Josefina Massango é das actrizes mais experientes no país. Recentemente, participou na gravação do filme Ruth, estreado em Maputo semana passada. Nesta entrevista, a actriz fala da sua participação nesta produção cinematográfica preparada, igualmente, para ser série de tv. Além disso, Massango deixa um comentário sobre a qualidade dos actuais actores moçambicanos.
Desempenha o papel de mãe de Eusébio, no filme Ruth. Como foi encarnar essa personagem?
Estaria a mentir se dissesse que foi um trabalho como qualquer um. Aqui havia uma responsabilidade acrescida porque não estamos a falar de uma figura qualquer. Ainda assim, dediquei ao personagem toda entrega que dedico às outras.
Com o mesmo rigor?
Tem que ser. Essa é a palavra-chave para o artista. O rigor é mestre de tudo. Se não formos rigorosos com aquilo que fazemos, se calhar, passamos à personagem o que constitui o nosso dia-a-dia. É preciso sonhar com o personagem, namorar e dialogar com o personagem e viver com ela aqueles dias em que antecedem o trabalho. É preciso sonhar e amar com o personagem.
E como é que se aprende a sonhar com o personagem?
É muito simples. Desde o primeiro momento que nos atribuem o personagem, logo devemos começar a fazer uma viagem com ela, na base do texto que nos permite perceber o papel ao longo da história.
E esta é uma viagem quase sempre solitária…
Muitas vezes é. E é esta disciplina que os actores são convidados a ter.
No caso do papel interpretado no Ruth, teve que recuar no tempo?
Para este personagem não. Mesmo porque esse exercício depende de cada realizador. Uma das coisas que me pediram para este personagem é a questão do peso, não no sentido massa corporal, mas no das coisas que se dizem, na maneira como a mãe do Eusébio aparece e na estrutura daquela mulher. E, também por isso, a responsabilidade foi maior, porque, no fundo, tinha que retratar o desconhecido sobre uma figura que é muito conhecida.
O que lhe foi pedido interferiu na maneira como preparou a personagem?
Sem dúvidas. É necessário e é bom que isso aconteça. Até porque, quando estamos diante de um desafio destes, próximos às filmagens, as pessoas que nos conhecessem vão notando alguma diferença em nós porque estamos a exercitar o papel. E nós até gostamos desse feedback de as pessoas estarem a notar uma diferença entre o eu, no meu dia-dia, e quando estou a fazer o exercício para o personagem.
Precisou de voltar a percorrer as ruas da Mafalala, quer do ponto de vista real ou virtual, de modo a familiarizar-se com o papel?
Cresci brincando na Mafalala. Conheço aqueles becos todos. Os meus melhores amigos ainda hoje residem na Mafalala – refiro-me, por exemplo, a mamã Marieta, que, sempre que posso, vou lá ter para comer uns rissóis que ela bem faz. Cresci naquele mundo, mas, com este filme, tive, sim, de ir várias vezes, até para, em conversas, saber como era a forma de estar lá, mesmo porque vivi 17 anos em Portugal e há coisas que ali mudaram. Mas a memória do espaço, daquela vivência, os sons e o resto ainda existe em mim.
O papel de mãe de Eusébio foi atribuído a Josefina depois de um casting. Este tipo de vitórias ainda dá-lhe gozo?
Sim. Qualquer actor ainda tem esse momento de satisfação, quando isso acontece. Os castings são aquelas coisas muito chatas. Confesso, são muito chatas, mas também necessárias, porque os realizadores querem testar alguma coisa. Aliás, casos há em que os castings têm a ver com a questão da imagem e com a necessidade de se perceber que aquela figura vai bater com certo actor. E hoje em dia acontece eu estar nos castings com colegas de longa data e, inclusive, novos formados por mim. Dependendo do que o realizador quer, ele faz a sua escolha. E quando se é escolhido, naturalmente, há momentos de grande satisfação e de grande responsabilidade.
Ao ver o filme na estreia, já com público alargado, o que lhe ocorreu?
Muitas vezes, eu não gosto de me ver, é estranho. Para mim, depois do filme, tem que se passar para outra coisa. Se me perguntar qual era a personagem, até pode acontecer não conseguir responder daqui a dois meses, porque já estou noutro papel.
Desliga-se facilmente das personagens?
Neste caso do Ruth é difícil porque o filme ainda está a correr. Neste momento ainda estou a viver a mãe do Eusébio. Mas, geralmente, sim. Desligo-me.
É professora de teatro. Sente-se pressionada, quando está a preparar um papel, pela ideia de que os seus alunos actores vão exigir mais de si?
Não. De forma nenhuma. Se um dia isso acontecer, nós estamos acabados como actores. As camadas mais jovens têm tanto para nos ensinar que nós só devemos estar abertos para receber… Aliás, há actores que têm privilégio de partilhar o palco com quem estão a formar. É uma experiência única. Com isso recuperamos momentos que julgávamos perdidos. Pessoalmente, tenho prazer de fazer isso.
Como está o país em termos de qualidade de actores neste contexto em que temos um curso de teatro e muitos grupos a surgirem?
É impensável para alguém que se encontra a trabalhar na área de formação em teatro não ter uma postura optimista em relação a esta questão. Sinto que há coisas que se conquistaram, que se deve conquistar e devem ser recuperadas. Há um conjunto de coisas que estão a acontecer e são positivas. Mas há coisas sobre as quais devemos reflectir. Eu sou de uma geração em que o teatro, no país, era algo quase obrigatório, porque haviam apresentações que mexiam com as pessoas, como ainda hoje mexem. Na altura, não ir ao teatro e não saber o que se passou num certo final de semana, significava ficar sem assunto.
Era como perder o capítulo de uma telenovela, hoje?
Mais ou menos isso. Aliás, essas duas coisas caminhavam juntas. Lembro-me que, na altura, depois das 20h, dificilmente mantinha-se os expectadores no teatro porque havia hora da telenovela. Sinto que estamos a dar passos positivos e o público está mais exigente agora. Ainda por cima, porque há gente formada no teatro. Faltam meios, é verdade, mas isso também é um motor para estimularmos a criatividade.
O que gostava de ter no nosso teatro?
Melhores condições. Por exemplo, uma sala municipal, um equipamento de iluminação para os espectáculos à disposição. Muitas vezes não há. Gostava de ter uma série de coisas que fazem com que o espectáculo, de facto, aconteça. No meu caso, eu faço muita investigação dentro desta área e quero continuar a estar em palco e no cinema. Há muitos sonhos e eu vivo nesse desejo de que o sonho não deve acabar, porque isso é o motor do que pretendemos fazer. Eu sonho com o sonho.
A vossa geração não foi um produto de escola, entendo, no sentido de lá terem recebido ferramentas teóricas sobre teatro. Hoje, o que a escola está a acrescentar à qualidade dos novos actores?
Estaria a mentir se dissesse que não há uma escola por detrás do teatro que se fazia no meu tempo. Havia uma escola, a escola primária. Nós viemos de lá. Aquele espaço é que nos levou a tomar o gosto e a desenvolver outras áreas. E nós temos que recuperar isso. Hoje, nós estamos a lidar com estudantes que vão parar ao ensino superior em teatro sem as bases que nós, em tempos, adquirimos na escola primária. Então, aí, é preciso dar tempo ao tempo. Eu tive escola, e a minha escola foi a 24 de Julho, onde fizemos muitas actividades culturais e eu tomei gosto nisso. Seja como for, os novos actores, nossos estudantes, trazem consigo o gosto, o prazer, esse querer…
E o compromisso?
De certa forma… Porque essa escolha de fazer teatro é feita pelo indivíduo, e nem é uma escolha, arrisco-me dizer, que um pai faça pelo seu filho. Se, hoje, vimos artistas, é porque essa escolha partiu deles e eles têm um compromisso com essa escolha. Isso é o que diferencia a arte e o ser artista de muitas outras áreas.
Palco ou cinema, o que prefere?
Gosto de tudo isso, embora o palco seja o local onde tenho mais liberdade. No cinema estamos um pouco limitados, mas o actor tem que lidar com isso. Embora goste de estar nos dois espaços, o teatro é aquele que me dá mais liberdade, ainda que o processo de preparação dos papéis seja mais complexos no teatro.
É vantajoso para o actor partir do teatro para o cinema e não o contrário?
Eu ando à procura dessa resposta.
O que espera que venha a ser o Ruth?
Que contribua para que, em outras áreas, surja o atrevimento de se imortalizar certas figuras, artisticamente.
Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro que vejam FITI, Comboio de sal e açúcar e o livro Os pilares da terra.