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Dialéctica do (in) sensível em “Sexta-feira”, de Joana Coana

  1. Introdução

A ideia segundo a qual a “sexta-feira” é o dia do homem remonta a muito antes de Joana Coana (doravante JC) lançar o seu clássico “Sexta-feira”. Sempre que se escuta este número musical, corre-se à ideia de “liberdade”, “curtição”, “legitimidade para curtir”, etc. Entretanto, em “Sexta-feira”, de JC, mais do que se confirmar e frisar que “sexta-feira é o dia do homem”, depreende-se a representação do (in) sensível, motivo pelo qual nos propomos dissertar neste artigo.

  1. Aspectos teórico-conceptuais

1.1. Teoria de base

1.1.1. Fenomenologia Social de Alfredo Schutz

O mundo é feito de experiências do nosso dia-a-dia que beneficiam um certo conhecimento. Este mundo é o âmbito em que os sujeitos se encontram inseridos no seio de esquemas interpretativos que estruturam o desdobrar da vida cotidiana. (Schutz, 1979, apud Matsinhe, 2012)

Dito de outro modo, a teoria de Schutz permite, de modo geral, analisar os processos de interacção e significação que os indivíduos vivenciam no seio dos contextos sociais em que se encontram inseridos. (Matsinhe, 2012)

Portanto, para uma abordagem de natureza da nossa pesquisa, interessa uma teoria voltada para a vida cotidiana dos indivíduos e para o processo de construção social da realidade. Deste modo, a Fenomenologia Social de Alfredo Schutz mostra-se mais adequada, pois que, de acordo com Matsinhe (2012), “é uma teoria que dá relevância à construção da realidade social e de um dado fenómeno”, neste caso, a concepção de sexta-feira e suas peripécias em indivíduos inseridos em determinado contexto social (moçambicano).

No mundo, a vida insere os usos, os significados, os valores, os conhecimentos típicos da cultura de pertença e a linguagem. Assim, a Fenomenologia trata de uma estrutura face a face, entendendo que as acções sociais têm um significado contextualizado, de configuração social e não puramente individual. (Schutz, 1979, apud Matsinhe, 2012)

Assim, a presente abordagem enquadra-se na Fenomenologia Social, pelo facto de dar relevância à construção da realidade social e de um dado fenómeno, no caso concreto, do conceito de sexta-feira, conjugando-o com as práticas sociais vigentes nesse dia de semana; pelo que, mais do que demonstrar por que razões a sexta-feira é dia do homem, objectivamos, com este artigo, explicitar a dialéctica do (in) sensível.

1.2. Aspectos conceptuais

1.2.1. O (in) sensível

Conforme assevera Shelling (s/d), apud Silva (2002:127), o (in) sensível, em Literatura, depreende-se quando o “Eu”, portanto, não é sensível se não existe nele uma actividade que ultrapassa o limite. Devido a esta actividade, o “Eu” deve, para ser sensível a si mesmo, colher em si o estranho.

Dito de outro modo, “O (in) sensível, sendo o que se produziu com o transcender, sem que as personagens tenham consciência do mesmo, é resultado da impulsividade, desejo, apetite e aspiração (…)” (Monjane, 2024) (parênteses e grifo nossos)

1.2.1. Sexta-feira

Sexta-feira significa “sexto dia da semana, seguindo a quinta-feira e precedendo o sábado, sendo um dia comum de trabalho e lazer; também tem um dia de significado religioso. A etimologia também a relaciona com a deusa romana Vénus. Em algumas culturas, como a cristã, a sexta-feira é associada à crucificação de Jesus Cristo, sendo um dia de reflexão e oração, especialmente na Sexta-feira Santa.”

Todavia, fora dos conceitos retro mencionados (incluindo lazer), no contexto moçambicano, a sexta-feira, quiçá por ser o último dia laboral da semana, é tida como o dia em que o descanso se inicia e, por isso, conota-se como o dia do homem, no qual este aproveita para divertir-se à fartura, porquanto que, no dia seguinte, não irá ao trabalho. Trata-se, portanto, de uma “configuração social e não puramente individual deste conceito”, conforme atesta Schutz (1979), apud Matsinhe (2012).

1.3. Aspectos metodológicos

Conforme retro expusemos, a nossa abordagem centra-se na Fenomenologia Social de Schutz e, metodologicamente, para o efeito, porque a letra da música se encontra indisponível, servir-nos-emos da transcrição e posterior tradução (livre) para o Português, uma vez que se encontra em XiChangana, uma língua autóctone moçambicana que, segundo a classificação de Guthrie, pertence ao grupo Tshwa-Ronga e é codificada S. 50, grupo linguístico que engloba três línguas mutuamente inteligíveis.

  1. A dialéctica do (in) sensível em “Sexta-feira”, de JC

Conforme explicitámos no início da nossa alocução, mais do que se depreender que a “sexta-feira é o dia do homem”, em “Sexta-feira”, de JC, infere-se, igualmente, a (in) sensibilidade do homem para com a esposa e família, em detrimento da “curtição” e/ou proveito do dia que, socialmente, se instituiu como seu (do homem).

Por exemplo, para traduzir a sua indignação com o parceiro, devido à insensibilidade apresentada por si às sextas-feiras, o sujeito poético (mulher/esposa), em “Sexta-feira”, começa por dizer: ‘Desistimos de alguns homens por coisas que/ não sabemos (…)/ descobrimo-los por coisas/ que não as vemos (…)’, como quem diz entretanto, sabemos que acontecem, quando entoa “avavanuna hi va tsukula hi svin’wani svaku/ kala hi nga svitivi (…)/ avavanuna hi va gungula hi svin’wani/ svaku kala hi nga svivoni” (JC, s/d)

Na continuidade, o sujeito poético assevera que tudo isso se sucede por conta da máxima segundo a qual “sexta-feira é o dia do homem”, ou seja, independentemente do que aconteça ou esteja a acontecer em casa (com os filhos, com a esposa, etc.), eu vou curtir, quando diz: “Vali (dizem) sexta-feira é o dia do homem,/ eu vou curtir (…) eu vou à curtição (…)” (JC, s/d)

Ora, só com o exórdio, o sujeito poético (esposa) revela a sua indignação para com o homem (seu esposo), por culpa do conceito que se atribui à sexta-feira no contexto moçambicano. Mas, porque nenhuma asserção se basta por si só, o sujeito poético, na segunda estrofe, parte à argumentação, para fundamentá-la, nos seguintes moldes:

“(…) hiku vabya n’wana lani muntini, awahuma a famba/ hiku hiseta bebe lani muntini, awahuma a famba (…)/ hikuvabya nkosikazi, yuh, awafamba (…)”, i.e., [‘mesmo quando a criança está doente em casa, ele sai rumo à curtição/ mesmo quando o bebé está febril em casa, ele sai rumo à curtição (…)/ inclusive quando a esposa está doente, ele sai de casa rumo à curtição (…)’] e, para vincar a sua indignação, o sujeito poético serve-se da interjeição “yuh!”, que exprime exclamação, susto e/ou admiração (?)

Ou seja, apesar de a sexta-feira ser dia do homem, o expectável é que, quando se trata da saúde dos filhos e/ou esposa, o marido ignore a sexta-feira e cuide dos seus. Entretanto, o tipo de marido descrito neste número musical é o (in) sensível, para quem a saúde da família pouco importa; aliás, para quem a sexta-feira importa mais do que a saúde da família.

Estamos, portanto, perante o (in) sensível, i.e., “o sensível, sendo o que se produziu com o transcender, sem que as personagens tenham consciência do mesmo, é resultado da impulsividade, desejo, apetite e aspiração (…)” (Monjane, 2024) Isto se trata, segundo Schutz (1970), apud Matsinhe (2012), de uma acção social com um significado contextualizado, de configuração social e não puramente individual.

Ademais, conforme assevera Shelling (s/d), apud Silva (2002:127), o (in)sensível em Literatura depreende-se quando o “Eu”, portanto, não é sensível se não existe nele uma actividade que ultrapassa o limite. Devido a esta actividade, o “Eu” deve, para ser sensível a si mesmo, colher em si o estranho: abandonar um filho ou esposa doente para “curtir” a sexta-feira. (destaque nosso)

De seguida, face à situação de abandono para se aproveitar a sexta-feira, o sujeito poético traz um alerta aos homens, quando assevera: ‘(…) entretanto, toma cuidado, um dia voltarás para casa e não encontrarás a tua esposa em casa (…)’, quando entoa “(…) kambe tivonele, utatshuka ukuma svaku a nsati a fambile (…)” (JC, s/d) Ora, a pergunta que não se quer calar para o leitor/ouvinte é: Aonde irá esta mulher sofrida, né?

Como que em resposta, o sujeito poético remata [‘(…) jurei morrer no lar,/ mas, por tua causa (homem), ir-me-ei embora;/ jurei nunca amantizar,/ mas, por tua culpa (homem), amantizarei;/ jurei nunca beber,/ mas, por tua culpa (homem), beberei (…)’], quando entoa: “ani bejelile kufela lani wukatini,/ kambe hikola kawena nita famba/ ani bejelile ku kala ninga mbuyeti,/ kambe hikola kawena nita mbuyeta/ ani bejelile kukala ninga phuzi,/ kambe hikola kawena nita phuza (…) (JC, s/d)

Estamos, aparentemente, perante um argumento-chantagem, mas, no fundo, o sujeito poético evoca “ir embora”, “amantizar” e “passar a beber” não como chantagem, mas, sim, como forma de se aliviar diante da situação que vive, facto que se pode depreender na continuidade da estrofe, quando entoa:

“nita phuza byala niku pfotlo,/ kumbe anita twisa moya/ nita phuza byala niku ruu…/ kumbe anita twisa moya (…) nita dakwa njani mina,/ kumbe anita twisa moya” (JC, s/d), que significa [‘vou consumir álcool descontroladamente,/ para ver se alivio o meu espírito ou estado de espírito/ vou consumir álcool até perder os sentidos,/ para ver se alivio o meu espírito/estado de espírito (…) vou-me embriagar tanto,/ para ver se me alivio’], ou seja, a argumentação retro mencionada não objectiva vingança e/ou chantagem, mas, sim, aliviar-se perante a situação de abandono e (in) sensibilidade por parte do seu cônjuge, consubstanciando-se naquilo que Sartre (s/d), apud Da Silva (2002), assevera: “o Homem (homem e mulher) é aquela realidade que não é o que é, é o que não é (…) o ser que se realiza na sua própria superação.” (destaque e parênteses nossos)

À guisa de conclusão

Portanto, em “Sexta-feira”, de JC, mais do que se fomentar e/ou frisar a máxima segundo a qual “a sexta-feira é o dia do homem”, explicita-se a (in) sensibilidade de certos homens com relação à família, tudo por conta da sexta-feira, e chama-se-lhes atenção para mais compreensão (ou compaixão?), sob o risco de a mulher, em busca de alívio, cometer actos que periguem ou manchem o seu relacionamento.

 

BIBLIOGRAFIA

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carlosdagraca18@gmail.com

 

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