“Azarias a fanale ku dondza, ku fana ni vapfana hinkwavhu vha lomu”
(Avó Carolina, no filme “O dia em que explodiu mabata bata ”, 2017, no minuto 18:50)
As obras audiovisuais sempre nos trazem algo acrescido na narrativa, coisas que não seriam trazidas numa obra literária. Por exemplo, um conto. E é nesse exemplo que nasce o filme “O dia em que explodiu mabata bata”, de 2017, realizado por Sol de Carvalho. A obra de 52 minutos foi inspirada no conto com o mesmo título de Mia Couto, cujo texto está inserido na colectânea “Vozes anoitecidas”, publicado em 1986.
Esse texto abordará as infidelidades de Sol de Carvalho, em relação ao texto original, e a infidelidade com a produção convencional dos filmes baseados na linearidade cronológica e os três actos.
O anoitecer das vozes, no texto “O dia em que explodiu Mabata Bata” nos é apresentado aqui como um destroço, um vestígio sangrento da guerra dos 16 anos, trazido à superfície pelo “Ndlati”, que abocanha tanto o Mabata Bata como o Azarias, esse, se bem observado com os olhos de Mia Couto, ganhou esse nome devido à sua sina: órfão de pai e mãe, pastor de gado “obrigado”, e negado o lápis para desenhar os seus sonhos, tendo a sua existência reduzida no forjar e acautelar do sonho alheio, nesse caso do seu tio Raul, que era de “lobolar”.
Apesar de ser adaptado do conto de Mia Couto, esse filme não foi fiel ao mesmo. Para aquele que vira espectador, simplesmente por saber que se trata de uma adaptação de um tal texto, pode terminar os minutos frustrados por conta da tamanha “infidelidade” da produção. Esse, diria, seria aquilo em que se postula como o que foi menos conseguido em toda a obra vencedora de muitos prémios em várias categorias, como melhor filme, melhor director e melhor actor na “Garden Route International Film Festival”.
As premiações não deixam enganar. A obra teve uma direcção de encher o olho, desde a produção com Sol de Carvalho, a direção de fotografia com Jorge Quintela, o som com Dinis Henriques e outros. Também teve desde actores já consagrados nas telas nacionais, como Horácio Guiamba, o tio Raul, e o Mário Mabjaia, tendo actuado como espírito, e outros actores emergentes como o Emílio Billa, o Azarias, o protagonista.
O filme começa a “trair” o texto original logo no início. Contudo, percebe-se que, no contexto cinematográfico, não se trata de algo “amais”, o que se acrescentou, deu ainda mais aspecto realístico no enredo. A primeira separação está nos inícios: Mia Couto não nos traz cá uma fase de “introdução”, onde, geralmente, se estende o contexto em que a história irá se desenvolver. Contudo, Sol de Carvalho dá-nos esse precioso contexto. Ou seja, Mia Couto vai deixando ideias de espaço e tempo de forma estilhaçada ao longo do texto, e o filme apresenta-nos quase tudo do início.
Nos primeiros dois minutos, esquecendo por hora as falas do próprio Azarias, correndo até pisar a mina (o que será analisado mais a frente), vemos a paisagem verde, o rio, o gado, uma menina carregando água na cabeça, o que nos remete inequivocamente ao campo, áreas rurais, mas também, que prol lhe faça, a direcção de arte [que] coloca lá soldados a correr. A disposição da tropa envia uma mensagem clara: momento de conflito armado. Isso se pode notar, actualmente, em Cabo Delgado, onde a forte contingência armada dos militares significa que é uma zona de conflito armado.
A fotografia, essa direcção também merece os parabéns. Não é preto e branco, mas também não é a cores. A fotografia situa-se entre essas duas cores que nos permite tecer o tempo: não é o antigamente e, também, não é o actualmente. Talvez estejamos no meio dos dois; antes do agora (que deve ser longo) e depois da independência porque, em Moçambique, quando se conta histórias, “A khali, I Khali ka Wu Koloni” (O antigamente é o tempo do colonialismo). Também a trilha sonora é excelente: a música incidental inicial remete-nos a África, aquele som, de um instrumento africano, não engana.
A obra audiovisual é complexa. Ela dá-nos impressões, às vezes confusas, de que vai narrando duas histórias em simultâneo: a do Azarias e a do Raul. Há duas histórias sendo contadas em paralelo. A primeira narrativa é a frustração do sonho de Azarias, que é de estudar como outras criança. E o que frustra esse sonho é o seu tio Raul. Paralelamente, no início do filme, dão-nos a entender que há uma outra narrativa com um fim completamente diferente da primeira, apesar de estarem entrelaçadas. Nessa outra história, Azarias, esse já morto, frustra o casamento do seu tio Raul, fazendo exigências que somente espíritos sofridos o fazem, e isso foi bem adiantado no próprio filme, “Em África, quando na família acontece uma morte violenta, qualquer acto futuro exige uma consulta aos espíritos”.
É basicamente nessa questão de confusão narrativa causada por histórias paralelas em que Juliana Milheiro (in Narrativas não lineares e a estrutura de roteiro em filmes multiplot, 2020, online) disserta e as trata por “narrativas não lineares”. Hartner (2012, citado por Juliana Milheiro), diz que são “um modo de contar histórias em que pontos de vista múltiplos, e muitas vezes discrepantes, são empregados para a apresentação e avaliação de uma história e seu mundo”. E o mundo em que se fala aqui é bantufano: em que visões distintas fazem o tecido histórico que nos compõem.
No seu livro “The 21st century screenplay” (O roteiro do século XXI), Linda Aronson (2010:167) chama isso de “Narrativas paralelas”, definindo, pela forma, que “usam várias narrativas separadas em paralelo, muitas vezes envolvendo não linearidade, saltos de tempo, grandes elenco ou todos estes.” Aqui é onde esse filme situa-se teoricamente: não se trata de uma produção convencional em que está baseada na estrutura dos três actos, que se dividem em configuração, confronto e resolução. Aronson alerta que esse tipo de produção tanto é complexa, quanto paradoxa, o que leva à incompreensão do que é narrado. Logo, se é projectado num cinema, onde a pessoa não terá oportunidade de rever, pode criar uma confusão tremenda. Contrariamente, esse tipo de narrativa é bem recebido nos livros pelo facto de sempre ser possível retornar para entender bem a história.
É nesse manto de incompreensão que urge trazer uma sinopse longe da que dei antes, apenas da narrativa na “perspectiva” de Azarias.
Raul quer casar. Esse é o seu objectivo, mas o conflito, que trava esse acontecer, é o espírito de Azarias, que, já no final do filme, faz exigências, e, supridas essas, consente o lobolo para o regozijo de todos. Entre o início, o conflito, e a resolução desse conflito, que deveria ser clímax, existe lá uma outra história que explica o conflito que Raul enfrenta. Isso é o “flashback” ou “analepse”, um recuo no tempo discursivo. Falando já em alteração da ordem temporal dos actos, o filme, bem no início, quando corre e explode o Azarias, pode ser vista como “prolepse” ou “flashforward”, avanço no tempo discursivo.
Nos diferentes tipos de flashbacks estipulados por Aronson (2010:175), o filme adequa-se no “Bookend flashback”, que seria, quando “uma cena ou sequência no presente, aparece no início e no final do filme”. No roteiro, a cena presente é o pedido aos mortos, intermediado pelos curandeiros, que está no início e no fim, quando já dançam, no tardar da lua.
Além dessa forma de produção que rompe com a forma convencional e “Hollywoodiana” de fazer filmes, a produção, como disse antes, acrescentou mais matéria que enriquece o filme. Nesse caso, estaríamos a referirmo-nos aos curandeiros, que simbolizam a tradição e folclores africanos. Trajados bem a rigor, capulanas com cores pretas e vermelhas. A primeira cor lembra-nos que os curandeiros lidam com o lado escuro da vida (no sentido de invisível) que só pode ser enxergada com os que são “iluminados”, e a segunda cor expressa, para nós, que esses lidam com a vida, nas analogias com sangue. Aqui também se felicita a Guarda roupa, que também meticulosamente vestiu o espírito da mesma roupa com a que Azariana (como é tratado no filme) é apresentado: camisa branca e calções verdes já esfarrapados. Enquanto no início do filme é difícil conectar o espírito ao Azaria, que são a mesma entidade em dimensões diferentes (um é espírito e outro é corpo físico), mas paralelas (como se compreende a existência em África), as vestimentas vão clarificando essas ambiguidades, principalmente porque os dois são apresentados de forma “não linear”, mostrando-nos o futuro de Azarias, quando já está morto e rancoroso, e antigo Azarias numa sentada (prolepse ou flashforwards).
Um dado interessante no filme, também nota-se esse intercâmbio cultural na dimensão das crenças. No mesmo instante nota-se o chamar dos curandeiros para lidar com certos assuntos, mas também vê-se a avó Carolina rezando, dentro de casa, por um “Hosi” (palavra que designa rei), que concluo ser Deus judaico-cristão. Essa ambiguidade cultural e tradicional, numa altura, já se dissipava antes dos discursos de ódio que (re)nascem entre cristãos (que apesar de serem evangélicos e protestantes têm atitudes ortodoxas) e os defensores de folclores africanos, uns diabolizando os outros, como o último caso público de Paulina Chiziane, que foi agredida por crentes de uma igreja em Maputo.
O que salta à vista nessa obra é a língua usada: Changana. A obra torna-se ainda mais original. Também, penso, possa ser uma forma de revitalização linguística, quando se usa no contexto artístico. Aliado a isso, temos a questão das falas dos personagens, que não passam despercebidas. Toda intervenção discursiva dos personagens ajuda a criar um sentido cada vez mais histórico e contextual, ora falas que reflectem o texto original ora não. É a partir das falas que se percebem questões como ‘mulher-objecto’ na sociedade, quando o pai da Helena a diz que ela está “prometida”.
No filme, nota-se Azarias, esse que tem o sonho de ir à escola, a trabalhar duro fazendo pastorícia enquanto outras crianças estudam em baixo das árvores. Aqui o realizador traz-nos o contexto completo desse tempo e lugar quando as crianças sentam-se no chão ou nas pedras para poderem estudar. Mas é a fotografia do contraste entre a realidade degradante do Azarias e das outras crianças que nos sobra na memória, fazendo-nos reflectir sobre a questão de privar as crianças de estudar e sonhar. Esse sonho frustrado é visível no semblante cabisbaixo do Azarias, profunda melancolia, que em toda história não esboça nenhum sorriso no rosto, mesmo que de mentira. Se o riso é uma língua, então diria Mia Couto que Azarias “foi perdendo [essa língua] à medida que o mundo foi deixando de ser dele”.
Na narrativa audiovisual, Azarias é apresentado mais um pouco com ares de criança, o que o texto não nos traz nunca. Isso mostra que, apesar de ser impedido de ser criança, em momentos, encontra algum descansar do tempo em que podia jogar xindire (o brinquedo que José e Azarias jogam momentos antes da vaca explodir) com o José, que não é muito bem apresentada a relação com Azarias, mas parece que é amigo. Ou mesmo para espreitar a menina, de longe, quando faz banho.
As tropas, a trilha sonora, e a fotografia revela-nos, sinto, que se trata de dos anos da guerra civil que durou aproximadamente 16 anos, desde 1977 até 1992. Numa análise mais profunda, percebe-se que além de tudo sobre o casamento, tradição e estudar, estão os destroços da guerra. A guerra, pelo que a história traz, nunca acaba quando se calam as armas. O ser órfão, os conflitos familiares que surgem das almas aterrorizadas pela mesma, os sonhos frustrados, o vazio nas famílias, a antipatia que se nutre, e os refugiados, o que sempre causa fome, são consequências profundas que ela pode trazer.
Vendo bem as consequências da guerra civil nas costas do pequeno Azarias, encontramo-nos a questionar: quantas almas vagando entre tiros e granadas em cabo delegado não vestirão, num futuro inimaginável, os andrajos com as quais é fadado a cobrir a sua infância para evitar doenças tipo escravidão infantil, orfandade, a privação da educação e, mais crónico, a privação de sonhar? Essa, talvez, seja uma questão a ter em conta quando se for a falar da guerra, mas por agora, “Em tempos de guerra, o melhor plano é acabar com ela” (fala do personagem Espírito no filme “o dia em que mabata bata explodiu”, minuto 48).
Por aqui já é notório afirmar que Sol de Carvalho cometeu várias “infidelidades” tanto com o conto como com a forma em que os filmes são, geralmente, produzidos, principalmente no Ocidente. Mas, esse é o caso em que se diz que há males que vêm para o bem, e é esse um deles, indubitavelmente.