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Feridos invisíveis 

Assim como a mistura entre as cores azul e amarelo dá origem ao verde, eu insisti em acreditar que a fusão da minha vontade de ser alguém com o meu esforço incessante poderia também resultar numa tonalidade vibrante de esperança. O verde, dizem, é a cor da esperança. Mas, que ironia amarga, para mim, esse verde não floresce. Porque, na realidade, sinto-me afogada numa palete de cinzentos nebulosos, banhada por uma profunda melancolia que não se dissipa.

Como posso eu julgar que existe qualquer resquício de esperança quando os pilares da minha existência — a minha família — me atribuem um preço? Oiço as palavras atormentadas que ecoam na minha mente, questionando: quanto vale uma vida? Tinha eu a crença ingénua de que a minha vida era inestimável, mas segundo os meus próprios progenitores, sacrifícios e valores monetários tornaram-se o preço cobrado pelo meu futuro, pelo meu bem-estar e pelos meus sonhos mais queridos.

Fui ferida duas vezes, e cada ferida carrega um peso insuportável que me acompanha a cada passo que dou. A primeira vez, pela ferocidade de um homem que deveria ser portador de amor e proteção, com idade para ser meu avô, que, na visão de muitos, deveria oferecer mimos e carinho incondicional, mas no meu caso se revelava como o estuprador que despojou minha infância e a inocência que ainda me restava. Em um único momento, ele se tornou o arauto da dor, obliterando a luz que emitia em meu ser e transformando aquele que deveria ser um refúgio seguro num labirinto de terror.

A segunda ferida, mais insidiosa, veio do silêncio cúmplice dos meus próprios pais, que, ao invés de se levantarem em minha defesa, optaram por um acto de traição. Trocaram a dor da minha alma por algumas migalhas, como se o meu sofrimento pudesse ser apagado por uma mesquinha oferta de alimentos e um valor monetário, aceitando essas sobras como se fossem uma desculpa válida. Com isso, negaram não só a gravidade do que havia ocorrido, mas também a chance de eu me sentir válida e protegida. Cada uma dessas feridas tornou-se uma tatuagem invisível em minha alma, um lembrete constante das promessas quebradas e da inocência que nunca mais retornará. 

A dor não se apaga, e a luta para encontrar novos significados em meio a tanto sofrimento é um caminho tortuoso, onde cada dia é uma batalha entre a vontade de renascer e as lembranças que insistem em me manter presa ao passado. Se os avós deveriam ser sinônimo de amor, por que na minha história eles se transformaram em algo tão oposto? Essa dualidade persiste, e sigo à procura de um futuro onde a dor que me foi infligida não defina minha identidade, mas sim a força que sou capaz de reunir para superar.Que esperança pode ainda existir em mim, quando a confiança se desfez nas sombras da traição? O meu coração anseia por uma luz que não chega, enquanto o peso da tristeza me sufoca, como uma neblina densa, impedindo-me de ver o caminho à frente. A vida tornou-se uma tela manchada pelas dores do passado, e só deliro ao imaginar um futuro onde a cor verde da esperança possa, finalmente, renascer.

Este é o relato de uma criança cujos olhos, outrora brilhantes e cheios de esperança, se viram envoltos na escuridão de um pesadelo inimaginável. Nos braços de um homem que deveria ser um protetor, a sua inocência foi despedaçada, deixando uma cicatriz indelével na sua alma ainda delicada. Aquele momento cruel não foi apenas um ataque à sua integridade; foi uma violação da própria essência do ser infantil, um roubo que ecoaria por toda a sua vida.

E quando a criança olhou em busca de amparo, de conforto e de amor nos braços dos seus pais, encontrou-se em vez disso, com a frieza de uma traição que não esperava. O segundo golpe, mais devastador que o primeiro, desferido por aqueles que deviam ser os seus maiores defensores, que deveriam proteger e cuidar, mas que, em vez disso, se tornaram cúmplices silenciosos do acto mais odioso que a vida poderia infligir.

O fardo que estas crianças carregam é insuportável, e é impossível não sentir um profundo desejo de que todos aqueles que destroem os sonhos inocentes, assim como os que olham para o lado e permitem que essas atrocidades aconteçam, fossem eliminados do tecido da sociedade. A injustiça que se perpetrava sob a tutela de quem devia cuidar grita por mudança, pede por justiça, clama por um mundo onde nenhuma criança tenha de sofrer a dor que traz consigo. Que cada um de nós encontre o valor e a coragem para agir, para proteger, e, assim, garantir que a inocência das crianças não seja mais uma vítima das sombras que se escondem entre sorrisos e promessas quebradas.

Muitos podem assumir que a violação sexual se limita ao acto físico, mas, na verdade, essa dor se estende além da mera carne, permeando atitudes e acções que invadem a intimidade de uma forma devastadora. Vejamos o relato de uma jovem maior de idade, cuja vida se tornaria marcada por um trauma inesperado em um dia que deveria ser de celebração.

Era uma tarde radiante de sol, onde as risadas ecoavam e o amor pairava no ar durante a celebração de um matrimônio. Todos estavam felizes, imersos na alegria daquela união, e a jovem, como testemunha do amor, também tentava se deixar levar pela energia contagiante do momento. No entanto, ela nunca imaginou que aquele dia lhe traria uma das experiências mais sombrias e profundas de sua vida.

Durante a sessão de fotografias, enquanto todos posavam com sorrisos luminosos, um senhor, que era parte daquele evento, decidiu cruzar uma linha que não deveria ser ultrapassada. Enquanto se preparavam para capturar aquele instante, ele, de forma intencional e cruel, apalpou as nádegas da jovem. A sua mente levou um momento para processar a invasão, até que, ao se voltar, se deparou com o sorriso insidioso daquele homem, que, mesmo acompanhado da esposa, parecia se regozijar na sua própria impunidade. Ele piscou um olho para ela, como se a sua acção fosse um jogo.

Neste instante, a jovem sentiu-se a pessoa mais suja e envergonhada do mundo. Todo aquele brilho e alegria do casamento se desfizeram como areia entre os dedos. O único desejo que a consumia era o de encontrar um buraco onde pudesse enfiar-se, longe daquela realidade cruel que lhe havia sido imposta. Desde aquele momento até o final da celebração, a jovem que ostentava um sorriso para os outros mergulhou num profundo poço de tristeza, um luto pela sua inocência e segurança. 

Embora ocupasse um papel relevante na cerimônia, a sua única vontade era ir para casa, para se afastar daquele homem que a ferira de tão perto, que transformara um dia de amor em um pesadelo silencioso. Hoje, passados cinco anos, o eco daquilo ainda ressoa dentro dela; as memórias não se apagam, e o impacto daquela acção tão desumana continua a marcar sua vida, refletindo que a violação vai além do corpo, petrificando-se na alma e nos sentimentos. É um lembrete doloroso de que o respeito pelo outro deve ser inegociável, e que cada sorriso escondido pode ocultar cicatrizes que nunca se fecham.

Que essa história chegue aos corações dos que a leem, que desperte a compaixão por aqueles que sofrem em silêncio, e que nos faça a todos mais atentos, mais protetores. Que possamos ser a mudança que queremos ver, lutando para proteger a inocência das crianças e garantir que ninguém tenha que enfrentar a dor que destrói sonhos e arroba a vida. É preciso aprender a ouvir, a acolher e a agir, para que possamos, juntos, construir um mundo onde cada ser possa prosperar em dignidade e amor…!

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