já avisava: “A política não tem relação com a moral.” E, de fato, vemos líderes que falam de ética em público, mas em privado conspiram para manter privilégios. Pilatos sorri neles. O contrato social em Marx já era considerado uma utopia — e aqui é farsa.

Cada partido que nasce promete ser “a alternativa”, mas no fundo se transforma em ONG eleitoral, dependente de quotas, doações externas ou patrocínios obscuros. Pilatismo político é isso: vestir a bandeira para esconder a ausência de ideologia clara.

  1. O Pilatismo Jornalístico.

O jornalismo, em vez de fiscalizar o poder, muitas vezes prefere a corrida da fofoca,

publicando rumores não verificados. Casos recentes — como a falsa notícia da morte de figuras públicas — revelam o jornalismo predatório, que alimenta o imediatismo e a desinformação. Ortega y Gasset já denunciava: “O imbecil coletivo lança foguetes antes da festa.” O jornalismo que se rende ao sensacionalismo contribui para o Pilatismo, pois lava as mãos diante da missão de informar com rigor. A imprensa lava as mãos: “nós só noticiamos, não fazemos justiça”. Mas como dizia Kapuściński, o jornalista não pode ser neutro diante do sofrimento humano. Neutralidade aqui é pilatismo.

  1. O Pilatismo Religioso.

As igrejas em Moçambique — católicas, evangélicas, pentecostais — muitas vezes

reproduzem o Pilatismo ao prometer o céu enquanto ignoram as injustiças na terra.

Pastores e padres enriquecem, enquanto fiéis empobrecem. A teologia da prosperidade transforma a fé em mercado. Marx, em sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, já definira: “A religião é o ópio do povo.” E no nosso contexto, é também um anestésico social.

Ainda la nas igrejas pregam a salvação, mas muitas vivem da exploração da miséria espiritual e material. Pastores lavam as mãos diante da corrupção, do desemprego, da guerra — “é vontade de Deus”. Enquanto Cristo expulsava os vendilhões do templo, hoje vemos líderes religiosos a negociar lugares no Parlamento. A fé vira comércio e o silêncio cúmplice se mascara de oração. Isso é pilatismo religioso: abençoar a injustiça e chamar-lhe destino.

  1. Pilatismo das ONGs.

As ONGs entram nos cenários de guerra, fome ou desespero como se fossem salvadoras. Distribuem mantas, arroz e slogans. Mas no fundo, muitas vivem de prolongar o sofrimento — pois sem desgraça não há financiamento. Fanon já denunciava a burguesia nacional que, em vez de libertar, se ajoelha às potências estrangeiras. Muitas ONGs funcionam como “lavanderias de consciência” do Ocidente. É pilatismo humanitário: fingir ajudar para manter a dependência.

VII. Pilatismo dos Movimentos e Associações.

Quantas associações de jovens, de mulheres, de trabalhadores existem? Muitas. Mas quantas realmente transformam? Poucas. Há movimentos que aparecem só em época de projectos financiados. Há líderes associativos que usam a causa como trampolim para cargos políticos. Quando a base clama, eles lavam as mãos: “não temos meios”, “é o governo que decide”. Esse pilatismo associativo mata a confiança social e deixa o povo órfão de representatividade.

VIII. O Pilatismo Popular.

Não apenas líderes e intelectuais, mas também o povo aprende a lavar as mãos: “Esse problema não é meu, é deles.” Mas como dizia Rousseau: “O povo engana-se, mas nunca corrompe-se.” A contradição é que hoje o povo já se corrompe pela passividade. O povo, cansado, também cai no pilatismo: Reclamam nos mercados, nos chapas, nas filas, mas calam-se na hora do voto. Dizem “nada vai mudar”, e assim confirmam a vitória do opressor. Cada um lava as mãos: “o problema não é meu”. Como dizia Marx: “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Mas se o povo lava as mãos, ninguém fará por ele. Cada povo merece o líder que tem — não porque Deus escolheu assim, mas porque a omissão coletiva permite que o pior se imponha.

  1. Pilatismo Cultural e Artístico.

Mesmo a cultura sofre: Muitos artistas falam em “denúncia social”, mas só até onde não compromete o patrocínio. Prefere-se o espetáculo vazio em vez da arte que incomoda. O teatro virou entretenimento, não consciência. A arte, que deveria ser faca afiada contra a injustiça, muitas vezes é reduzida a selfie e performance vazia. Isso também é pilatismo.

Com isso, o pilatismo é a doença de uma sociedade que se acostumou a delegar responsabilidade. É mais fácil lavar as mãos do que sujar-se na luta. Mas cada vez que um líder, um acadêmico, um padre, um jornalista, uma ONG, um artista ou um cidadão comum lava as mãos, alguém paga com sangue, fome ou silêncio. A síndrome de Pilatos é a epidemia do nosso tempo. Só se rompe quando alguém decide não lavar as mãos, mas sujá-las — não de covardia, mas de coragem.

Corrupção institucionalizada: todos sabem, poucos denunciam; quem denuncia é silenciado. Eleições contestadas: os relatórios se acumulam, mas nada se faz; Pilatos lavou as mãos. Pobreza rural: discursos acadêmicos, programas governamentais de fachada, ONGs que mais beneficiam a si próprias. Juventude desempregada: discursos sobre “empreendedorismo”, mas nenhum plano estrutural; apenas slogans. O Pilatismo é a doença do nosso tempo. Uma sociedade que não assume responsabilidade pela sua história é condenada a repeti-la. É preciso denunciar, escrever, falar e agir, mesmo que doa, mesmo que custe amizades. Porque lavar as mãos é perpetuar o crime. Porque calar-se é ser cúmplice. 

A luta contra o Pilatismo não é contra um homem, um partido ou uma igreja — é contra a mentalidade de omissão que mata mais do que a bala. Quem se cala diante da injustiça já escolheu o lado do opressor. O Pilatismo é o nosso pecado colectivo. A história nos julgará não pelo que sofremos, mas pelo que deixamos de fazer. Se Pilatos lavou as mãos, nós não podemos. Pois cada vez que o silêncio vence, o futuro morre um pouco mais.

 

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

Na última década, a descentralização voltou ao centro do debate político em Moçambique, ocupando espaço em diferentes fóruns nacionais, universidades e movimentos cívicos. Recentemente, ganhou um novo fôlego, após a intervenção do Presidente da República no Dia Africano da Descentralização e do Desenvolvimento Local, a 10 de Agosto de 2025, quando defendeu uma governação participativa e o reforço do papel das comunidades no desenvolvimento local sustentável.

Este artigo insere-se nesse contexto, como uma contribuição para um debate que ultrapassa a esfera técnica. Trata-se, acima de tudo, de discutir o modelo de desenvolvimento e a arquitectura política de Moçambique, num momento em que o Compromisso Nacional de Diálogo Inclusivo 2025 coloca a descentralização como peça-chave da reconciliação e da estabilidade nacional. A urgência deste debate é o próprio Acordo Político de 2025, que exige repensar o desenho actual da descentralização e construir um sistema que combine participação, inclusão e eficiência. 

A pergunta central, por isso, já não é apenas como descentralizar, mas para quê, para quem e, urgente no país, que modelo? O modelo vigente, embora inclua medidas que sugerem maior autonomia local, continua amarrado a mecanismos de controlo central, sobreposição de competências e limitações orçamentais que reduzem o seu alcance. O verdadeiro desafio é desenhar um sistema capaz de converter a descentralização de promessa (e/ou retórica) política em acções concretas, aproximando o Estado das comunidades, devolvendo-lhes poder real, e tornando-o mais ágil e sensível às diversas realidades territoriais.

 

Descentralização: o que é?

A descentralização é comummente entendida como a transferência de poderes, responsabilidades e recursos do governo central para níveis inferiores de governação, como regionais, provinciais, distritais ou municipais. O conceito per si assenta na premissa de que governos mais próximos dos cidadãos estão em melhores condições para identificar necessidades, formular respostas eficazes e reforçar a legitimidade democrática e a comunidade em melhores condições de se fazer ouvir e fiscalizar os seus líderes. A literatura distingue, também, três dimensões fundamentais: (i) descentralização política, quando o poder decisório é confiado a órgãos eleitos localmente; (ii) descentralização administrativa, que delega funções e gestão a serviços desconcentrados; e (iii) descentralização fiscal, que atribui receitas próprias e capacidade orçamental aos governos subnacionais ou simplesmente locais.

Entre estas, a última (componente fiscal) é crítica, ou seja, sem autonomia financeira qualquer forma de descentralização política ou administrativa se torna incompleta e, muitas vezes, ineficaz. A ausência de recursos próprios deixa os governos locais dependentes de transferências condicionadas, reduzindo a sua margem de manobra para responder a prioridades locais e comprometendo a capacidade de planear a médio e longo prazo.

A experiência internacional confirma este aspecto. Casos relativamente bem-sucedidos – como os da Suíça, Canadá e Alemanha – mostram que a descentralização só produz ganhos reais quando combinada com três condições essenciais: clareza nas competências, evitando sobreposição de funções e conflitos institucionais; autonomia fiscal sólida, assegurando receitas adequadas e previsíveis; e mecanismos robustos de responsabilização, que garantem que o poder transferido se traduza em melhor governação, maior transparência e confiança social acrescida.

Em África, experiências como as do Quénia e da África do Sul mostram que, quando bem concebida, a descentralização pode ser um motor de inclusão, eficiência e coesão nacional – no caso do Quénia, a criação de cerca de 47 condados, cada um com governo próprio eleito (governador, assembleia local e órgãos administrativos). Eles são próximos a províncias, no caso moçambicano, mas com competências claras e orçamentos próprios, o que trouxe avanços na prestação de serviços e na redução de disparidades locais. Na África do Sul, o sistema de transferências fiscais (Provincial Equitable Share-PES), um mecanismo que distribui automaticamente uma porção das receitas nacionais entre as províncias com base em critérios objectivos (população, alunos em idade escolar, despesas com educação e saúde, necessidades institucionais, nível de pobreza e actividade económica) ajudou a equilibrar recursos entre municípios, permitindo políticas mais adaptadas às necessidades de cada comunidade.

Porém, o continente também oferece exemplos de descentralizações falhadas ou incompletas. No Mali, a transferência de responsabilidades não foi acompanhada de recursos adequados, deixando governos locais dependentes do centro e enfraquecendo a confiança pública. Na Nigéria, estruturas descentralizadas foram capturadas por elites partidárias, transformando autoridades locais em extensões do poder central e mantendo desigualdades regionais profundas.

Perante este cenário de sucessos e insucessos, Moçambique encontra-se numa zona cinzenta. Apesar de avanços institucionais, como a eleição de governadores provinciais, persistem desafios: dependência fiscal excessiva, sobreposição de competências e fraca responsabilização. O momento exige aprender com as lições internacionais, e africanas em particular, para construir um modelo de descentralização que una autonomia efectiva, gestão responsável e participação pública, garantindo desenvolvimento equilibrado e estabilidade política.

 

A prática em Moçambique

Em Moçambique, a descentralização não nasceu de um impulso democrático genuíno, mas sim como subproduto de sucessivos acordos de paz entre elites políticas rivais. Embora o discurso oficial a apresente como um instrumento para estimular o desenvolvimento local e ampliar a participação cidadã, na prática, ela tem servido como moeda de troca em negociações de cessar-fogo e partilha de poder. A narrativa tem sido apelativa e de grande valor para o marketing político, sobretudo para os doadores internacionais que, há décadas, defendem e financiam agendas de governação inclusiva. No entanto, a realidade é bem mais complexa. No terreno, o processo tem servido, sobretudo, para acomodar os interesses das lideranças da Frelimo e da Renamo, que procuram preservar as suas zonas de domínio no campo político moçambicano, ou seja, mudam-se as regras do jogo enquanto se mantêm as posições no tabuleiro. Tudo isto decorre num contexto marcado por profunda desconfiança política e pela exclusão sistemática de actores independentes.

Este padrão repete-se desde o Acordo de Roma, em 1992, passando por Maputo, em 2014 e 2019. A cada ciclo, reformas anunciadas como marcos históricos acabam por se revelar essencialmente cosméticas ou meramente administrativas, com impacto limitado, ou nulo, na efectiva redistribuição do poder. Quando posta à prova, a vontade popular enfrenta barreiras estruturais: processos eleitorais pouco transparentes, controlo centralizado das instituições e, mais recentemente, as eleições autárquicas de 2023, marcadas por denúncias generalizadas de fraude. Estes episódios, não só alimentam protestos e instabilidade, como corroem progressivamente a confiança dos cidadãos nas regras do jogo democrático e nas instituições públicas.

O Acordo de Paz e Reconciliação de 2019 ilustra de forma paradigmática esta tendência. Assinado por Filipe Nyusi e Ossufo Momade, prometia reforçar a governação local através da eleição de governadores provinciais e, no futuro, de administradores distritais. No entanto, o quadro legislativo do novo “paradigma de descentralização” que se seguiu incorporou dispositivos de controlo central que diluíram o alcance antes pretendido da reforma. O caso mais emblemático é a criação do cargo de secretário de Estado na província, nomeado pelo Presidente da República e dotado de poderes executivos paralelos aos do governador eleito, instaurando uma estrutura bicéfala que gera sobreposição de funções, conflitos institucionais e esvaziamento silencioso da autoridade de representantes legitimados pelo voto popular. Assim, a descentralização proclamada no papel converteu-se, na prática, num arranjo institucional que preserva a lógica centralista do poder, adiando, mais uma vez, a construção de uma governação local autónoma e capaz de reforçar a coesão nacional.

 

Desafios actuais da descentralização em Moçambique

O quadro actual de governação local em Moçambique é marcado por um arranjo institucional híbrido e de elevada complexidade. As províncias operam sob um sistema bicéfalo, como referimos antes, de um lado, governadores eleitos, e, de outro, secretários de Estado nomeados pelo Presidente, ambos com estruturas administrativas próprias e competências que frequentemente se cruzam. Nos distritos, mantém-se a administração desconcentrada, sob forte tutela do poder central, e a promessa constitucional de eleições locais dos administradores foi adiada sem horizonte temporal definido.

Estes mecanismos, inscritos na legislação aprovada após o Acordo de Paz e Reconciliação de 2019, foram concebidos para equilibrar a distribuição de poder entre o governo central e a oposição. No entanto, na prática, funcionam como barreiras à autonomia dos órgãos eleitos. A figura do secretário de Estado na província, com acesso directo ao Conselho de Ministros e poder de supervisão administrativa e financeira, subordina, de facto, a agenda provincial à aprovação central. No plano fiscal, a dependência de transferências discricionárias – sem fórmula legal implementada para distribuição de recursos – torna as prioridades locais vulneráveis a decisões políticas tomadas em Maputo.

As consequências são visíveis na gestão quotidiana. No sector da saúde, a duplicação de estruturas provinciais gera atrasos na execução orçamental e dispersão de responsabilidades; no abastecimento de água e saneamento, disputas por meios humanos e materiais reduzem a eficácia dos serviços, sobretudo em zonas rurais. Estas ineficiências não resultam apenas de limitações de capacidade técnica, mas de um desenho institucional que privilegia o controlo central e enfraquece a coordenação territorial.

A descentralização, concebida para aproximar o poder dos cidadãos e integrar politicamente as regiões historicamente contestadas, acabou por reforçar a centralização por outros meios. Ao limitar a margem de decisão e os recursos dos governos subnacionais, o modelo compromete, não só o potencial de desenvolvimento local, mas também a credibilidade da descentralização como ferramenta de reconciliação e coesão social. Uma descentralização de faz de conta não congela apenas o desenvolvimento; pode reabrir feridas políticas e sociais que o país acreditava já ter cicatrizado.

 

Que saídas? Alguns pontos para reflexão

Corrigir a trajectória da descentralização moçambicana requer reformas profundas, que vão além de ajustes administrativos. É preciso enfrentar as distorções estruturais que a transformaram num mecanismo de gestão de conflitos entre elites e devolvê-la ao seu propósito original: aproximar o poder das comunidades e promover o desenvolvimento territorial equilibrado. A experiência internacional oferece lições claras sobre como fazê-lo.

  1. Clarificar e unificar competências: a coexistência de governadores eleitos e secretários de Estado nas províncias (SEP) gera redundâncias, conflitos de autoridade e dilui a responsabilização perante o eleitorado. O ideal é consolidar as funções executivas numa única autoridade legitimada pelo voto popular, garantindo que as decisões provinciais reflictam prioridades locais. Alternativamente, seria imperioso redefinir as funções dos SEP, circunscrevendo-as a actividades de coordenação, sem poderes executivos, focada em articulação interministerial e representação protocolar do Estado central. Países como Cabo Verde demonstram que a coordenação central pode existir sem subordinar a autoridade local.
  2. Reduzir estruturas paralelas desconcentradas: além da figura do SEP, há, no terreno, múltiplas estruturas desconcentradas – desde direcções provinciais a delegações sectoriais – que respondem directamente a Maputo, ignorando a cadeia de comando local. Isso cria feudos administrativos e dificulta a integração de políticas. A reforma deve estabelecer que todas as unidades técnicas a nível provincial estejam sob supervisão do governo provincial eleito, mantendo apenas representações centrais (SEP) para funções estratégicas (defesa, segurança, política externa).
  3. Instituir uma fórmula obrigatória de repartição de receitas: a descentralização sem recursos previsíveis é uma ficção. É urgente aprovar, por lei, uma fórmula transparente de transferências intergovernamentais baseada em critérios objectivos – população, indicadores de pobreza, extensão territorial, necessidades de investimento – e blindada contra manipulação política. O exemplo do Quénia, onde a Constituição fixa 15% da receita nacional para os condados, mostra que a previsibilidade orçamental permite planeamento de longo prazo e atrai investimento local.
  4. Estabelecer calendário vinculativo para eleições distritais: o adiamento indefinido das eleições distritais mina a confiança nos acordos de paz e perpetua a exclusão política a nível local. É fundamental aprovar um calendário fixo e um quadro legal que assegure as condições técnicas, logísticas e de segurança para a sua realização, de forma a consolidar o princípio de que o poder local deve emanar do voto popular.

Portanto, sem reformas profundas e compromissos reais, que permitam maior inclusão e, quiçá, partilha de poder, a descentralização em Moçambique pode ser incapaz de reduzir desigualdades, fortalecer a governação local ou consolidar a paz. Pior: pode alimentar novas frustrações, fragilizar a confiança nas instituições e reabrir divisões que o país tentou superar ao longo de décadas. O momento de agir é agora. Cabe ao governo, aos partidos políticos, aos parceiros internacionais e à sociedade civil unir esforços para garantir que este processo cumpra o seu propósito original e se torne um verdadeiro instrumento de desenvolvimento, coesão social e estabilidade duradoura.

Introdução

O desenvolvimento de uma nação não é obra do acaso, nem pode ser apenas um discurso político. O desenvolvimento nacional é um processo planificado e não pode ser reduzido a slogans políticos ou proclamações administrativas. Em Moçambique, a afirmação do distrito como “pólo de desenvolvimento” permanece, em grande medida, um exercício retórico, sem a correspondente materialização em termos de políticas, recursos e liderança transformadora. Durante décadas, o debate em torno da descentralização e do desenvolvimento local ficou preso a questões meramente administrativas e à retórica política.

Entretanto, o futuro de Moçambique exige uma mudança de paradigma: o distrito não deve ser apenas uma unidade administrativa; deve ser transformado em motor de crescimento económico, inovação social e soberania produtiva.

Neste artigo, defendemos que a elevação do distrito a pólo de desenvolvimento e base da planificação nacional constitui uma reforma estratégica decisiva para assegurar a independência económica e o desenvolvimento endógeno do país. Para tal, torna-se imperativo conjugar três elementos fundamentais: planificação territorial, liderança transformacional e alocação inteligente de recursos.Um país constrói-se a partir da base. O distrito, enquanto célula administrativa e social, deve ser transformado em núcleo de crescimento económico, inovação e produção. A descentralização apenas formal não é suficiente. O que propomos é:

  • Atribuir ao distrito o estatuto de base da planificação nacional, garantindo que os planos de desenvolvimento se construam a partir das potencialidades locais;
  • Alocar ao distrito os recursos necessários para que o crescimento económico não seja exógeno ou dependente, mas sim endógeno, inclusivo e sustentável;
  • Transformar o distrito num laboratório nacional de inovação, onde se desenham e testam soluções de impacto para a agricultura, indústria, urbanismo, habitação, turismo, serviços e emprego;

A experiência internacional demonstra que nenhuma estratégia de desenvolvimento se concretiza sem liderança forte, visionária e disruptiva.

Neste sentido, defendemos a necessidade de:

  • Criar um corpo de administradores distritais exclusivamente escolhidos pelo Presidente da República, garantindo confiança política e clareza de missão

Estes administradores seriam submetidos a um processo rigoroso de capacitação inicial e contínua, ministrada por especialistas nacionais e estrangeiros com experiência comprovada em modelos de governação descentralizada e desenvolvimento local. O objectivo será dotá-los de ferramentas modernas de liderança, gestão pública e inovação administrativa, preparando-os para agir como motores de transformação nos distritos.

Cada administrador teria a obrigação de definir métricas claras de desempenho, alinhadas ao plano de desenvolvimento distrital e provincial, que seriam avaliadas em prazos previamente definidos. Esta prática garantiria responsabilidade, transparência e foco em resultados concretos. Além disso, a capacitação não seria um processo pontual, mas contínuo e dinâmico: periodicamente, os administradores passariam por programas de actualização, partilha de experiências e aprendizagem de novas soluções adaptáveis à realidade moçambicana. 

Para reforçar o acompanhamento e a disciplina institucional, estes administradores manteriam uma linha directa de comunicação com o Presidente da República, assegurando alinhamento estratégico, rapidez de decisão e eficácia na execução. Paralelamente, seriam regularmente escrutinados pelo Ministério da Planificação e Desenvolvimento (MPD) e pelo Gabinete de Reformas e Projectos Estuturantes, garantindo uma fiscalização independente e permanente.

Com este modelo, cada distrito deixaria de ser apenas uma estrutura administrativa e passaria a ser um pólo activo de desenvolvimento, liderado por gestores públicos de confiança, preparados para inovar e transformar o território, contribuindo, assim, para o fortalecimento da independência económica nacional.

  • Nomear jovens líderes altamente capacitados, comprometidos com ética, ousadia e resultados concretos, para dirigir distritos-pólo.
  • Conferir a esses administradores poderes especiais, que lhes permitam atrair investimentos, estabelecer parcerias estratégicas e mobilizar as comunidades locais.

Esses líderes seriam apoiados por um comité nacional de peritos e estrategas, actuando como think-tank dedicado ao desenho de políticas para a independência económica e para a aceleração do desenvolvimento endógeno.

Para a reforma estratégica “distritos-pólo de desenvolvimento”, propomos que sejam seleccionados cinco distritos por ciclo de governação em cada província para funcionarem como pólos de desenvolvimento. Nesses distritos:

  • O Fundo de Desenvolvimento Económico Local (FDEL) deve ser aplicado de forma exclusiva em projectos de crescimento produtivo e geração de emprego;
  • Os investimentos devem privilegiar pequenas e microempresas locais, evitando a drenagem de capitais para as capitais provinciais;
  • Deve ser promovida a instalação de empresas e serviços que criem empregos locais e reforcem o tecido económico distrital.

Com esta estratégia, o distrito deixa de ser apenas um espaço administrativo e passa a constituir um motor real de crescimento económico provincial e nacional.

O desenvolvimento exige ordem, visão e racionalidade espacial. Por isso, defendemos que:

  • Cada administrador distrital, em articulação com pequenas empresas nacionais de arquitectura, urbanismo e paisagismo, redesenhe o plano distritital de uso da terra (PDUT);
  • O território distrital seja organizado em zonas claramente definidas para habitação, indústria, serviços, agricultura, infra-estruturas sociais e reservas ambientais;
  • Os investimentos públicos e privados sejam canalizados apenas para as áreas previamente definidas como centrais e estratégicas, garantindo maior eficiência e impacto.

Esta abordagem não só reforça a sustentabilidade ambiental como cria um ecossistema propício à atracção de capitais e inovação. O alcance dos objectivos propostos exige medidas ousadas:

  • Conferir aos administradores distritais dos pólos de desenvolvimento autonomia para negociar investimentos nacionais e internacionais;
  • Permitir a constituição de parcerias público-privadas estratégicas a nível distrital;
  • Transformar a população local em agente activo do desenvolvimento, promovendo o envolvimento comunitário e a apropriação das políticas públicas.

O futuro de Moçambique constrói-se no distrito. É nele que se encontra a terra fértil, a juventude, o capital humano e o potencial produtivo que podem sustentar o salto histórico do país rumo à independência económica.

Transformar o distrito em pólo de desenvolvimento e base da planificação nacional não é apenas uma proposta política: é uma necessidade estratégica, que responde às exigências da descentralização, à urgência da industrialização e à luta pela redução das desigualdades regionais.

Com liderança transformacional, planificação endógena e recursos devidamente alocados, cada distrito pode tornar-se num motor de crescimento e inovação, contribuindo para que Moçambique alcance, de forma sustentável, o desenvolvimento que a sua história e o seu povo exigem. O distrito deve ser o laboratório do futuro nacional, onde se testam soluções inovadoras para educação, saúde, agricultura, indústria, turismo, habitação e emprego.

O dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e jornalista George Bernar Saw dizia que o progresso é impossível sem mudança; e aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada. Vamos mudar?

 

Há viagens que não se fazem apenas com o corpo, são travessias que deslocam a língua, a memória, o imaginário. Entre Moçambique e África do Sul, o vaivém de homens e mulheres, primeiro, nas minas, depois, nas cidades e periferias, construiu um arquivo sensível de canções, poemas e narrativas que resistem ao esquecimento. “Magaíça” (1950), de Noémia de Sousa, “Mufolhe” (2013), da Banda Kakana, e “Ntxintxile” (2017), de Assa Matusse, são fragmentos desse arquivo. 

As três obras em questão estão separadas por décadas, mas unidas pela mesma ferida: o desencanto diante de uma promessa que sempre se revelou menor do que o sacrifício exigido.

No seu poema, Noémia de Sousa abre a narrativa com a figura de mampara: o homem simples, carregado de sonhos, que embarca num comboio rumo a um desconhecido, vestido de promessa. Na sua trouxa, leva “a ânsia enorme” e, no olhar, o pasmo diante da máquina colonial. Mas, quando regressa, o brilho é falso, a mala é pesada de bugigangas inúteis e, no corpo, a juventude ficou para sempre soterrada no fundo da mina. É o retrato de uma inocência devorada, como se o ouro extraído não fosse senão a cor pálida da própria vida a esvair-se. 

A mãe dos poetas moçambicanos denuncia, com imagens concretas sugeridas pela palavra, a brutalidade da exploração e a desilusão.

Meio século depois, a música “Mufolhe”, do álbum Serenata, retoma o fio condutor do sujeito magaíça proposto por Noémia de Sousa. Entretanto, no caso, esse sujeito tem voz audível. Já não é apenas um ser observado. Agora confessa, canta a ilusão comprada com rands e carnes, refere-se à mulher talvez perdida, ao filho que só o conhece pela fotografia. 

A melodia nostálgica da Banda Kakana, somada ao refrão repetitivo, imprime o peso da saudade e a consciência de que “não há dinheiro que compre o amor”. E, por via disso, dialoga com o mampara do poema de 1950.

Quanto ao tema “Ttxintxile”, de Assa Matusse, parece uma música com o tom mais endurecido em relação às propostas de Noémia de Sousa e da Banda Kakana. No entanto, a melodia é suave, quase embalada, um paradoxo, pois a letra trata de desprezo, de presentes humilhantes, de violência física. É uma doçura que esconde navalhas.

O contraste amplifica o impacto emocional, exigindo atenção sensível do ouvinte. O refrão, traduzindo, que diz “Eu, então, já mudei” não é uma simples constatação, mas encerramento de ciclo.

O mampara ingénuo, de Noémia de Sousa, e o arrependido, da Banda Kakana, convertem-se nessa voz que já não busca reparo, mas sim ruptura. 

Lidas em sequência, as três propostas formam um triângulo equilátero. Em “Magaíça”, vemos o sonho antes e depois da mina. Em “Mufolhe”, vemos o arrependimento a tentar ainda salvar o que resta. Em “Txintxile” vemos o olhar que já não pede salvação, apenas reconhece a cicatriz. É como se cada obra completasse a anterior e preparasse o chão para a seguinte, num diálogo que atravessa o tempo e a língua, provando que a ferida migratória não se cura apenas com o passar dos anos.

As três autoras apresentam três perspectivas ramificadas na mesma verdade. A  denúncia é a mesma e, no final, é como se todas as autoras dissessem que a estrada entre Moçambique e África do Sul não é só geografia, é também o mapa daquilo que deixamos para trás e daquilo que nos torna, para sempre, diferentes.

 

Persiste, há séculos, uma tradição muda e insidiosa: a de revestir o fel com verniz de doçura. Na literatura, a miséria social é frequentemente adornada com metáforas fulgurantes e eufemismos dóceis. Essa complacência travestida de lirismo permite falar do sofrimento como se fosse possível polir a dor, maquilhar a injustiça e atenuar a violência.

Quando se fala de punições extrajudiciais, agressões sexuais, violência nas ruas ou dependências, o gesto comum é temperar o impacto, como se a verdade fosse demasiado intensa para a sensibilidade da comunidade. Mas quando a arte se acomoda nesse refúgio, renuncia, ainda que sem intenção, à sua função mais transformadora que é desvendar o manto das aparências e expor, sob plena evidência, a essência das realidades que se tenta ocultar.

Francisco Chuquela rompe com a tradição de suavizar o real e apresenta, em “Tchambalakati e Outras Crónicas”, uma visão directa, oferecendo ao leitor o contacto com a vida em sua forma mais autêntica e contundente.

Chuquela constrói as suas crónicas a partir de um olhar atento sobre o quotidiano, capaz de transfigurar acções banais em registos literários de relevância cultural e estética, porque, na verdade, “somos todos actores e actrizes neste cinema sociedade” (Alcione Thulani, in Grito o Mundo Gagueja). O autor alia economia verbal, mantendo um equilíbrio entre simplicidade e elaboração, e estruturando as narrativas com cadência oral.

A estrutura narrativa é, em grande parte, circular, ou seja, inicia-se com uma imagem concreta, desenvolve-se por gestos, pequenos diálogos, e encerra retomando o ponto de partida, agora impregnado de novos factos. Esse formato é evidente no capítulo que empresta o título a obra, “Tchambalakati”, que começa com as crianças a “encherem o quintal espaçoso, subiam e desciam às árvores pequenas e grandes” e termina com a partilha colectiva do prato.

A identidade estética da obra evidencia um realismo depurado, por vezes entremeado de lirismo, que permite caracterizar as cenas do dia a dia com clareza e precisão. Chuquela descreve objectos e acções tal como são, fazendo o uso escasso de metáforas ou outras figuras de linguagem. Por exemplo, a passagem “a vovó dirigiu-se para dentro da casa de caniço e zinco e de lá trouxe para a sombra da mangueira frondosa no centro do quintal a esteira velha que fizera parte de xiguiane no dia do seu lobolo”. Com isso, é mostrado, de forma directa, sem transformações poéticas, o ritmo real da vida.

A linguagem combina o português com termos vernaculares como “Dzukuta, Pandza e Xigubu”, desta forma, preservando a autenticidade cultural moçambicana.

No capítulo A “Miss” Alcoólatra, Francisco Chuquela conduz o leitor por uma odisseia de peripécias que começa com o retrato quase exótico de Sarita, mulher bela, dançante, alvo de todos os olhares, e termina numa cena voraz de degradação, onde uma fila de homens embriagados se dirige ao banheiro para usufruir do corpo vulnerável da protagonista, saindo “leves e satisfeitos” enquanto ajustam as fivelas aos cintos das calças.

A narrativa esmera-se na descrição estética da ascensão e queda da “miss”, mas omite qualquer acção que confronte ou denuncie o abuso implícito. O lirismo minimiza a gravidade do ocorrido, tornando natural o sofrimento da personagem e falhando em provocar a indignação necessária. Ademais, Sarita é extremamente erotizada, a crónica foca mais no corpo dela do que nos seus pensamentos ou na sua história de fundo.

A ausência de uma uma voz interior da personagem torna-a mais imagem do que pessoa. Essa escolha, portanto, enfraquece a crónica e compromete um dos papéis essenciais da literatura, que é confrontar e incomodar para gerar mudanças. 

No entanto, o autor demonstra habilidade na construção de imagens vívidas e sensoriais, ao dar voz a personagens que habitam as margens da sociedade e ao revelar as consequências das tragédias urbanas, como se mostra no capítulo “Mbhoromani”, o personagem homónimo, ultrapassa a condição de mera figura narrativa e adquire uma presença quase lendária: é ladrão, violador, assassino, ou seja, uma sombra apocalíptica que segundo o texto, rivalizava apenas com Matsanga (pessoa considerada uma ameaça à ordem estabelecida), no imaginário popular.

A descrição da morte de Mbhoromani, amarrado com um “troféu de mabir ao pescoço”, queimado com petróleo, gritando enquanto a multidão celebrava, não é uma ode à justiça, mas sim uma demonstração da atrocidade social travestida de moralidade. A presença de nyangas (curandeiros) que invadem a cena com pancadas rituais e diagnósticos metafísicos, desloca o conflito da esfera da justiça para a do oculto, onde os demónios não são julgados, mas exorcizados.

Ao término deste “Tchambalakati e Outras Crónicas” ainda que misturado com o sabor da criminalidade, superstição, o linchamento, a violação sexual e outras dores do quotidiano, o gosto do chá permanece para fortalecer a vontade de seguir tomando, aprendendo e transformando, porque é nesse líquido quente que reside a força da verdade cultural que a literatura tem o poder de despertar.

 

O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória da Guerra Antifascista Mundial. Essa devastação humana alterou o mapa geopolítico do século XX, e deu origem à ordem internacional centrada nas Nações Unidas. Nessa guerra, a China foi a primeira a acender a chama da resistência no Oriente e ainda se tornou um pilar do campo de batalha oriental principal. Hoje, diante de conflitos geopolíticos e desafios globais cada vez mais complexos, a China continua a ser força vital e firme na defesa da ordem mundial do pós-guerra, veio a propor o conceito de formar uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade, respondendo de forma clara e efetiva à indagação importante como “que tipo de mundo vamos construir e como podemos construí-lo?”.

  1. Catorze anos de resistência sangrenta: a China é “fundadora” da ordem do pós-guerra

Dos lamentos no Nordeste da China em 1931 até os clarins da vitória que ecoaram por toda a China, os 14 anos da Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa são uma epopeia grandiosa escrita com a vida pela nação chinesa. Confrontados com os invasores, os 35 milhões de militares e civis feridos e mortos representam uma promessa solene ao futuro da humanidade: a China busca a justiça pela humanidade.

Nos tempos mais difíceis da Guerra de Resistência, a China imobilizou mais de 70% das forças terrestres japonesas, ganhando um espaço estratégico tão crucial para a União Soviética e as forças aliadas ocidentais. Se a China tivesse colapsado logo no início, o Japão poderia ter dirigido suas forças contra a União Soviética mais cedo ou avançado para a Índia e teria sido alterada completamente a configuração do mundo. Foi precisamente essa contribuição estratégica que fez a China figurar entre os países fundadores das Nações Unidas de cabeça erguida. Signatário da Carta das Nações Unidas que estabeleceu a ordem do pós-guerra, a China se tornou membro permanente do Conselho de Segurança.

  1. Promover a paz e buscar o desenvolvimento: a China é “guardião” da ordem internacional

 

Na década de 1950, a China propôs pela primeira vez os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica, hoje normas básicas universalmente reconhecidas pela comunidade internacional. Sendo o maior contribuinte de tropas para manutenção da paz entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a China é aclamada como “elemento crítico e força chave em operações de manutenção da paz”. Nos últimos anos, em questões regionais candentes como no Oriente Médio e na África, a China tem desempenhado papel proativo nos bons ofícios e na mediação, e envidado todos os esforços pela paz. A Iniciativa Cinturão e Rota conta com a participação de mais de 150 países e abrange as áreas vitais como infraestrutura, energia e economia digital, injetando forte impulso no desenvolvimento dos países do Sul Global. Em áreas de grande relevância para o bem-estar da humanidade, como mudanças climáticas e transformação digital, a China vem contribuindo ativamente produtos, tecnologias e soluções de governança, disponibilizando um volume significativo de bens públicos internacionais.

Enquanto contracorrentes de desglobalização e ruídos de “desacoplamento e corte de cadeia de suprimentos” ganham força, cabe perguntar: Quem está formando barreiras? Quem está construindo pontes? A China, firme no caminho da abertura, inclusão e benefícios mútuos, envia uma mensagem clara a todos aqueles que trilham a árdua jornada da modernização: a China busca o progresso pela humanidade.

III. Propor a formação de uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade: a China é pioneiro da promoção de uma nova evolução da ordem internacional

Em um mundo com mudanças nunca vistas em um século, a competitividade coletiva dos países em desenvolvlimento está em ascensão, enquanto os mecanismos internacionais, estabelecidos com a sociedade ocidental como ator principal, revelam deficiências na governança global, isto é, mecanismos incompletos, conceitos ultrapassados e métodos ineficazes. A nossa era exige, portanto, uma nova percepção de ordem internacional. A proposta chinesa é formar uma comunidade com futuro compartilhado para a humanidade. Devemos promover um mundo multipolar equitativo e ordenado, uma globalização econômica universalmente benéfica e inclusiva, e defender o verdadeiro multilateralismo. Os assuntos internacionais devem ser tratados por meio de consultas entre todos os países, em vez de ser ditados por aqueles que têm os maiores músculos .

A China, forjada nas chamas de guerras, segue inabalavelmente seu caminho em defesa da equidade, justiça, desenvolvimento e progresso para toda a sociedade humana.

Hoje em dia,a tecnologia de Inteligência Artificial (IA) está a crescer de forma explosiva,influenciando profundamente o desenvolvimento sócio-económico e o progresso da civilização humana. Ao mesmo tempo, a tecnologia de IA também traz riscos e desafios imprevisíveis. Alcançar um equilíbrio dinâmico entre o desenvolvimento e a segurança tornou-se numa questão comum para o mundo.

Para promover a cooperação internacional global na IA, o Presidente chinês Xi Jinping propôs a Iniciativa Global de Governança da IA em 2023. Com base nesta iniciativa, a Conferência Mundial sobre IA de 2025 e a Reunião de Alto Nível sobre a Governança Global da IA realizaram-se recentemente em Shanghai,China. Foi divulgado o Plano de Ação para a Governança Global da IA, que absorvou amplamente as experiências e práticas efetivas da Governança da IA em vários países. Visa promover o desenvolvimento e a aplicação da IA e garantir a sua segurança,controlabilidade e equidade, sublinha os princípios do respeito pela soberania,equidade e universalidade,atribui importância ao papel do Sul Global e apela à cooperação internacional para promover conjuntamente o desenvolvimento e a Governança da IA mundial.

O Plano de Ação contribui para a implementação do Pacto Digital Global das Nações Unidas. O ano corrente marca o 80º aniversário da fundação das Nações Unidas. O Plano de Ação sublinha a adesão às Nações Unidas como canal principal e apresenta os seis princípios de boa vontade para povos, respeito pela soberania, orientação pelo desenvolvimento, segurança e controlabilidade, equidade e universalidade, bem como abertura e cooperação, o que cria um futuro digital e inteligente inclusivo, aberto, sustentável, justo, seguro e crível para o mundo global, incluindo o grande número dos países em desenvolvimento. O Plano de Ação salienta a implementação da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, ajudando o Sul global a contatar e aplicar genuinamente a IA, e apoiando os países em desenvolvimento no reforço do aumento de capacidades abrangentes na inovação, aplicação e Governança da IA, com vista a colmatar o fosso digital e inteligente, alcançar um desenvolvimento comum e promover a construção de uma comunidade com o futuro compartilhado para a humanidade.

O Plano de Ação trará novas oportunidades para a China e África no sentido de aprofundar a cooperação da IA. Nos últimos anos, a China tem respondido ativamente às solicitações da África para o desenvolvimento digital e inteligente. Em 2024, A China e 26 países africanos, incluindo Moçambique, publicaram o Plano de Ação para o Desenvolvimento da Cooperação Digital China-África, no qual as duas partes decidiram explorar a cooperação na IA,computação de alto desempenho e comunicações quânticas. Durante a Cimeira de Beijing do Fórum de Cooperação China-África(FOCAC),o Presidente Xi Jinping anunciou que vai construir em conjunto o Centro de Cooperação da Tecnologia Digital China-África e construir 20 projetos de demonstração de infraestruturas digitais e de transformação digital na África. Em junho deste ano, o Presidente Xi Jinping sublinhou mais uma vez na sua mensagem à Conferência Ministerial dos Coordenadores para a Implementação dos Frutos do FOCAC que a China vai reforçar a cooperação com África nas áreas importantes como a IA e fomentar o desenvolvimento de alta qualidade da cooperação China-África. Ao mesmo tempo, a China acrescentou ou aperfeiçoou 150 mil quilómetros de rede arterial de comunicações para os países africanos, bem como construiu um grande número de locais de rede sem fios e de banda larga móvel de alta velocidade, o que lançou uma boa base para a cooperação China-África na IA. Com a implementação do Plano de Ação, a China continuará a aproveitar plenamente as suas vantagens na tecnologia e outras áreas,promovendo continuamente o intercâmbio e a cooperação com os países africanos na construção das infraestruturas digitais, da formação de talentos e da experiência de gestão, de modo a transformar a inteligência artificial num novo ponto de crescimento da cooperação China-África.

O Plano de Ação dá um novo impulso à cooperação pragmática China-Moçambique. A China atribui grande atenção à vontade de Moçambique de intensificar a cooperação nas infraestruturas de comunicações e transformação digital. Implementou vários projetos em Moçambique, tais como o centro de dados do governo eletrónico,o acesso da rede de telecomunicações aos rurais, a estação de receção de dados por satélite Fengyun-2 e a modernização das redes móveis, que melhoraram consideravelmente a taxa de cobertura da rede em Moçambique e o nível de digitalização do governo, impulsionaram o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique e melhoraram o nível de vida do povo moçambicano. Em janeiro do ano corrente, o Presidente Daniel Francisco Chapo propôs no seu discurso de investidura criar um governo orientado para a tecnologia e estabalecer um Ministério das Comunicações e Transformação Digital. A China está disposta a reforçar a cooperação com Moçambique na IA,impulsionando o desenvolvimento da IA para beneficiar melhor Moçambique e os países africanos.

Não existe uma consonância possível entre a poesia e o vazio. Não podem rimar porque a poesia serve para preencher os vazios. Mesmo que a poesia, insistentemente, fale do vazio, o seu último cargo é preenchê-lo. Agora, tentar a mesma harmonização com a anatomia – e todos os seus derivados – tornou-se comum para a poesia nacional. E o mais comum é «ler poetas» que descrevem a mulher e suas qualidades redondas (e.g., aqui cabe muito bem o Eduardo White). Inédito é «ler uma poetisa» que fale dos músculos duros e as canoas do seu amado (e.g., quiçá cabe nesta antonomásia literária, a «multi-irreverente» trovadora Énia Lipanga). Essa tentativa deixou de ser vã, pois abre horizontes para construção de um conhecimento sensível possibilitando uma melhor compreensão do mundo e de nós mesmos. É aqui onde se situa o livro: «Anatomia do vazio» (Sanjane, 20025).

Eusébio Sanjane, minimiza as explosões de expressividade, com os movimentos das coisas indeterminadas, sempre por se fazer e se refazer a cada instante. Um exemplo: «Você que atravessa as noites em silêncio, / que toca as paredes frágeis da memória, você que escuta os meus murmúrios / […] / salve-me» (poema «O grito das sombras», p. 11). Eis aqui um rebuço de pedido de socorro que o poeta mostra para o mundo de forma mais sensível a partir do que nós somos e do que poderemos ser. Até agora, aparentemente, não vemos nenhuma relação entre a poesia e essa anatomia que se faz no vazio. Portanto, podemos dar mais um passo onde percebemos a expressão preceptiva na metafísica da carne. Por meio do estado poético, vemos um enlaçar de algumas partes do corpo à poesia, e ambos se tornam sujeitos para uma existência una, sempre em movimento: «cegos os olhos escalam a escuridão, / também memórias ainda não nascidas. / é sempre o mesmo ciclo: / começo / quase-vida, despedida» (poema «A Pele do infinito», p. 13). Parte do corpo (e.g., olhos) é movida pela expressão criativa e se realiza na experiência sensível (e.g., escalar a escuridão para se encaixar no período da vida). Aqui, Sanjane nos oferece uma fenomenologia de parte dessa anatomia, do sensível que é profundamente marcada pelo encontro do olhar com a significação. Um processo em que não há separação entre expressão e o expresso, entre o acto e a significação de fazer parte de um vazio. Ou seja, quem é cego (parte da deficiência da nossa anatomia) não vê, óbvio, e para preencher esse vácuo de não enxergar escala montanhas da escuridão. Se nesta etapa ainda flutua a incerteza da conexão entre a poesia e essa anatomia que se faz no desocupado, podemos avançar para o passo derradeiro. Ele é nítido no poema que oferece o título ao livro («Anatomia do vazio», p. 13).

O poema «Anatomia do vazio» (Sanjane, 2025, pp.15-16) é composto por quatro partes: I (duas estrofes de 7 versos & 4 versos), II (duas estrofes de 5 versos, cada), III (duas estrofes de 4 versos, cada) e IV (duas estrofes de 4 versos & 5 versos). Sem nos agarrarmos à numerologia poética podemos compreender como o poeta atesta e preenche o oco anatómico. Com ousadia se aproximarmos os primeiros versos de cada parte teremos a resposta. Dessa soma ficamos com a seguinte versificação: «No princípio não havia palavras, / [No] ponto onde o vazio pulsa, / O que é o vazio senão um desejo inverso, / [De] uma dor que mora na falta» (juncão dos versos inicias das fracções do poema «Anatomia do vazio», Sanjane, 2025, pp. 15-16). Credencio, que é aqui onde reside o epicentro do livro. Não pelo facto de ser o poema que é homónimo, com alguma extensão, ao título. No entanto, por oferecer uma profundidade de uma busca que é imersa no mundo ideal das ideias e das nossas vidas. Não é o poema que responde ao vago. É a transcendência, por meio da metafísica do desejo, onde cada experiência vivida se transforma e se expande revelando novos sentidos e significados (e.g., «o que é o vazio senão um desejo inverso»).

Sem máculas, estamos cônscias que hodiernamente vivemos e reclamamos dos diversos vazios das nossas anatomias. O vazio da moral por isso nos completámos com xivhotxongwas (que são hostis a nossa espiritualidade). O vazio de preencher o cabelo com cabelo dos outros. O vazio de clarear a pele para ter a epiderme do outro. O vazio de não aceitar a minha anatomia e tomar anabolizantes para ter a fitotomia do Schwarzenegger. [Abstenho-me de falar do vazio de ser nação. Vazio da moçambicanidade]. Vivemos um espetáculo do preenchimento da anatomia onde nos custa perceber que o corpo pode ser tomado pela estesia de um oco que não tem volta. Pelo estranhamento, pelo silêncio e pela fluidez do movimento da vida. Um vazio que depois de preenchido desaba no «primeiro sopro» (Sanjane, 2025, p. 32).

Para cerrar essa transitória leitura sobre «Anatomia do vazio» (Sanjane, 2025) torna-se injuntivo concordar que por mais que haja uma plenitude do corpo em movimento e que busca um auto-preechiemnto, o estado poético da criação de Sanjane se ocultará no silêncio que reside no intervalo dos gestos que fazemos quando fingimos não aceitar a verdadeira essência dos nossos corpos. A anatomia «desse vazio», é sobre as ações tácitas, do mover-se com compromisso e determinação para o que não foi estabelecido. A anatomia «desse vazio» é sobre o nosso corpo. Como ele revela-se e se oculta ao mesmo tempo. É sobre a aurora espetacular que perdemos por ocultar-se à nossa essência, que se tornou repleto de imprevisibilidade e jornadeia com a mediocridade que exibimos porque nos tornamos «museu das coisas invisíveis» (Sanjane, 2025, p. 42). Na palavra poética o conteúdo nunca se mostra como se espera. A abundância ganha e incorpora o significado quando, em vez de copiar o outrem, deixamo-nos fazer e refazer por aquilo que é endogénico a nossa estirpe. De contrário, seguiremos vazios e não teremos, sempre, um Sanjane para nos chamar ao preenchimento essencial.

P.S.: há quem diga que o erro do poeta é fazer um espaçamento assustador de uma obra para outra. E, contrariamente, há quem diga que os intervalos são necessários. Sanjane vacila entre esses dois ciclos. Mas, como sempre existe um, «mas», Eusébio Sanjane protela o risco dos enormes intervalos: «Rosas e lágrimas» (Ndjira, 2006), «Frenesim: poesia em pétala de lume» (Ndjira, 2013) e «Anatomia do Vazio» (Estação-8, 2025). Bom, para não deixar passar em branco: o «frenesim» passou pelas minhas mãos na minha fase de editor-neófito (Ndjira).

“… o que é que diferencia um romance escrito por

um africano de um romance […] produzido por um

europeu?” Brunel & Chevrel (2004)

“… se deve exigir do escritor, antes de tudo, certo

sentimento íntimo que o torne homem do seu

tempo e do seu país.” Carvalhal (1991)

 

Literaturas africanas e emergentes

Como ponto de partida, Noa (2008) esclarece-nos, referindo-se às literaturas africanas, que elas não escapam àquele que parece ser facto transversal da arte em África e que as mesmas vivem uma profunda interacção e contaminação do meio em que emergem. Diz, ainda, o autor supracitado, que as literaturas africanas têm conformidade conquistada e alargando os seus universo de recepção, levam, em parte, uma tradição estética assimilada do outro, traduzindo elementos de ordem linguística, estética, cultural e vivencial decorrentes da pertença de escritores a um espaço físico determinado.

Dizem Brunel & Chevrel (2004), que as literaturas emergentes africanas têm uma espécie de missão simbólica para com o seu povo. Consideram os autores, olhando para a relação entre a literatura e a sociedade, que nos interroguemos com benefício sobre a própria noção de literatura, sobre a relação que esta mantém com o envasamento da tradição, ou ainda sobre o estatuto do escritor, todavia, Carvalhal (1991) diz que se deve exigir do escritor, antes de tudo, certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país.

Para Matussse (1998), Chevrier concebe-se as literaturas africanas como um campo privilegiado para o estudo das relações entre a literatura e a sociedade. Diz o autor que o estatuto do escritor vem frequentemente ligado à ideologia de descolonização, investe de uma missão simbólica perante o seu povo.

Para Noa (2008), tratando-se de literaturas surgidas no contexto colonial em situação de dominação há mais de cem anos, elas acabaram por incorporar a preocupação com a delimitação de um território estético próprio que, naturalmente impõe o recuso a estratégias de afirmação identitária que questionavam e se distanciavam da ordem cultural e política dominante. Trigo (1992) diz que as literaturas africanas assumem-se contra outras, no momento em que desejam ganhar distância e afirmar-se como diferencial da literatura colonial. Frisa o autor a ideia de que nascendo de um recurso e alternativa a literatura colonial, as literaturas africanas têm de se olhar como uma negatividade, como um momento da dialéctica busca de identidade que lhes está subjacente.

Ainda para Noa (2008), o processo de criação é sempre uma reinvenção de estruturas, temas, perspectivas, linguagens e que garante sempre a legitimidade de uma obra, o que nos remete a ideia de Brunel & Chevrel (2004), que dizem que a emergência das literaturas africanas apresenta uma ambiguidade, quer na sua génese quer na sua recepção, dizem ainda que certos críticos insistem no carácter revolucionário desta literatura, na qual se vêem expressões de um despertar de uma tomada de consciência , no entanto, dizem os autores que há os que sublinham os laços de filiação que unem as literaturas africanas nascentes com a corrente da literatura colonial. Os autores laçam um apelo dizendo que é necessário definir as características susceptíveis de separar as literaturas africanas da tutela ocidental e, portanto, conferir-lhes uma real autonomia. 

Se para Brunel & Chevrel (2004), as literaturas escritas em línguas europeias colocam-se evidentemente em problemas de identificação, sob ponto de vista de que “o que é que diferencia um romance escrito por um africano de um romance colonial produzido por um europeu?”, Trigo (1992) diz que as literaturas africanas de expressão portuguesa buscavam justamente a africanidade, esta que a semelhança da brasilidade, resultaria de um longo processo de maturação cultural.

No entanto, considera Matusse (1998) que as reflexões apresentadas insistem na complexibilidade do contexto em que emergem as novas literaturas, de diversas práticas semióticas, de diferentes domínios de práticas sociais.

Diz o autor imediatamente supracitado, que a emergência de literaturas geradas de situações coloniais nas línguas da colonização, coloca a necessidade de suprimir a condição que implica a fronteira linguística e cultural das mesmas.

No diz respeito à emergência da literatura moçambicana escrita, Matusse (1998), diz que tal facto só se deve a introdução da escrita e com a formação de uma civilização urbana a que a escrita está sempre associada. A assimilação dos valores civilizacionais, a educação orientada segundo os modelos europeus foi o que impulsionou o aparecimento dos primeiros escritores moçambicanos.

No que diz respeito à literatura ligada ao urbanismo, Trigo (1992) diz que as literaturas africanas modernas, as que se exprimem na língua do colonizador, emergem ligadas ao urbanismo enquanto fenómeno semiótico, que se liga a questões de organização social do espaço e que introduz uma forma da realidade característica da África pré-colonial. No entanto, diz o autor que a cidade passa a ser a meta a atingir por aqueles que vêm nela a possibilidade de melhorar o seu estatuto social económico, o que, portanto, provoca o êxodo rural. De forma categórica. O autor afirma que as literaturas emergentes africanas são, de facto, um fenómeno do urbanismo colonial, quer no aspecto temático quer, sobretudo, no aspecto formal, por estas terem surgido de um conflito humano e cultural, que termina com as independências.

Segundo Trigo (1992), as literaturas africanas modernas emergem duma situação de alteridade, todavia, diz o autor que nas literaturas africanas escritas na língua do colonizador, a alteridade é mais do que um simples processo discursivo, é o resultado duma situação conflituante do ponto de vista histórico e antropológico. Em concordância como o autor imediatamente supracitado está Magnolo (1991), que diz que a situação colonial contribuiu para a definição e pluralidade das tradições e que da relação entre colonizador e colonizado emergiu transculturalização, os membros de culturas diferentes participaram de uma interacção semiótica.

 

O desafio ao cânone

Para Noa (2008), um dos factores que faz com que as literaturas emergentes tenham um desafio ao cânone é a língua portuguesa, por ser a língua de comunicação e língua literária. O autor diz que o hibridismo linguístico que as obras dos autores emergentes, como por exemplo, os que usam a língua bantu e a língua portuguesa nas suas produções literárias, projecta-os ao hibridismo cultural que caracteriza um espaço existencial.

Diz o autor imediatamente supracitado, que autores que escrevem em línguas bantu como língua literária, mais do que pretender atingir um determinado público, praticam um acto performativo, que carrega uma visão do mundo, um imaginário colectivo, e, portanto, um sentido de vida que só a língua nativa pode traduzir.

O autor vê como desafio ao cânone, a problemática dos jovens criadores nos países africanos, que têm a língua portuguesa como língua oficial, vendo-se obrigados a escreverem como mandam as regras gramaticais da língua portuguesa, nisto tudo, considera ao autor que alguns jovens criadores têm seus textos rejeitados pelas editoras e pelos júris dos concursos literários, sob pretexto de salvaguardar o critério da correcção linguística, ou por outras, salvaguardar a língua portuguesa.

Portanto, entende-se que um dos elementos que constitui um dos desafios para que as literaturas africanas de língua portuguesa, emergentes, ascendam ao cânone é a língua portuguesa, no entanto, as editoras também têm um papel importante, pois são elas que catapultam a imagem de um determinado autor e sua obra literária. Se houvesse uma ruptura com os modelos de validação de obras literárias sob ponto de vista ocidental, visto que há ainda a problemática de que as literaturas africanas descendem dos colonizadores, haveria uma margem maior de obras literárias que entrariam no cânone universal.

Ainda na linha das literaturas africanas e o desafio ao cânone, Brunel & Chevrel (2004) dizem que a África literária, que a adjectivam como sendo azarada, não tem um melhor acolhimento nos quadros da instituição universitária clássica onde faz ainda muitas vezes a figura de uma intrusa, os mesmos autores voltam a dizer que a bibliografia crítica consagrada as literaturas africanas não pára de crescer, e que a integração das novas literaturas no sistema crítico foi inicialmente caracterizada por universitários e intelectuais ocidentais, no entanto, há o problema da identidade própria das literaturas africanas. Referente a esse problema de identidade, Carvalhal (1991), diz que é preciso “ser” para afirmar-se no conjunto, que é o cânone.

A ideia de “ser” está ligada a naturalidade necessária de expressão nacional, para ser integrada na literatura universal, a autora defende que deve haver uma conquista progressiva que parte de uma consciência de identidade própria. Dá-nos a entender que para se chegar ao cânone universal, primeiro tem de se chegar ao cânone nacional.

Pare se chegar ao cânone universal, tem se passar pelo cânone nacional, de novo, precisa-se do papel das editoras, para venderem a imagem dos autores. Nisto tudo, as universidades também têm uma tarefa no que diz respeito à elevação, numa primeira fase, de uma obra ao cânone nacional, e posteriormente ao cânone universal, porém, o maior desafio dessas literaturas é a língua herdada do colonizador.

Para Carvalhal (1991), as manifestações de inspiração nacional são uma marca das literaturas em sua formação, o que, ao seu entender, sinaliza o processo de afirmação e busca de autonomia.

Se para Brunel & Chevrel (2004), as literaturas africanas podem chegar ao cânone através do valor que lhes é dado no ensino, nas publicações de trabalhos universitários, pela literatura comparada, que designa tal acto de “processo de reconhecimento das literaturas africanas”, para Carvalhal (1991), o conflito entre tendências locais e influências externas, além de transparecerem em obras literárias, também modelam os primeiros textos historiográficos, determinam as escolhas de obras para a fixação do cânone. Magnolo (1991) diz que o cânone literário que constitui o campo dos estudos literários e comparativos é uma produção cultural regional dentro do corpus universal das práticas semióticas.

 

Bibliografia

Brunel, Pierre & Chevrel, Yves. (2004). Compêndio da literatura Comparada. Lisboa: Colouste Grulbenkian.

Carvalhal, Tânia Franco. (1991). Dedalus. Revista portuguesa de literatura comparada, n.1, pp. 49-61.

Matusse, Gilberto. (1998). A construção da imagem da moçambicanidade em José Craveirinha Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: UEM.

Magnolo, Walter D. (1991). Dedalus. Revista portuguesa de literatura comparada, n.1.pp. 219-244.

Noa, Francisco. (2008). Perto do fragmento a totalidade olhares sobre a literatura e o mundo. Maputo: Ndjira.

Trigo, Salvato. (1992). Ensaios da literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Veja. 

 

O que inicia com o som dos sapatos, termina com um grito de medo. Em “Sinédoque do silêncio”, o realizador Gil Nota explora a complexidade de traumas e faz uma crítica ao sistema (conjunto de instituições e relações sociais) que falha em escutar as vítimas. 

A curta-metragem, galardoada com um prémio KUGOMA, baseia-se na figura de linguagem sinédoque, onde uma parte de algo é usado para representar o todo e vice-versa. Essa figura de linguagem é o cerne da narrativa e da crítica presentes na obra.

A protagonista, Khaci, dialoga com a psicóloga que, mais do que uma personagem individual, representa o sistema. Fundamentalmente, a sinédoque manifesta-se nesse diálogo de forma directa, pois Khaci responde às questões considerando a sua própria condição, que, igualmente, reflecte a situação por que passam várias mulheres.  

Como evidência, no início da curta, após a psicóloga perguntar se podiam começar a consulta, Khaci faz o seguinte resumo: “O meu pai matou a minha mãe… O meu irmão me estuprava todos os dias”. Nesse instante, a psicóloga sugere que a vítima comece a narração dos factos desde o início, o que evidencia a função da figura de linguagem e o quadro completo da dor da vítima.

A língua de sinais utilizada por Khaci surge, na verdade, como uma encenação inconsciente da psicóloga, actuando como uma metáfora poderosa para a sensação de não perceber e não como incapacidade de fala. Para reforçar a metáfora, é crucial considerar o contexto temporal da narrativa. 

Após ter sido salva de uma tentativa de suicídio, pelo namorado, Khaci foi internada

durante quase um ano e, subsequentemente, foi viver com ele, sendo vítima de abusos sexuais diários. Khaci cometeu os assassinatos (o do namorado, em legítima defesa, e o da irmã dele, única testemunha ocular). Por conseguinte, começou a fazer as sessões de terapia.

Não existe, por isso, qualquer possibilidade de Khaci ter tido tempo ou condições psicológicas para aprender a língua de sinais. A sua comunicação, através de gestos, portanto, não é uma incapacidade real.

A psicóloga, que representa a sociedade e o sistema, não escuta a profundidade do trauma de Khaci, pois está ali para cumprir um trabalho superficial, uma função burocrática. A falta de empatia é evidente no modo mecânico como faz as questões e, até mesmo, ao interromper a Khaci (cena 06:18). A violência do pai (que era polícia), os abusos do irmão, do amigo do irmão e do namorado, e a apatia da madre e da psicóloga, representam um sistema que a deveria ter protegido, mas falhou tragicamente. 

A falha de comunicação atinge o clímax quando a psicóloga finalmente dá atenção a Khaci, mas não enquanto vítima, e sim como criminosa, pois o momento em que ela escuta Khaci coincide com o relato dos assassinatos que ela cometeu. 

Na curta, Nota revela que o sistema ignora a violência que a personagem sofreu, mas, imediatamente, presta atenção quando ela se torna uma ameaça. 

A frase dita por Khaci: “Eu não tive culpa” ganha um significado ainda mais dramático. Não é apenas uma justificação, mas um indício claro de que a psicóloga a escuta, ainda que seja pelas piores razões. A psicóloga está a ouvir agora, mas a protagonista já está para além da terapia. A sua voz foi ignorada por tanto tempo que, quando finalmente é ouvida, já é tarde demais. Essa falha fundamental leva Khaci a cometer mais um acto de violência, porque percebe que o sistema não ajuda nem a entende.

Apesar da genialidade em abordar temas sensíveis, a curta-metragem apresenta alguns problemas técnicos e de actuação. Há um furo de roteiro no minuto 2:37, no qual Khaci diz: “O meu tio matou o meu pai com um tiro” e, depois, no minuto 4:12, quando a psicóloga diz: “Khaci, tu disseste que o teu tio deu dois tiros ao teu pai” e ela acena positivamente, o que não corresponde ao que foi dito. Além disso, a actuação da protagonista carece de naturalidade, com a tristeza a parecer forçada e falta de foco no olhar.

Em síntese, “Sinédoque do silêncio” é uma curta-metragem marcante pela abordagem crítica e criativa do silêncio sistémico, apesar de algumas falhas pontuais que não desvalorizam o mérito da obra.

 

O espaço não é realida de em si, mas sim a experiência do homem, e a perspectiva não é lei constante do espírto humano” – 

Maria Raposo (1999)

 

Há quem, de longe, olhando-nos como quem decifra qualquer coisa que mereça essa investida calculada, interpela-nos com algumas palavras como “você vai escrever sobre isso”. Uma pergunta não aberta, até porque, sabe-se, a convenção não segue para esse caminho, mas uma pergunta deixada ao acaso, e sem nenhuma tonalidade de pergunta, e que se conflui nessa ambiguidade de recomendação, pergunta e afirmação; convenhamos, o silêncio que daí advém é a única coisa sensata.  Esse augúrio de quem deixa tudo para o lado e faz uma imersão naquele singular momento revela muito da exposição. E essa coisa bela deu-se na inauguração da exposição colectiva “mahanhela” (vivências em ronga/changana)   na última quarta-feira (06/08), na Fundação Fernando Leite Couto.

Já tendo exposto cá o título que carrega esta exposição, considero que já estejam criadas as condições para esse retomar de juízos. Sim, juízos, pois são muitos. Por um dado momento paramos com um pensamento em mãos, e num outro instante atropela-nos um outro, e assim acabamos nesse baile de parar e sermos atropelados. E eu ter escrito sobre aquele preciso momento em que alguém me falou sobre escrever sobre a exposição, talvez sem uma explicação consciente — e como dá-nos regozijo ter o Freud para explicar algumas das nossas incoerências somente com a palavra inconsciente — era mesmo para esse fim de retratar e fotografar pensamentos instantâneos, o que é o pano de fundo da técnica e proposta pictórica de Phamby.

Vamos falar da obra “A nsati ni lovholile”, que, traduzindo para português, signfica “eu lobolei a mulher”, com as dimensões 98cm x 90cm, um acrílico sobre tela. Primeiro que, tal como nas outras obras, Phamby usa o pincel com muita rapidez. Essa rápida pincelada pode suscitar ideias de que Phamby “despacha” o seu trabalho. Contudo, em algumas vezes, em artes, nem todos os adereços estão inseridos na obra para esse jogo dialógico que visa balbuciar qualquer significado que seja, às vezes, está apenas para o ornamento da própria obra, nesse olhar atento à estética. Essa falta de sensibilidade criva no apreciador, que está nessa incessante procura pelo que se diz, a ideia de que uma obra está, como se pode pensar, no caso de Phamby, “despachado” (feito sem cauto).

Com pinceladas rápidas — e que se entenda bem o que quis dizer, porque é mesmo isso, pinceladas rápidas — Phamby, nessa sua missão pictórica, pinta um homem carregando nas costas uma mulher, a sua já mulher. Os talvezes aqui também se misturam (darão-me, por agora, um tempo para ser Mia Couto): por um lado nesse gesto pode interpretar-se carinho que um homem tem pela mulher a qual lobola, por um outro lado pode trazer à tona o sentimento generalizado que se tem quando um homem, finalmente, paga o dote, então ‘carrega’ a sua mulher. E esse carregar pode não ser mais de carinho, mas de ‘coisificação’ da própria mulher, em que o homem já se sente o proprietário da mulher. Ou mesmo um outro terceiro lado: pode ser interpretado como uma simbologia de como o casamento é visto; neste ponto a biblia, que é uma tradição outra, e a tradição africana andam de mãos como marido e mulher pintados no quadro “casamento” do mesmo artista na mesma exposição: ambos concordam que o homem é o provedor. Em palavras outras, talvez, há aqui a representação de como, no casamento, quem “carrega” quem. Esse carregar já é diferente do primeiro e do segundo, esse carregar tem o sentido outro ainda, que é do homem alimentando a mulher, e a mulher vivendo nas costas do marido, como quem não anda com os próprios pés, aliás, não vive com os próprios pés.

Se há aqui uma suposta bifurcação (sendo mais fiel à realidade semântica do quadro, trifurcação), há também um ponto de confluência de todos esses três caminhos: o lobolo, que se torna um regozijo para ambos. Essa temática pasmada e clara para todos encontra suporte nos cabritos, simbolizando o dote que sempre se dá, o “xibakela” de vinho que também é um requisito para essas cerimónias, e a caixa de cervejas e algum e outro objecto que trazem à tona a ideia de bens, que reflectem também os valores (monetários) usados para honrar aos pais da mulher.

Essas todas coisas no quadro, o cabrito, o vinho, as cervejas, criam essa atmosfera mais ponderada, mais mediada e meditada, que foge um pouco da proposta que Phambyra nos dá nessa exposição, quando, por exemplo, ele pinta a “sala azul” e o “tipo 1”. O primeiro pode ser uma captação do silêncio, tanto sonoro como de movimento, simbolizada por objectos no seu devido lugar, e o outro, o “tipo 1” que pode projectar o modo de viver de pessoas de média baixa renda.

Vê-se, por exemplo, nessas duas pinturas a captura não da mensagem, mas a tentativa de trazer o instante, aquele momento que ocorre em qualquer lugar mas passa despercebido, e quantos instantes nos passam despercebidos (!). O instante do silêncio na “sala azul”, o instante em que um homem e uma mulher dão-se as mãos no quadro “A mutchato”, os instantes de apreensão e início de emoções como a felicidade  nos “rostos familiares III e V”. No caso de “A nsati ni lovholile” esse instante é muito dilatado por detalhes como cabrito, o vinho, as cervejas que não dão o sentido de um momento em específico no evento todo, de um piscar de olho em toda a cerimônia, mas são quadros significativos que se complementam e criam “the bigger picture”, que é uma expressão em inglês usada para referir ao entendimento duma situação que inclui mais do que é imediatamente aparente. Ou seja, Phamby, nesse quadro, “A nsati ni lovholile”, não é imediato, mas ponderado; os críticos franceses diriam que ele foi mais um ‘Peintre d’atelier plutôt que de plein air, celui qui observe la nature et saisit l’instant (pintor de oficina do que de ar livre, aquele que olha a natureza e capta o instante).

Tendo em conta o imediatismo que caracteriza os quadros, e menos conseguido nesse quadro em particular por excesso de detalhes que, no lugar de captar o instante, captam toda a forma do acto de lobolar ou a sua completa e metódica significação, o diálogo do cotidiano presente nas suas mostras como o próprio lobolo, os rostos familiares, o casamento, a sala azul e o tipo 1, alia-se também as pinceladas que são rápidas, como que o artista não dá importância à perfeição, onde a luz e a cor são mais importantes na criação de formas do que linhas, aliás nem há linhas. Esse é um outro ponto a segurar, também para rever a ideia do despachar que se possa pensar nos quadros de Phamby: este não usa da linha para criar formas, mas deixa com que a cor e o pincel dêem formas aos seus próprios desenhos.

Phamby não é, como se pode dizer, um retratista. De lado a lado, Maria Chale, no quadro “disponível por encomenda”, é/foi uma retratista, sendo por isso passível de se encaixar nessas exigências de perfeição linear nos traços que fazem as formas. Se a Maria Chale está mais para uma realista, tendo como ponto de análise a obra em alusão, Phamby já é um impressionista, tendo em conta essa exposição, e tudo que já disse atrás. Se por um lado há esse capturar do que é realidade e suas vivências, por outro lado esse capturar vai divergir de formas/caminhos entre as duas formas de fazer a pintura. A Chale é fiel à realidade, então há essa tentativa de se retratar na perfeição, e essa não é a oficina de Phamby, esse foca-se nos instantes, nos momentos singulares e imediatos, ou seja, “como o tempo possui apenas uma realidade, a do instante, os atos de criação dos impressionistas são instantâneos” (RAPOSO, 1999), em que a rapidez nas pinceladas dão-se pela razão de querer captar o segundo em que tudo muda.

Já tendo esse ponto de pressuposição, Phamby, em “a nsati ni lovholile” não se foca no todo, mas contraria, diria eu, o gestaltismo (uma teoria de formas da psicologia) quando enfatiza a parte isolada e pouco lhe interessa a percepção holística da experiência humana sobre o lobolo. E se for isso, aqui se teria a falta de profundidade da própria obra. Mas, todas as minhas crenças apontam para esse destino: o artista nos dá o instante de exultação do casal quando se finaliza todo o processo de lobolar, e eles podem, finalmente, ficar juntos.

Phamby não pinta com régua e esquadro, não é a sua intenção procurar perfeição linear nos traços, mas procura capturar uma imagem que, por ser executada sem preparo, acaba desfocada. Como o tempo que é um tecido feito de instantes, o artista procura capturar esses momentos instantâneos, como se dissesse que a vida, muitas das vezes, não se explica, mas passa, então procura perenizar estes instantes que justifacam a vida e que passam, o revirar dos olhos, o bocejar numa conversa entediante, ou mesmo a exultação quando se casa, finalmente, quem se ama.

 

 

Referência:

Raposo, M. T. R. (1998/1999). O conceito de imitação na pintura renascentista e impressionista. Revista Eletrônica Print by FUNREI, Metavnoia, (1), 43–50. http://www.funrei.br/revistas/filosofia

 

Sendo o crítico sobre aspectos sociais que sou, me pesa a consciência deixar de partilhar a minha percepção sobre o que pode estar por detrás deste problema moral grave, que é a pornografia (infantil).

O caso mais recente que se espalhou pelas redes, de um episódio lastimável e perturbador, de um grupo de adolescentes em cena de sexo grupal, trouxe à tona uma particularidade que me deixou perturbado. Enquanto percorria os comentários das maiores páginas que partilharam a notícia, que, para mim, fazem a opinião pública, verifiquei que se apontavam vários detalhes, desde a cumplicidade ou não da vítima, até a espontaneidade de um menor

em filmar um momento tão horrível… claramente com intenção de viralizar. Mas ninguém pareceu olhar sob o ponto de vista do ambiente (de globalização) a que os jovens estão expostos, que pode ser, logicamente, o maior combustível para este fogo arder.

Não pretendo, de modo algum, olhar sob a mesma perspectiva colectiva, apedrejando nem os internautas, nem os adolescentes agressores ou a vítima. Pretendo, sim, repensar as bases morais, que estão severamente fragilizadas, sugerindo que tal fragilização pode estar a condicionar o desenvolvimento normal das crianças, sugerindo, também, que os pais (no geral) podem estar inconscientemente colaborando para o desvio dos seus filhos.

 

O que os pais fazem na presença dos filhos é vergonhoso 

E, porque, naturalmente, o ser humano aprende os padrões que se repetem em sua volta, em sua vida quotidiana, e os replica em seu favor (regras da linguagem), não se pode desferir golpes sejam eles físicos ou verbais contra aqueles, quando nossa moral como educadores não nos permite.

Cada pai tem a função de ensinar ao seu filho coisas como privacidade, respeito, consciência, consequências, escolhas, limites… basicamente, a “respeitar os seus limites, a

privacidade dos outros, com consciência de que cada transgressão tem consequências”. Há outras coisas não menos importantes, como: responsabilidade, integridade, autoimagem, cultura. Alguns chamam-lhes “dicas de ética”, mas eu prefiro “regras básicas de convivência”. E tudo isto, na prática.

Uma das regras básicas é que um pai deve ensinar as regras básicas mínimas aos seus filhos. Faço esta repetição propositadamente, para que fique claro: se os pais estivessem ensinando as regras básicas, que se resumem no amor ao próximo, então seria possível impulsionar boas acções e comportamentos em mais jovens. Ao passo que comportamentos tão desviantes, como o que está em debate, remetem à infalível ideia de que o ciclo social dos transgressores é basicamente aquele. Que vêm de famílias desestruturadas. Embora, ao meu ver, os comentários dos internautas, genericamente, revelem mais sobre o tipo de sociedade que somos, que, efectivamente, sobre o comportamento dos menores em questão.

 

Regra 1: Regras básicas de convivência

Um pai deve ensinar aos seus filhos as regras básicas de convivência. Mas o que se vê é que eles trocaram o termo por “sobrevivência”, talvez, pela própria natureza do ambiente, e ensinam “regras básicas de sobrevivência”. E estas não cumprem ordens nem normas, pois, não importam os meios, mas o fim único a que se destinam — sobreviver.

Daí que um adulto pega no seu telemóvel, na presença de crianças e, durante a chamada, grita as piores e mais sujas palavras ao interlocutor, sem respeito algum. Coisas como: — “Quero meu dinheiro, seu cão de merda!”. Ele pode, em seguida, virar-se para o seu filho e falar sobre respeito ao próximo, mas ele já ensinou, na prática, como tratar as pessoas para conseguir o que se precisa.

Por falar nas coisas hediondas que parecem pequenas, mas são uma aberração, neste momento já normalizadas pela nossa sociedade, quantos pais fazem dos seus filhos fumantes passivos ou mesmo activos? Quantos pais beijam os seus filhos na boca? Quantos se mostram completamente ou parcialmente despidos aos seus filhos? A privacidade já era.

Quantos assistem a telenovelas com os seus filhos e permitem que eles vejam cenas explícitas?

Hoje, diz-se que isso é completamente normal, pois estamos na era da “globalização”. Eu não sei. Mas tenho certeza de que, com o tempo e frequência, isso se torna um padrão que a criança assume para si. Por isso, actualmente, crescem achando que podem beijar qualquer pessoa, à imagem dos pais, que são livres de fazer o que assistem nas telenovelas e na internet, que podem fazer o que os pais fazem. No final, mais casos de homossexualidade e pornografia infantil cometidos pelos próprios menores, mais adolescentes perdidos no álcool e drogas, mais casos de depressão e suicídio de jovens.

Na verdade, vivemos numa geração de pais que não conhecem as regras básicas de convivência e não têm como as passar para os seus filhos. Muitos de nós aprendemos que não podemos insultar, não porque os nossos pais disseram, mas porque eles muito raramente, senão nunca insultavam (na nossa presença). Por isso, podiam bater em nós com autoridade. Hoje, pais proferem as palavras mais obscenas para ou perante seus filhos.

Filhos proferem tais palavras diante dos pais, e ambos se riem até morrer.

Enfim, crianças crescendo e aprendendo que insultar é engraçado, que bater no outro é divertido… O culpado nem são os telefones. Até porque uma criança que assimilou dos pais a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, geralmente saberá usar o seu telemóvel.

Imaginem se o vídeo não tivesse sido publicado… Ninguém saberia o que tem acontecido nos bastidores das vidas dos nossos adolescentes. Tenho certeza de que este não é um caso exclusivo e isolado. Acredito que coisas do gênero aconteçam constantemente pelo país, longe dos olhares dos pais, encarregados de educação, professores…

Não digo que os pais daqueles menores são os culpados de eles terem espontaneamente criado a ideia, ganhado a motivação e efectivamente se rebaixado em frente de uma câmera, envergonhando, ou não, as suas famílias. Digo que os adolescentes estão crescendo numa sociedade que os assiste cometendo as menores e piores atrocidades sob um olhar impávido, sem nenhuma correção exemplar, e pior ainda, sem formas de retificá-los, justamente pelo facto de os mais velhos também estarem nesse ciclo de baixeza e imoralidades, que só não vêm aos olhos do público, mas também são a realidade, nos seus bastidores.

Em jeito de conclusão, quero reiterar a minha observação: os adolescentes são o espelho dos seus pais ou encarregados de educação e as suas experiências de infância (primeira ou um pouco depois da primeira infância). E a sociedade é o espelho de cada um de seus membros. Por isso, diante deste caso, até mesmo o sistema de justiça se vê dividido entre servir à lei ou à moralidade. Resultado, “agressores” saem livres, a vítima, em maior perigo… leis sendo repensadas sob pontos de vista equivocados.

É nítida a falta de mecanismos do nosso sistema, para casos tão graves e sensíveis como este. Assim sendo, é momento de repensarmos a sociedade que somos. Se quisermos realmente alguma mudança, é necessária uma análise de raiz e minuciosa dos nossos comportamentos, como pais ou encarregados, responsáveis pela educação de menores, bem como análise de nós próprios, como seres humanos e membros de uma toda sociedade.

 

Sussurros do tempo – Lendas e mitos é a mais recente exposição de pintura e desenho de Bruno Chichava, que teve a curadoria de Yolanda Couto, e que esteve patente na galeria da Fundação Fernando Leite Couto.

“Beldade ameaçada” é uma obra que faz parte da exposição de Bruno Chichava, concebida com recurso à técnica mista sobre tela com as dimensões 62,5×62,5 cm em 2024.

O título de beldade ameaçada atribuído ao quadro, traz-nos uma reflexão de algum perigo eminente de carácter social ou cultural em relação à mulher, a expressão “beldade” foi um adjectivo gentilmente colocado ao em vez de “mulher”. Chichava, através deste título, lança um alerta de perigo em nome da mulher.

O quadro em alusão apresenta um rosto enigmático de uma mulher negra com um cabelo de rastas e vestuário tipicamente africano.

As linhas do desenho são finas e curvadas, a figura possui uma forma humana.

O rosto da mulher é um enigma, que hipnotiza a atenção do espectador, na perspectiva de lhe desvendar os olhos e os traços.

As cores foram empregadas como peças de um puzzle, na parte superior o azul serviu como um fundo em contraste com o preto e o castanho, simbolizando um lugar, um lugar qualquer onde está uma beldade, uma praça, uma escola, uma rua. O rosto da beldade bem ao centro da parte superior, pincelada de castanho, e alguns contrastes com o branco sobretudo nos lábios, a face da beldade é a parte mais metafórica do quadro e com maior intensidade de luz.

Na parte mediana e inferior do quadro, Chichava sintetizou o seu talento com um padrão de traços e combinações de cores particularmente estéticas, e vibrantes que coloriram o vestuário da beldade, um cachecol azul escuro e um manto castanho amarelado, com tracejados precisos quanto de uma fábrica de vestuário.

“Beldade ameaçada” é um quadro místico, uma espécie de Mona Lisa, na perspectiva em que se retiram daquele rosto, vários outros rostos. O primeiro rosto é a mulher duvidosa, que tem um olhar incerto sobre o seu próprio futuro, ela sabe que pode chegar onde deseja, mas sabe também que terá de se dedicar como ninguém por algum tempo, enfrentando lutas, estudando, trabalhando duro, ela não sabe se o seu percurso a fará chegar onde almeja porque a luta diária é pesada.

O segundo rosto, é a mulher que está ciente da crueldade social em relação ao seu género, ela tem os dois olhos apavorados, é a mulher que tem medo de ir à escola porque anoiteceu, tem medo de caminhar sozinha na rua porque se sente desprotegida, tem medo de abandonar o lar porque a sociedade vai lhe apontar o dedo, tem medo de vestir certas peças de roupa por causa dos malfeitores, esta mulher tem medo e revolta da indiferença social a vulnerabilidade do género.

O terceiro rosto apresenta ainda uma outra mulher… a que soluça no quadro, é claramente vítima de abuso sexual e agressão física, a sua vista direita é visível, mas a esquerda foi golpeada em pancadaria e tornou-se em hematoma, a sua testa ostenta as manchas de sangue da agressão, que escorre pela sua bochecha esquerda, e os socos que tomou fizeram sangrar a parte inferior direita dos seus lábios. Esta mulher chora de angústia, pelo abuso sexual e físico a que foi sumetida e pela impunidade dos prevaricadores. Cada rosto representa o sentimento quotidiano da mulher moçambicana, amedrontada pela sociedade e golpeada pela justiça.

“Beldade ameaçada” é uma obra que exprime um alerta social de que a nossa sociedade tornou-se mais hóstil, reproduzindo a violência (sub)urbana em 3 dimensões principais: Assaltos, sequestros e abuso sexual. Assaltos são frequentes em quase todos espaços urbanos, e as mulheres são vistas como vítimas fáceis, existem escolas onde adolescentes são assaltadas, essa realidade obriga-nos a repensar a segurança escolar.

Várias mulheres actualmente desaparecem sequestradas e aparecem molestadas, estranguladas e sem vida, nunca se tem culpados e nem sequer suspeitos, os pais das vítimas não tem onde reclamar, esta é uma realidade brutal que apela para grandes fragilidades na segurança pública de modo geral. Actualmente vemos novos escândalos de abusos sexuais protagonizados por rapazes contra raparigas cada vez mais menores nas escolas, a justiça parece tímida, enquanto as estatísticas assustam a sociedade e os prevaricadores não parecem desencorajados.

Beldade ameaçada até quando? Até quando as nossas filhas, irmãs, amigas serão beldades

ameaçadas? Sequestradas? Violadas? Chichava leva-nos a repensar com esta obra sobre a educação da rapariga, a segurança escolar, a segurança pública sobretudo da rapariga, leva-nos também a pensar sobre a qualidade de resposta da máquina judicial.

Ainda existe um rosto futuro oculto em beldade ameaçada, o rosto do dia em que ela se sentirá livre e segura.

Bruno Chichava é nascido em Maputo no Bairro da Mafalala, é formado em Artes Gráficas pela Escola Nacional de Artes Visuais, ENAV.

É um artista multidisciplinar que vagueia pelas artes plásticas, ilustração, design, Graffiti-art

(arte urbana) e activismo social, dedica-se a inclusão de crianças em situação de vulnerabilidade através do seu trabalho.

 

De acordo com o DSM-5, Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais, os Transtornos Neuro-Cognitivos (TNCs) são aqueles em que a cognição rejudicada não estava presente ao nascimento ou muito no início da vida do indivíduo, representando, assim, um declínio a partir de um nível de funcionamento alcançado anteriormente.

Nesse caso, a característica principal dos TNCs é um declínio cognitivo adquirido em um ou mais domínios ou desempenho abaixo do nível esperado para o indivíduo. Esta categoria de transtornos metais abrange o grupo de modificações em que o déficit clínico primário está na função cognitiva, sendo transtornos adquiridos em vez de transtornos do desenvolvimento.

Desse grupo encontramos designadamente: delirium, TNC devido à doença de Alzheimer, TNC frontotemporal, TNC com corpos de Lewy, TNC vascular, TNC devido à lesão cerebral traumática, TNC induzido por medicamento, TNC devido à infecção por HIV, TNC devido à doença do Príon, TNC devido à doença de Parkinson, TNC devido à doença de Huntington, TNC devido à outra condição médica, TNC devido à múltiplas etiologias e TNC não Especificado.

Conforme refere ainda o DSM-5, os TNCs tem como critérios diagnósticos, nomeadamente: perturbação da atenção e da consciência; essa perturbação se desenvolve em um período breve de tempo, normalmente de horas a poucos dias, e tende a oscilar quanto à gravidade ao longo do dia; e uma perturbação adicional na cognição, podendo se manifestar através de déficit na capacidade de processamento e armazenamento de informações, na linguagem, na percepção, etc.; a perturbação pode consistir numa consequência fisiológica directa de outra condição médica, intoxicação ou abstinência de uma substância.

Indivíduos com TNCs podem se apresentar com uma variedade de sintomas comportamentais que constituem o foco do tratamento. Sono perturbado é um sintoma comum capaz de criar necessidade de atenção clínica, podendo incluir sintomas de insônia, hipersonia e perturbações no ritmo circadiano.

Alguns indivíduos com infecção pelo HIV desenvolvem um TNC que costuma evidenciar um “padrão subcortical” com função executiva destacadamente prejudicada, desaceleração da velocidade de processamento, tarefas de atenção mais exigentes e dificuldade de aprender novas informações, mas com menos problemas para recordar informações aprendidas.

(para Maureen, Laércia, Esperança e Jenny)

 

Dizem que os oceanos guardam segredos profundos. Mas, para quem se chama Maureen, Laércia, Esperança e Jenny, o mar, um dia, resolveu falar. Falou em forma de golfinhos que sorriem, de cardumes que aplaudem, de corais que se vestem de festa quando estas jovens mergulham de cilindro ao ombro, coragem no peito e um brilho no olhar.

Tudo começou em 2020, quando investigadores da Suécia, do Rio de Janeiro, da UP-Maputo, da WIORI e da Natura, ousaram sonhar juntos. Sonhar uma expedição ao longo dos mais de 2700 km da costa moçambicana, uma travessia por águas encantadas, ecossistemas raros, espécies únicas e silêncios cheios de energia por revelar. Uma costa e várias marés de histórias, matrizes culturais, sangues de outras latitudes geográficas e sonoridades dos tempos amenos e assombrosos.

Do sonho à acção, foi preciso mais do que ciência: foi preciso fé. A execução ficou nas mãos dos próprios mergulhadores, com o apoio generoso de quem acreditou. A viagem teve início no Cabo de São Sebastião, em Vilankulo, e seguiu rumo às Ilhas Primeiras e Segundas, nomes de um legado que nem as revoluções conseguiram apagar. Pedaços de paraíso ainda intactos, santuários entre a Zambézia e Nampula, onde as águas e as ilhas ainda se abraçam com ternura. Um abraço afectuoso, feito de cumplicidades.

Mais do que explorar, queriam escutar. Mais do que relatar, queriam compreender. E, assim, nasceu a missão de documentar a biodiversidade marinha, propor caminhos de protecção, traduzir o sussurro dos recifes em linguagem humana.

No Arquipélago das Primeiras e Segundas, os recifes ainda respiram. Os locais dizem que as ondas trazem almas antigas de volta à terra. Quando o mar se enfurece, são os antepassados a reclamar. Quando sossega, reina a paz profunda, bonançosa, a mesma que une gente, peixe, areia e canto de pássaros.

Esse mundo não é apenas belo. É sagrado. Inviolável. Consagrado e venerável. E é ele que pergunta, silenciosamente: “Quando vamos conversar, a sério, sobre os limites do nosso poder sobre a natureza?”

Talvez por isso, o mundo assinale, a 1 de Agosto, o Dia das Áreas Marinhas Protegidas, não como mera efeméride, mas como um apelo à consciência. Uma chamada à acção em defesa dos oceanos, da vida que neles habita e das comunidades que com eles coexistem. Celebrar esse dia é reconhecer que proteger essas áreas é cuidar do planeta, do futuro e de nós mesmos. Lugares como os que Maureen, Laércia, Esperança e Jenny visitaram, santuários vivos, onde ciência e reverência se abraçam.

Enquanto barcos partiam, artigos se escreviam e relatórios iam sendo trocados, surgiu uma ideia: preparar novas mergulhadoras, formar gente capaz de escutar o fundo dos mares, esse leito oceânico tão antigo quanto vivo. Vieram os cursos, os treinos, os dilemas de quem ficou de fora e merecia estar dentro. As famílias juntaram-se. Investiram o mínimo ou tudo. Choraram convulsivamente, lamentaram-se copiosamente. Desesperaram. Mas nunca perderam a fé.

Meses depois, o Centro de Mergulho de Maputo confirmou-as como aptas e certificadas. Dezenas de testes colocaram-nas ao nível de qualquer outra mergulhadora de muitos pergaminhos. Estavam amadurecidas para iniciar descobertas e desbravar novos horizontes. Outros mares e maravilhas. O mar, esse indomável, aguardava então pelas mergulhadoras e por centenas de conversas com os golfinhos. Regozijávamo-nos por uma nova página, um novo manual que o tempo haveria de elaborar. A reconfiguração de cursos outrora restritos, que agora se massificavam e chegavam à periferia.

Maureen, Laércia, Esperança e Jenny aceitaram o desafio de traduzir o silêncio. De conversar com o mar por outros meios, através do corpo, do fôlego, do espanto. Foram ali onde o azul se faz escuro, onde as bolhas são palavras e os peixes dançam notícias antigas.

Essas mulheres não foram, apenas, contar peixes e corais; foram procurar histórias. Histórias afogadas, caladas, esquecidas. Foram devolver alma à quem ficou sem alma e nem esperança. E o mar, sensível e antigo, respondeu.

Contam que, enquanto Maureen observava peixes recifais, um grupo de golfinhos se aproximou. Vieram com a doçura de quem reconhece uma amiga distante. E ali, a metros da superfície, trocaram confidências, confabulâncias, talvez,  até um pacto de paz entre terra e água. Assinaram um pouco mais que acordos das COPs, sem gravatas e nem refeições de luxo. Como faz falta essa paz ao povo moçambicano.

É bonito imaginar a cena. Um filme que nenhum guião poderia prever.  Maureen sob as águas, a guardar segredos nos olhos, e os golfinhos a cochichar histórias como quem diz: “Obrigado por terem vindo e com ouvidos para escutar. Obrigado por olharem para nós com olhos de ciência e coração de criança.”

Laércia, Esperança e Jenny não ficaram atrás. Cada uma, com seu jeito, foi escrevendo as primeiras linhas de uma história que já tardava em ser contada. Elas mostraram que não se faz ciência só com livros e laboratórios, mas, também, com sal na pele, frio nos ossos e um sorriso escondido atrás do regulador.

É por isso que escrevo estas linhas com orgulho e um riso leve no canto da pena. Porque estas mulheres arrancaram aplausos até dos golfinhos, e eles, acreditem,  não aplaudem por qualquer coisa, nem por qualquer pessoa. Elas mostraram que a costa moçambicana não é apenas um postal, mas um laboratório vivo, um altar de beleza e conhecimento, onde ciência e encantamento se dão as mãos.

Obrigado, Maureen, Laércia, Esperança e Jenny. Obrigado por provarem que o futuro da ciência moçambicana pode ser feito de cilindros de coragem, de curiosidade e ternura.

O oceano já sabe quem vocês são; e nós também. A grandeza do espírito não reside nos títulos, posses ou aplausos. Ela se revela nos pequenos gestos, nos detalhes do cotidiano, na forma como tratamos quem nada pode nos oferecer. Reside na capacidade de inovar e fazer o impossível pela natureza.

Continuem a conversar com os golfinhos por nós e libertem as nossas almas e ondas.

Sangue da vovó: entre a palavra e a imagem

  “Sangue da Vovó”, uma produção da EKSPI e da MOZENTRETEM, é título de uma longa metragem moçambicana, dirigida por Gabriel Mondlane. O roteiro e a realização são co-criação desse director, com o escritor Mia Couto. Trata-se de uma adaptação literária do conto intitulado “Sangue da avó manchando a alcatifa”, do livro Cronicando, da autoria do mencionado escritor, para filme. O contexto representado é Moçambique.

O conto, escrito na língua portuguesa e num estilo literário, à la Mia Couto, começa por abordar, de modo desconstruído, provérbios, através do processo de composição de contrários e ironia, que lhe é típico. Resumidamente, aborda a fragmentação de relações sociais, sobretudo da família, como consequência, sugestivamente, do colonialismo, da guerra civil e do consumismo desenfreado, nas cidades.

Identidade e memória, a serem construídos a partir da família e disseminados pela e numa sociedade, são as temáticas afloradas, tanto na história escrita, quanto na adaptada. No filme, a “Vovó”, uma personagem, desloca-se do campo, sua suposta “terra natal”, para a cidade, onde passa a viver, com a sua família, na sequência “da guerra civil”. Faz um percurso, para a nova morada, enfrentando, através de um familiar que a transporta, desafios culturais derivados de conflitos desencadeados pelos seus diferentes modos de estar. Esses conflitos agudizam-se na sua nova vida da cidade, deixando-a revoltada. Como solução do problema, a “Vovó” regressa à sua terra de origem, após um episódio que deixa a alcatifa (branca) da sala de visitas da casa manchada de sangue.

No filme, os actores falam em português e em changana. Há representação de famílias moçambicanas durante a guerra civil dos dezasseis anos. Há rituais tradicionais que ficam por cumprir, no seio dos agregados familiares urbanos. Em consequência desse défice, um dos membros vive infeliz, apesar de ter acumulado riqueza. Diante de formas peculiares de se estar na cidade, determinadas personagens são obrigadas a adoptar novos padrões de vida. Este facto leva-as a ignorar, por completo, que na convivência com outros, culturalmente diferentes, deve prevalecer a atenção e o cuidado mútuos, em benefício de um intercâmbio que pode ser enriquecedor.

 

 Da adaptação do texto literário ao filme

 Trata-se de um filme adequado para a idade, a partir dos 12 anos.

Estão na base do processo de construção desse texto multimídia substractos da História de Moçambique: guerra colonial e “guerra civil”; fundamentos da cultura e da identidade moçambicanas: rituais de passagem, assim como a cultura da reunião familiar para a transmissão de conhecimento. Estas questões estão expostas nas duas linguagens, a do texto original e a do texto final, o filme.

Na adaptação, a obra original foi respeitada, capturam-se os seus elementos essenciais, reinterpretando-os, sempre. A escolha da temática foi feliz, por remeter a debate o contexto de fragmentação do tecido social moçambicano, a perda de valores identitários, bem como o consumismo exacerbado, que reduz qualquer possibilidade de alcance de desenvolvimento económico que seja sustentável. É, também, um filme que faz apelo à preservação da memória. Toda essa temática, aliada à escolha de personagens-intérpretes da obra, mais os cenários (som, luz, cor, entre outros), incluindo o figurino escolhido, dão movimento e prendem o espectador ao texto.

Há cortes ao original. Entretanto, os guionistas, na sua veia criativa, souberam gerar mecanismos de encontro entre o texto escrito e os códigos que suportam a imagem, o som e o movimento, o que é adequado, uma vez que um filme não deve ser uma simples transcrição do texto original.

Em “Sangue da vovó” há muitos momentos de sugestão, que permitirão que quem não tenha lido o texto original preencha os lugares vazios e quem o tenha lido, desfrute de um novo processo de construção, porque, ver um filme não nos deve fazer dispensar o texto. A título de exemplo, o texto original é iniciado por um conjunto de provérbios, tal como tinha referido. Estes acabam propiciando uma reflexão profunda sobre o que se diz no texto escrito. Além disso, permitem melhor compreensão do texto, ao mesmo tempo que dão lugar à associação dos universos oral e escrito – que se complementam através da palavra e do exercício de representação.

Não tendo colocado os provérbios que constam do texto escrito, o filme socorre-se de outros códigos para cativar a atenção, reinterpretando os provérbios. É envolvente, repito. O som, a imagem e o movimento desencadeiam o sentido apelativo. Gostava, ainda a propósito do corte na passagem do texto literário para o filme, de destacar, por exemplo, a recontextualização da importância de realização de um ritual de passagem, reservado a um casal que passaria a viver na mesma casa (escuso-me, propositadamente, de o referir, ao pormenor). O ritual, não referido no texto, mas sinalizado no filme, ajusta-se à cultura representada no texto cinematográfico. A caracterização dos lugares onde as acções são passadas faz jus ao conhecimento que se tem do espaço representado e, até, apelam, ao espectador a realizar uma (re)visita ao local.

Fundamentalmente, texto escrito e filme recorrem a linguagens diferentes, cada um a seu modo, com as suas ferramentas. Não devem ser cópias um do outro, tal como o refere Linda Hutcheon (2011) no seu livro Uma Teoria da Adaptação. Basicamente, a adaptação de um texto literário para filme pressupõe:  a transformação de elementos literários para cinematográficos, criatividade, escolha de um narrador que cative (a narração é opcional), a recontextualização de determinado evento, entre outros, e nisso, o roteiro do filme e a sua realização seguem pressupostos fundamentais desse processo.

 

Fragmentação e violência psicológica: ser ou não ser?

Na essência, os dois textos o literário escrito e o fílmico convidam para a reflexão sobre a memória e sobre a identidade, de modo criativo.

No caso de “Sangue da vovó”, o filme sugere-nos a (re)interpretação dos conceitos: aculturação, violência epistémica, violência simbólica e hibridismo, que têm efeitos psicológicos nas pessoas.

Narrando o pós-guerra colonial, num contexto de representação da “guerra civil” em Moçambique, o filme pode ser inserido no âmbito dos estudos da pós-colonialidade, lembrando o debate sugerido no livro Os Condenados da Terra, de Franz Fanon (1961), que convida a uma reflexão sobre os efeitos mentais resultantes da Guerra Colonial, isto porque, os grandes eventos retratados, remontam à guerra colonial em Moçambique. Há, no geral, reminiscências disso e não uma alusão concreta.

A aculturação consistiu na assimilação da cultura ocidental. Esta pode ser aferida através do conhecimento Histórico, que os espectadores devem ter. Do que se sabe acerca desse processo, houve uma imposição, dos colonos, para que os povos dominados acreditassem serem inferiores àqueles e aceitarem tal dominação cultural, sem questionar.

Essa aceitação propiciou que o grupo subordinado se comportasse e continuasse como um imitador, o mimicry, acepção de Homi Bhabha em The Location of Culture (1994). O mimicry é o imitador que dificilmente será igual a quem imita, o que o faz viver uma cultura ambivalente que o situa entre a sua e a cultura do outro; é um ser desajustado.

O colonialismo deixou marcas de violência epistémica em quem pôde aculturar. Esse conceito foi desenvolvido por diferentes autores, incluindo Gayatri Spivak, em “Pode o subalterno falar”? (2010). Em “Sangue da vovó”, há representação de pessoas cuja cultura e conhecimento foram silenciados para integrar a cultura europeia. Trata-se de silenciamento do conhecimento. E esta violência é depois reproduzida na imposição que esse grupo de pessoas (da cidade, por exemplo), realiza, relativamente à vovó (que vem do campo), cujo conhecimento e identidade são marginalizados. Esta é domesticada na cultura citadina, em detrimento da sua, assumida como inferior; um epistemicídio, como diria Boaventura S. Santos.

Há, em ambos contextos de silenciamento e de marginalização, um ciclo de injustiça cultural que se reproduz. E que, tendo sido ou não, em contexto real, questionado na época colonial e nas que se seguiram, ainda subsiste; daí a importância de filmes como “Sangue da vovó”, para trazer à memória o que se deve transformar ou descolonizar.

Sucede que, para além dessa violência ligada ao conhecimento referido no filme, e característico da família citadina da vovó, alude-se a um outro tipo de violência, a simbólica (termo de Pierre Bordieu). Esta é manifesta, por exemplo, quando o familiar da vovó que a transporta para a cidade, julga que esta não pode comer a sua merenda, colocada numa panela metálica, já queimada e muito desgastada, dentro do mercedes. Ou, quando este julga, utilizando uma linguagem que descrimina, que a vovó deverá abdicar da bengala especial, que utilizava na sua aldeia e utilizar uma outra mais adequada ao contexto da cidade. Chamo-lhe especial, não apenas para evitar colocar pormenores que façam spoiler do filme, mas, porque se tratava, também de uma bengala ligada à identidade e ao sustento da vovó. O mesmo tipo de violência sucede, ainda, quando à vovó se impõe que calce sapatos altos.

Quanto ao calçar os seus pés, por exemplo, hoje, a partir de diferentes contactos com as culturas orientais e com o espiritismo, ficamos a saber o quão importante é andar-se descalço, dentro de casa. Deixando as impurezas fora desta. E, voltando ao caso da vovó, na rua, poderia calçar os seus chinelos, coisa a que estava habituada no seu contexto cultural.  Por vezes, importamo-nos com pormenores que “não movem moinhos”, dada a falta de questionamento de que somos e o que se nos foi imposto.

O filme sugere que temos que aprender a conviver com a diferença e sempre com a possibilidade de transformarmos positivamente as vivências e o conhecimento que daí advém. Há, sobretudo, necessidade de se preservar a espécie humana, na base de valores culturais, em cada contexto.

Os meus parabéns ao elenco todo: director, guionistas, autor do texto que origina o filme e produção, acima mencionados; bem como os actores princiapais:  Janet Cossa (Vovó Carolina), Cristina Ngome (Madalena), Horácio Giamba (Johane), entre outros profissionais, a saber tradutores de língua, figurinistas, músicos, directores artísticos, fotógrafos, montadores de som e de luz, continuístas, maquiadores, o pessoal dos efeitos visuais, em fim, a todos!

 

Sara Jona Laisse. Comentários adaptados a partir da intervenção da autora na estreia do filme “Sangue da vovó”, em Maputo. Agosto de 2025. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

Por Vassta Mandlate

O cinema moçambicano tem vindo a destacar-se como pretexto privilegiado para ecoar temas complexos, que reflectem as realidades culturais, sociais e políticas do país. As curtas-metragens O Preto, de Ivo Mabjaia, e Ontogénesis, de JJ Nota, retratam diferentes formas de opressão e resistência, usando o silêncio como elemento central para construir tensão e crítica social.

O Preto apresenta uma atmosfera carregada de tensão, centrada na dinâmica entre três personagens principais, um homem negro, um homem branco e uma mulher chinesa, que se apresentam diante de um grupo de indivíduos deitados no chão, que simbolizam o silêncio e a opressão.

Ao nível da fotografia, a opção pelo preto e branco garante um universo dramático, não obstante a limitação da expressividade visual em algumas cenas.

A intensidade das interpretações e o simbolismo presente, como a única fala existente na curta, o grito em changana “A muyive”, que significa “ladrão”, reforçam a crítica social sobre as relações de poderes. A curta destaca a violência física e psicológica, bem como a passividade das personagens diante da injustiça, temas que têm ressonância na realidade moçambicana.

Quanto ao filme Ontogénesis, destaca-se uma tensão dramática contínua, que atravessa a narrativa da protagonista Khensa, uma jornalista ecologista que luta contra a poluição ambiental, enfrentando forças que a pretendem silenciar.

A construção da protagonista, no filme de JJ Nota, é marcada por um ambiente de constante vigilância e ameaça, intensificado não só pelos elementos visuais da cena e pelo som ambiente, mas também por um recurso narrativo expressivo: o uso recorrente de uma voz audível, que diz “Khensa, foge!”. Ainda que a autora de tal voz nunca se revela, fisicamente, a mesma voz reforça a tensão psicológica da narrativa, gerando uma atmosfera de urgência e alerta constante, que acompanha o percurso da protagonista.

Ontogénesis também é uma curta a preto e branco, escolha estética que acentua a rigidez e a tensão da narrativa. O filme inicia-se com a exibição da ficha técnica acompanhada por uma chamada telefónica, na qual uma voz feminina, possivelmente amiga próxima de Khensa, tenta estabelecer um diálogo tenso que se repete ao longo do filme. A voz, que o telespectador também ouve, funciona como um prenúncio trágico e uma personificação simbólica do medo, do destino e do instinto de sobrevivência.
Ora, no final do filme, o ecrã escurece e surge a dedicatória: “In memory of Carlos Cardoso (1951-2000), um dos mais respeitados jornalistas moçambicanos, conhecido pela sua integridade e coragem na denúncia da corrupção e injustiças sociais. Cardoso foi brutalmente assassinado, em 2000, em Maputo, num crime que abalou e representou os perigos enfrentados pelos jornalista de investigação.

Ao evocar Carlos Cardoso, Ontogénesis estabelece um elo entre a luta fictícia de Khensa e a história real, conferindo ao filme uma carga sociopolítica e expressiva, posicionando-o como um tributo ao jornalismo comprometido com a verdade, mesmo sob risco de silenciamento fatal.

O Preto, de Ivo Mabjaia, e Ontogénesis, de JJ Nota, expõem diferentes vertentes do real vivido, seja através da opressão racial, traição, da luta ambiental e do silenciamento da verdade, convidado o espectador a reflectir e a questionar.

O confronto entre duas visões do real, no cinema moçambicano, é um convite para que o público conheça, discuta e valorize a produção audiovisual. A arte, neste contexto, permanece como um instrumento vital de denúncia e transformação.

 

*Texto escrito na sequência das actividades realizadas na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

 

Contexto: Desde que emergiu de uma devastadora guerra civil, há mais de três décadas, Moçambique ficou conhecido como um país que faz “apenas o suficiente” para evitar o colapso. O país sobreviveu a repetidos episódios de violência, crescente polarização política e crises pós-eleitorais, com base em acordos de paz liderados por elites políticas, que priorizam a estabilidade de curto prazo em detrimento da reconciliação, mais duradoura.

O mais recente dos acordos é o Compromisso para um Diálogo Nacional Inclusivo 2025 (CDNI), assinado após a crise eleitoral de 2024, marcada por protestos generalizados e repressão violenta por parte do Estado. O CDNI reflecte uma ambição política mais ampla. Teoricamente, visa desencadear um diálogo nacional que enfrente as falhas estruturais da governação, incluindo a reforma constitucional, a independência do poder judicial, a reestruturação do sistema eleitoral, a descentralização fiscal e administrativa, bem como a criação de mecanismos de reconciliação. Este acordo marca o quarto grande pacto político desde 1992.

Este artigo nasce da necessidade de aprofundar o debate sobre a reconciliação nacional em Moçambique, um dos temas centrais do novo acordo político pós-eleições de 2024. Embora frequentemente tratada de forma abstrata ou protocolar, a reconciliação ganhou nova visibilidade e densidade política após o discurso do antigo presidente Joaquim Chissano na recente Conferência dos Partidos Libertadores da África Austral, onde reconheceu publicamente os erros cometidos pelas elites dirigentes em nome da unidade nacional. Essa autocrítica rompe décadas de silêncio e abre espaço para discutir os limites dos modelos anteriores de reconciliação baseados na amnistia, no silenciamento das vítimas e na exclusão de amplas camadas sociais. Ao propor uma leitura crítica, comparativa e propositiva, este artigo busca contribuir para o actual processo de diálogo político, oferecendo elementos concretos que permitam transformar a reconciliação de um ideal retórico num compromisso institucional e social efectivo.

 

Reconciliação: o que é?

Longe de se restringir ao perdão ou à convivência pacífica, reconciliação nacional é um processo complexo de reconstrução de laços sociais, institucionais e históricos profundamente afectados por violência, exclusão ou opressão. O seu ponto de partida remonta a tradições religiosas, sobretudo as fés abraâmicas, onde a reconciliação simbolizava o restabelecimento de harmonia e o perdão divino. Essa herança moral influenciou abordagens modernas, orientadas para a justiça histórica e a reparação colectiva.

Ao longo dos séculos, o conceito ganhou forma política, especialmente com o surgimento das comissões da verdade — como a da África do Sul — que colocaram o testemunho das vítimas no centro da reconstrução nacional. A reconciliação passou então a ser entendida como justiça restaurativa: ouvir, reconhecer, perdoar — e reconstruir. No entanto, esse modelo foi alvo de críticas, sobretudo quando desacompanhado de reformas estruturais, justiça económica ou participação efectiva das populações afectadas. A reconciliação entre elites pouco transforma realidades marcadas por desigualdade e ressentimento.

Nesse contexto, a reconciliação deve ser assumida como o ponto de confluência entre verdade, justiça, misericórdia e paz. Não é um evento, mas um espaço político e emocional no qual comunidades divididas confrontam o passado para construir um futuro comum. Esse modelo enfatiza que, sem coragem moral e compromisso com a verdade, não há cura, muito menos transformação.

Hoje, a reconciliação nacional exige mais do que narrativas de unidade, e este é um imperativo em contextos como o de Moçambique. Depois de sucessivos acordos, que não produziram uma paz duradoura, a reconciliação depende da reconstrução da confiança entre cidadãos e instituições, do reconhecimento das injustiças históricas e da redistribuição real de poder e oportunidades. Sem isso, a reconciliação corre o risco de ser apenas um ritual político, desconectado das dores e das aspirações do povo.

O preço do silêncio: o passado

A guerra civil moçambicana (1977–1992), travada entre o então movimento rebelde da RENAMO e o governo da FRELIMO, deixou mais de um milhão de mortos e milhões de deslocados. O Acordo Geral de Paz (AGP) de 1992, assinado em Roma, foi celebrado globalmente como um modelo de paz negociada. No entanto, desde o início, apesar da sua abordagem pragmática, era minimalista: amnistia total para todos os actores, integração política e socioeconómica dos líderes da RENAMO e uma decisão conjunta de enterrar o passado. Ou seja, não houve comissões da verdade. Nenhum julgamento de crimes de guerra. Nenhum reconhecimento público das vítimas. A lógica era simples: esquecer para sobreviver. Em outras palavras, a prioridade era virar a página, e não compreendê-la.

Entretanto, o silêncio institucionalizado não impediu o retorno da violência. Em 2013, a RENAMO voltou a insurgir-se, denunciando promessas do AGP não cumpridas e exclusão política. O acordo que se seguiu, em 2014, restaurou o cessar-fogo, oferecendo novamente benefícios militares e eleitorais. Em 2019, após novos confrontos, um pacto semelhante prometeu descentralização e desmobilização de combatentes, sem alterar o padrão de negociações rápidas, tecnocráticas e centradas em elites.

O Compromisso de 2025 surge de um cenário distinto: não de guerra armada, mas de protestos urbanos, desencadeados por uma crise eleitoral e agravados por desconfiança institucional. Ao contrário dos anteriores, o novo acordo menciona desigualdade estrutural e promete inclusão mais ampla. Ainda assim, carrega o peso de sua genealogia — nascido dentro de uma tradição de pactos reactivos, limitados ao restabelecimento da ordem, e sem raízes claras num projecto de reconciliação nacional.

Para além das elites: o presente e o futuro

 Hoje, a reconciliação nacional exige mais do que narrativas de unidade e pactos de silêncio entre as elites políticas. No país, onde a paz, como acima foi dito, tem sido garantida por acordos entre lideranças partidárias, mas não sustentada por confiança popular, é evidente que os limites desse modelo já foram alcançados. A reconciliação, para ser real, precisa de deixar de ser uma linguagem de cúpula e tornar-se um processo vivido e participado pela base da sociedade.

O discurso recente do antigo presidente Joaquim Chissano aponta nessa direcção. Ao reconhecer que, “em nome da unidade nacional”, se abafaram vozes críticas e se bloquearam processos de renovação democrática, Chissano quebra a tradição de autojustificação das forças de libertação e interferência da mão externa. A sua fala revela que os próprios arquitectos do sistema pós-independência percebem os riscos de uma reconciliação que se tornou ritualizada: um pacto entre antigos adversários, mas não entre Estado e cidadão.

A questão que prevalece é: desta vez é de vez? Mais importante ainda, conseguirão os actores políticos e a sociedade aproveitar este momento para fazer uma discussão profunda sobre reconciliação que vá além do superficial e, finalmente, confrontar as feridas históricas e institucionais que continuam a fragmentar a nação?

Esta é uma importante reflexão, sobretudo neste momento em que o país se prepara para embarcar num processo de Diálogo Nacional.

Como alertou recentemente Joaquim Chissano, há que fazer mudanças. Voltando ao passado recente, destacou que “Em nome da unidade nacional, … mostrámos intolerância às vozes críticas e silenciámo-las. Em nome da estabilidade, fechámos o espaço para a renovação… falhámos em criar oportunidades para a participação activa da juventude e das mulheres.”

É preciso romper o ciclo de pactos de silêncio. Este exercício implica abordar e confrontar directamente os factores estruturais da violência e da exclusão: desigualdades regionais, concentração de recursos, instituições capturadas, juventude sem futuro económico e político.

Há alguns sinais promissores, que merecem ser capitalizados: uma vez que o CDNI inclui elementos que, se levados a sério, podem representar um novo caminho: mecanismos locais de resolução de conflitos, promessas de inclusão económica e política, e fortalecimento da descentralização. Mais importante ainda, traz à tona a ideia de que a reconciliação exige também o restabelecimento da confiança nas instituições do Estado, respeito pelas liberdades individuais e a garantia de que todas as vozes possam ser ouvidas — não apenas toleradas, mas influentes. O desafio, no entanto, não está apenas no conteúdo, mas no compromisso real com a sua implementação. Sem vontade política, mesmo os melhores dispositivos legais permanecem letra morta.

A reconciliação de que Moçambique precisa é aquela que descentraliza a voz. Isso implica incluir lideranças comunitárias, organizações da sociedade civil, igrejas, universidades e especialmente os jovens, não como figurantes em cerimónias oficiais, mas como co-autores de um novo pacto de cidadania. Sem essa abertura, o país continuará preso a ciclos de instabilidade mascarados por acordos formais.

Em última instância, a reconciliação deve deixar de ser um processo de e entre elites e passar a ser um processo nacional, entre o Estado e o seu povo, entre o passado e o presente, entre a memória e o futuro. Como demonstram experiências bem-sucedidas em contextos africanos diversos, da África do Sul à Serra Leoa, a reconciliação duradoura só floresce quando reconhece a dor de todos, redistribui o poder de decidir e fortalece a confiança colectiva nas instituições.

Que caminhos?

Se Moçambique quiser transformar os acordos de paz em reconciliação genuína, será preciso mais do que boas intenções e promessas formais. A experiência acumulada no país e em outros contextos africanos mostra que a reconciliação duradoura só é possível quando vai além da elite política, enfrenta as causas profundas do conflito e devolve dignidade às vozes silenciadas. Com base nisso, propõem-se as seguintes recomendações, baseadas nas lições de vários países:

  • A primeira lição vem da África do Sul, cuja transição democrática foi guiada por um processo constitucional gradual, estruturado e amplamente participativo. Ao contrário de reformas apressadas entre elites, os sul-africanos combinaram técnica jurídica e negociação política, culminando numa constituição legitimada por milhões de contribuições populares. Para Moçambique, isso sugere que a actual reforma constitucional, prevista no acordo de 2025, deve ser amplamente debatida e validada, entre outros, por referendo, garantindo, não só legalidade, mas também legitimidade social;
  • Da Libéria, emerge a importância de mecanismos formais de justiça e verdade. Após a sua guerra civil, o país criou uma Comissão de Verdade e Reconciliação com poderes vinculativos e articulada com órgãos independentes de reforma da governação. Essa abordagem sinaliza que a verdade não é um luxo, mas uma necessidade em sociedades marcadas por trauma. Em Moçambique, onde nunca houve comissões públicas sobre a guerra civil ou os episódios de violência pós-eleitoral, essa experiência convida à criação de estruturas capazes de reconhecer vítimas, emitir recomendações concretas e restaurar a confiança social. Devem-se evitar as recorrentes amnistias, sob pena de se repetirem os mesmos erros do passado;
  • A experiência de Serra Leoa evidencia a necessidade de reformar profundamente as forças de segurança e o sistema de justiça. Ao despartidarizar o exército e profissionalizar a polícia, com apoio internacional e envolvimento comunitário, o país reduziu drasticamente o risco de retorno à violência. Em Moçambique, onde o legado da politização das forças de segurança continua a alimentar desconfianças, esse exemplo mostra que neutralidade institucional e mediação local são pré-condições para a estabilidade;
  • Do Ruanda, extrai-se uma poderosa lição sobre justiça restaurativa com base comunitária. As Gacaca Courts — tribunais locais baseados na verdade, perdão e reintegração — permitiram que o país processasse milhares de casos sem paralisar o sistema judicial, envolvendo directamente as comunidades no processo de cura. Moçambique pode adaptar essa lógica, promovendo fóruns de verdade e reconciliação locais, que não substituem a justiça formal, mas actuam onde o Estado muitas vezes não chega;
  • Por fim, o Acordo de Belfast na Irlanda do Norte oferece um modelo institucional para sociedades historicamente polarizadas. Combinando partilha de poder, protecção legal a minorias e educação para a paz, o acordo construiu bases para a convivência democrática entre grupos antes irreconciliáveis. Em Moçambique, marcado por tensões entre as zonas Centro e Norte e o governo central, e por exclusão de grupos sociais como jovens e mulheres, esse exemplo aponta para a urgência de políticas que reconheçam a diversidade, ampliem a representação e eduquem para uma memória nacional inclusiva;
  • Por fim, importa destacar a importância do combate à corrupção: este é um elemento essencial para a reconciliação, uma vez que desvios de recursos públicos que permanecem impunes alimentam a desconfiança, a exclusão e as desigualdades que estão na raiz dos conflitos. Sem instituições independentes, justiça equitativa e transparência, qualquer promessa de paz será percebida como vazia. A reconciliação só é possível quando o Estado demonstra, com acções concretas, que serve ao bem comum. Esta é uma temática que merece mais debates.

A reconciliação duradoura depende de oportunidades económicas concretas para todos, especialmente em regiões historicamente excluídas. Investimentos direccionados ao desenvolvimento local, acesso a crédito, formação profissional e inclusão de jovens e mulheres no mercado de trabalho, etc., ajudam a reconstruir laços sociais e reduzir tensões. Na África do Sul, programas de empoderamento económico como o Black Economic Empowerment buscaram corrigir desigualdades herdadas do apartheid, enquanto Ruanda implementou políticas de desenvolvimento rural integrado para reinserir comunidades afectadas pelo conflito. Esses exemplos mostram que justiça económica é parte indispensável da paz.

Segundo Jean Piaget, a aprendizagem é um processo de construção e reconstrução de conhecimentos a partir da acção do sujeito sobre o objecto, ou seja, um método de edificação das estruturas cognitivas, resultante da interacção entre o indivíduo e o meio.

Nesse sentido, o Homem constrói as suas estruturas cognitivas (pensamento, linguagem, imaginação, memorização, etc.) a partir de níveis de pequena complexidade, típicos de um bebê, para níveis mais complexos como a capacidade de pensar abstratamente.

Em outras palavras, quando necessitamos conhecer algo, seja uma informação ou uma ideia, mobilizamos (em nossa mente) mecanismos que vão nos permitir restabelecer o equilíbrio, ou seja, agir para atender ou satisfazer aquela necessidade. Portanto, a aprendizagem é um  rocesso de equilibração progressiva, uma passagem de um estado de menor equilíbrio para um estado de maior equilíbrio.

Em consonância com Edgar Morin, existem dois possíveis factores que podem vir a desviar as mentes do real entendimento do pensamento complexo. O primeiro factor se refere ao engano de acreditar-se que a complexidade conduz à eliminação da simplicidade. Na visão deste autor, a complexidade surge na falha da simplicidade e integra tudo aquilo que põe ordem, clareza, distinção e precisão no conhecimento.

Nesse caso, o pensamento complexo agrega todos os possíveis modos simplificadores de pensar e não possibilita espaço às implicações redutoras, unidimensionais, mutiladoras, enquanto o pensamento simplificador desfaz a complexidade da realidade.

O segundo factor se refere à confusão entre complexidade e completude. Para Morin, o desejo maior da complexidade consiste em  dministrar as articulações entre os diferentes campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento separativo ou pela aprendizagem fragmentada.

Assim, para Morin, o pensamento complexo busca o conhecimento multidimensional. Porém, cabe-nos sublinhar, a obtenção de conhecimento por completo é impossível de se alcançar. Este, no entanto, se configura como um dos postulados da complexidade que para
Morin a impossibilidade de uma onisciência se constitui, de facto, em teoria. Em termos gerais, onisciência significa ter conhecimento de tudo, sem qualquer limite ou desconhecimento.

Nesse sentido, temos a destacar a ideia de que a aprendizagem torna-se significativa quando o indivíduo estabelece crítica e activamente uma relação entre diferentes ideias, conceitos ou proposições relevantes e inclusivos disponíveis na sua estrutura cognitiva, funcionando como âncoras.

Na visão de David Ausubel, essa aprendizagem é construída a partir da relação que o indivíduo estabelece entre as novas informações ou novos conhecimentos com um aspecto relevante existente na sua estrutura cognitiva inicial. Nessa interacção, ocorre um processo de modificação mútua tanto da estrutura cognitiva prévia como do material que é aprendido.

Para Ausubel, o factor mais importante da aprendizagem é o conhecimento prévio do sujeito, na medida em que é a partir do que já se sabe que a aprendizagem significativa ocorre, pois os conhecimentos prévios servem de suporte para o novo conhecimento.

Em concordância com Ausubel, defendemos que o conteúdo aprendido significativamente possibilita o surgimento de novos conceitos integradores no indivíduo, tornando-se intrinsecamente menos vulnerável do que as associações arbitrárias e, portanto, ficando mais fácil de ser memorizado.

Todavia, para que a aprendizagem significativa ocorra o material a ser aprendido deve se relacionar com algum aspecto relevante da estrutura cognitiva do sujeito, de maneira não arbitrária, e deve apresentar a propriedade de ser relacionável (incorporável) à estrutura cognitiva do sujeito, particularmente com as ideias relevantes existentes (subsunções).

Finalmente, cabe-nos sublinhar que para que essa aprendizagem efectivamente ocorra no nosso Sistema de Ensino existe um conjunto de desafios tanto para o professor quanto para o aluno, que precisam ser devidamente encarados.

O aluno precisa interagir crítica e activamente com os professores e com os seus pares para que possam testar e aprimorar as suas estruturas cognitivas, à medida que vai sendo desafiado e tendo a possibilidade de ver diferentes formas de solucionar problemas.

O professor deve intervir no processo propondo situações didácticas desafiadoras que permitam ao aluno avançar na construção do  conhecimento. Não se trata necessariamente de deixar os alunos agirem espontânea e isoladamente, mas de dirigi-los na realização das actividades, deixando-os livres ao mesmo tempo.

 

basiliomacaringue@gmail.com

Por: Fernanda da Lena Hermano

Há casas que tremem sem que haja terramoto; famílias que apodrecem devagar, consumidas por mistérios que ninguém decifra; e mulheres que rezam, mas cujas orações se perdem nas vozes dos mortos. Nhandayeyo (do ronga, socorro), espectáculo do grupo Kutxuvuka, é um grito cénico que confronta o espectador com um dilema: tradição ou liberdade?

Apresentada a 15 de Julho, sob direcção de Expedito Araújo, a peça ocupou o auditório do Instituto Guimarães Rosa, Cidade de Maputo, e transformou o cenário em terreiro, altar e tribunal. O espaço foi explorado com precisão, numa encenação que transfigurou o ambiente e envolveu o público numa presença que ultrapassou o concreto do palco.

A trama expõe os conflitos espirituais impostos como herança familiar. Marta (Mércia Lurdes), a protagonista, é uma mulher empurrada para um destino que não escolheu: ser curandeira. Logo, a sua fé cristã, em oposição ao legado espiritual, é tratada como heresia.

Na peça, o antagonismo entre a fé e o legado evidencia a fragmentação interior da mulher moçambicana, entre o que sente e o que lhe ordenam ser. Na lógica da tradição, o desejo individual é insignificante. No entanto, como lembra Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra, “Cada geração deve, em relativa opacidade, descobrir a sua missão”.

A actriz Mércia Lurdes encarna Marta com domínio técnico e controlo físico notável. Os espasmos, os tremores e o torpor de quem é tomada por forças interiores são executados com precisão. Sem recorrer ao exagero dispensável, a dor da personagem é representada com firmeza, como quem resiste a um sistema que lhe nega até o direito de dizer “não”. Assim, o corpo de marta torna-se palco político – uma assembleia improvisada na qual as decisões não se tomam por consenso, mas por sobrevivência.

O marido de Marta, Eusébio (Samudja Muandule), é uma figura de uma masculinidade desgastada, que exige da mulher aquilo que ele próprio não tem para oferecer. O actor que o interpreta constrói essa fragilidade com sobriedade, ou seja, a sua postura impõe, entretanto não acolhe. Eusébio espera que Marta cure os escombros do seu ego.

Nhandayeyo expõe ainda outras fracturas no seio da família. O filho mais velho casal, Jorge (Olívio Muendane), atravessa “céus e mares” à procura de um futuro que nunca se concretiza. A cada currículo rejeitado, o desemprego torna-se o seu melhor aliado.

Por outro lado, Zezito (Virgílio Licoze) é um corpo jovem sem bússola, com o sangue a ferver pelas promessas fáceis que a cidade lança. Crescendo em torno dele uma rede de vozes de jovens, vai-se afogando nos bares, inclusive “O Bar da Kely”, trocando oportunidades por noites embriagadas, confundindo liberdade com diversão. Esse trajecto não se reduz a uma fraqueza pessoal, entretanto, evidencia as fissuras que ainda permeiam a edificação das novas gerações.

A peça instiga uma reflexão sobre a necessidade de cultivar nos jovens não apenas recursos materiais, como também uma consciência de sua identidade e responsabilidade. Sem esse alicerce, as possibilidades tornam-se miragens e a liberdade uma rota sem retorno.

No núcleo familiar, tio Fernando (Salvador Mbiza), que se apresenta como homem bem-sucedido, guarda segredos. A sua filha convulsiona como se a maldição da linhagem habitasse o seu corpo. E, como sempre, os dedos apontam para Marta.

Nhandayeyo apresenta o ardil perverso que recai sobre a mulher como receptáculo das mazelas sociais, enquanto o patriarcado se mantém resguardado, inviolável nos seus pactos velados.

No plano da fé, Marta é amparada por uma pastora interpretada por Maria Matusse, presença, que lhe oferece consolo e orientação. Mas, à noite, o corpo atrai o espírito: tremores inexplicáveis, sonhos como se batinas e búzios lutassem pela mesma alma. Em orações, o céu permanece mudo. A encenação sugere, ou talvez permita entrever, um terreno onde o sagrado se dilui em ambiguidade, e o silêncio divino deixa de ser espera para se tornar protesto.

Nietzsche disse que Deus está morto. Mas, em Nhandayeyo, talvez o mais trágico seja quando Ele parece vivo e ausente – como um pai que assiste, sem reacção, ao incêndio da casa. E ainda assim exige amor.

A encenação equilibra momentos de dor com leves toques de humor, que humanizam os personagens sem sarar as feridas.

Apesar da solidez dramatúrgica e do cuidado estético evidente, entretanto, por vezes a proposta teatral é hesitante na exploração do não-dito, ou seja, vazios entre cenas onde um gesto mínimo, um olhar suspenso, poderiam traduzir o que as palavras não alcançam.

Nhandayeyo, portanto, revela, na sua essência, as tensões que ainda marcam a sociedade moçambicana, projectando luz sobre os limites ténues entre a liberdade e tradição, convidando a questionar: quantas orações ainda são interrompidas pelos gritos dos que já morreram, mas continuam a mandar nos vivos? De que forma a liberdade individual é realmente reconhecida num contexto em que o corpo e o espírito da mulher são vistos como património colectivo?

 

Na peça teatral “As substitutas”, apresentada nos dias 25 e 26 de Julho, na Casa Velha, Cidade de Maputo, o que se apresenta como comédia sombria, na verdade, se revela um ritual colectivo de desconstrução do luto, como prática social, estética e económica. 

A encenação de Isabel Jorge não gira apenas em torno das quatro personagens femininas que choram por dinheiro, mas em torno de toda a sociedade que actua diante da morte. 

Em “As substitutas”, todos performam: o padre ou pastor que ora por um morto que nunca foi crente, as mulheres que contratam pranteadoras para não estragar a maquiagem, os familiares que disputam comida com os filhos de um falecido, e as próprias substitutas, que escondem traumas sob a máscara do profissionalismo. 

A peça confronta o público com uma questão incómoda: se todos representam, diante da morte, quem realmente chora? A questão é formulada num palco composto por quatro mulheres que carregam histórias de sangue, suicídio e abandono. As suas dores não são monólogos de autopiedade, mas confissões ritmadas por ironia, lucidez e fome. Elas, as personagens, sabem que a morte é um negócio, mas também sabem que chorar nunca é só um gesto, é sempre um grito, um corpo em colapso. 

A frase “a morte é um bom negócio” se repete como um refrão profano, quase como um cântico zombeteiro que ecoa a contradição central: o luto tornou-se indústria, mas continua sendo uma ferida.

O que a peça revela, com sensibilidade estética e honestidade emocional, é que os funerais são o último teatro onde todos conhecem os papéis, mas ninguém quer dizer a verdade. E é justamente por isso que as substitutas existem: não para encenar a dor dos outros (daqueles que, não podendo fingir o choro, contratam as substitutas para desempenhar tal papel, daí o título da peça), mas para escancarar a representação alheia. As substitutas não são falsas, pelo contrário, são as únicas personagens honestas dentro de um jogo consentido e generalizado. Quer dizer, as substitutas sabem que choram por um contrato, e o resto do mundo finge que não está a actuar.

O espectáculo da Companhia de Teatro M’beu distingue-se com um elenco visceral, sobretudo com a entrega de Xixel Langa e Sufaida Moyane (que mergulham num realismo performativo, onde a luz ténue, os silêncios calculados e os textos simbólicos constroem uma atmosfera ritualística), numa performance que também conta com Yolanda Fumo, Sufaida Moyane, Xixel Langa e Carmelinda Coana.

Com efeito, o público da Casa Velha não assistiu a uma peça, participou de um velório simbólico: da verdade, da ética, da dignidade.

A crítica religiosa é subtil, mas cortante. Quando o padre/pastor deseja a entrada de uma alma no céu, sem nada saber sobre o finado, expõe-se a farsa mais silenciosa de todas: a de tornar a figura de Deus uma fórmula litúrgica, feita de interesses e possibilidades materiais.

Tal como sucede com o sujeito da música “A ni famba”, de Xidiminguana, as personagens de “As substitutas” caminham com os corações feridos, ignoradas por quem as rodeia, mas afirmando, com cada lágrima vendida, que há ainda um gesto sagrado possível, dentro da dor banalizada.

“As substitutas” não é apenas uma peça sobre mulheres que choram nos funerais, no lugar de membros de uma certa família. É uma obra que desnuda o teatro social do luto, revela as fissuras morais do “último adeus” e coloca o corpo feminino no centro do ritual, não como símbolo de fraqueza, mas como última força que resta para chorar pelo mundo que se desumanizou.

 

*Texto escrito na sequência das actividades realizadas na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

O molusco é um animal invertebrado. Um animal sem coluna vertebral, geralmente mole e adaptável, que se molda facilmente ao ambiente à sua volta. Vive protegido por uma concha externa ou por uma carapaça emprestada, movendo-se lentamente, evitando confronto directo e sobrevivendo por acomodação. Este conceito da natureza serve como metáfora perfeita para um tipo de figura que se tem proliferado na esfera política e pública moçambicana: o molusco político.

O molusco político é o político e o cidadão sem firmeza de carácter nem ideias próprias, que se move de acordo com os ventos do poder. Não pensa por si, não argumenta, não propõe. Apenas obedece, repete e agrada. Ele funciona como uma caixa de ressonância, em virtude de não ter ideias próprias, não pensar por si e não argumentar. Está sempre à procura de aprovação — do chefe, do partido, da maioria — mesmo quando isso significa trair o interesse público ou a sua própria consciência.

O molusco político não se posiciona com clareza, prefere o conforto da ambiguidade. Foge do confronto de ideias, pois teme o dissenso. A sua presença na política não contribui para o debate democrático, mas apenas para o prolongamento do status quo. Está ali para manter-se, e não para transformar.

A verdade é que o molusco político não aparece do nada. Ele não surge como o raio que cai do céu azul.  Ele começa a ser formado na infância, na esfera doméstica. Cresce em lares onde não se ensina a questionar, onde a obediência cega é confundida com respeito, e onde discordar dos mais velhos é visto como rebeldia. Nestes contextos, não se cultivam o espírito crítico nem a autonomia de pensamento. Forma-se, assim, o molusco social, que depois encontra na política o palco ideal para continuar a não pensar.

No entanto, nem tudo é sombrio. Felizmente, há também jovens a crescer em lares onde se promovem valores nobres, onde se ensina a reflectir, a duvidar com responsabilidade, a indagar com curiosidade e a tomar posição com argumentos. Estes são espaços — muitas vezes em famílias mais conscientes ou em certas escolas privadas do país — onde se valoriza a formação do carácter, a coragem de pensar de forma diferente e a honestidade intelectual. Nesses contextos, está a ser forjada uma geração de cidadãos e futuros líderes com espinha dorsal, capazes de dizer “não” quando é preciso e de propor caminhos quando todos se calam.

A presença massiva de moluscos políticos enfraquece profundamente a democracia moçambicana. Num Parlamento ou num partido em que o domínio do debate de ideias está sob comando de figuras com padrão de actuação dos moluscos políticos, sem ideias nem convicções, não há espaço para o verdadeiro debate político. As decisões tornam-se meras formalidades, e a política transforma-se num teatro de aparências, onde se diz o que agrada aos superiores, e não o que serve ao povo. 

Estas figuras, quase amorfas, apressam-se em adjectivar o chefe ou superior hierárquico com expressões como filho mais querido da nação, pai da democracia, presidente do povo, visionário incomparável — fazendo-o crer que é o único ser pensante, o único com soluções para todos os desafios da Pátria.

São aduladores de ofício. Fazem as lideranças políticas acreditar que o cargo que ocupam lhes confere dons sobre-humanos, visão profética, infalibilidade papal.

A forma de agir dos moluscos políticos — seres escorregadios, rastejantes e dissimulados — é a lisonja desmedida. E, por meio dela, constroem muralhas à volta do poder, cultivando o culto da personalidade e criando fantasmas que só eles vêem: inimigos invisíveis, suspeitos permanentes, traidores imaginários.

Estes inimigos, na verdade, não existem senão no mundo fantasmagórico tecido com saliva bajulatória e medo. É um teatro de sombras onde o molusco se move com mestria, qual encantador de serpentes, sibilando ao ouvido do chefe apenas aquilo que deseja ouvir.

No mundo dos moluscos políticos, impera uma narrativa maniqueísta: o “nós” e o “eles”. O “nós” representa os puros, os santos da corte, os defensores das causas nobres — mas apenas na aparência. São os que se curvam sem questionar, que batem palmas antes de o chefe terminar a frase, que sorriem sem saber porquê.

O “eles”, por sua vez, são para o molusco político a encarnação do mal. São os que ousam pensar por si, que se atrevem a analisar os factos com espírito crítico, que corrigem, que questionam — e, por isso, devem ser silenciados, isolados ou esmagados.

Importa sublinhar que os moluscos políticos não são exclusividade de um partido ou corrente ideológica. Estão espalhados por toda a parte, infiltrados em todos os partidos políticos, e grassam livremente na nossa esfera pública como erva daninha em solo fértil. São mestres da metamorfose: mudam de pele, de discurso, de convicções conforme sopra o vento do poder. Ajustam-se às lideranças como um parasita se ajusta ao corpo do hospedeiro. Alimentam-se da vaidade alheia. Engordam à sombra da bajulação.

Cabe às lideranças agir com sobriedade e sabedoria, neutralizando a acção destes seres, sob pena de deixarem-se comandar por eles e terminarem o seu percurso de forma inglória.

Quem sempre termina mal são as lideranças que os alimentam — lideranças que acabam desacreditadas, desfiguradas e sem legado. Os moluscos, esses, sobrevivem. Saltam para o próximo ciclo de poder, prontos para repetir a encenação com novos protagonistas.

Esse é um dos nós de estrangulamento da nossa democracia: a recusa de muitos cidadãos em terem coluna vertebral. Preferem curvar-se, contorcer-se, dissolver-se na conveniência do momento a manter-se de pé, mesmo porque o preço da verticalidade é o isolamento ou o sacrifício.

Além disso, os moluscos alimentam a cultura do medo e da mediocridade. Como não ousam criticar nem inovar, bloqueiam o surgimento de novas ideias e de lideranças autênticas. Eles implantam verdadeiras máquinas trituradoras nos partidos políticos, nas instituições onde se implantam e nos corredores do poder. As máquinas do “nós” e do “eles”.  Vale tudo para manterem-se nas graças do chefe: mentir, desvirtuar a realidade, caluniar, omitir ou criar intrigas. O modus operandi é andar de gabinete em gabinete não para propor políticas, reformas ou debater ideias, mas para falar mal de um colega, assassinar reputações, minar a confiança entre companheiros de trincheira. Estão dispostos a tudo para manter o lugar que ocupam, mesmo que isso signifique o silêncio perante a injustiça ou a perpetuação do erro.

Num país com desafios tão profundos como Moçambique — pobreza, desigualdades, corrupção, polarização política, falta de oportunidades — não devia haver espaço para políticos sem coragem. Precisamos de líderes com coluna vertebral; gente que defenda ideias próprias, que argumente com clareza, que se oponha quando é necessário, que diga a verdade mesmo que custe caro; políticos íntegros, que inspirem confiança por aquilo que são e não apenas por quem os apoia. Os sábios dizem que, na política, a ética é como uma peça de roupa emprestada: alguns a vestem com orgulho, outros apenas a usam quando convém.

A política não pode continuar a ser o lugar onde se sobrevive por conveniência. Tem de voltar a ser o espaço onde se serve com convicção.

A política tem de ser o lugar onde se serve com convicção, porque, no seu sentido mais nobre, é o exercício da responsabilidade colectiva, da construção do bem comum. Não é, nem pode ser, uma arena de intrigas, de ambições miúdas, de jogos sujos travestidos de estratégia.

Quando se entra num gabinete para falar mal de um colega, assassinar reputações e minar a confiança entre companheiros de trincheira, já não se está a fazer política — está-se a jogar à sombra do poder, a trair princípios, a corroer a alma das instituições.

A política exige convicção, porque sem ela reina a conveniência. E onde reina a conveniência germinam os moluscos políticos: aqueles que vivem da intriga, do elogio fácil, da manipulação silenciosa, do “sim, chefe” como senha de acesso aos favores. Servir com convicção significa: dizer a verdade, mesmo quando é amarga; defender ideias, não interesses pessoais; discutir projectos, e não pessoas; corrigir, em vez de conspirar; construir, e não corroer.

A convicção é a bússola moral que separa o estadista do oportunista, o líder do bajulador, o construtor da Nação do parasita institucional.

Se a política não for lugar de serviço convicto, torna-se espaço de vaidades e vinganças, de jogos de máscaras e decadência moral — um teatro onde os piores actores ocupam os melhores lugares e os melhores são expulsos do palco por não saberem representar a farsa. E, no fim, todos pagamos o preço. Porque quando a política deixa de ser feita com convicção deixa de ser feita para o povo e passa a ser feita contra ele.

A solução para os problemas do país não virá com mais obediência cega nem com mais silêncio estratégico. Precisamos de menos moluscos e mais seres humanos inteiros. De menos repetidores e mais pensadores. De menos bajuladores e mais servidores públicos com coragem e espinha dorsal.

A solução para os problemas do país não reside na violência urbana ou rural nem na destruição insensata do pouco que temos — e que foi erguido com sacrifício, suor e esperança.

Não há redenção nacional na raiva desgovernada, nem futuro colectivo na fúria cega que atira pedras contra as próprias janelas da casa comum.

A solução para os nossos dilemas não virá da desobediência civil destrutiva, que arrasta o país — e com ele os moçambicanos — para um estado ainda mais miserável do que o presente. Rebentar os trilhos por onde ainda se tenta caminhar, queimar os barcos antes de atravessar o rio, destruir antes de propor — tudo isso é negar o futuro.

A solução para os problemas do país também não virá da instalação subtil — mas corrosiva — de uma ideologia fascista e divisionista, que desenha trincheiras de ódio entre o “nós” e o “eles”. Esse veneno semeado no discurso e na prática afasta-nos, polariza-nos, empurra-nos para os extremos e mantém a nação em permanente tensão, numa ebulição constante — como um barril de pólvora à espera apenas que alguém acenda o fósforo ou risque o isqueiro.

Não é esse o caminho. Nunca foi.

Moçambique precisa de um projecto nacional com visão, coragem, justiça e diálogo, que una os que pensam de forma diferente e reconcilie os que foram feridos pela história. Um país não se liberta com pedras nas mãos, mas com ideias firmes, instituições sólidas e lideranças com carácter.

A mudança verdadeira não virá dos gritos, mas da capacidade de escutar. Não brotará da violência, mas do compromisso com a justiça. E não se afirmará na destruição, mas na construção corajosa de um futuro onde caibamos todos.

O país precisa de instalar uma nova cultura política. Formar uma nova cultura política passa, acima de tudo, por investir na educação para a cidadania, em casa e nas escolas. Passa por criar espaços onde se possa discordar sem medo, debater com profundidade e construir com honestidade. Só assim deixaremos de produzir moluscos sociais — e, por consequência, moluscos políticos — para, finalmente, dar lugar a líderes com firmeza, com visão e com verdadeiro compromisso com Moçambique.

Na Travessa do Tiracolo, num lugar “mofo e cansado”, vive Midinho. No Ponto Final, à noite, João Galagala pede esmola. Midinho tem treze anos. João Galagala está na

idade escolar. Midinho é personagem do texto que encerra “O Barrigudo e Outros Contos”, livro de Hélder Muteia, publicado em 2018, através da Alcance Editores. João Gala Gala é personagem da música “João Galagala”, do músico moçambicano Chico António, do seu álbum “Memórias”, lançado em 2015. Dois personagens de textos diferentes, mas iguais na condição. Na verdade, duas poderosas imagens das nossas fracturas sociais e do nosso descaso colectivo com o nosso próprio futuro como sociedade.

Midinho, como o descreve o narrador do texto de Muteia, é “um moluene, um moleque, um marginal como muitos outros que pulula(va)m pelas praças do Maputo”, uma criança que, à certa altura, se vê atirada à sorte e tem de aprender a “inventar a vida e reinventá-la (…) se necessário”, para sobreviver na rua, remexendo com paciência e perícia o lixo para achar o que comer. Quem sabe algumas “fatias de pão que algum menino mimado se recusara a comer”?! A condição é a mesma de João Galagala.

“Faça chuva, faça sol/ faça frio, faça calor (…) todos os dias são assim”, canta o intérprete, o pequeno guerreiro tem de “fazer pela vida”.

Midinho e João Galagala são personagens-tipo, arquétipos de uma infância desprotegida e sintomas de uma sociedade que se constrói e mantém sob desigualdades sociais imensas. Num lado, os histórica e eternamente merecedores, para os quais vida é uma garantia, e, no outro extremo, os condenados à sorte, aqueles para quem, como diz Midinho, “Amanhã é outro dia” ou, como canta Chico, “o amanhã não existe”.

O que Hélder Muteia escreve e Chico António canta é sobre, como muito bem faz notar Maria João Leote de Carvalho*, as rupturas sociais que provém de profundas carências afectivas e educativas, mas também com origem na desvantagem social e exclusão que atingem duramente alguns segmentos da população sobretudo urbana. 

O texto “Midinho” e a música “João Galagala” retratam, igualmente, a nossa despreocupação com o futuro, com a sociedade que projectamos na forma como tratamos as crianças que, como diz o intérprete, são todas nossas; tenham fugido de casa, abandonadas ou expulsas, são todas nossas.

 

*Texto escrito na sequência das actividades realizadas na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

 

*https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/16597828/Delinquencia_juvenil_um_velho_problema_novos_contornos.pdf

 

 “Viver é essa revolta.

Fazer o que pode ser feito dentro dos limites,

viver mesmo que pareça não haver razão para viver.”

(Carlos Eduardo Bernardo)

 

Mingas, autora de “Nzumba”, “A lirandzu”, “Elisa Gomara Saia”, “Mamana” (música em pauta neste ensaio), entre outras faixas musicais é considerada a Diva da Marrabenta, não só pela angelical voz com que poetisa o modus vivendi de Moçambique, mas, também, pela qualidade da sua caneta, de tal forma que quem a escuta se vê como que diante de um espelho.

Assim, no presente ensaio, dedicar-nos-emos, após um ping-pong tremendo para a escolha da faixa musical, à análise de “Mamana”, um título que, essencialmente, representa uma jovem mulher que se dirige à mãe, reivindicando a hipoteca do seu amor (ou relacionamento?) e se vê impedida de seguir os caminhos do seu coração.

Note-se, por exemplo, pela forma com que a faixa musical se inicia, quando assevera: “Nhambe nhovona wakundrinyoxisa,/ timbilo tobanana loku nidrimuka weni, mamana (…)” (Mingas, s/d), o sujeito poético (jovem mulher) deixa claro: [‘Mesmo que eu veja alguém (homem) que me agrade,/ o coração palpita assim que me recordo de si, mãe (…)’].

A princípio, este trecho, pode ser interpretado em dois vieses: por um lado, que o sujeito poético se sente impedido pela mãe de namorar e, por outro, que não está na idade de namorar. Mas, afinal, o que estará, deveras, por detrás deste palpitar do coração do sujeito poético?

Na sequência, este continua: “Lava hinkwavo valangiwike hi mbilu yanga,/ akwaku ava lunganga, mamana (…)”, (Mingas, s/d), i.e., [‘Todos os que foram escolhidos pelo meu coração,/ para si, não são perfeitos/ideais, mãe (…)’].

Estamos, afinal, perante prova de que o impedimento do namoro não é a idade do sujeito poético, mas, sim, a interferência da mãe com relação à pessoa com quem a filha se deve relacionar. Pelo que, desta ilação, surge a seguinte indagação: deverão, as mães, escolher para as filhas a pessoa com quem se devam relacionar?

Decerto que a mãe, mais do que ninguém, é quem sente a dor de dar à luz um bebé, é quem carrega consigo o bebé no ventre desde o primeiro mês até que dê à luz o bebé, veja crescer, etc., de tal sorte que nunca a vai querer ver em péssimas mãos. Mas, a pergunta que não se cala é: deverão, as mães, escolher para as filhas a pessoa com quem se devam relacionar?

Estamos, portanto, perante o absurdo de Camus. Em Camus, o absurdo, de acordo com Prado (2023), corresponde à relação que o ser humano estabelece com o mundo. Para o autor franco-argelino, as pessoas são encaradas como entes de consciência, que olham para a realidade e exigem a sua ordenação. Contudo, no confronto com o humano, o mundo recusa essa racionalização. Por essa razão, Noa (1998) cognomina-o (o absurdo de Camus) por revolta. 

Ora, na continuidade, o sujeito poético chora, quando entoa: “Oh… hiyo… yo-yo-yo-yo-yo…” (Mingas, s/d). Este choro é, para nós, mais uma prova de que o sujeito poético vê os seus sonhos e vontades hipotecados; e a liberdade? Aprisionada!

Para vincar esta nossa asserção, o sujeito poético entoa seguidamente: “(…) niza nitrama la(ni) nisuka la(ni) niyatrama le… nhaninavela kurhulisa moya wanga, mamana (…)” (Mingas, s/d), traduzindo, [‘(…) sento-me aqui, saio para ali e sento-me acolá… procurando aquietar o meu estado de espírito, mãe (…)’].

O sujeito poético traduz, nesta estrofe, mais uma prova do retro exposto. Não sossega diante do perpetrado pela sua ascendente, pelo que vagueia de um lado para o outro, feito louca. Isto reforça o retro aludido absurdo, que Noa (1998) prefere cognominá-lo revolta (do Homem) (parênteses nossos).

Conforme Bernardo (s/d), apud Prado (2023), por mais que seja possível traduzir os fenómenos a partir de fórmulas, da lógica e através da Matemática, de modo geral, a natureza recusa ao humano a ordenação que a racionalidade exige.

Ademais, para Prado (2023), as suas expectativas, projectos e tentativas de entendimento estão sempre se chocando com um mundo que resiste à compreensão, desvia projectos e frustra expectativas. É, portanto, esse embate entre a consciência humana e a recusa do mundo que Camus vai chamar de absurdo.

O absurdo não está nem na natureza nem no ser humano, mas nesse confronto. O absurdo é o sentimento dessa condição entre consciência e natureza.” (Bernardo, s/d) (destaque nosso) Dito de outro modo, o absurdo é a constatação de que a natureza não se submete aos nossos planos e que não é possível mudar a realidade conforme todos os nossos desejos.

Na sequência, mesmo que sem resposta desta, o sujeito poético dirige-se à mãe nos seguintes moldes: “Kasi ujula niku yini, mamana? (…)/ svakuyenca hikuni sasatela svange nhova mbyana/ swakuyenca hikuni posita, swange nhova papela/ swakuyenca hikuni xavisa svange nhova mpahla, mamana (?!)” (Mingas, s/d), traduzindo, [‘Que quer que eu faça, mãe? (…)/ enxotar-me como que um cão/ enviar-me como que uma carta/ vender-me como que roupa, mãe (?!)’]

Pode-se dizer, a partir da estrofe retro traduzida, que o sujeito poético, metaforicamente, não só se representa a si, mas, igualmente, a uma série de mulheres que, na altura em que esta música foi lançada e, inclusive, nos dias de hoje, quiçá, são enviadas de uma província para a outra, ao encontro de seus futuros maridos, sem que os tenham previamente visto e/ou conhecido e contra sua vontade.

Então, o cão, a carta e a roupa são metáfora da forma com que esta(s) mulher(es) é/são tratada(s) pela(s) sua(s) mãe(s), com relação à sua constituição de relacionamento. Isto vinca a nossa convicção sobre a representação do absurdo em “Mamana”, de Mingas, pois que, conforme atesta Noa (1998), para o absurdo, não há saída possível, trata-se da impossibilidade de explicação da vida e a proclamação da impotência dos actos humanos.

Na sequência, o sujeito poético chama a sua progenitora à razão, quando diz: “Nili vona hiwene/ nili vona hiwene/ nili vona hiwene, mamana (…)” (Mingas, s/d), traduzindo, [‘Veja por si/ tome-se como exemplo/ veja por si, mãe (…)’], i.e., será que mãe passou por isso que me faz passar? E se passou, será que vale a pena que eu passe por isso também?

Ora, conforme assevera Bernardo (s/d), apud Prado (2023), “Viver é essa revolta. Fazer o que pode ser feito dentro dos limites, viver mesmo que pareça não haver razão para viver (…) na medida em que [sic] a pessoa toma consciência do absurdo e se revolta, ela pode ter a felicidade possível. Vivamos, apesar do absurdo.”

À guisa de conclusão

Portanto, “Mamana”, de Mingas, representa uma jovem mulher que vê a sua felicidade hipotecada pela mãe, impedindo-a, assim, de seguir os caminhos do seu coração, porque a mãe já tinha, possivelmente, reservado um marido para si. Talvez seguindo uma prática social por que outrora passou ou não.

 

BIBLIOGRAFIA

ACTIVA:

PASSIVA:

 

A canção afro-fusion “No guns” (do álbum Liwoningo), interpretada por Selma Uamusse, e o conto “Aconteceu em Saua-Saua” (do livro Ninguém matou Suhura), da autoria de Lília Momplé, convergem na exploração da destruição individual e colectiva, que emana da violência e da opressão. Ambas as obras sublinham como essa destruição é, frequentemente, perpetrada por entidades percebidas como superiores, abrindo espaço para múltiplas interpretações.

Em “Aconteceu em Saua-Saua”, Momplé descreve, de forma incisiva, os estágios da destruição imposta pelo colonialismo. A autora cria um protagonista, Mussa Racua, que representa as várias vítimas das exigências desumanas dos “superiores” que expõem as complexas realidades vividas pelo povo moçambicano, cuja dignidade e vida foram aniquiladas.

O conto de Lília Momplé revela que os conflitos externos geram conflitos internos, o que é evidenciado pela seguinte reflexão de Mussa: “é melhor morrer. Não acordar nunca mais. Não ser mais um animal”.

Nesse contexto, a autodestruição surge como uma forma de fuga e resistência, em que a morte é encarada como um acto de liberdade perante a opressão.

Lília  sugere que, mesmo o perpetrador da opressão, pode sofrer danos, como a perda de mão-de-obra, levantando a questão da indiferença perante o sofrimento alheio.

Por sua vez, em “No guns”, Selma Uamusse vocaliza um apelo directo à não-violência, como se observa na seguinte passagem: “Dont use your guns to kill your people”.

O vídeo-clipe da música complementa a mensagem contra violência através da expressividade do dançarino, Gerson Sanca. Na sua performance, Sanca imita uma pistola com as mãos e a coloca na própria cabeça, antes de “voltar a si”. O gesto poderoso não apenas sugere que o acto de matar o próprio povo culmina na autodestruição do agressor, mas também visualiza a luta interna e a existência de uma consciência.

A performance do dançarino, embora individual, também personifica a experiência colectiva de um povo e a manifestação de um alter ego com sede de destruição. Contudo, em contraste com a autodestruição, a dança e a canção são retratadas como uma expressão de vida e emoção interna, um clamor em face à violência.

Selma Uamusse, ao longo da interpretação, intensifica o seu apelo ao “you”, uma entidade que detém o poder. Ela não só pede para que não se usem as armas contra o povo, mas também para que essa entidade não utilize a luxúria para destruir a infância das crianças.

A cantora deixa claro a quem se dirige essa mensagem ao nomear explicitamente os alvos da sua crítica: “Hey mister President, Hey mister Minister, Hey mister Governor, Hey dear CEO… No weapon, no guns”.

A referência aos sujeitos em causa reforça a crítica à opressão sistémica exercida por figuras de autoridade política e corporativa, ampliando a compreensão da violência para além da agressão física, e incluindo a corrupção moral e a exploração.

Em suma, tanto a obra de Lília Momplé quanto a interpretação de Selma Uamusse conduzem à reflexão de que a violência e a destruição podem gerar impactos negativos significativos, não apenas nas vítimas, mas também nos próprios perpetradores. Ambas as obras, de forma brilhante, servem como um lembrete crucial para que a sociedade não seja conivente com tais actos desumanos.

 

*Texto resultado das actividades realizadas na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

“O inferno são os outros”, dizia Sartre. Mas em aqui em Moçambique concretamente em Cabo Delgado, o inferno somos nós, com os nossos silêncios, os nossos cargos, os nossos cargos-fantasmas, e as nossas conferências e fóruns com doadores desse conflitos cheias de nada.
A guerra em Cabo Delgado já não é apenas no norte. O sul da província, antes visto como zona de refúgio, tornou-se agora o novo epicentro de ataques terroristas, campos de concentração improvisados e zonas de abandono estatal. Agora é zona sul da província, Chiúre-Velho, Mazeze, Nanduli, Natócua, Milamba: nomes de aldeias que já não são lugares, mas epitáfios de uma nação que virou campo de extermínio. São as novas geografias do horror. E mais: são símbolos do fracasso total de um regime que prefere perseguir críticos nas redes sociais do que enfrentar os verdadeiros inimigos da nação. E onde está o Estado? Onde está a Procuradoria-Geral da República? Claro está talvez ocupadíssimo a procurar um homem civil totalmente que pensa diferente. Será que o sangue de um camponês vale menos que o silêncio de um político?

Será que seis cabeças decepadas não merecem um processo judicial? Chamar o comandantes das forças e defesa e segurança a fim de vir responder o que estamos a falhar?

Seis camponeses foram decapitados em Natócua, no distrito de Ancuabe, e ataques simultâneos ocorreram em Chiúre-Velho e Mazeze. Populações estão a fugir a pé. As casas foram queimadas. O pânico reina. Sim, decapitados. Não é uma metáfora bíblica ou cena de filme de acção. É real. Como o sangue que ainda escorre pela terra quente onde colhiam milho. E o governo? O governo assiste. Cala. Fabrica relatórios. E telefona com as ONGs para irem dar passeadas e tirar fotos e mandar os seus doadores. E outros protege hotéis de luxo lá em Mecúfi.

Se fossem empresários, haveria discursos oficiais. Mas eram só camponeses. E como dizia Fanon: “A vida dos colonizados começa onde termina o interesse do colono.”

E os culpados? São os terroristas, dizem. Talvez que financia é o Venâncio Mondlane como o processo aparece. Mas quem os nomeou assim? Quem lhes deu armas? Quem lucra com a sua existência? E mais: onde está a Procuradoria-Geral da República agora? Vai continuar a fingir que a Constituição de Moçambique não cobre Chiúre, Ancuabe e Nanduli? A Força Local e os soldados do Ruanda encontram corpos. O povo encontra os restos. O Estado encontra desculpas.

“Chorar sobre os mortos é fácil. Viver com os vivos é que é guerra”, escreveu Cesare Pavese. E aqui, em Cabo Delgado, vivemos com mortos adiados. Caminhamos entre vivos com prazo de validade. As casas ardem, mas o Parlamento não aquece. O que se passa neste país é mais do que um conflito. É uma engenharia do medo. É necropolítica em estado bruto. É gestão da morte ao serviço dos interesses.

Veja bem, o Comando Norte das Operações Militares está instalado em Mueda, terra dos chefes, onde nada acontece. Por quê? Porque ali não se mata. Por que não está em Meluco, Mocímboa ou Quissanga, onde as mortes acontecem todos os dias? A resposta é simples: os vivos têm mais valor quando votam, mas os mortos são mais úteis quando calam os vivos. E Mecúfi? A terra sagrada dos projectos de elite. Lá não se queima nada. Lá o Hotel Diamond do Nyusi brilha mais que a dignidade dos refugiados. Todas às ONGs dê atenção urgente lá. Lá os peixes nadam em paz enquanto os homens correm nus pela mata, fugindo da decapitação.

E a PGR? Vai abrir processo contra quem? Contra os jornalistas que denunciam? Contra nós que escrevemos? Contra os aldeões que choram? Contra os terroristas que o próprio Estado já não tenta combater? Na televisão, ouço debates sobre terrorismo islâmico, como se fosse um vírus importado, e não um resultado da miséria, do abandono, do roubo, da exploração. São 349 mortos em 2024, diz o relatório do Centro de Estudos Estratégicos de África. Mas que centro é esse que não se desloca ao epicentro? Que estuda, mas não escuta?

Enquanto isso, a nossa Procuradoria investiga o quê? Memes? Venâncio? Panfletos? Oposição?

Anamalala é proibida de legitimar alegando ter nome ofensivo, mas os autores da decapitação camponesa continuam no mato, armados até aos dentes, alguns até com dentes de ouro.

Nietzsche escreveu: “Quem combate monstros deve cuidar para não se tornar um”. Mas quem ignora os monstros, torna-se cúmplice.

A verdade é brutal é o terrorismo que mata o corpo não é mais perigoso que o terrorismo institucional que mata a verdade. Um é armado de catanas. O outro é armado de silêncio, de orçamento, de discursos fingidos. Eu estou aqui. Vivo. Mas cercado pela morte. Eu vejo crianças a andar três dias a pé até Metoro. Vejo mães que enterram filhos no mato com as mãos nuas. Vejo a vida a desaparecer diante da indiferença de um Estado que só responde quando há microfones.

A quem serve a guerra? É inconcebível um Estado declarar que é impossível localizar os terroristas enquanto estes, todos os dias, publicam vídeos e imagens sem medo de serem rastreados. Mas quando um cidadão comum denuncia a situação pelas redes sociais, é imediatamente localizado, preso ou assassinado pelo próprio Estado. Para quê serve a tecnologia bélica? Para quê servem os drones? Os satélites? Servem para matar o terrorista ou para silenciar o cidadão que se queixa? Essa é a essência do necropoder: a capacidade de decidir quem vive e quem morre, quem é protegido e quem é descartável. Cabo Delgado é hoje um laboratório dessa política de morte.

Irmão… se estás à espera de silêncio, vais te decepcionar. Matem-me já, sim! Matem! Mas pelo menos saberão que um de nós teve coragem de falar o que vocês fingem não ver. Enquanto vocês se ocupam de tratores e VM7, o Estado Islâmico está a matar gente em Chiúre! Mas não… aqui, ninguém quer saber. Só se partilha piada de Lily Wayne, berração do humorista angolano, challenge do TikTok e fotinho bonita. Até os memes da criança cortada na Matola circularam mais. Julgaram, opinaram, riram e partilharam — só porque dava “engajamento”.

Mas quando é sangue do povo do Norte, aí ninguém vê, né? Aí já não querem saber. Aí já não toca no vosso coração? Vocês calam porque acham que falar é atacar o governo. Mas eu digo: Se o governo se ofende com o grito do povo, então esse governo é cúmplice da matança. Se a PGR se cala diante do terrorismo real, mas se excita para perseguir Venâncio Mondlane, então é preciso perguntar: Quem é mesmo o terrorista de Moçambique?

Epa, já está demais. O povo de Chiúre fugiu com crianças nas costas. Gente a andar no mato com panelas, bacias, bebés e fome. E vocês continuam nos vossos debates de salão, com hashtags e paletós, com promessas eleitorais e promiscuidade partidária. A pergunta é: Onde está o Chapo? Onde está a Frelimo?

Onde estão Graça Machel e Josina Z Machel? Ah, mas para reagir a escândalos sexuais das crianças na cidade da Maotala aparecem, né? Para marchas femininas com câmaras, aí estão.

Onde esta Forquilha? Assembleia da República? Onde está as Igrejas a publicarem vigílias? Ou operando milagres para Cabo Delgado? Onde estão os deputados? Os Momades? Mas para a guerra silenciosa no Norte… Silêncio total. Esse país precisa ser sacudido!

Os donos dos cães precisam agir. Porque os cães, nossos filhos militares, estão a morrer. E tu, que lês isso e finges que não é contigo: Também és cúmplice. Enquanto isso, o Estado Islâmico já publicou o ataque.

Está lá para o mundo ver. Menos vocês.

Vocês só sabem ver posts engraçados. Matem-me já. Mas com orgulho. Porque eu não calarei diante da desgraça. E se morrer por dizer a verdade — que seja. Mas morrerei com a alma limpa.

Então eu pergunto, em voz alta: Onde estão os processos? Onde estão os ministros? Onde estão os generais? Onde estão ex estadistas? Onde está a justiça? Talvez estejam todos a cuidar do próximo fórum sobre paz e desenvolvimento. Onde estão os comunicados da Frelimo? Onde está a voz do PR? E as ONGs? E a Igreja? O silêncio é o mais cruel dos crimes, já disse um sábio africano cujo nome nunca foi traduzido para inglês.

Moçambique não está em guerra. Moçambique está sob ocupação de interesses. A guerra é o álibi. A morte é o argumento. E o povo é apenas a estatística. Mas que fique escrito: os verdadeiros terroristas não estão apenas no mato – estão nos gabinetes, nas poltronas acolchoadas do poder, e no silêncio conivente dos bem-pensantes.

“Mati”, de Selma Uamusse, é o ponto de partida para o que consideranos canto de sereia. A voz da cantora moçambicana é um convite ao ênfase sensorial. Na música, o som da água ao fundo é um espectáculo que nos permite, ainda que de olhos fechados, contemplar o fluxo de emoções que se vai intensificando conjuntamente com o timbre da cantora.

“Mati”, do ronga/changana, significa água em português. Assim, a música de Selma Uamusse trata da água, mas não apenas como elemento da natureza. Também  trata da água que mexe com o eu-lírico, a água como bênção capaz de curar.

A composição mistura o ronga/changana e o inglês, o que constitui uma combinação fascinante, principalmente no trecho “You’re Mati/ Mati for my mind/ Healing Mati/ Mati for my soul”.

Nas passagens acima, as línguas parecem ser uma só, abrindo portas para uma óbvia reflexão: A água é água em qualquer canto do mundo, o que nos leva a pensar: como todos encaramos o líquido?

A composição de “Mati” é cíclica, sendo feita de repetições melódicas. Assim como os três estados da água: líquido, sólido e gasoso, que se vão alterando consoante a mudança de temperatura.

O eu-lírico relaciona a água ao amor. Nesse exercício, a água é alimento, cura, economia e respiração. Percebe-se, assim, o uso da personificação, por se emprestarem acções humanas a seres, definitivamente, inanimados. Contudo, entende-se a mensagem a passar: o uso racional da água, que, nesse caso, estará “viva” e em óptimas condições de curar enquanto for economizada, um  auxílio importante para o ecossistema, evidenciado no trecho “Healing water/ Saving water/ Feeding water/ Changing water”.

mensagem acima, portanto, passada com tamanha sutileza, é um mérito indiscutível do(a) compositor(a).

Ao contrário de “Mati”, de Selma Uamusse, o conto “Nuvem de espuma”, de Bento Baloi apresenta a água como calamidade. É por causa da água que Nyaswa perde tudo o que tem. O conto começa de forma inquietante: “A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares, sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada. O Búzi nega em deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila”.

A referência à chegada da água, juntamente com os mochos, é aterrorizante, é a certeza de que mortes virão e de que legados serão encerrados.

O Rio Búzi é descrito como um corpo vivo, revoltado, que se recusa a obedecer às margens, como se a natureza, cansada de contenção, se insurgisse contra o Homem e as suas frágeis estruturas.

A imagem da água que “borbulha por aqui e por ali”, transmite uma sensação de caos crescente, de desordem que escapa ao controle humano.

Enquanto “Mati” evoca a água como sopro divino, bênção que cura e renova, “Nuvem de Espuma” a apresenta como entidade vingativa, destruidora de vidas, famílias e memórias.

Nyaswa, protagonista do conto de Bento Baloi, vê-se diante de um luto que não é apenas pessoal, mas colectivo: o luto por uma terra afogada, por tradições soterradas na lama, por histórias interrompidas pela correnteza.

Ambas as obras, apesar dos seus contrastes, convergem num ponto essencial: a água nunca é neutra.  É agente da transformação. Tanto no respiro suave da canção de Selma Uamusse  quanto na inundação brutal narrada por Bento Baloi, a água atua como força que exige resposta, como presença que nos obriga a reflectir sobre o equilíbrio entre o cuidado e a negligência, entre o respeito e o abuso.

Há também uma camada simbólica comum entre as duas obras: a água como expressão da mulher africana.

Em “Mati”, a água é vida e voz: canta, cura e conduz. Em “Nuvem de Espuma”, a água é dor e perda: carrega a morte do filho de Nyaswa, imagem pungente de um útero que, em vez de gerar, desaba. O feminino é, assim, atravessado pela contradição da água: fértil e feroz, suave e avassalador.

Tanto “Mati” quanto “Nuvem de Espuma” elucidam a duplicidade da vida. Costumamos exaltar a água como fonte de vida, esquecendo-nos da sua força destruidora e imprevisível. Em “Mati”, essa imprevisibilidade abençoa e faz nascer a esperança. Já em “Nuvem de Espuma”, a água amaldiçoa e afoga qualquer possibilidade de esperança . A esperança de Nyaswa, como de tantas mães, neste mundo, reside no seu filho, e é exactamente essa esperança que se perde nas águas do Búzi.

É esse dualismo que torna a leitura das duas obras tão complementar. Uma não nega a outra. Juntas, as obras revelam que a natureza, assim como o ser humano, não se resume a uma só face. Portanto, é preciso saber ouvir tanto o canto da sereia quanto o sussurro dos mochos, porque, no fim, ambos anunciam aquilo que a água sempre soube: que toda vida, para existir, precisa saber dançar entre o fluxo e a fúria.

26 de julho de 2025.

Nota do editor: Texto resultado das actividades na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

Por mais que não sejas formalmente associado, é inevitável não tomar conhecimento das três listas que pretendem dirigir os destinos da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO) nos próximos três anos. Os telemóveis andam pejados de cartazes com fotografias e slogans, autênticos chavões que nos remetem ao mesmo cenário vivido na nossa política doméstica: exposição de pessoas e não de ideias.

Ainda que se esteja a pensar num fórum próprio para o efeito, nada obsta que haja um debate público partilhado nos mesmos canais pelos quais esses cartazes passam. Das duas, uma: se há fórum próprio para o debate de ideias, que haja, igualmente, fórum próprio para a partilha de fotografias e slogans.

Penso nestas coisas e na mensagem que construo na minha mente cada vez que vejo estas listas. Na ausência da divulgação de ideias, salvo uma e outra lista que o faz, detenho-me nas pessoas: talvez o fim máximo seja esse. Nunca se sabe!

Cá para mim: (1) ou o meu networking no meio literário está cada vez maior ou (2) os  “underdogs” querem controlar a narrativa a partir do mainstream.

A primeira hipótese tem um argumento que sustenta, igualmente, a segunda. Os nomes que constam das três listas são de figuras que não me são distantes. Não me refiro, objectivamente, aos nomes do topo, mas aos dos integrantes que, em síntese, constituem a engrenagem através da qual a máquina poderá seguir nos próximos tempos.

A segunda hipótese que, tal como disse, sustenta-se, também, pelo argumento anterior, surge de uma orfandade que há muito se vive no meio literário se se considerar o objectivo macro da AEMO: defender os interesses dos escritores nacionais e promover a literatura moçambicana.

Se formos a examinar, sem paixões, a acção desta agremiação neste quesito, poderemos questionar muita coisa que não caberia nestas linhas que se pretendem breves. Mas há uma pergunta basilar que escancara tudo: quantos (jovens) escritores com uma crescente relevância no nosso meio tiveram os seus interesses defendidos pela AEMO?

Sim. A resposta é essa. Portanto, alguns destes que não nutrem paixões de adolescência pela AEMO (do passado até hoje) constam destas listas. Seguramente, a agenda é clara. Há um sentimento de se estar na periferia e pensa-se que dirigindo os destinos da AEMO se possa mudar tanto o sentimento quanto o cenário da cada vez mais crescente polarização.

Independentemente da legitimidade da leitura que faço desta azáfama, penso que a consciência dos membros destas listas podia reservar alguns minutos para reflectir sobre a sua eventual acção futura:

(1) num contexto em que são escassos ou quase inacessíveis os meios tradicionais de partilha de textos literários (jornais, revistas, antologias, etc.) e os escritores se fazem conhecer no mercado literário nacional e internacional “à sua maneira”;

(2) neste tempo em que se faz literatura sem uma filiação formal e efectiva com a AEMO e fora do principal espaço midiático (Maputo);

(3) na constante busca pela pluralidade associativa com igual legitimidade para defender os interesses dos escritores nacionais e de promover a literatura moçambicana.

elisiomiamboem@gmail.com

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o conceito de patriotismo no contexto moçambicano contemporâneo, traçando a sua evolução desde as origens históricas globais até às suas interpretações actuais no país. Parte de um diálogo informal para problematizar o uso crescente e, muitas vezes, instrumentalizado da palavra “patriotismo” em discursos políticos e sociais recentes, sobretudo após as manifestações populares de 2024. O texto argumenta que, enquanto no passado o patriotismo foi associado à lealdade aos reis, à luta de libertação ou ao partido no poder, nos dias de hoje, deve ser reconfigurado como um compromisso com a justiça, a responsabilização e a cidadania activa. Sustenta-se que o verdadeiro patriota não é o que aplaude incondicionalmente o governo, mas aquele que pensa criticamente, denuncia injustiças e participa activamente na construção de um Moçambique mais justo, democrático e inclusivo.

Contexto: Foi numa troca de ideias informal, ao telefone com o professor e investigador PHD Egídio Chaimite, com quem tenho colaborado em diversos trabalhos académicos.  No decurso da conversa, que versava sobre a actual situação política do país, sobressaiu um questionamento: o que significa, afinal, ser patriota nos dias que correm? O tema surgiu de forma espontânea, mas com tal densidade, que acabou por dar origem a este artigo, como extensão daquela conversa telefónica.

A pertinência da reflexão funda-se no facto de, nos últimos tempos, o termo “patriotismo” ter ressurgido com força no debate público moçambicano. Invocado amplamente em discursos políticos, artigos de opinião e publicações nas redes sociais, tornou-se uma espécie de carimbo moral: ou se é patriota, ou se está contra o país. A palavra deixou de ser um sentimento partilhado para se tornar numa arma discursiva, usada para separar os “bons moçambicanos” (aqueles que são os obedientes), dos “antipatriotas”, aparentemente os críticos. Esta polarização, longe de enriquecer o debate democrático, empobrece-o. 

Do lado político, em particular, a palavra “patriotismo” passou a ecoar em discursos políticos como instrumento inovador para recuperar a estabilidade social e política, mas o uso indiscriminado deste termo levanta suspeitas. Muitos dos que mais o invocam são os mesmos que fazem da bajulação um modo de vida. Em nome do patriotismo, confunde-se lealdade com silêncio, crítica com traição. Será patriota apenas quem aplaude o governo? Será que amar a pátria é obedecer, sem pensar, à lógica do poder? Estas são as perguntas que este artigo propõe discutir.

O Conceito: Patriotismo é um sentimento de amor, orgulho e dedicação à pátria, esta que é entendida, no sentido lato, como espaço simbólico (não meramente geográfico) de memória colectiva, cultura, história e de lutas comuns. No entanto, este sentido variou ao longo da história e em diversos quadrantes.

Na Europa, por exemplo, no século XVIII, ser patriota era sinónimo de defender a monarquia ou combater nas suas guerras. No entanto, a partir do século XIX, com a Revolução Francesa e a Revolução Americana, o patriotismo passou a ser associado à lealdade dos cidadãos, não aos reis, mas sim a ideais comuns de liberdade, igualdade e soberania nacional.

No século XX, esta transformação aprofundou-se. Durante a Segunda Guerra Mundial, o patriotismo em países como o Reino Unido ou os Estados Unidos manifestava-se através do sacrifício colectivo em prol da sobrevivência das democracias. No entanto, a partir da década de 1960, com os movimentos pelos direitos civis e os protestos contra a guerra, emergiu uma nova forma de patriotismo, aquela que questionava se os governos estariam realmente a cumprir os seus próprios princípios. Criticar a injustiça, começaram muitos a defender, também podia ser uma expressão de amor à pátria.

No continente africano, o patriotismo seguiu uma trajectória própria, mas não menos poderosa. A partir da metade do século XX, o conceito foi moldado pela resistência ao colonialismo europeu. Em países como o Gana, Quénia, Argélia ou Angola, ser patriota significava lutar pela independência das potências europeias. Figuras como Kwame Nkrumah e Jomo Kenyatta tornaram-se símbolos nacionais de um patriotismo enraizado na libertação, unidade e dignidade africanas.

Com a conquista das independências, o conceito voltou a transformar-se. Em vários países, a lealdade ao partido no poder passou a ser considerada critério de patriotismo, mesmo quando os governos não correspondiam às expectativas geradas durante a luta. Na África do Sul, por exemplo, o patriotismo adquiriu novos contornos, com o fim do apartheid, fundindo a lealdade ao novo Estado democrático com um compromisso profundo com a reconciliação nacional.

Em Moçambique, o patriotismo teve, em tempos, um significado claro e mobilizador, sobretudo durante a luta de libertação, nos anos 60 e 70. A batalha pela independência de Portugal, liderada pela FRELIMO, foi uma causa nacional unificadora. Milhares de moçambicanos arriscaram (e muitos perderam) as suas vidas, movidos pela convicção de que a liberdade traria justiça, desenvolvimento e dignidade ao povo. Ser patriota, então, significava aderir à luta, apoiar a revolução e participar na construção de uma nova nação.

Com a independência alcançada em 1975, o patriotismo assumiu uma nova feição, apoiar o Estado, proteger a soberania e defender as conquistas duramente alcançadas. Durante a guerra civil que se seguiu, o discurso patriótico foi apropriado por ambos os lados, cada qual reivindicando a defesa do verdadeiro futuro da nação. Nas décadas seguintes, o patriotismo manteve-se presente, mas frequentemente associado à lealdade política, à identidade partidária ou então à força e quistas de um movimento nacional (FRELIMO), que outrora serviu de base de mobilização nacional, e que se transformou numa entidade de direito privado (partido político). Hoje, o conceito de patriotismo em Moçambique continua em mutação — mas a pergunta mantém-se: como devemos, afinal, defini-lo nos nossos tempos?

Em defesa do “patriota”: no Moçambique pós-independência, o patriotismo tem sido, durante muito tempo, entendido através da lente da lealdade — lealdade à nação, ao movimento de libertação e, muitas vezes, ao partido no poder. Esta interpretação fazia sentido nos primeiros anos de construção do Estado. O país emergia do colonialismo e entrava num período profundo de reconstrução nacional. A linguagem da unidade e do apoio era vital para manter de pé um Estado ainda frágil.

Porém, passadas quase cinco décadas, o panorama político, económico e social transformou-se. Moçambique já não é um Estado recém-liberto; é uma democracia em fase de maturação, com uma população cada vez mais diversa nos seus pensamentos, aspirações e experiências de vida. No entanto, a ideia dominante de patriotismo permanece, em larga medida, inalterada, ainda centrada na obediência, no silêncio e no elogio, ou ainda no tão famigerado lambe-botismo.

É aqui que reside um dos equívocos mais perigosos. Ser patriota não é fingir que tudo está bem. Não é calar-se perante o sofrimento, a injustiça ou o fracasso. Na verdade, os cidadãos mais patriotas, em qualquer sociedade, são frequentemente aqueles que falam mais alto, não para destruir o país, mas para o empurrar na direcção do seu maior potencial.

Pelo mundo fora, multiplicam-se os exemplos deste tipo de patriotismo crítico. Nos Estados Unidos, líderes pelos direitos civis como Martin Luther King Jr. foram, no seu tempo, rotulados como antipatriotas, mas hoje a História recorda-os como heróis que amaram o seu país o suficiente para exigir que fosse melhor. Na África do Sul, Steve Biko denunciou as injustiças socais durante o período do Apartheid, e Desmond Tutu não hesitou em denunciar a corrupção governamental, mesmo depois do fim do apartheid, insistindo que a lealdade aos valores democráticos deve estar acima da lealdade ao poder, nesse caso do seu partido ANC. Os líderes do movimento contra a colonização portuguesa foram perseguidos, mortos e rotulados terroristas, mas hoje tanto Eduardo Mondandle bem como Samora Machael são considerados heróis nacionais.

No país enfrentamos hoje desafios graves, captura do Estado e do poder judiciário, escândalos de corrupção tais como dívidas ocultas e Sustenta, má gestão de recursos (isenções à indústria extractiva e compra de tractores para transportes passageiros no lugar de construir estradas), instabilidade em Cabo Delgado, altas taxas de desemprego juvenil e um fosso crescente entre as elites urbanas e as comunidades suburbanas e rurais. Neste contexto, patriota não é quem diz “sim” a tudo o que o governo faz, mas, sobretudo, quem interpela e questiona: “Isto está mesmo a servir o povo?”

Continuar a defender o indefensável não só mostra um tipo de problema cognitivo, mas uma cumplicidade na manutenção do status quo e com o socialmente errado, e sobretudo não ajuda o progresso desta nação. Criticar um chefe não pode ser um problema. Aliás, por outro lado, o chefe deve ser o primeiro a desejar implementar a política anti-lambibotismo, anti-fofoca e assassinato de carácter na instituição que dirige.

O verdadeiro patriotismo exige que se denuncie o que está mal e que se proponham caminhos melhores. É proteger a Constituição, defender a liberdade de imprensa, promover a transparência e exigir responsabilização dos que exercem o poder. É apoiar a polícia quando esta defende a lei, mas condená-la quando viola os direitos humanos. É celebrar os avanços alcançados através de políticas governamentais, mas também lamentar os fracassos e apresentar as suas críticas sendo justo na análise. Numa democracia, o silêncio não é sinal de lealdade, é sinal de medo, e Moçambique não pode continuar a confundir medo com patriotismo. Onde há medo não há expressão de ideias, e onde elas não florescem não há inovação e muito menos progresso.

 

Por um Novo Tipo de Patriotismo: Moçambique encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. A crise que hoje enfrentamos não é apenas económica ou institucional, é, sobretudo, uma crise de valores cívicos e de entendimento do que significa servir a pátria. Continuar a evocar o patriotismo como mero sinónimo de obediência e silêncio é, não apenas anacrónico, mas perigoso para qualquer sociedade que se pretenda democrática.

Com isto, precisamos urgentemente de redefinir o patriotismo à luz dos desafios do presente. Um patriotismo que não se rende ao medo, nem se acomoda ao conforto dos bajuladores. Um patriotismo que se expressa na crítica construtiva, na defesa intransigente da justiça, na coragem de romper com o conformismo. Ser patriota hoje não é aplaudir o poder, mas sim confrontá-lo quando trai os compromissos constitucionais, sociais e éticos assumidos com o povo.

Moçambique não carece de amor à pátria, carece de espaço para que esse amor se manifeste em liberdade, inclusão, integridade e acção transformadora. O verdadeiro patriota é aquele que defende o bem comum, mesmo contra a corrente. É aquele que diz “não” à corrupção danosa ao desenvolvimento, à injustiça e ao medo, porque acredita que este país pode ser mais do que tem sido. É precisamente desse patriotismo crítico, corajoso e comprometido que o futuro de Moçambique depende.

Precisamos de um novo tipo de patriotismo; um que reflicta as realidades do presente e as esperanças do futuro. Um patriotismo que não se baseia no silêncio, no medo ou na lealdade imposta, mas sim na coragem, na responsabilidade e num cuidado genuíno pelo destino de todos os moçambicanos.

Esse patriotismo é, assim propomos: (i) o estudante que questiona políticas educativas ultrapassadas; (ii) o jornalista que denuncia a corrupção, mesmo quando isso representa risco pessoal; (iii) o profissional de saúde que exige melhores condições para as clínicas rurais; (iv) o cidadão que participa num protesto pacífico, não para destruir infra-estrutura ou matar polícia, mas para melhorar o país; (iv) o dirigente que ouve críticas e responde com humildade, não com hostilidade; (v) o juiz que toma decisões, não com base em orientações políticas e subornos, mas usando a sua capacidade e bom senso; (vi) aquele que não nos deixa entrar em agendas externas a troco de patrocínios ou doações; (vii) é o membro do partido que diz: isto não.

Este é o patriotismo de que Moçambique precisa. Um que protege o povo, e não apenas o Estado. Um que valoriza a verdade mais do que o conforto. Um que recusa conformar-se com o mínimo quando sabemos que o nosso país é capaz de muito mais.

Sejamos claros: criticar o governo não significa odiar o país. Significa, antes de tudo, acreditar que Moçambique pode e deve cumprir as promessas consagradas na sua Constituição e aquelas que, durante o período de luta de libertação e civil, os nossos pais e irmãos lutaram defendendo. Significa também querer que a justiça chegue, não só às cidades, mas também às províncias. Significa desejar que cada criança cresça num país que a valorize, não apenas nos discursos, mas também nas políticas e nas acções concretas.

Moçambique sempre foi terra de pessoas resilientes, brilhantes e corajosas. O nosso futuro dependerá da capacidade de permitirmos que essas vozes se façam ouvir, não apenas quando dizem “sim”, mas sobretudo quando ousam dizer “não”. Por isso, ensinemos nas escolas e em casa às nossas crianças um sentido mais profundo de patriotismo. Um que vá para além de agitar a bandeira ou entoar o Hino Nacional. Um patriotismo que lhes ensine a questionar, a pensar, a agir, a cuidar do seu próximo (no one is left behind). Porque o verdadeiro patriota não é aquele que diz: “O governo tem sempre razão.” É aquele que afirma: “Moçambique merece melhor — e eu vou ajudar a torná-lo possível sem violência.”

A boa intenção não pode substituir a coragem.

É preciso coragem para enfrentar o silêncio, mas é preciso ainda mais coragem para enfrentar o ruído da rendição disfarçada de civismo. Em Moçambique, atravessamos um momento histórico perigoso, em que a crítica política se dissolve em selfies com opressores e o conceito de civismo é confundido com submissão. A rendição veste o traje elegante da boa intenção. Mas não há conciliação possível com quem nega a tua dignidade. E não há civismo possível quando os direitos são violados à luz do dia por um regime que, historicamente, matou os seus próprios filhos.

A FRELIMO, na sua génese como movimento de libertação, nasceu sob o signo da luta popular.

Mas essa mesma luta, uma vez institucionalizada, foi capturada pelo autoritarismo e pelo controle ideológico. Samora Machel, figura complexa, foi também vítima do próprio sistema que ajudou a criar. A partir do momento em que a FRELIMO se transformou em partido único, deixou de ser libertadora e passou a ser opressora. O sangue dos seus, dos que divergiam, foi derramado em nome da unidade nacional. E, com isso, uma nova forma de colonialismo interno foi estabelecida — uma colonização ideológica onde se incutia no povo que pensar diferente era traição.

É urgente questionar o que é ideologia — não como abstração académica, mas como instrumento de dominação. Ideologia é a lente através da qual se legitima o poder, se cria o inimigo e se forma o cidadão obediente. É o mecanismo através do qual se convence a maioria a servir uma minoria. Em Moçambique, a ideologia da FRELIMO construiu um Estado à sua imagem, onde oposição era sinónimo de guerra, e divergência, um crime de lesa-pátria.

África não precisa de políticos sem ideologia. Esse discurso pseudo-neutro é uma falácia que apenas esconde o desejo de agradar a todos e evitar o confronto com o sistema. Ser político é assumir posição, é ter doutrina e visão clara de mundo. Como disse Jean-Paul Sartre: “A omissão é também uma escolha”. Ao rejeitar compromissos ideológicos, o sujeito político torna-se vulnerável à cooptação e à lógica do mercado eleitoral.

Neste quadro, as chamadas sociedades civis foram capturadas. As que surgiram de forma espontânea foram destruídas ou cooptadas. Hoje, muitos dos nossos debates, encontros e até ativismos são realizados entre os mesmos de sempre, com os mesmos fundos, as mesmas agendas e, frequentemente, os mesmos partidos por trás. Não se pode construir uma nação crítica a partir de um ativismo submisso. O ativista que só critica um lado — o poder — sem questionar também a oposição que nada propõe, está apenas a fazer parte do jogo.

O verdadeiro ativismo é apolítico e antipartidário. Não porque ignore a política, mas porque rejeita a partidarização da justiça social. A cidadania crítica nasce da ruptura com o sistema — não da acomodação. Como escreveu Frantz Fanon: “Cada geração deve, na relativa opacidade de seu tempo, descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la.”

É preciso, pois, definir o que é oportunismo político: é a capacidade de adaptar discursos conforme o contexto, abandonando princípios em nome de ganhos pessoais ou de poder. Isso não é exclusividade do partido no poder; é também um vício dos que se dizem oposição.

O caso recente de Venâncio Mondlane é emblemático. Um homem que diz querer representar todos os moçambicanos, mas que se fotografa sorridente com André Ventura, político europeu que nega a humanidade de imigrantes, africanos e muçulmanos. Isso não é civismo. É rendição.

É uma entrega simbólica aos inimigos do povo, feita em nome de uma suposta inclusão. Mas inclusão sem crítica é cumplicidade. E neutralidade frente à opressão é tomar o lado do opressor.

É fundamental analisar tanto o sistema quanto os que se opõem a ele. Não basta criticar a FRELIMO. É preciso criticar também os partidos de oposição que falham em construir propostas, que se perdem em rivalidades internas, que se alinham a ideologias coloniais e que não conseguem formar uma frente unida. A falta de união entre os partidos políticos em Moçambique ou África não é apenas uma fraqueza estratégica — é uma traição histórica ao povo que clama por mudança. Não basta querer tomar o poder; é preciso ter um projecto de país.

A história da FRELIMO, dos movimentos de libertação até aos dias de hoje, é marcada por contradições. Do espírito revolucionário dos anos 1960 à morte de Mondlane e Magaia, passando por Samora e os dissidentes da luta armada que não estão na lista da história oficial, o país foi sendo tomado por uma nova elite que replicou as mesmas formas coloniais de dominação: clientelismo, tribalismo, corrupção e o uso da lei como instrumento de opressão.

E hoje, o que devem fazer os partidos? Os partidos têm uma missão urgente: repolitizar a sociedade. Isso não se faz com discursos demagógicos ou alianças oportunistas. Faz-se com formação, com trabalho de base, com propostas claras. É preciso combater o regime autoritário e corrupto não apenas com emoção e populismo, mas com estrutura, com consciência e com acção organizada. Devemos mostrar ao mundo que o movimento pela mudança está no terreno.

Se o sistema vigente é neocolonial, então urge imaginar um novo sistema. Não basta tirar o Chapo ou o Forquilha depois de cinco anos. É preciso pensar num novo pacto social, num modelo de governança enraizado nos valores comunitários africanos, mas atento à complexidade contemporânea. Não se combate o império apenas com ressentimento. Combate-se com visão.

Hoje, mais do que nunca, precisamos de um novo começo. E isso não virá dos partidos como estão, mas de uma nova consciência colectiva, de uma sociedade civil que pense com autonomia, que organize encontros livres, que rejeite o partidarismo cego e que esteja disposta a desobedecer em nome da justiça. Como disse Albert Camus: “O homem revoltado é aquele que diz não. Mas se recusa a abdicar.”

A política moçambicana, se quiser renascer, terá de romper com o seu passado de rendição. Terá de reencontrar no povo o seu centro. E o povo, por sua vez, terá de deixar de ser espectador e voltar a ser protagonista. Não através de eleições manipuladas, mas através da ocupação consciente dos espaços públicos, do questionamento sistemático do poder e da construção de um novo imaginário político.

A liberdade não se negocia com quem lucra com a escravidão. E a democracia não se constrói com selfies. Constrói-se com luta, com memória e com uma crítica radical que começa por perguntar: O que estamos dispostos a perder para finalmente sermos livres?

Em Moçambique, a cultura é, muitas vezes, tratada como um ornamento nacional — uma vitrine de danças, trajes e monumentos que preenchem brochuras turísticas e discursos institucionais. No entanto, esta perspectiva redutora obscurece a verdadeira densidade do termo. Para a antropologia linguística, a cultura é um sistema vivo de significados partilhados que se constrói e se transmite, sobretudo, através da linguagem. Mais do que um conjunto de expressões artísticas, cultura é o modo como um povo interpreta o mundo, organiza o tempo, estrutura os afectos e molda os seus silêncios, ao mesmo tempo, se n adequando às tendências globais.

Alessandro Duranti, um dos principais nomes da antropologia linguística, afirma que a linguagem é um meio de acção cultural, e não apenas um reflexo da realidade social. Isto significa que, ao falarmos, não apenas comunicamos, como também criamos o mundo em que vivemos. Cultura, então, é uma performance contínua, uma negociação simbólica, uma reinvenção diária. É este carácter dinâmico e polifónico que a torna, ao mesmo tempo, fascinante e politicamente delicada.

Quando se exige que a cultura “sirva” o país, corre-se o risco de reverter esse fluxo vital, forçando-a a tornar-se instrumento de um projecto político ou ideológico. O país, enquanto entidade político-administrativa, tende à ordem, à homogeneidade e à previsibilidade. Já a cultura, por sua natureza, é dissonante, subversiva e plural. Historicamente, os regimes que buscaram domesticar a cultura, do fascismo aos autoritarismos contemporâneos, não hesitaram em apagar vozes marginais, silenciar dissidentes e padronizar os modos de sentir.

Nestes contextos, a cultura perde a sua força crítica e transforma-se em vitrina de obediência. Mas e se invertermos a pergunta? E se o país existisse, antes de tudo, para servir à cultura? Esta inversão não significa colocar a arte acima da lei, nem propor um modelo anárquico. Trata-se de reconhecer que o que torna uma nação verdadeiramente viva é a sua capacidade de escutar os múltiplos sotaques que a compõem, os ritmos que a perpassam, os conflitos que a atravessam. Servir a cultura, neste sentido, é garantir liberdade de expressão, fomentar a diversidade estética, apoiar a criação independente e proteger o direito de cada grupo de contar a sua própria história.

Num mundo onde a cultura tende a ser capturada pelo mercado ou domesticada pelo Estado, urge resgatar a sua função original: ser espaço de questionamento, de invenção e de resistência. Como escreveu Edward Said, "nenhuma cultura é monolítica, nenhuma permanece imóvel". A cultura vive do desconforto, e é nele que reside a sua maior potência transformadora.

A conclusão a que se chega, portanto, é clara: a cultura não deve servir ao país. Pelo contrário, é o país que deve estar ao serviço da cultura. Não como um mecenas que financia por interesse, mas como um guardião que protege o terreno fértil onde o pensamento floresce. Um país que sufoca a cultura está a comprometer o seu próprio futuro; um país que a alimenta, está a plantar as sementes da liberdade.

 

Quando olhamos para Virgília Ferrão temos a impressão de que o tempo não passa para a jovem autora. O seu semblante é o mesmo da menina que, há 20 anos, se refugiou no mundo da literatura. Essa aparência exterioriza o espírito desprendido e sonhador com que vem criando, desde então, de forma bem-sucedida, os mundos encantatórios dos seus livros.

Numa entrevista com Eduardo Quive, ela disse o seguinte: “O meu passatempo favorito era criar outros mundos e depois viver nesses mundos.” Isto é, ficar longe das limitações e pressões da realidade.

Um paradoxo, porque, quando ela queria passar de forma discreta, vivendo nesses outros mundos, os seus livros, que incluem O Romeu é Xingondo e a Julieta Machangane (2005), O Inspector de Xindzimila (2016), Sina de Aruanda (2021) e Os Nossos Feitiços (Ed. I, 2022-Ed. II, 2024), a colocam em destaque entre as novas vozes do panorama literário moçambicano.

A escritora pertence a uma geração que busca, através da arte, reflectir sobre os dilemas do presente e as cicatrizes do passado. Mas ela vai mais além ao propor iniciativas que procuram dar espaço a outras vozes. Disso são exemplos o blog Diário duma Qawwi e a antologia Espíritos Quânticos. Como sinal da sua projecção, tem contos antologiados no estrangeiro e, num outro nível, colaborações que buscam por novos caminhos criativos, como é o caso da ficção especulativa.

Nos seus escritos, Ferrão dá-nos uma imagem actual da sociedade moçambicana, em geral e do vale do Zambeze em particular. O retrato que faz desse espaço rico em mitos e tradições, o chão donde vêm as suas raízes, é marcado por tensão entre transformação e tradição, discurso e realidade, desafios e resiliência. Com isso, estamos perante uma escritora que caminha com o seu tempo.

O Inspector de Xindzimila, seu segundo livro, representa um momento particular da sua carreira. Na conversa com Eduardo Quive, fala deste livro como uma incursão num “género pouco explorado na nossa literatura”, justificando a “ousadia” nos seguintes termos: “Sempre gostei de usar elementos como suspense e mistério nas minhas narrativas.”

A trama gira em torno de Dionísio, protagonista que retorna à sua vila natal, Xindzimila, para assumir o cargo de inspector na área de investigação policial. O início das suas funções é marcado por uma série de assassinatos misteriosos e ressentimentos antigos.

O facto de a estória ser contada a partir da perspectiva dos personagens contribui para a criação de uma atmosfera de introspecção, na qual o leitor, em meio ao escopo temático acima referido, se vê convidado a reflectir sobre temas mais íntimos como inveja, amor e perdão.

A parte inicial do livro fala da chegada de Dionísio a Xindzimila, o ambiente na vila e no seio da família e o reencontro com os amigos depois de muitos anos de ausência. Essa parte serve para preparar o “chão”, o espaço-tempo da narrativa. Até então as marcas do género policial propriamente dito são apenas afloradas por chamadas que o inspector recebe ao telefone, chamadas breves com conteúdo truncado ou não revelado. É quase a meio do romance que as acções com mortes, suspeitas, actividade
detectivesca, confrontos com uso de armas, etc. passam ao primeiro plano. A narrativa adensa, torna-se não-linear, o suspense e o mistério sobem ao clímax.

A publicação de Sina de Aruanda, em 2021 consolida o amadurecimento literário de Virgília Ferrão, com uma proposta que mistura ambientes históricos e contemporâneos para criar um relato de amor, conflito e desafios ambientais que se estende por séculos.

Nesta obra, a narrativa é estruturada a partir de dois enredos paralelos: o primeiro passa-se no século XIX e o segundo no século XXI. No enredo do século XIX,  companhamos a história de Carina de Sousa, uma criada negra acusada de bruxaria, e seu amor proibido com Pedro Lucas, o filho do patrão; no do século XXI, o professor Daniel de Barros e a estudante Maria Cristina empreendem a missão de restaurar uma região ameaçada pela exploração predatória, descobrindo, ao longo do
percurso, que são reencarnações dos protagonistas do passado. Essa dualidade temporal permite uma reflexão profunda sobre os ciclos da história, os conflitos humanos, as questões ambientais e sociais.

Os Nossos Feitiços é uma narrativa em que a autora faz a fusão entre o mundo real e o sobrenatural, expondo a influência das tradições e memórias do passado nas práticas sociais contemporâneas. Em torno da Laila Lubrino, a protagonista e narradora, gravitam acontecimentos, sentimentos e interacções em meio a conflitos.
Quanto à forma, entre O Inspector de Xindzimila e Sina de Aruanda, nota-se uma diferença de registos, que podiam ser vistos como extremos, não fosse o facto de terem aspectos que são comuns. Os Nossos Feitiços situar-se-á entre aqueles dois registos.

Em O Inspector… temos uma escrita profusa; que flui como um rio caudaloso, transportando a matéria em trama. A narração corre na primeira pessoa do singular, numa “fala normal”, desprendida e introspectiva, onde as palavras são apenas acessórios na construção da estória. Já em Sina de Aruanda nota-se mais equilíbrio entre descrição e acção, o estilo é frio e pragmático, mais sintéticos os diálogos, as palavras (as frases) passaram por uma balança, uma tesoura cortou ao texto as rebarbas. Nisso, resulta um registo comparativamente mais enxuto, mais depurado.

A prosa virgiliana não deslumbra tanto pelo arroubo poético, ou pelo engodo da palavra, mas antes cativa pela inventiva, pela capacidade de enredar (ligar as acções num todo lógico), pela subtileza, pelo humanismo dos personagens, pelos detalhes do dia-a-dia, com o atípico a surgir como uma falha abrupta na corrente do que parecia trivial.

Como já dito, um e outro estilo convivem. A autora, que, em nossa opinião, já faz bem o que tem feito, querendo, tem aqui várias opções: privilegiar uma das técnicas narrativas mencionadas atrás, fundi-las numa só ou ainda evoluir para um estilo algo distinto. Seja como for, a nós, no fecho deste pequeno ensaio, resta manifestar a crença de que _ parafraseando Luís Vaz de Camões _ se mais mundos houver por criar, Virgília lá chegará.

Em Moçambique, a esfera pública vive um momento de tensão e deformação. Longe de ser um espaço vibrante, plural e desinibido de ideias — como deveria ser numa sociedade aberta —, ela está cada vez mais ameaçada por forças que silenciam, distorcem e desqualificam o pensamento crítico. 

Vivemos tempos em que pensar com liberdade é um risco, e dizer a verdade é quase um acto de desobediência. Neste contexto, emerge a figura do intelectual orgânico, cuja missão é hoje mais urgente do que nunca.

O conceito de intelectual orgânico, cunhado pelo filósofo Antonio Gramsci, remete-nos a um tipo de pensador profundamente ligado às estruturas sociais e políticas do seu grupo ou classe. Ao contrário do intelectual tradicional, que se pretende distante e neutro, o intelectual orgânico está inserido no processo histórico e político. Ele pensa com um lado — mas pensa. Reflecte, questiona, provoca e, acima de tudo, critica. E a sua crítica não é traição: é amor em forma de exigência.

Num país em mudança com o está Moçambique, com novos rostos no poder e novos desafios sociais, económicos e culturais, o intelectual orgânico é simultaneamente um aliado e um espelho do seu partido ou movimento político. Ele não se limita a aplaudir discursos, mas analisa os erros. Não se esconde às sombras da conveniência, mas ilumina as contradições. O intelectual orgânico é, ou deveria ser, o primeiro crítico da sua própria casa políticaporque quer vê-la melhor, mais forte e mais justa.

Ora, em Moçambique, o silêncio tem sido confundido com prudência. O silêncio do intelectual orgânico na esfera pública é associado a um comportamento decente. É decente todo o intelectual orgânico que mantém o código do silêncio. Não fala porque é decente. E quem é decente ensinou-lhe a cultura do medo, não colocar em causa o bem-estar da sua família. Foi educado e socializado para proteger quem viola as regras — e não quem as denuncia. A sua lógica prefere preservar a aparência do que enfrentar a verdade. Por isso tem medo da cidadania, pois exercer a cidadania exigiria romper com a falsa decência e abraçar a integridade como valor superior. O medo de exercer a cidadania é generalizado.

A cultura política dominante ensinou-nos que ser leal ao grupo é mais importante do que ser íntegro com a verdade. E, assim, a integridade foi colocada abaixo da lealdade. Quem escolhe falar é tratado como traidor e/ou reaccionário. Quem silencia é tido como “companheiro confiável”. O resultado é um ambiente em que os intelectuais orgânicos — que deveriam ser a consciência crítica dos seus partidos — se tornaram os seus advogados de defesa incondicional, principalmente quando os erros são gritantes e os riscos de decadência institucional são evidentes.

E as consequências desta atitude não são abstractas: são o colapso progressivo da credibilidade pública, o afastamento das bases sociais – o bloqueio de novas ideias e a instalação de uma mediocridade crónica no pensamento político e estratégico.

Vale lembrar que quem exige silêncio aos intelectuais orgânicos, aqueles cuja vocação é pensar criticamente analisando com minúcia as estratégias e políticas, está a exigir que o país caminhe com uma bússula desparametrizada ou sem ela e isso não protege ninguém muito menos os próprios líderes.

Quando o intelectual troca a verdade pela conveniência, ajuda a cimentar a mentira como base da acção política e/ou governação — e, nesse processo, sabota silenciosamente o futuro do país.

Em Moçambique, as lideranças partidárias moçambicanas enfrentam hoje um dilema existencial: ouvir a verdade crua dos intelectuais orgânicos que pensam com responsabilidade histórica ou cercar-se de aduladores que falam o que agrada, mas destroem por dentro. O futuro dos partidos — todos, sem excepção — dependerá da postura corajosa e ética dos seus intelectuais orgânicos. Cabe aos intelectuaus orgâncicos tornarem-se agentes de transformação, ou serão os últimos a apagar a luz.

Não há desenvolvimento sem crítica. Não há renovação sem autocrítica. Não há poder duradouro sem verdade. Que os intelectuais orgânicos de Moçambique escolham ser mais do que decoradores de discursos. Que escolham ser construtores de uma nova cultura política, baseada na liberdade de pensamento, na responsabilidade moral e na coragem de contribuir para o bem comum — mesmo quando isso exige desconforto.

É também importante reconhecer que a nova cultura política não se materializará apenas com discursos sobre ética, meritocracia ou patriotismo. Esses valores não se implantam por decreto — exigem o engajamento firme e coerente dos intelectuais, dispostos a pensar e agir em conformidade com esses princípios. A luta que travamos é, acima de tudo, uma luta ideológica de visão de mundo. De um lado, os conformados, os “decentes”, que sempre viveram à sombra do status quo e se recusam a fazer diferente. Estes combatem de forma acérima toda a empreitada política tendende a lançar as bases para renovar Moçambique. Do outro, “indecentes”, que se recusam a silenciar, que analisam com objectividade os fenómenos, argumentam com ética e agem com sentido patriótico. O resultado desta luta ideológica – entre os “decentes” que acomodam e os indecentes que ousam – vai determinatr o nosso futuro imediato, como país.

A verdade dói,  mas a verdade liberta (Jo 8:32).

Texto dedicado ao meu amigo JJM

Há homens cuja vida se escreve não apenas com palavras, mas com obras que permanecem como árvores frondosas, oferecendo sombra muito depois de terem sido plantadas. O Professor Tito Fernandes é um desses homens. Nesta semana, em que Nampula voltou a debater a desnutrição infantil e a confrontar números alarmantes, com 47% das suas crianças afectadas, tornou-se inadiável e imprescindível revisitar a figura deste Professor e Cientista. Foi ele quem esteve na génese dos primeiros cursos superiores de Nutrição, tanto no Porto em Portugal, nos anos 70, bem como em Nampula, em 2007, impulsionando inúmeras investigações nesta área vital. Na verdade, há um tributo que lhe é devido, pela sua contribuição generosa e discreta às diversas esferas do saber em Moçambique. Tito Fernandes pertence a esse grupo raro de cidadãos que, no silêncio, engrandecem a nação, embora a esfera política tantas vezes tenha dificuldade em identificá-los e reconhecê-los.

Filho de moçambicanos Maximiliano Fernandes e Aninha Fernandes, viu o sol pela primeira vez no hospital S. José de Lhanguene, hoje José Macamo. Nasceu em 1948, no Dia de São Valentim e, ao longo da vida, carregou consigo o espírito de Valentino. Eventualmente, não haja data mais simbólica para um homem assim.

Contemplou as rosas que lhe foram oferecidas e as margens serenas do Índico. Cresceu ao sabor dos ventos de Lourenço Marques, entre bairros que misturavam cores, cheiros e sabores, mas onde já se percebia, com nitidez, a natureza do regime e a presença áspera da ausência de liberdade.

Como todas as crianças de sua idade fez as suas primeiras aprendizagens na escola oficial. Na adolescência, amadurecido pelas experiências e contradições, decidiu dedicar-se ao cuidado da vida, formando-se como médico veterinário. Estas decisões foram, sempre, ponderadas ao nível familiar e serviam de afirmação. O seu pai, regente de uma orquestra juvenil, não se opôs às escolhas do seu filho, o segundo de uma prole de quatro, embora não tenha abdicado do desejo de vê-lo seguir também a carreira musical. Max Fernandes era um homem profundamente comprometido com a música, a que se entregava com fervor. Foi ele o responsável pela criação da Orquestra Cívica de Lourenço Marques e do respectivo Coral Moçambicano. Por conseguinte, Tito Fernandes foi nutrido entre a sonoridade e a melodia dos sonhos mais clássicos, e a exigência da mocidade e religiosidade portuguesa.

Fez parte dos primeiros grupos de estudantes de cor a ingressar e a percorrer o seu caminho académico nos então Estudos Gerais Universitários de Moçambique, instituição que mais tarde se converteria na Universidade de Lourenço Marques, marco fundamental na consolidação da estrutura universitária em Moçambique. A exuberante fauna selvagem, diversidade de espécies e sua distribuição pelos diferentes ecossistemas, foram terreno fértil para o convencer a seguir por uma área que prometia e atraía jovens curiosos. Analogamente, beneficiou das influências de Armando Sá Rosinha, Jaime Travassos Dias, José da Costa, Raul Machado, e outros, que se impregnaram no horizonte juvenil das famílias da época. Cuidar da fauna selvagem parecia uma obsessão e veterinária era o caminho óbvio.

Todavia, a sua curiosidade e sede de conhecimento não conheceram fronteiras. De família de classe média, cujas origens eram Goa, não tardou que tivesse seguido para a capital da metrópole, Lisboa, para terminar os seus estudos e iniciar a sua pós-graduação. Esta foi a janela que permitiu que ele tivesse abraçado e acumulado outros saberes, os quais levaria sempre consigo, de volta ao seu lugar de origem, mas, principalmente, às universidades onde esteve filiado.

Fez o mestrado e doutoramento na cidade fria e chuvosa de Newcastle, Reino Unido, trajectória lhe valeu uma oportunidade para obter uma bolsa de estudos do conceituado British Council.

Uma das frases marcantes do Professor Tito Fernandes teve mesmo a ver com a vontade de estudar e a sua habilidade de pesquisar. A seu ver, a investigação científica podia nascer de qualquer tema, de qualquer ponto de partida, por mais remoto que fosse. O essencial, repetia, era o método, a energia aplicada e a capacidade de construir, a partir de um tema, as premissas que sustentam uma reflexão rigorosa.

Nacionalista desde a juventude, partilhou sonhos e convívios com outros grandes nomes da libertação de Moçambique. Conheceu a família Honwana, o Luís Bernardo e a Gita; privou com amigos e familiares de Óscar Monteiro, e esteve com Graça Machel, em Londres. A lista parece longa, uma espécie de cartografia e um testemunho do seu tempo; personagens matrizes da cultura e responsáveis pela nossa liberdade. Muitos destes concidadãos, os quais se tornaram revolucionários, tiveram a oportunidade de fazer os estudos em Lisboa e, embalados pelos ventos das mudanças, fizeram dessa cidade a placa giratória e o trampolim para países como Espanha, Franca, Suíça, etc., e se juntaram aos restantes que viriam a compor a espinha dorsal das lutas de libertação, dos nossos actuais Estados, agora cinquentenários. Esta clandestinidade silenciosa, porém persistente, foi crucial para a difusão de ideias de resistência e de liberdade e para a desestabilização do poder colonial.

O comprometido Professor Tito Fernandes fez parte do grupo que optou por uma luta mais silenciosa, mas não menos valiosa. A luta pelo saber, pela dignidade da ciência, pelo desenvolvimento do seu povo através da educação e da pesquisa. Ainda assim, mesmo no recato da academia, a clandestinidade permitiu a distribuição de panfletos, materiais de propagandas que denunciavam a censura, a repressão e a falta de liberdades políticas. Esta foi a luta contra a indignidade e, por vezes, bem menos visível e sujeita ao vexame do alheamento. Mas esse alheamento, seja ele individual ou colectivo, nunca foi sinónimo de omissão ou desmemória, pois a história, quando se recusa a esquecer, resgata e consagra.

Em Portugal, construiu uma sólida carreira académica, alcançando o mais alto grau da docência e tornando-se numa referência incontornável no campo das ciências veterinárias. Contudo, um leque mais amplo de cursos e oportunidades levou-o a aprofundar estudos em nutrição, especificamente nutrição humana. Esta tornou-se a sua verdadeira paixão, fruto da convicção de que o ser humano pode ser mais diligente, ter uma alimentação mais assertiva e mudar o cenário do opróbrio do descaso. Certamente, nunca esqueceu Moçambique, onde deixou a sua marca mais profunda na área de nutrição, razão pela qual, qualquer debate nos remete à sua colaboração e escritos. Em Moçambique, apesar dos esforços e das políticas dos sucessivos governos, persistem níveis alarmantes de desnutrição, decorrentes tanto de problemas relacionados à segurança alimentar quanto da disponibilidade insuficiente de géneros alimentícios.

Na Universidade Lúrio, em Nampula, o professor Tito Fernandes foi pioneiro e pilar fundamental para o debate sobre nutrição, ao mesmo tempo que ajudou os jovens docentes e pesquisadores a enquadrarem melhor a sua abordagem. Durante anos, foi o único catedrático, responsável por formar quadros e consolidar uma instituição que procurava se afirmar no panorama científico nacional e regional, ao mesmo tempo que emprestava a região Norte uma oportunidade de estudar as suas próprias potencialidades e oportunidades. Fez parte em Pretória do ICSU/ROA, Escritório Regional para a África do Conselho Internacional para a Ciência, em representação de Moçambique.

Graças à sua contribuição, os cursos de Nutrição tornaram-se pilares do ensino superior na região norte e em todo o país. Hoje, dezenas de profissionais formados sob sua orientação estão espalhados por todas as províncias, actuando em hospitais distritais e provinciais. Foi um dos maiores entusiastas na defesa de uma abordagem inovadora para a nutrição no norte de Moçambique, orientando centenas de estudantes e transformando-se, para muitos, num mestre e exemplo a ser seguido.

Plantar é um acto de paciência e uma acção que dá fôlego ao planeta. Estudar tem os mesmos contornos. Recordava, com frequência, que sua passagem pela Escola Superior de Medicina Veterinária, em Lisboa, lhe ensinou a plantar, na própria mente, a importância do ensino ao longo da vida. Para ele, estudar era mais do que plantar, significava colocar na cabeça de todos as sementes da mudança. Assim resumiu o tempo que passou pela Universidade Técnica de Lisboa, onde assumiu diferentes posições na carreira docente e chegou a Director da Faculdade. O actual Reitor da Universidade de Lisboa, foi seu aluno e assistente durante toda a sua carreira.

Chega a titulação e a cátedra no final dos anos 70, depois de um período intenso de trabalho e de ter incentivado várias pesquisas e o surgimento de um novo conjunto de pesquisadores para a própria faculdade e para o país. Tito Fernandes a simbiose perfeita de uma emergente investigação académica que tinha de se afirmar e, da necessidade crescente de deixar uma marca indelével numa academia portuguesa em transformação, que se democratizava e ganhava novos contornos e pergaminhos. O ensino superior em Portugal tinha apenas seis universidades, composto principalmente por escolas técnicas, estas últimas com foco em áreas especificas de conhecimento.

O período correspondia a própria transição política que influenciou o desenvolvimento do ensino superior. Moçambique já era independente e Tito Fernandes não regressa de imediato. Muitos dos antigos colegas com quem estudara em Lourenço Marques, abandonam a cidade e a convulsão política empurrou-os para longe do jovem país independente. Reencontrou alguns desses antigos companheiros e foi testemunha do nascimento de novas universidades e institutos politécnicos. Ainda assim, nunca perdeu de vista o desejo de regressar à sua terra e contribuir para o fortalecimento do sistema universitário moçambicano.

Enquanto isso, apoia na estruturação e no engrandecimento da Ordem dos Médicos Veterinários de Portugal, tendo sido Bastonário, ajudando a dar corpo a uma instituição indispensável para a regulação e a dignidade da profissão. Assumiu um papel central nesse processo, e os doze anos que passou à frente da Faculdade de Medicina Veterinária, aliados à sua colaboração próxima com a Ordem, abriram-lhe as portas da Europa, onde colabora com a Comissão Europeia, sendo Conselheiro Oficial em Nutrição durante 15 anos e como Membro do Comité Científico da EFSA-European Food Safety Authority.

A sua produção científica é impressionante. Desde esse período e até ao presente ele escreve e virou co-autor de mais de 300 artigos publicados nas mais variadas revistas científicas indexadas. Os destaques vão para o European Journal of Agriculture and Food Sciences; Foods; Nutrients; J Applied Science; J Pediatrics & Pediatrics and Medicine; Oncotarget; Fermentation; Revista AULP; EC Nutrition, e muitas outras. Analogamente, virou autor de mais vinte e sete (27) livros técnicos e científicos.

Ao longo da carreira científica e profissional foi outorgado com nada mais e nada menos que seis (6) títulos de Doutor Honoris Causa, atribuídos por universidades Europeias da Roménia, Bulgária, Eslovénia, Macedónia, bem como títulos Honoríficos de Espanha e Brasil, em reconhecimento ao seu imenso contributo ao conhecimento científico, inovação na pesquisa e ao firme contributo de formação de jovens. Mas estes títulos honoríficos tem um outro valor, reconhecem essa personalidade eminente, por se destacar, singularmente, pela contribuição à cultura e a Humanidade.

Diz um provérbio africano que “quando a árvore envelhece, ainda dá sombra”. E assim ele continua a oferecer sombra e frutos. Já na recta final de uma ventura carreira, em Lisboa, regressa ao seu Moçambique, cidade do Maputo, para estabelecer vínculos com a sua instituição de formação inicial, a UEM. Era uma formalidade quase desnecessária, pois, jamais deixara de colaborar com diferentes académicos e pesquisadores, para além de facilitar a vinda de muitos destes para Portugal. Todavia, as burocracias locais, apenas, permitem que estabeleça contractos de curta duração e, participa de coração aberto e entrega total em diferentes júris de doutoramento, orienta investigadores e colabora activamente com diferentes instituições que solicitam seu saber e experiência.

Esta passagem por Moçambique permite que seja eleito para a Academia Africana de Ciências, partilhando a sua sabedoria em Nutrição com as novas gerações. Para além de ser um dos raros moçambicanos, ou mesmo único, a integrar esta Academia Africana de Ciências, Tito Fernandes assumiu múltiplas responsabilidades na coordenação.

Foi igualmente determinante no processo de oficialização da Ordem dos Médicos Veterinários de Moçambique, ao abrigo da Lei n.º 13/2011, contribuindo decisivamente para o fortalecimento da profissão no seu país natal. Trouxe consigo a experiência acumulada ao longo dos seis anos em que presidiu a Associação Europeia de Estabelecimentos para o Ensino Veterinário (EAEVE), que congrega mais de cem universidades europeias, e da qual viria a tornar-se Presidente honorário.

A filosofia popular lembra-nos que “o rio não bebe a sua própria água”. O Professor Tito Fernandes sempre entendeu o saber como um bem comum, e a sua vida foi dedicada a irrigar mentes e comunidades com o que aprendeu e pesquisou. O seu exemplo confirma ainda que “quem planta tâmaras não come os frutos, mas deixa-os para os filhos do amanhã”.

De Maputo a Nampula foi um desafio circunstancial e um convite improvável. Existia um projecto em criação e muitos sonhos de jovens que procuravam sua afirmação. Esta proposta o cativou, mesmo sabendo que seria difícil fazer a mobilidade e se estabelecer distante da cidade capital. A Universidade Lúrio era incipiente e tudo ainda precisava ser criado, estruturado, afirmado. Faltavam instalações adequadas e programas cuidadosamente definidos. Era como mergulhar num mar de incertezas. Fez as viagens iniciais para entender o tamanho do desafio e mesmo municiado de um manancial epistemológico aceitou com reservas. Depois, decidiu colaborar e assumir o projecto de formação universitária em áreas de saúde, no Norte do país, nas províncias mais populosas e com enormes recursos naturais e sem capital humano.

Ele foi um dos pilares da criação e estruturação da Universidade Lúrio, em Nampula. Durante anos, foi o único Catedrático da instituição, ajudando a fundar o primeiro curso superior de Nutrição do país e liderando a Direcção Científica. Participou de conselhos e foi ele próprio, um conselheiro indispensável. Era-o nas palavras escritas e nas entrelinhas dos seus comentários, nos gestos comedidos, na sua forma discreta de estar e de ser. Era-o quando sorria sorrateiramente, quando recomendava prudência aos colegas mais ávidos em resolver tudo de uma única vez. Era-o quando se entregava às visitas aos bairros e quando recebia visitantes de outras universidades, naquele inglês que a todos superava. Professor Tito deixou a marca de um homem genuíno, astuto, desenvolto, sagaz, que nos iluminava com algo que não sabíamos discernir, mas sabíamos que nele havia uma luz.

Nampula permitiu-lhe adquirir uma casa na Ilha de Moçambique. Uma casa de veraneio, sim, mas também um reencontro com a natureza que sempre amou e admirou. A Ilha, outrora primeira capital de Moçambique e insubstituível mosaico de influências culturais, degradava e perdia muito do seu brio. Daquele imaculado ponto de encontro de rotas comerciais e culturais, que outrora facilitava a interacção entre diferentes povos, sobravam os resquícios de uma capital que virava uma imagem apagada de tanta história e gloria.

Ainda assim, a Ilha ofereceu-lhe um refúgio idílico por onde reencontraria a paz no sabor das brisas do Índico. O clima o apaixonou e as gentes o enfeitiçaram. Reencontrou a fortaleza de São Sebastião, entendeu melhor a cidade de Macuti e encontrou espaço para repensar a universidade. Algumas vezes, a sua esposa teve a oportunidade de mergulhar e explorar as dezenas de navios submersos na Baía e os seus tesouros que ficaram nas profundidades e entranhas de um mar de tantas histórias.

A Ilha revelou um lado íntimo e humano que o complementa e rejuvenesce. Sem se aperceber retoma o gosto especial pela música local, o Tufo, e a música clássica do seu pai e dos amigos de juventude com quem tocou e fez todos os acordes e melodias. A paixão pelos sons, a fusão do momento e do tradicional o transportam para recordações juvenis. Mas a Ilha é assim: vive de encantos e mistérios. Não por acaso foi chamada de Ilha dos Poetas, e Licínio Azevedo a nomeou, com justeza, Ilha dos Feitiços.

Para um antigo violinista que conserva essa delicadeza na alma, os sons métricos da percussão o enfeitiçaram de forma infinita. Escrevi, certa vez, que na sua propagação as ondas cantam a história da Humanidade, os sonhos de um povo, os gritos dos escravizados e a fantasia das sereias. O mar veste-se a rigor e comunica. Explica aos insulares o sentido da musicalidade, e aos continentais, que toda a vida terrestre depende do mar. As ondas, vaidosas, fazem a comunicação mais eficiente e nítida que conhecemos. A vida é uma onda.

As memórias o transportam para o coral moçambicano da catedral de Lourenço Marques, inaugurado, em 1944, pelo Cardeal Cerejeira. O seu pai, Maestro Max Fernandes, igualmente, se dedicou a música e ensinou dezenas de jovens a tocar diferentes instrumentos musicais. Os ritmos do Tufo transportaram-no de volta a essas memórias, fazendo da ilha tanto um repositório de lembranças quanto um espaço para suas críticas à falta de uma política consistente de incentivo cultural nos governos descentralizados.

Nampula propiciou a abertura de portas para os jovens docentes que procuravam formação. Muitos deles de uma raiz humilde, mas todos extraordinários e comprometidos como sempre defendeu. Os programas com a comunidade circunvizinha, pois o campus estava alguns quilómetros fora da cidade, em Marrere, e abertura de outros campi no Niassa, Wannagu, e Chuiba em Pemba, Cabo Delgado, foram um novo atractivo para quem já tinha feito e visto de tudo um pouco. Bebeu da cultura local e saiu para rua com ouvidos de escutar e aprender. Poder ver fruta fresca em cada esquina e imaginar que ninguém consumia e só servia para revender, era inconcebível.

Numa das cerimónias de abertura do ano académico, que no ensino superior moçambicano parecem já ter se tornado rotina, tivemos a honra de receber o antigo Chefe de Estado de Cabo Verde, ninguém menos que o Comandante Pedro Pires. Embora marcado pelo peso dos anos, conservava uma lucidez impressionante ao abordar os temas, cativando a atenção e o interesse de todos.

Professor Tito foi um dos escolhidos para o acompanhar pelas voltas a cidade e a região. Foi um momento mágico para ele, reencontrar alguém que já havia seguido de longe, nos tempos em que ambos viviam em Portugal, mas com quem ainda não havia tido a oportunidade de conviver pessoalmente. Juntos, viajaram para Pemba e depois para a Ilha de Vamizi. Um momento para experimentarem as límpidas e sempre quentes águas do Indico e da Biodiversidade que se estendia por uma costa azulada e de areias límpidas. Um encontro para lá de profissional que retomou tantos episódios e narrativas de percursos libertadores e democráticos.

Professor Tito Fernandes explicou, com orgulho, da funcionalidade dos seus laboratórios, em Nampula, que testavam os níveis e teores de aflatoxinas, substâncias toxicas produzidas por fungos, que contaminavam alimentos como milho, feijão, mandioca e amendoim. Esses laboratórios realizavam análises para avaliar os níveis de contaminação. Contudo, Nampula, embora sempre considerada um celeiro agrícola, nunca conseguiu nutrir adequadamente sua população. Ao contrário, repetidas vezes, deixou seus habitantes à mercê de uma pobreza extrema e de níveis inconcebíveis de desnutrição crónica e aguda, especialmente entre as crianças. Esses resultados reflectem os vestígios de modelos e práticas baseados na monocultura, mercados distorcidos e a flagrante ausência de educação alimentar e nutricional. Os cereais e as oleaginosas serviram os revendedores e nunca os produtores.

A cidade de Nampula, com o apoio de universidades da Europa e da América Latina, acolheu os dois primeiros congressos internacionais dedicados à nutrição humana e às estratégias para reduzir a desnutrição crónica e aguda que afecta mais de 50% das crianças em diversos distritos. Faltava proteína animal e vegetal, escasseavam as vitaminas e as lições não foram apreendidas e nem os ensinamentos captados.

Retomar esses debates quinze anos depois provoca angústia e nostalgia. As estatísticas terão de ser melhores, defende ele com convicção. O trabalho dos jovens nutricionistas melhorou as práticas e os modelos antes adoptados. Nesta área, ele se revela não apenas um especialista ostensivo, mas também um orador desconcertante. Na realidade, bem mais que um conhecedor, ele pode ser, também, instigador.

No sossego de Sintra, onde as energias para grandes deslocações já não abundam, permanecem as preocupações de ler teses e dissertações, acompanhar as notícias e publicar. Mergulha em tudo que diz respeito a Moçambique, escuta atentamente os boletins noticiosos e comenta as principais decisões políticas. Entre o vasto repertório acumulado e o constante referencial teórico, mantém-se atento e perspicaz nas suas análises.

Com a sua esposa Avril, britânica, com quem partilha a vida, tem, nas suas duas filhas, o suporte teórico para unificar a práxis e teorizar sobre as ciências e políticas. Com as três netas que herdaram o brilho do seu olhar curioso, ele reencontra os segredos para a longevidade e para reaprender do ensinamento infantil aquilo que o mundo adulto esconde. Sintra parece outra metade da Ilha de Moçambique, onde vive momentos serenos e inesquecíveis com a família, entre histórias e memórias.

O Professor Tito Fernandes vive com a convicção de que seu conhecimento é um bem a ser compartilhado, tenho dito. A sua vida confirma ainda que os frutos não precisam de ser comidos hoje. Hoje celebramos a sua longa carreira, não apenas como um percurso pessoal de excelência, mas como um legado colectivo. Um homem de ciência, de causas e de afectos, que semeou saberes com generosidade e coragem. Um Professor que acredita no amanhã e, por isso, nos ensina que o verdadeiro mestre nunca deixa de aprender, nem de partilhar. Que continue a dar sombra e frutos, como as grandes árvores do seu Moçambique. (X)

 

  1. Introdução

A ideia segundo a qual a “sexta-feira” é o dia do homem remonta a muito antes de Joana Coana (doravante JC) lançar o seu clássico “Sexta-feira”. Sempre que se escuta este número musical, corre-se à ideia de “liberdade”, “curtição”, “legitimidade para curtir”, etc. Entretanto, em “Sexta-feira”, de JC, mais do que se confirmar e frisar que “sexta-feira é o dia do homem”, depreende-se a representação do (in) sensível, motivo pelo qual nos propomos dissertar neste artigo.

  1. Aspectos teórico-conceptuais

1.1. Teoria de base

1.1.1. Fenomenologia Social de Alfredo Schutz

O mundo é feito de experiências do nosso dia-a-dia que beneficiam um certo conhecimento. Este mundo é o âmbito em que os sujeitos se encontram inseridos no seio de esquemas interpretativos que estruturam o desdobrar da vida cotidiana. (Schutz, 1979, apud Matsinhe, 2012)

Dito de outro modo, a teoria de Schutz permite, de modo geral, analisar os processos de interacção e significação que os indivíduos vivenciam no seio dos contextos sociais em que se encontram inseridos. (Matsinhe, 2012)

Portanto, para uma abordagem de natureza da nossa pesquisa, interessa uma teoria voltada para a vida cotidiana dos indivíduos e para o processo de construção social da realidade. Deste modo, a Fenomenologia Social de Alfredo Schutz mostra-se mais adequada, pois que, de acordo com Matsinhe (2012), “é uma teoria que dá relevância à construção da realidade social e de um dado fenómeno”, neste caso, a concepção de sexta-feira e suas peripécias em indivíduos inseridos em determinado contexto social (moçambicano).

No mundo, a vida insere os usos, os significados, os valores, os conhecimentos típicos da cultura de pertença e a linguagem. Assim, a Fenomenologia trata de uma estrutura face a face, entendendo que as acções sociais têm um significado contextualizado, de configuração social e não puramente individual. (Schutz, 1979, apud Matsinhe, 2012)

Assim, a presente abordagem enquadra-se na Fenomenologia Social, pelo facto de dar relevância à construção da realidade social e de um dado fenómeno, no caso concreto, do conceito de sexta-feira, conjugando-o com as práticas sociais vigentes nesse dia de semana; pelo que, mais do que demonstrar por que razões a sexta-feira é dia do homem, objectivamos, com este artigo, explicitar a dialéctica do (in) sensível.

1.2. Aspectos conceptuais

1.2.1. O (in) sensível

Conforme assevera Shelling (s/d), apud Silva (2002:127), o (in) sensível, em Literatura, depreende-se quando o “Eu”, portanto, não é sensível se não existe nele uma actividade que ultrapassa o limite. Devido a esta actividade, o “Eu” deve, para ser sensível a si mesmo, colher em si o estranho.

Dito de outro modo, “O (in) sensível, sendo o que se produziu com o transcender, sem que as personagens tenham consciência do mesmo, é resultado da impulsividade, desejo, apetite e aspiração (…)” (Monjane, 2024) (parênteses e grifo nossos)

1.2.1. Sexta-feira

Sexta-feira significa “sexto dia da semana, seguindo a quinta-feira e precedendo o sábado, sendo um dia comum de trabalho e lazer; também tem um dia de significado religioso. A etimologia também a relaciona com a deusa romana Vénus. Em algumas culturas, como a cristã, a sexta-feira é associada à crucificação de Jesus Cristo, sendo um dia de reflexão e oração, especialmente na Sexta-feira Santa.”

Todavia, fora dos conceitos retro mencionados (incluindo lazer), no contexto moçambicano, a sexta-feira, quiçá por ser o último dia laboral da semana, é tida como o dia em que o descanso se inicia e, por isso, conota-se como o dia do homem, no qual este aproveita para divertir-se à fartura, porquanto que, no dia seguinte, não irá ao trabalho. Trata-se, portanto, de uma “configuração social e não puramente individual deste conceito”, conforme atesta Schutz (1979), apud Matsinhe (2012).

1.3. Aspectos metodológicos

Conforme retro expusemos, a nossa abordagem centra-se na Fenomenologia Social de Schutz e, metodologicamente, para o efeito, porque a letra da música se encontra indisponível, servir-nos-emos da transcrição e posterior tradução (livre) para o Português, uma vez que se encontra em XiChangana, uma língua autóctone moçambicana que, segundo a classificação de Guthrie, pertence ao grupo Tshwa-Ronga e é codificada S. 50, grupo linguístico que engloba três línguas mutuamente inteligíveis.

  1. A dialéctica do (in) sensível em “Sexta-feira”, de JC

Conforme explicitámos no início da nossa alocução, mais do que se depreender que a “sexta-feira é o dia do homem”, em “Sexta-feira”, de JC, infere-se, igualmente, a (in) sensibilidade do homem para com a esposa e família, em detrimento da “curtição” e/ou proveito do dia que, socialmente, se instituiu como seu (do homem).

Por exemplo, para traduzir a sua indignação com o parceiro, devido à insensibilidade apresentada por si às sextas-feiras, o sujeito poético (mulher/esposa), em “Sexta-feira”, começa por dizer: ‘Desistimos de alguns homens por coisas que/ não sabemos (…)/ descobrimo-los por coisas/ que não as vemos (…)’, como quem diz entretanto, sabemos que acontecem, quando entoa “avavanuna hi va tsukula hi svin’wani svaku/ kala hi nga svitivi (…)/ avavanuna hi va gungula hi svin’wani/ svaku kala hi nga svivoni” (JC, s/d)

Na continuidade, o sujeito poético assevera que tudo isso se sucede por conta da máxima segundo a qual “sexta-feira é o dia do homem”, ou seja, independentemente do que aconteça ou esteja a acontecer em casa (com os filhos, com a esposa, etc.), eu vou curtir, quando diz: “Vali (dizem) sexta-feira é o dia do homem,/ eu vou curtir (…) eu vou à curtição (…)” (JC, s/d)

Ora, só com o exórdio, o sujeito poético (esposa) revela a sua indignação para com o homem (seu esposo), por culpa do conceito que se atribui à sexta-feira no contexto moçambicano. Mas, porque nenhuma asserção se basta por si só, o sujeito poético, na segunda estrofe, parte à argumentação, para fundamentá-la, nos seguintes moldes:

“(…) hiku vabya n’wana lani muntini, awahuma a famba/ hiku hiseta bebe lani muntini, awahuma a famba (…)/ hikuvabya nkosikazi, yuh, awafamba (…)”, i.e., [‘mesmo quando a criança está doente em casa, ele sai rumo à curtição/ mesmo quando o bebé está febril em casa, ele sai rumo à curtição (…)/ inclusive quando a esposa está doente, ele sai de casa rumo à curtição (…)’] e, para vincar a sua indignação, o sujeito poético serve-se da interjeição “yuh!”, que exprime exclamação, susto e/ou admiração (?)

Ou seja, apesar de a sexta-feira ser dia do homem, o expectável é que, quando se trata da saúde dos filhos e/ou esposa, o marido ignore a sexta-feira e cuide dos seus. Entretanto, o tipo de marido descrito neste número musical é o (in) sensível, para quem a saúde da família pouco importa; aliás, para quem a sexta-feira importa mais do que a saúde da família.

Estamos, portanto, perante o (in) sensível, i.e., “o sensível, sendo o que se produziu com o transcender, sem que as personagens tenham consciência do mesmo, é resultado da impulsividade, desejo, apetite e aspiração (…)” (Monjane, 2024) Isto se trata, segundo Schutz (1970), apud Matsinhe (2012), de uma acção social com um significado contextualizado, de configuração social e não puramente individual.

Ademais, conforme assevera Shelling (s/d), apud Silva (2002:127), o (in)sensível em Literatura depreende-se quando o “Eu”, portanto, não é sensível se não existe nele uma actividade que ultrapassa o limite. Devido a esta actividade, o “Eu” deve, para ser sensível a si mesmo, colher em si o estranho: abandonar um filho ou esposa doente para “curtir” a sexta-feira. (destaque nosso)

De seguida, face à situação de abandono para se aproveitar a sexta-feira, o sujeito poético traz um alerta aos homens, quando assevera: ‘(…) entretanto, toma cuidado, um dia voltarás para casa e não encontrarás a tua esposa em casa (…)’, quando entoa “(…) kambe tivonele, utatshuka ukuma svaku a nsati a fambile (…)” (JC, s/d) Ora, a pergunta que não se quer calar para o leitor/ouvinte é: Aonde irá esta mulher sofrida, né?

Como que em resposta, o sujeito poético remata [‘(…) jurei morrer no lar,/ mas, por tua causa (homem), ir-me-ei embora;/ jurei nunca amantizar,/ mas, por tua culpa (homem), amantizarei;/ jurei nunca beber,/ mas, por tua culpa (homem), beberei (…)’], quando entoa: “ani bejelile kufela lani wukatini,/ kambe hikola kawena nita famba/ ani bejelile ku kala ninga mbuyeti,/ kambe hikola kawena nita mbuyeta/ ani bejelile kukala ninga phuzi,/ kambe hikola kawena nita phuza (…) (JC, s/d)

Estamos, aparentemente, perante um argumento-chantagem, mas, no fundo, o sujeito poético evoca “ir embora”, “amantizar” e “passar a beber” não como chantagem, mas, sim, como forma de se aliviar diante da situação que vive, facto que se pode depreender na continuidade da estrofe, quando entoa:

“nita phuza byala niku pfotlo,/ kumbe anita twisa moya/ nita phuza byala niku ruu…/ kumbe anita twisa moya (…) nita dakwa njani mina,/ kumbe anita twisa moya” (JC, s/d), que significa [‘vou consumir álcool descontroladamente,/ para ver se alivio o meu espírito ou estado de espírito/ vou consumir álcool até perder os sentidos,/ para ver se alivio o meu espírito/estado de espírito (…) vou-me embriagar tanto,/ para ver se me alivio’], ou seja, a argumentação retro mencionada não objectiva vingança e/ou chantagem, mas, sim, aliviar-se perante a situação de abandono e (in) sensibilidade por parte do seu cônjuge, consubstanciando-se naquilo que Sartre (s/d), apud Da Silva (2002), assevera: “o Homem (homem e mulher) é aquela realidade que não é o que é, é o que não é (…) o ser que se realiza na sua própria superação.” (destaque e parênteses nossos)

À guisa de conclusão

Portanto, em “Sexta-feira”, de JC, mais do que se fomentar e/ou frisar a máxima segundo a qual “a sexta-feira é o dia do homem”, explicita-se a (in) sensibilidade de certos homens com relação à família, tudo por conta da sexta-feira, e chama-se-lhes atenção para mais compreensão (ou compaixão?), sob o risco de a mulher, em busca de alívio, cometer actos que periguem ou manchem o seu relacionamento.

 

BIBLIOGRAFIA

ACTIVA:

PASSIVA:

 

 

carlosdagraca18@gmail.com

 

Em maio a “malta” reuniu-se para celebrar os tantos anos de Kapa Dech, uma viagem na esteira da noite que se fez nostálgica e imersa nas vozes delicadas de Cizequiel & Roberto Isaías. Com uma plateia vestida de saudades de um tempo não muito distante, percorremos,  juntos, os álbuns Katchume lançado em 1998 e Tsuketani lançando em 2001.

O tempo foi passando e se me era difícil escrever estas linhas, aquela sensação de que é preciso apurar e deixar decantar o que se sente porque as vozes, os gestos, as vibrações da plateia e o toque de cada membro da banda, ainda se faziam ouvir suavemente em minha mente, e acredito que também,  na mente de todos que por ali estiveram para saudar a vida e obra de uma banda que cantou moçambique e a sua gente.

Mais do que cantar e tocar a música, os Kapa Dech, cantaram e tocaram a alma da gente, com vozes teleguiadas no tempo e um painel luminoso por traz, com as imagens dos que partiram, elevaram a dimensão do significado da palavra “_ companheirismo _”, exteriorizando as vivências e as memórias que compõem  os percursos que nos abraçam fazendo o poema da vida.

É verdade que “as estrelas não brilham durante o dia”, elas precisam da noite para remover com sua sabedoria a mancha do invisível. Na noite de 16 de Maio de 2025, o coração de maputo foi preenchido por estrelas que iluminam as notas que fazem a musicalidade da alma descalça do nosso povo, foi um musical com timbres vocais de outros tempos e que emergiram da periferia para os grandes centros urbanos onde hoje abrimos o coração para dizer obrigado Kapa Dech, pela música, pelo significado e pelo beijo mulato da noite no aroma dos lambirintos dos nossos bairros.

 

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