Ao Emílio Manhique
A tarde ardia a sua sina de verão. A rua José Mateus conduz-me para um imenso desfiladeiro de gente ocupadíssima. Algumas viaturas passando a um rítmo morno, rebentando ruidosas músicas destes tempos. Estou num espaço comercial apinhado de barracas, compondo o meu sinuoso olhar à multidão que à hora do almoço defronta-se nas mesas, conjugando o verbo. No Alex, a massa esparguete misturada com legumes e peixe, ou carne de porco ou até de vaca, à moda vietnamita é a isca dos clientes. Ao lado, sonoras gargalhas de moças, um arco-íris, com uma naipe de artistas-plásticos, gente do teatro e alguns músicos degustando petiscos variados. Um aroma convidativo rebenta-me os sentidos. Ao chegar ao sítio da Dona Fikirta, a feijoada provocante é disputada por uma congregação de gente feita. Na sua maioria às portas da reforma, entre diplomatas a técnicos de hotelaria, jornalistas, professores universitários e alguns pastores em início de carrreira.
– Adélia vem atender Ti Emílio.– Mamusca Fikirta, sentada num cantinho costurando chama a empregada de mesa,.
A moça serviu um whisky seco ao Jaime Santos e mexeu-se até à mesa do Manhique.
– O que tens para petiscar, Adélia?
– Água-e-sal de galinha e cabeça de peixe.
– Ei, boa! Sirva-me cabeça de peixe.
– Mais um pouco de vinho, ti Emílio?
– Não. Ainda tem algum vinho na garrafa que está na geleira. – esclareceu o jornalista, prosseguindo.
– Olha Mamusca, estou a recordar-me agora do Timba da embaixada da Tanzânia. Ele gostava muito de sentar-se aqui nesta mesa ao meu lado.
– Xi, ti Emílio. Aquele homem nem sei como Deus le levou, sabe…- lamentava-se a Mamusca.
– E olha aqui, Emílio. – a Dona Elisa, depois de pousar o copo de vinho branco assumia a dianteira. – uma vez estiveram aqui na Fikirta os teus colegas, o Cuembelo, o Magaia, o Macaringue e o Azevedo, lembras-te Emílio?
– E o Vítor José, Emílio! Até sentou-se na cadeira de Ngungunhana – entrou em cena o Duvane da Televisão pública.
– Depois de servir um whisky ao Vitor aviselhei-lhe que essa cadeira era reservada ao Ti Emílio. – esclareceu a Dona Fikirta.
– Ora nem mais, ministro. Já me estava a esquecer do Vítor José, oh Duvane. Eh, pá isto está mesmo a virar um verdadeiro Museu. – rematava Manhique que voltava à carga.
– É pena que não posso levar estas matérias ao café da manhã. Mas bem vistas as coisas se fizermos um inquérito a esta gente que vem para estes lados da cidade de chapa ou a pé. Se perguntarmos, por exemplo a esta miudagem das escolas onde é o museu, de certeza que vai apontar para esta rua das barracas…
– aposto que sim, Emílio. E até virão ter aqui à Fikirta. – entrava em cena o Jaime. – A gente passa horas e horas aqui, como se fôssemos peças de um autêntico museu. Só vamos a casa e ao trabalho, no caso de vocês que trabalham, só para um restauro… Passamos muito tempo aqui. – Eu adoro exibir a minha inutilidade – regozijava-se o Jaime Santos.
– Jaime a tua mãe ligou-me. Já almoçaste? – alertava a Mamusca ao grande declamador.
– Olha, minha gente, depois desta do Jaime pus-me a fazer as contas aos amigos que já morreram e que frequentavam aqui o sítio da Mamusca: o Zeca, o Tinduana, o Marcos, o Albano, o Mendonça, a mulher do Pescoço, aquele tipo da zambézia, a minha malta do jornalismo, diplomatas, e até um tipo que trabalhava na Assembleia da República. Este museu está cheio de relíquias. – rematava Emílio Manhique, carregado de nostalgia.