Estamos em 1992. Sob o sol quente de um dia que parecia carregar em si os ventos da história, eu e a minha mãe empreendemos uma jornada singela, mas carregada de significado. Acompanhávamos o meu primo, um jovem de coração aberto e olhar sorridente, até a vila do Caniçado, em Guijá, na província de Gaza. Era o dia da sua apresentação formal na casa dos pais da namorada, um ritual cultural que tecia os fios da tradição com os da esperança. O caminho, poeirento e sinuoso, parecia sussurrar promessas de união, enquanto o horizonte se desenhava em tons de terra e céu.
Chegamos, enfim, àquele lar simples, mas erguido com a dignidade de quem sabe acolher. A hospitalidade moçambicana, essa chama que nunca se apaga, envolveu-nos como um abraço. Os cumprimentos dançaram no ar, palavras gentis trocadas como presentes, e as apresentações, feitas com o devido respeito, abriram as portas para o que estava por vir.
O meu primo, em seu momento de solenidade, foi apresentado como o namorado da filha da casa. Tudo transcorreu em harmonia, como se o próprio tempo, em reverência às regras culturais, tivesse pausado para abençoar aquele instante.
Após a cerimónia, o aroma de um almoço generoso invadiu o ambiente. Os pratos fumegantes, os risos que ecoavam como música, e as conversas que se entrelaçavam como rios em busca do mar. Foi então, entre garfadas e memórias partilhadas, que o pai da namorada, um homem de semblante simpático mas olhos curiosos, voltou-se para a minha mãe com uma pergunta simples, quase casual: “E vocês, que língua nacional falam?” A minha mãe, com a serenidade de quem carrega a sua identidade como um tesouro, respondeu: “Somos lomwés da Zambézia, e por isso falamos a língua Lomwé.” O que se seguiu foi um instante de pura magia, um daqueles momentos em que o destino parece rir de contentamento.
Para o nosso espanto, o homem, com um sorriso que desvendava segredos, começou a falar Lomwé com uma fluência que nos deixou boquiabertos. As palavras saíam da sua boca como pássaros livres, voando em direcção à minha mãe, que, surpresa, respondeu na mesma língua. De repente, o quintal daquela casa em Caniçado transformou-se num palco de reencontro improvável. A conversa entre os dois ganhou vida, um diálogo animado que dançava ao som de uma melodia ancestral, enquanto nós, os mais jovens, observávamos, atónitos, o florescer daquela conexão inesperada.
Curiosos, pedimos que ele contasse como viera a dominar tão bem a nossa língua. E ele, com a calma de quem já viveu muitas vidas, abriu as portas do passado. Contou-nos que aprendera o Lomwé em São Tomé e Príncipe, para onde fora levado como deportado, numa época de sombras e exílio. Lá, entre moçambicanos, a saudade da terra natal os unira. Foi nesse chão distante que ele encontrou um amigo moçambicano, um companheiro de alma, com quem fez um pacto simples, mas profundo: ensinar um ao outro as suas línguas maternas. E assim, dia após dia, entre risos e silêncios, trocaram palavras, sons e pedaços das suas raízes. Ele aprendeu o Lomwé, e o amigo, por sua vez, abraçou a língua dele, o Shangana. Um acto de resistência, de amor, de humanidade.
Aquele encontro no Caniçado, que começara como uma formalidade, tornou-se algo maior. A apresentação do meu primo, agora, repousava sobre um alicerce mais forte, banhado pela familiaridade de duas etnias que, por um capricho do destino, partilhavam o mesmo idioma. O que era apenas um namoro ganhou contornos de promessa, de laços que transcendiam o tempo e o espaço. E ali, sob o céu de Gaza, enquanto o sol se despedia lentamente, eu não pude deixar de pensar: o mundo, sim, é redondo. Redondo como as histórias que nos encontram, como os caminhos que se cruzam, como as línguas que, mesmo separadas por rios, montanhas ou mares, acabam por se abraçar.