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Gorongosa à volta da fogueira

Por: Manuel Mutimucuio

 

A fogueira não era das melhores, mas numa noite de intenso calor pouco importava, não fosse a vontade de ver a água na panela, finalmente, ferver. Não que houvesse muito para confeccionar, pois, depois de duas semanas no mato, as provisões estavam por um fio.

Derek, de cócoras, soprou em vão para encorajar a lenha a produzir mais lume e menos fumo. Insistiu com ajuda da tampa da panela, mas, uma vez mais, viu os seus intentos gorados. Frustrado, bebeu de um só trago a cerveja que o acompanhava nesta odisseia e gesticulou a reclamar rendição.

“O que é que vos ensinam na escola nos dias de hoje?”. Petrus indagou irritado em direcção ao jovem estudante de ecologia que estava na RFB no quadro de um programa curricular.

“Não a fazer porras de fogo, podes crer”. Foi o que lhe apeteceu responder, mas não podia sequer se atrever. Derek já tinha convivido o suficiente com o velho Petrus para lhe reconhecer o temperamento de búfalo (com orgulho) ferido.

“Repete lá alto o que disseste?”. O velho comandou aos berros.

“O miúdo não disse nada. Podes organizar esta fogueira para comermos e repousarmos, se faz favor?”. Jaco, o mais sénior entre os expatriados, tentou desarmar a erupção, se bem que a ele também não passaram despercebidos os murmúrios do estagiário mandrião. Todavia, não só tinha a responsabilidade de evitar um ambiente de trabalho tóxico nas suas equipas como também devia proteger uma das joias da coroa. Não o Derek, um malcriado filho de papá rico, na opinião de quase todos que o deviam suportar na sua pequena aventura na selva, mas o que ele representava. Desde que foram interditos safaris de caça, a RFB dependia, em parte, das contribuições chorudas que investigadores reputados e outros de valência duvidosa doavam pelo privilégio de estudar um dos últimos redutos da dita natureza africana intacta.

“Será que a tua mãe sabe que bebes?”. Petrus não era de baixar a crista antes de ter a última palavra. Tinha o hábito de insinuar que estava demasiado velho para se importar, mas a realidade é que precisava do emprego tanto quanto do trabalho. Orgulhava-se de dizer que tinha vivido setenta anos bem vividos, incluindo alguns como recruta na tropa do Apartheid, tantos outros como soldado de fortuna em latitudes mais tropicais do continente, depois que os negros assumiram as rédeas da África do Sul e começaram a escangalhar o seu querido e temido exército. Muito recentemente, isto é, nos últimos vinte anos, Petrus tem servido como pau para toda a obra em reservas de caça, um espaço amplo que dá a impressão – real ou percebida – de que não houve descolonização. Estava, ainda assim, consciente de que um dos custos de uma vida passada à margem dos grilhões da nova ordem, era a falta de uma pensão para mitigar a dor da velhice. Tinha de trabalhar para continuar a desfrutar da terceira idade e da relativa liberdade da vida no mato.

Com as mãos, Petrus afastou a panela ainda quase morna e, com os pés, desfez a lareira. Metodicamente, mas rapidamente, o velho rearrumou os troncos, adicionou uns galhos e capim seco que encontrou ao lado e, dois por três, havia lume para cozer mais do que o modesto esparguete que estava disponível para o jantar.

O silêncio lúgubre que se instalou, dominou o resto da refeição e, sabe-se lá quantos mais pesados minutos. O coerente era cada um retirar-se para o desconforto da sua tenda, mas eram só vinte horas e com a bateria a minguar nos telemóveis à espera da energia de mais um dia de sol, as noites na escuridão do mato tinham a mania de durar muitos sonhos e pesadelos e mais algumas insónias de sobra. Ninguém se moveu e, uma vez mais, coube à Jaco a tarefa de quebrar o gelo e devolver algum ânimo à tropa. Jaco, na casa dos cinquenta, era também sul-africano, originário do KwaZulu-Natal, embora sempre somente destacasse o “Natal” ou, em contextos em que se sentisse forçado a ser politicamente correcto, fosse pela sigla “KZN”, como se as iniciais tivessem uma propriedade anti-séptica sobre o prefixo africano. Entretanto, era esse tacto de comunicação e de saber estar que o diferenciava do Petrus e de outros operários expatriados da mesma estirpe. Sem ser arrogante, era um indivíduo que comandava respeito e inspirava muita confiança.

“Quem é que não se curva perante esta sinfonia?” Jaco gesticulou como um maestro que deixa o público sorver a magia da orquestra que o acompanha. A pergunta era, claramente, retórica. Com aquele grupo estava a pregar para os convertidos, mas não se importava de ouvir pelo menos uma reacção de apoio, pois a intenção era quebrar o silêncio desencadeado pela disputa entre o velho e o rapaz que ameaçava arruinar a noite de toda a gente.

“Muitas pessoas que eu conheço dariam o braço pelo privilégio de todos os dias dormir ou acordar ao som de coaxos, zumbidos, cicios, chilreios, pios, chios, grasnos, guinchos, silvos, bramidos, mugidos, urros, grunhidos e rugidos, entrosados em intervalos milimetricamente espaçados pelos farfalhos da floresta de miombo.” Jaco enfatizou. A musicalidade que muitos puderam descortinar, porém, foi da beleza do seu verbo. Era inegável que tinha um jeito particular com as palavras e, talvez por isso mesmo, com as pessoas também. Entretanto, por mais esforço que a tropa fizesse para concordar com o bom do Jaco, aquela era uma noite vulgar. Sem luz, sem sons, a não ser que o chefe estivesse a romantizar o irritante ruído das cigarras.

Com a criatividade a minguar, Jaco recorreu ao único assunto que dava garantia de sucesso. A saga do hipopótamo na Vila da Gorongosa tinha, ao longo do dia, produzido intensas gargalhadas mesmo depois de ter sido contada de todas as formas possíveis. Ora, a notícia de animais que atravessavam os limites da reserva – quer porque os corredores de fauna bravia não respeitavam fronteiras arbitrárias, quer porque buscavam pasto mais doce nas machambas dos aldeões – era fait divers, mas o risco de um ser autopsiado pelas autoridades policiais, aos olhos suspeitos dos conservacionistas, era digno de manchete de jornal.

“Os pobres locais farão de tudo para comerem o pobre animal”, comentou Derek.

“Como é seu direito”, retrucou Petrus.

Estupefacto com a observação do velho, Derek olhou para os olhos do resto da malta à procura de simpatia, todavia, sem sucesso. Incrédulo, abanou a cabeça sem perceber se a falta de apoio estava associada à mensagem ou ao mensageiro. Já sabia que o velho não ia com a sua cara, mas a reacção dos outros era inédita.

Enquanto a malta se perdia em gargalhadas sobre o hipopótamo, Petrus estava pensativo a cogitar como educar o estudante sobre os direitos das comunidades locais: “é a sua terra e sempre viveram dos produtos da floresta, incluindo, claro, a carne de caça. Estas campanhas progressistas de interdição de corte de árvores e proibição de abate de animais são um capricho de muzungos de longe que têm a sua mesa de madeira maciça repleta de manjares”. O velho deixou-se ouvir o próprio discurso na cabeça antes de abrir a boca e não gostou do reflexo. “Será que os de perto eram diferentes?”, indagou-se. “Nós também somos africanos e conhecemos a mata como ninguém”. Petrus absolveu-se, mas a seguir questionou-se se conheciam igualmente as gentes. A resposta já não era tão óbvia. Ele estava em Moçambique há sete anos, mas do país só conhecia os terminais dos aeroportos de onde fazia o transbordo até à Gorongosa, aonde também chegava de avioneta de serviço da RFB. Não falava a língua e, em abono da verdade, tal nunca limitou o seu trabalho. O peso da hipocrisia fê-lo calar, mas só por um instante. Havia outra linha de questionamento que, de certeza, o colocava em posição moral avantajada. Aproveitou-se do facto de que o entusiasmo sobre o assunto do hipopótamo já se dissipara e com a boca cheia de cerveja, voltou à carga.

“Qual é mesmo o teu projecto de investigação cá na reserva?”, dirigiu-se, jocosamente, ao estagiário.

“Quando vocês não me ocupam com tarefas banais, tenho estado a estudar o complexo mecanismo de ataque das formigas matabele. A Gorongosa é dos poucos ecossistemas…”. Derek parou abruptamente a sua eloquente resposta.

Falar de ciência tinha quase um efeito catártico. Cada palavra apaziguava a sua cólera e recordava-lhe que num outro mundo não muito distante era talvez mais erudito e útil do que a cambada de velhos que ali o faziam sentir-se pequeno. Interrompeu, entretanto, a fala sem terminar o raciocínio porque lhe ocorreu que a pergunta não era sincera e que se devia explicações, não era de certeza ao tosco do Petrus. Queria, mesmo, era afastar-se da asfixia da companhia de todos eles.

Totalmente isolado, o jovem estudante admitiu que já era tempo de recolher para os seus aposentos. Havia de matar mais alguns minutos estudando mapas da área onde trabalhariam no dia seguinte. O único problema, porém, faltava-lhe coragem para caminhar sozinho até ao acampamento. Em ocasiões anteriores nunca faltou companhia porque recolhiam todos em grupo ou quando os mais velhos bebessem até muito tarde, não se envergonhava de pedir que alguém o levasse até à sua tenda. Não naquela noite. Não lhes daria a mínima oportunidade de o humilhar mais do que já se sentia ultrajado.

“Boa noite. Amanhã começamos à mesma hora?”. Olhando para a única alma que julgava ainda merecedora do seu respeito, Derek perguntou já em pé e a caminhar lentamente.

“Bom descanso, rapaz”. Jaco, reciprocou em tom apaziguador.

“Alguém aí acompanhe o puto até à tenda dele”, ordenou sem especificar quem o faria, mas não deixou equívocos de que queria a tarefa cumprida.

“Sei o caminho”, Derek rechaçou liminarmente a oferta. Toda a gente mais velha tratava-o por puto e nunca tinha parado para pensar no significado ulterior da palavra, mas naquele momento soube diferente e parecia adicionar insulto à mágoa. Contra, provavelmente, o seu melhor interesse estava disposto a tentar a sua sorte com as ferras da selva a ter de dar o gosto àquela malta de o ensinar mais uma ou duas coisas sobre a vida no mato.

Ligou a lanterna que levava na cabeça e, para reforçar a visibilidade, accionou também uma lanterna de mão. Caminhou o suficiente para se afastar do grupo, mas não demasiado para perder o desvio que sabia estar muito próximo da cozinha improvisada. Precisava da pausa para, desprovido de qualquer emoção, testar a convicção da decisão que tomara. Apagou as duas lanternas para sorver o momento e pensar criticamente. O entusiasmo da liberdade recém-conquistada deu outro sentido à experiência. Os devaneios de Jaco já não pareciam uma mera quimera. Ele próprio via esplendor naquele escuro de azeviche e conforto quase erótico no zumbido das cigarras. Sentindo-se validado pela irrepreensível natureza na intenção de desafiar a mata a solo, retomou a marcha com o vigor de quem conhecia o endereço e, para o seu conforto, com o auxílio da luz poderosa das lanternas que empunhava, foi reconhecendo alguns marcos familiares no trilho.

Depois da euforia de recém-chegado, esta era a primeira vez em exactamente quarenta e oito dias que se sentia animado. Passara a contabilizar religiosamente o tempo logo a partir da segunda semana de estágio quando lhe foi solicitado que suspendesse temporariamente a sua pesquisa para ajudar a limpar aceiros à volta da reserva. Àquele trabalho, sucederam-se tanto outros que de si só exigiam braços e obediência. Navegar sozinho o mato, à noite, servindo-se somente da sua cabeça e estar a sair-se bem, dava a sensação de liberdade e controlo.

Não tardou que Derek começasse a duvidar das suas certezas. O tempo percorrido não tinha qualquer paralelo com as vezes que fizera o percurso na companhia dos outros e contra todas as suas expectativas o caminho do desvio teimava em não aparecer. Tentou convencer-se que não se passava de uma pequena alucinação e perseverou no carreiro até que a paisagem se apresentou totalmente estranha. Interrompeu a marcha e murmurou algumas palavras de encorajamento para que não se deixasse apossar pelo pânico. Antes que cometesse mais asneiras, aceitou a derrota e decidiu seguir o mesmo caminho de volta para junto dos colegas e pedir auxílio.

Começou a caminhar no que lhe pareceu ser o sentido inverso sem, no entanto, encontrar quaisquer vestígios da sua marcha anterior. Naquele momento de incerteza, esfumou-se por completo a noção romântica da floresta como sinónimo do belo e do bem-estar. Aflito, não se reconhecia como ecólogo em formação. Trocaria num piscar de olhos a picada por uma estrada pavimentada com iluminação e endereços. O capim e as árvores não lhe tinham muita utilidade para além de esconderem perigo. Limparia tudo e com eles os sons sinistros da mata. Ainda assim, de tudo quanto imaginava poder mudar, nada tinha mais urgência e relevância que a companhia de outros seres humanos. Receberia de braços abertos mil Petrus, com os seus filhos, noras e netos.

“O mundo é mesmo injusto”, continuou o seu solilóquio introspectivo. Naquele grupo de muzungos, ele tinha a certeza de ser o único indivíduo que tinha a vida inteira pela frente ou, como o pai gostava de dizer, era um cheque pré-datado. Petrus devia ter duzentos anos com a data de validade há muito vencida. Jaco, feito em sábio, se valesse a metade do que ele julgava ser, de certeza que estaria nos Okavangos, Serengetis ou Amboselis deste mundo. Ele era somente um zarolho em terra de cegos. Em relação aos outros, nem havia de gastar os seus neurónios. Eram simplesmente lixo branco que ganhava alguma utilidade entre mabecos e macacos. Porquê, então, tinha o destino reservado a si esta prova de vida? Não tinha lógica nenhuma.

Envergonhado por ter pensamentos tão perversos, Derek rezou o que ainda se recordava das lições de catequese. Jurou que não era má pessoa, mas não estava disposto a terminar nos intestinos de uma ferra sem dar luta. Levaria consigo para o inferno tudo e todos que a sua ira e desespero permitissem. Tirou do bolso a caixinha de fósforos que ficara consigo quando tentava cozinhar para aquela cambada de mal-agradecidos. Raspou o primeiro palito, mas o vento apagou a fagulha no mesmo instante. Repetiu o acto até que, sem se dar conta, a chama já lavrava o primeiro metro quadrado de mata com promessa de muito mais.

 

18 de Mar. de 23

 

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