Quem nos resgata do escuro, quando a bússola solar nos desvia?
Este livro não é apenas um simples livro, traz consigo outros tantos, que atravessam vários tempos e revisitam a obra de Taruma enriquecida com o acréscimo de alguns textos inéditos que o poeta nos fez o favor de oferecer. “O recolher obrigatório do coração” é, portanto, uma espécie de antologia onde o poeta nos permite esse agradável reencontro com os escritos que melhor se enquadram nesta aventura discursiva que se espalha em sete dezenas de páginas. Quem teve o privilégio de desfrutar as suas obras anteriores, “Para uma cartografia da noite”, depois “Matéria para um grito” e muito recentemente “Animais do ocaso”, apercebe-se que Taruma persegue a escrita do mesmo livro, percorre os mesmos caminhos, sobretudo estéticos, tendo como suporte o lado passional que desde sempre percorreu a sua poesia. Confessa-nos, aliás, o poeta, que “ a tónica dos poemas reunidos neste livro é intimista e confessional, como um sujeito que se depara com a impossibilidade prática das suas paixões e recolhe para dentro as cortinas e as janelas do seu coração”. Os poemas obedecem quase o mesmo sistema de construção, é como se estivessem a respirar o mesmo ar e a atravessar os mesmos processos conflituais. Apesar desse lado passional, os seus escritos não deixam de fazer a abordagem de tudo aquilo que a vida tem de contraditório e inaceitável, colocando-nos diante de um poeta indignado, preocupado com o seu tempo e ansioso pela construção de outras linguagens e formas de estar. Há nos escritos de Taruma o reflexo de uma enorme vivência, duma vasta erudição. Apercebemo-nos das suas vastas leituras e influências, de subtilidades próprias de um poeta que escreve num mundo cheio de desafios e numa sociedade de bastantes hostilidades que apenas o amor e as palavras do poeta são capazes de contrariar!
Parece-nos que aquilo que o Taruma nos pretende sugerir com estes tres livros inscritos num só, é que estamos diante de um livro das impossibilidades. E a primeira é a impossibilidade de construir uma paixão sólida, um amor dilacerante, perene. Taruma já não acredita num amor ideal, mas sim, num amor razoável, e disso nos apercebemos quando o poeta escreve:
Já não acredito em coisa alguma; a mim só restam os calafrios, as paredes sobressaltadas, o frio odor da amónia, o lume ardente da insónia sobre a lembrança vaga do teu nome.
A segunda impossibilidade de Taruma é o de nunca atingir os propósitos que sempre desejou: os de construir uma poesia que o satisfaça e realize, uma poesia capaz de buscar tudo o que está oculto para colocar aos pés dos homens. Uma poesia que seja também capaz de trazer consigo, não apenas os sentimentos, como também os símbolos da terra, com os seus cheiros e suas côres, porque afinal são estes elementos que serão capazes de definir, na nossa modéstia opinião, a propalada identidade literária. Por isso, dizíamos, Taruma está permanentemente em busca, nesta aventura que a Literatura lhe impõe e onde, certamente, vão sobressair aqueles que forem capazes de serem eles próprios, isto é, de construir uma poesis que tenha como alicerce o seu substracto cultural, a sua identidade. E aqui, ao falar de identidade, nos lembramos das palavras de Francisco Noa buscadas na sua obra “Além do Túnel”, quando diz: “Julgo que pensar e discutir a identidade é das experiências mais resvaladiças, mais atraiçoantes, às vezes dolorosas, mas ao mesmo tempo mais fascinantes, a que nos podemos entregar. Não me enganaria muito se afirmasse que essa deverá ser eventualmente uma das ocupações intelectuais mais marcantes a que o homem, desde às suas origens, se tem dedicado, de forma latente ou manifesta.” Fim de citação. Mas aquilo que interessa referir neste momento é que Taruma faz parte duma geração de novos escritores apostados em ocupar o lugar que lhes é devido. Creio, no entanto, que Taruma não pretende ocupar lugar nenhum, o que lhe preocupa, isso sim, é encontrar o caminho que lhe permita escrever todas as palavras capazes de tornar a sua poesia mais apetecível, resgatar os amores verdadeiros e sobretudo fazer acreditar que quando na vida tudo parece perdido resta ainda a poesia para iluminar os caminhos sombrios e devolver a esperança que nos dias que correm tende a tornar-se escassa. A poesia é a salvação. Não é por acaso que José Marti, jornalista, filósofo e poeta cubano, deixou ficar esta magistral definiçao: “ um grão de poesia é suficiente para perfumar um século”. É, pois, esse perfume que Taruma pretende espalhar através dos seus poemas.
Aqui chegados, há que tentar dar resposta a pergunta que todos, creio, levantamos: o que significa “recolher obrigatório do coração?”. De acordo com o dicionário dos saberes o termo “recolher obrigatório” se aplica à uma proibiçao oficialmente decretada vedando a permanência de pessoas nas ruas após determinada hora. E então se levanta a seguinte questão: a que “recolher obrigatório do coração” se refere o Alvaro Taruma? Não restam dúvidas que é dificil o ofício de descodificar os nomes dos livros, mas podemos supor que o título em questão pode significar que existe um coração dilacerado, desencantado, repudiado, incompreendido, amargurado, isto é, náufrago nas imensas águas do amor. Para Taruma, e cito, “recolher obrigatório do coraçao é uma lúdica aventura, uma brincadeira, e ao mesmo tempo um chamamento para o interior de nós mesmos. Se não houvesse, infelizmente, a pandemia da Covid-19 se calhar nem existisse tal título, pelo que de certa forma é um oportunismo circunstancial, mas que por outro lado é uma verdade flagrante, uma vez que os poemas todos aludem a um certo tipo de recolher: de sentidos, de braços, de espantos, de sentimentos. Fim de citação. Mas essa impressão de recolhimento, de desamor, de um homem em permanente naufrágio, “mesmo sem nunca ter partido ao mar”, é uma espécie de um estado passageiro, uma ponte que se deve atravessar, porque é da esperança que o livro nos fala. É de amor. Aliás, como muito bem o disse o escritor Baptista Bastos, “ as pessoas precisam de afecto, as pessoas precisam de amor, as pessoas precisam de ser namoradas e acarinhadas”. Não é por acaso que Taruma escreveu:
Sê ilha: catedral de terra e espuma, onde
um búzio calado é um canto na boca
da amargura. Refaz-te na minha pele cansada
e apaga-me esta cicatriz, esta agrura; que eu,
docemente, acordarei levitado, louco, quase
incontido no lume dos teus braços.
Diríamos que não existe nenhuma diferença entre os primeiros poemas e outros mais recentes, o timbre das palavras continua sendo o mesmo, a voz altiva do poeta ergue-se diante de outras vozes, o seu estilo peculiar continua se vincando, há cada vez mais segurança, há cada vez mais leveza, mais maturidade, desapareceu na escrita de Taruma, aquilo que se chama a querela das palavras, isto é, as palavras deixaram de se guerrear umas às outras, harmonizaram-se, e quando assim acontece, surge um Taruma com uma voz própria, um poeta consistente. Percebe-se, apesar de tudo, que o poeta vai continuar a trilhar os caminhos duma escrita intimista e confessional, porque, como diria James Baldwin, “ o amor é uma batalha, o amor é uma guerra; o amor é um crescimento.”
Não gosto de escrever sobre poesia, não gosto de navegar ou naufragar, e muito menos de enlouquecer, que são viagens a que muitas vezes recorrem os poetas. Não gosto de escrever sobre poesia porque o poeta quando diz agua quer dizer pedra, quando diz pao quer dizer fome, quando fala do sol é porque há o prenúncio da chuva, quando fala de vinho nao traz nenhuma taça na mão, e quando não diz nada é bom estarmos atentos porque o mundo está prestes a desabar! Não gosto de escrever sobre poesia, mas gosto dos poetas, porque são mais atrevidos que os ficcionistas, Teem a coragem de se levantar e dizer não, porque sabem dizer as coisas com gramatica e com criatividade, são os poetas, como o Álvaro Taruma, que ajudam a manter acesa a chama da vida, que perfumam as palavras, que nos chamam a atenção para o pôr-de-sol, que nos despertam, por exemplo, para uma realidade insólita: a de que um coração pode ter um recolher obrigatório!
Como diria o Taruma, “Entrar no coração deste livro é descalçar os sentidos”. É encontrar um poeta que dormiu com Marylin Monroe; que fala com Platao e Sócrates em grego; que conhece Thelonious Monk e John Coltrane; que já leu o Clive Barker e Ruy Belo; ler este livro de Taruma é encontrar a luz, o sol, a água, a noite , o fogo, a morte, o vinho, o mel, o vento, a pedra, o pão, o silêncio, a solidão, o frio, os pássaros, os búzios. É encontrar a paixão, o amor e o corpo duma mulher. É com estes elementos que Taruma se municia para construir o seu livro, sem esquecer, também alguma saudável ironia e sobretudo, de certa loucura! É verdade que ela, a loucura, não se aconselhará a ninguém, mas o imobilismo, principalmente o literário, não é saudável, conduz a ausência da criatividade, a ausencia da inovação literária. Por isso, a loucura de Taruma, é saudável para a sua poesia!
A poesia que se propõe para Moçambique deve ser uma poesia que nos prestigie e que se situe na mesma grandeza daquela outra que desde sempre dignificou esse género literário e obviamente os nossos poetas. Refiro-me a poesia do Knopfli, Craveirinha, Albino Magaia, Eduardo White, Juvenal Bucuane, Calane da Silva e Armando Artur. Cremos que não estaremos a enveredar por um lugar comum ao afirmar que a poesia em Moçambique encontra-se num bom caminho, embora a crítica não lhe preste a devida atenção, ou se quisermos ser politicamente correctos, essa crítica não tem sido publicamente expressa. Apesar do aparente crescimento da nossa poesia, há que trabalhar mais. Há que escrever muito. Há que ter essa vontade indómita de fazer da nossa poesia a melhor de todas as poesias. Taruma, felizmente, sabe disso, porque se assim não fosse, não nos teria oferecido este “recolher obrigatório do coração”.
Julho/2022