O País – A verdade como notícia

Por: Natércia Manhenje

 

Nas telas que nos são apresentadas, Mourana nos oferece uma poesia lírica cantada através de traços únicos que fazem uma ode à Mulher e ao que de mais profundo e belo ela pode representar e apresentar. A música está patente de forma explícita em alguns quadros e de forma implícita em quase todos os quadros onde vemos representado o sorriso, a alegria, a escuta, a dança, a melodia, o amor e até um olhar de esguelha.

Pode-se dizer que cada quadro apenas se encontra acabado depois de analisado pelo observador, tendo em conta o momento e o diálogo travado entre ambos. Um diálogo que dispensa a figura do artista, que se isola, totalmente da tela e deixa o seu outro Eu navegar num mundo que nem ele mesmo conhece, mas que é movido por esse Eu que o leva a desencadear uma série de traços, aparentemente sem significado, mas que se vão unindo, trazendo realidades que só quem os vê, aprecia e analisa, os consegue alcançar. Em cada traço e mistura de cores nota-se um discurso misterioso, que melhor se entende com uma observação mais cuidada e profunda.

Trata-se de uma exposição essencialmente figurativa, que contém raízes profundas no mundo real com um toque de grande misticismo, regado com toque de crítica social virada para o mundo globalizado, como o quadro garotas da Town, por um lado e, de forma particularizada, como é o caso dos quadro Filhas da Lua, e ainda de forma especializada, como o caso dos quadro Xiguiane.

Sua técnica, que é bem persuasiva e com uma característica muito pessoal e de estilo que o enquadra no mundo surreal, com a particularidade de nos levar para um caminho sem retorno e sem vontade de voltar ao mundo real. O uso de cores e formas, que nos levam a interpretar de um modo mais amplo tudo o que está em nosso redor, nunca descurando o seu próprio estilo e traço, levam a cada um a transportar-se para um infinito de imagens de um modo aberto, criando emoções que exaltam a alma, em consonância com as suas vivências.

A mulher e a música casam nas telas de Mourana e trazem um elemento arquitectónico que abre outras realidades, que muitas vezes são apresentadas em situações inusitadas, numa combinação de fragmentações e montagem do real, desarticulado, suscitando o estranho, de uma imagem que é ao mesmo tempo nova e familiar.

Cada tela é como um capítulo solto de uma obra completa, mas, ao mesmo tempo em construção, levando-nos a uma viajem que pode surpreender, a cada momento, criando a espectativa de uma obra progressiva.

O convite a genesis com a representação de parte de criação do mundo com Pecado de Adão que nos sugere de onde tudo começou, até a Longa espera de uma realidade escondida no Livro dourado da sereia onde pode se antever uma Peregrinação infinita, em melodias surdas que nos levam a hoyozelar a filha da lua com a magia dança da Bailarina divina sob o Olhar de esguelha das siamesas nos levam das emoções de um Lirismo amoroso ao apocalipse da Metáfora do amor das Melodias Curvilíneas.

 

*Texto lido na sessão de abertura da exposição “Melodias curvilíneas”, de PMourana, na FFLC, no dia 5 de Março de 2024.

 

Quando mergulhamos na contemplação do sofrimento das almas eclipsadas pela sinfonia soturna da pólvora, nas teias da sociedade envolvida num eterno lamento de miséria, onde a alma humilde muitas vezes suplica pelo término da produção bélica, consciências despertas tecem pensamentos vigilantes, testemunhando o sofrimento das massas e a devastação do planeta pelas cinzas das forjas bélicas. As ondas fumegantes do conflito escravizam e envelhecem o manto do ozono, embora sejam tecidas para ornamentar o diagrama financeiro e enriquecer os cofres dos fabricantes.

As armas, que forjam rios de chumbo a banhar o peito humano, diluindo as células da alma em cálices de morte, deixam as aldeias desfavorecidas desprovidas de alegria e da vontade de existir. Urge transcender o medo e buscar a coragem que extingue a fábrica de armamentos, conduzindo o mundo à celebração do baptismo no Rio do Amor, da Paz, da Paixão e dos Prazeres Benevolentes. Talvez seja necessário despertar a consciência para a compreensão de que a arma é o reflexo natural do espectro da morte e do sofrimento.

Sim, o olhar perspicaz detecta nas tintas da guerra cores análogas às das indústrias bélicas que movem oceanos em troca de semblantes de dólares. A padronização da produção de instrumentos letais encobre o destino de vidas inocentes, com a dança macabra de projécteis bélicos que acariciam com a morte o peito desprotegido dos menos afortunados.

Os versos da poesia da guerra mesclam-se às nuances do neocolonialismo engendrado pelas nações opulentas, disfarçadas de auxílio sob pretexto, perpetuando a eterna dependência dos países menos favorecidos, minando a inteligência dos seus líderes e, muitas vezes, usurpando o desenvolvimento das sociedades ao pilhar os seus recursos naturais sem retribuir benefícios directos ao povo, ou impondo políticas que limitam a sua exploração e comercialização, obstaculizando, assim, o avanço desses países.

Os versos da poesia da guerra confundem-se com a claridade do segredo que embriaga as consciências, levando-as a proferir “sim” ao que é “não”, em todas as teorias que não se traduzem em benefícios para as nações menos favorecidas. Às vezes, os versos dessa poesia tomam a cor dos que buscam riqueza, sacrificando a alma dos desprotegidos, esquecendo-se de que todas as almas, sejam elas envoltas na penumbra da opulência ou no fulgor da penúria, enfrentarão a mesma experiência derradeira, o mistério oculto além da morte. Sim, a guerra veste-se com as cores da morte, enriquecendo as nações que olvidam que nenhum povo, de qualquer nação, escapará à experiência do transe final.

Os versos da poesia da guerra ecoam nos gritos das crianças que se escondem nas matas [do Leste da RDC, do Norte de Cabo Delgado, na Faixa de Gaza, na Ucrânia, Burkina Faso, Sudão, Iémen, Síria…] sempre que os seus ouvidos se deparam com o estrondo do cano das armas, cuja produção gera mortes e a miséria de almas desprotegidas, enriquecendo, por outro lado, as nações produtoras de armamentos. O processo de fabricação de armas talvez participe, de maneira dissimulada, na degradação e destruição da mãe natureza.

A imagem da guerra está imbuída do egoísmo e da máscara da benevolência, que buscam restringir o progresso dos países menos favorecidos, impondo-lhes o jugo do sofrimento, da pobreza e das limitações. A guerra assume as cores das nações abastadas, que continuam a exportar políticas que impedem o avanço das sociedades carentes, aproveitando-se da falta de discernimento dos líderes destituídos de luz para direccionar os valiosos recursos existentes, incapazes de vislumbrar caminhos que libertem as suas nações do jugo do subdesenvolvimento humano.

A poesia da guerra reflecte-se nas cores das armas que ceifam prematuramente as almas do povo pobre. Reflecte-se nas tintas que não pincelam o mundo com traços de amor e cenários de benevolência, mas glorificam a riqueza das nações desenvolvidas com o clamor da guerra e o gemido das almas pobres, sem que as organizações humanitárias do mundo se interessem em discutir temas que desestimulem a produção bélica. Hoje, discutem-se exaustivamente as energias fósseis, talvez porque o progresso dos países menos favorecidos esteja ligado à exploração e comercialização desses recursos, algo que poderia abalar a arrogância e prepotência das nações que ditam as regras do jogo global.

Os resultados financeiros da indústria bélica tornam-se mais positivos quanto maior for o consumo de vidas ou o número de vidas ceifadas. O marketing da morte embriaga as consciências compradoras de armamentos, semeando o desespero numa existência que deveria ser pautada pela esperança de viver num mundo justo.

Precisamos de uma mobilização social para resgatar o mundo das garras das armas e secar o rio de lágrimas vermelhas que fertiliza a indústria bélica e os seus acessórios. Precisamos de um esforço colectivo para tecer a paz com as letras da poesia, num mundo bom para todos. Os países pobres não devem mais ser forjados como campos de batalha geneticamente ocidentais; eles precisam de desvendar o véu que esconde as armas e o fardo económico das mãos que oferecem ajuda sob uma falsa aparência de generosidade. 

 

Deus livre o pobre do consumo de armas!!!

O saxofonista Moreira Chonguiça é um dos campeões do projecto JAZZ FROM AFRICA no Jazzahead!2024, a feira e festival internacional de jazz agendada para ter lugar em Bremen, Alemanha, de 11 a 14 de deste mês.

Tendo sido recentemente reconhecido pelo Governo Francês como Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras, Moreira Chonguiça tem consistentemente ultrapassado os limites do jazz, infundindo sua música com a rica tapeçaria cultural de Moçambique e, mais amplamente, do continente africano.

Como luminar no cenário do jazz africano, com oito álbuns premiados, seu estilo distinto e virtuosismo no saxophone renderam-no aclamação em todo o mundo, tornando-o um embaixador adequado do jazz africano. Moreira Chonguiça é o primeiro moçambicano a ser convidado para o Concerto Global do Dia Internacional do Jazz, que terá lugar em Tangier, Marrocos, a 30 de Abril de 2024.

O projecto JAZZ FROM AFRICA, segundo uma nota de imprensa, foi iniciado por um grupo de figuras proeminentes do jazz no continente africano, e tem como objectivo mostrar a diversidade e a vitalidade do jazz africano, destacando as vozes e perspectivas únicas que emergem do continente.

Como parte desta iniciativa, Moreira Chonguiça busca amplificar as vozes dos músicos africanos de jazz, promovendo a colaboração internacional e a apreciação pela riqueza de talentos dentro da comunidade africana de jazz.

A iniciativa visa promover uma compreensão e apreciação mais profundas do jazz africano dentro da comunidade global de jazz.

Jazzahead! 2024 fornece uma Plataforma ideal para esse empreendimento, reunindo músicos, profissionais da indústria e entusiastas do jazz de todo o mundo. É uma convergência única de uma feira comercial, conferência e festival de exposições.

“Em 2023, o Jazzahead juntou 2,800 profissionais de 51 nações de vários sectores, incluindo artistas, livreiros, marcas, agências e muito mais. Pela primeira vez, o continente Africano foi agraciado com três das oito vagas na exposição ‘Overseas’ ‘além fronteiras’ dedicada a bandas/artistas de jazz emergentes”, lê-se na nota.

Moreira Chonguiça expressa o seu entusiasmo pelo projecto, afirmando, “Tenho a honra de fazer parte deste projecto inaugural JAZZ FROM AFRICA no Jazzahead! 2024. África tem uma herança musical rica e diversificada, e o jazz é um veículo poderoso para expressar as nossas histórias, tradições, e experiências contemporâneas. Este projecto é uma celebração do incrível talento dentro da comunidade africana de jazz, e estou ansioso por partilhar a nossa música com o mundo.”

A Escola Portuguesa de Moçambique – Centro de Ensino e Língua Portuguesa (EPM-CELP) entregou, na manhã de quarta-feira, dezenas de livros infanto-juvenis e materiais de apoio didáctico à Associação para o Desenvolvimento da Leitura e Escrita (ADELE).

Segundo uma publicação da Escola Portuguesa de Moçambique, o apoio, enquadrado na sua missão de cooperação no domínio da Língua Portuguesa, visa, igualmente, contribuir para desenvolver habilidades de leitura e escrita nos alunos e professores de escolas moçambicanas, no âmbito da promoção da literacia, e incentivar o hábito da leitura.

“Os exemplares doados, maioritariamente vocacionados para crianças e jovens, e editados pela nossa Escola, incluem temáticas diversas, desde o imaginário popular das histórias tradicionais de Moçambique, até aventuras e sonhos. A doação dos livros enquadra-se na iniciativa da ADELE de reforçar a literacia nas escolas moçambicanas, promovendo actividades com alunos e professores”, lê-se na mesma publicação da Escola Portuguesa de Moçambique.

Os livros foram entregues à representante da Associação para o Desenvolvimento da Leitura e Escrita (ADELE), Maria José Pereira, por Luísa Antunes, presidente da Comissão Administrativa Provisória da Escola Portuguesa de Moçambique – Centro de Ensino e Língua Portuguesa (EPM-CELP).

 

No próximo dia 18 deste mês de Abril, às 16 horas, no auditório do Centro Cultural Franco-Moçambicano, na Cidade de Maputo, será lançado o projecto Cultiv’arte.

A iniciativa Cultiv’arte é da União Europeia, devendo ser implementada pela Expertise France, em parceria com o Ministério da Cultura e Turismo. Essencialmente, Cultiv’arte visa promover o sector cultural em Moçambique.

A cerimónia de lançamento de Cultiv’arte irá contar com intervenções dos embaixadores de França, da União Europeia e da Ministra da Cultura e Turismo, Eldevina Materula.

A iniciativa que terá duração de quatro anos, conta com o fundo de 5.000.000 euros, e tem como objectivo aumentar a contribuição do sector cultural para o desenvolvimento social e económico, especialmente para os jovens e as mulheres como motores de mudança.

O projecto CULTIV’ARTE pretende reforçar a governação e profissionalização do sector, incluindo a utilização de tecnologias digitais, através do reforço das competências dos recursos humanos (1); apoiar a cooperação e a criação de redes de operadores culturais a nível nacional e internacional (especialmente na região da África Austral e na Europa) (2); e reforçar as capacidades do Ministério da Cultura e do Turismo e de outros organismos públicos descentralizados, a fim de assegurar um ambiente mais favorável ao desenvolvimento do sector cultural (3).

Os beneficiários directos da acção são intervenientes do sector das indústrias culturais e criativas, incluindo as autoridades públicas, empresários criativos, artistas e profissionais da cultura, bem como organizações da sociedade civil.

 

A propósito do Dia Internacional do Jazz, que se comemora anualmente a 30 Abril, o Centro Cultural Franco-Moçambicano realiza, no dia 20 deste mês, a partir das 17h, a sexta edição do Festival Jazz no Franco, a decorrer nos palcos do Jardim e Sala Grande.

Inaugurado em 2018, o Festival Jazz no Franco tem sido um marco na cena musical local, com uma rica programação de artistas nacionais e estrangeiros. Para a sexta edição, o evento conta com a participação de Frank Paco, Deodato Siquir, Fearless Souls e The Brother Moves On (África do Sul). “Adicionalmente, teremos um DJ Set com DJ Bob, da África do Sul, tanto às 17h como às 22h”, lê-se na nota do Franco.

Frank Paco começou a tocar bateria com a tenra idade de 11 anos, em Moçambique, e, em 1994, decidiu continuar os seus estudos em jazz matriculando-se na Universidade de Cape Town, onde obteve um diploma com distinção em “Performance de Jazz”. Em 2000, Frank foi convidado a gravar com os melhores músicos da África do Sul pela Sheer Sound Jazz Label, da qual sua composição “Milagre” foi escolhida para o vídeo-clip. O grupo também ganhou o South African Music Awards (SAMA), na categoria de “Melhor Álbum de Jazz Contemporâneo”, e recebeu um convite para o Den Hague e se apresentar no Festival de Jazz do Mar do Norte, em 2001. Na sua carreira como músico de estúdio, Frank gravou em mais de 40 álbuns, 10 dos quais receberam prémios e 4 foram nomeados. Percorreu muitos palcos do mundo e a sua carreira impressionante inclui destaques como o concerto 46664 Mandela AIDS ao lado de muitos grandes músicos do mundo, como a lendária banda Queen, Bono, Jimmy Cliff, Angelique Kidjo, Johnny Clegg, Brian May e Peter Gabriel. Depois de décadas a viver na África do Sul, reside actualmente na Ilha da Reunião

Deodato Siquir, nasceu em 1975, em Maputo. Cresceu em uma família musical e começou a tocar bateria improvisada na infância. Juntou-se à sua primeira banda em 1988 e aos 15 anos já se apresentava com orquestras profissionais e músicos internacionais.

Entre 1990 e 2000, trabalhou como acompanhante de diversos artistas em Moçambique. Em 1997, fundou sua primeira banda, Mozafro, e contribuiu para a compilação “Music from Mozambique”. Em 2000, participou do álbum “Mozambique Relief” para arrecadar fundos para vítimas de uma enchente. Em 2001, emigrou para a Escandinávia, onde se tornou um músico requisitado no cenário do jazz e world music. Lançou seus álbuns solo “Balanço” (2007) e “Mutema” (2011), que alcançaram sucesso internacional, entrando no Top 10 da World Music Charts Europe. Seu terceiro álbum original, “TOGETHER”, concorre actualmente ao World Music Charts Europe. Sua carreira na Escandinávia incluiu colaborações com uma ampla gama de artistas, consolidando sua reputação como um talentoso percussionista e compositor.

Fearless Souls é uma banda moçambicana de Jazz/Fusion cuja sonoridade é influenciada pela música tradicional e folclórica de Moçambique, bem como pelos mais diversos géneros musicais. A banda é formada por Vando Infante, Albano Gove, Lívio Monjane, Mahú Mucamisa e Roberto Chitsonzo Jr., tendo alguns já colaborado com grandes figuras da música a nível internacional como Jimmy Dludlu, Moreira Chonguiça, More Jazz Big Band, Stewart Sukuma, Sandra Saint Victor, Ghorwane, Judith Sephuma, Sipho “Hotstix” Mabuse, Pathorn Srikaranonda, entre outros.

The Brother Moves On é um grupo de arte performática sul-africano sediado em Joanesburgo, Gauteng. Fundado entre 2008 e 2010 por Nkululeko Mthembu, um artista versátil, e seu irmão Siyabonga Mthembu, o grupo começou como um colectivo de arte aberto, abrangendo artistas gráficos e performáticos. Hoje em dia, é mais conhecido como uma banda liderada por Siyabonga Mthembu nos vocais, acompanhado por Zelizwe Mthembu na guitarra, Ayanda Zalekile no baixo e Simphiwe Tshabalala na bateria. Este núcleo é frequentemente complementado por colaboradores de diversas disciplinas. Este grupo é reconhecido por seus shows ao vivo multidisciplinares, descritos como uma “fusão futurista de tradições ancestrais afrocentricas com influências transatlânticas”. Durante estes espectáculos, os membros principais e artistas convidados assumem papéis variados, combinando narrativa, teatro, desenho, instalação de vídeo e outras formas de mídia experimental.

 

Por: Teresa Manjate

Introdução

Kutchingaé um documentário do cineasta Sol de Carvalho, com a produção de Jacinta Barros e Rui Simões. Contou com a consultoria do antropólogo Elísio Jossias.

O filme tem a duração de uma hora e decorre todo em Inhambane. A paisagem é soberba e realista: as casas feitas de palma, ruelas estreitas e campos desnudos de culturas e ambientes domésticos com crianças e animais em quintais “comuns” e uma praia com águas límpidas, mas cercada de plásticos, indicador de problemas com a ecologia. O realismo do filme não poupou esta realidade.

O filme, de carácter etnográfico, isto é, que estuda pessoas, culturas a partir de uma análise profunda sobre os comportamentos, as crenças, as vivências e outras características da comunidade. Por outras palavras, a pesquisa etnográfica estuda os padrões mais previsíveis das percepções e dos comportamento das pessoas na sua rotina diária.

O documentário versa sobre o ritual ‘‘Kutchinga’’ praticado na região Sul de Moçambique, concretamente de Inhambane, embora seja comum em muitas outras zonas do País. O filme apresenta, pela voz de “actores” – informantes-chave – o ritual na perspectiva de mulheres, isto é, de mulheres que enviuvaram e tiveram de passar pelo ritual. Melhor seria dizer que em termos de representatividade fala de mulheres que enviúvam e têm de passar por este ritual. Na verdade, o ritual é para homens e mulheres que enviúvam.

O ritual é complexo. No conjunto das práticas, as mulheres ou homens que perdem os seus parceiros são obrigados, seguindo os preceitos de uma tradição secular, a manter relações sexuais com um familiar do finado ou da finada ou alguém contratado para se “purificar” o homem, a mulher e as suas respectivas famílias e, em última instância, a comunidade mais próxima. Mas não é o acto sexual que está em jogo: são os actos subsequentes: a “lavagem” da casa e dos filhos e a reintegração na vida familiar e comunitária.

Ao longo do país, existem rituais de purificação, porém com outras denominações. No centro do pais existe o kupita kufa. De acordo com Colher (2017) em “Cultura, em moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas? pita kufa e a prevenção do AIDS na província da zambézia em morrumbala”, os dados obtidos nas entrevistas no distrito de Morrumbala, literalmente a palavra pita kufa significa “afastar o morto, ou seja, pita = afastar e kufa = morto. Este processo de “afastar o morto” é feito através da prática de uma relação sexual ritual após a morte de qualquer membro numa família e que, por norma, deve ser consensual tendo em conta o tipo de ritual a ser realizado e a disponibilidade do purificador.Ainda segundo Colher (2017, op. cit), este ritual de purificação que envolve relações sexuais assenta na crença da existência de dois mundos: dos vivos e dos mortos. Esta percepção determina a existência de um ritual de passagem que marca a separação entre os vivos e morto, melhor, entre a vida e a morte. Na prática, de acordo com os entrevistadospara a realização do trabalho de pesquisa “Cultura, em moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas? pita kufa e a prevenção do AIDS na província da Zambézia em Morrumbala”, se as pessoas vivem uma vida comum e a partilham nas suas diversas formas, a separação por morte cria uma “condição impura” e este “estado de impureza” deve ser mantido fora do convívio da família,através da prática deste ritual. Este acto, considerado sagrado, mantém as pessoas puras e afastadas da morte e do isolamento causado pela morte de uma pessoa importante da família.

Do filme

O filme de longa-metragem é um documentário, filmado em bairros da cidade de Inhambane é arquitectado a partir de relatos e histórias pessoais de cinco mulheres e dois homens. Na verdade, do jovem que também aparece como “actor” –informante, não aprecem evidencias de ter enviuvado. Afinal, é um profissional contratado de forma recorrente para o acto de purificação, por isso parece ser um conhecedor da prática. O depoimento feito “desdramatiza” a prática, ao mesmo tempo que retira a sacralidade do ritual, por causa da linguagem que usa e das descrições que faz. É aparentemente útil para a percepção da prática, porém não agrega valor. Teria sido pensado? Com que propósito?  

O documentário não tem narrador presente ou em voz off. Os receptores/leitores percebem as lógicas e as dimensões filosóficas a partir das vozes dos entrevistados.

O filme inicia com a apresentação dos sete entrevistados: cinco mulheres e dois homens que se apresentam: dizem o nome, o lugar e o ano em que nasceram (quando sabem), o nível de escolaridade, quando e como enviuvaram. Só um entrevistado não tem experiência de viuvez, mas tem opinião sobre o que e como acontece, é Celso Jone, jovem de 25 anos, desempregado e sem “rumo na vida”. Adriano Mbondola,outro homem “actor” e informante-chave, tem valências em termos de conhecimento, mas não explora com a mesma profundidade das mulheres a perspectiva masculina como viúvo que é sobre a prática ritualística para ele, como homem.Fala da condição da sua cunhada, viúva do irmão mais velho, com quem teve de realizar o ritual.

As mulheres, com idades compreendidas entre 62 e 24 anos, vão narrando as suas histórias, a viuvez e o processo de purificação. Só uma das mulheres entrevistadas não passou pelo processo do Kutchinga. Esta sente a necessidade de dizer que está tudo bem com ela, apesar de ter perdido um filho. Mas que tem netos de outro filho, mas que está tudo bem. Que leituras deste depoimento? Linear? Entrelinhas?

No documentário, através das vozes das mulheres, percebem-se muitos aspectos culturais da comunidade Twsa: (i) as relações familiares, particularmente o papel do pater familiae(o pai da família, pai, tio ou avô) (ii) as dinâmicas dos casamentos – o lobolo, o casamento pelo registo e o religioso ou ainda o informal “união de facto” (uns arranjados, outros por iniciativa própria, mas, mesmo assim, condicionados pela vontade e poder patriarcal, do pai, do marido ou dos sogros, que se adivinha sogro); (iii) o valor das tradições.

Percebe-se, através do documentário, fundamentalmente que o ritual serve para manter a tranquilidade nas famílias, isto é, saúde e aceitação e integração na família e na comunidade. Não se fala em herança (bens materiais), pois, aparentemente, as mulheres entrevistadas são pobres e de alguma forma, autónomas, em busca de equilíbrio mais espiritual do que material. Na filosofia tradicional bantu, a mulher que se casa passa a fazer parte da família do homem com que se casa. Mantém a casa, os filhos e a continuidade não só do nome, mas das tradições. É nesta perspectiva que se justifica a percepção da ligação umbilical com as famílias do falecido, com mulheres vivas. Só assim se justifica o ritual para manter os laços de continuidade.

Pela dinâmica do filme, o nível de escolaridade não determina a aceitação ou não do ritual. Teria sido interessante tentar perceber como é que as coisas acontecem nas grandes cidades, onde há certamente rituais de Kutchinga.

Para além dos cenários e planos apresentados, dialogantes, em termos de perspectivas – cenários, planos e enfoques – o filme apresenta uma riqueza sem precedentes sobre o imaginário distante, rural ou periurbano e cheio de surpresas: afinal as mulheres afirmam-se, por exemplo fogem em busca dos seus sonhos; deixam o coração falar e seguem o que ele dita: fugir, namorar, casar. Mas, e sobretudo, investem na consciência em relação à tradição. A tradição é importante. Dem ela, nada acontece em conformidade com a vontade dos vivos.

O filme é rico por permitir explorar outros aspectos importantes: a educação (formal e informal), as relações familiares, a organização e filosofia em torno da percepção do feminino nas comunidades, as mentalidades em torno da educação (hoje senhoras, mulheres formadas) e o casamento das mulheres – por encomenda, por arranjo ou por vontade própria. Nisso o filme é rico, muito rico.

A postura das mulheres é um aspecto a ter em conta: em relação ao poder patriarcal e a (possíveis) rebeldias e afirmações individuais com a gestão das consequências dessa mesma ordem e poder.  

Do debate

O documentário “Kutchinga” é importante e necessário por duas razões: (i) por ser um registo de património imaterial que poderá eventualmente cair no esquecimento, pelo na dimensão em que que hoje é praticado: (ii) por levantar questões importantes como as dimensões “submersas” da vida decomunidades inteiras.

O ‘Kutchinga’ tem esta designação no Sul de Moçambique, mas no Centro do país tem outras designações como Kupitakufa. São práticas que dizem muito, isto é, que têm um significado profundo para as pessoas: homens e mulheres. Regista-se nos relatos e narrativas a necessidade da prática para a limpeza e continuidade (na vida, na família, na comunidade). O respeito pela tradição distende-se no respeito pelas pessoas (individuais), famílias e comunidades.

Uma das entrevistadas dizia Kutchinga” é vida, é voltar a viver. Para homens e para mulheres. Os dois homens entrevistados manifestam-se como conhecedores e como a “consciência” desta prática tradicional em Inhambane. Só uma mulher afirma não ter passado pelo ritual. Esta sente a necessidade de dizer que está tudo bem com ela, apesar de ter perdido um filho. Mas que tem netos de outro filho, mas que está tudo bem. Que leituras deste depoimento? Linear? Entrelinhas? Sem pretender ser freudiana, talvez seja a necessidade de contrariar um “estado das coisas”, isto é, à situação existente ou ao estado de coisas estabelecido, que poderá ser diferente pela personalidade que se pretende rebelde e de ruptura.

Outros aspectos poderão ser trazidos a debate consiste na necessidade de esta prática continuar a ser amplamente praticada e respeitada como acto essencial de alguém que ficou viúva (o). Que percepções? Que dimensões?  

A crítica ao ritual centra-se na prática sexual implicada. Esta é questionada particularmente por causa da eclosão do HIV/SIDA, que certamente coloca em risco as mulheres e os homens enviuvados, por causa das contaminações em cadeia.

Numa perspectiva feminista, a degradação da imagem das mulheres é um facto. A mulher torna-se objecto na consecução do acto. Os homens também o seriam por, no seguimento da relação, se verem obrigados a realizar o acto. Mbondola afirma que primeiramente fugiu para a África do Sul e só mais tarde se predispôs a realizar o acto, como inevitável.

Como é que os homens viúvos encaram o kutchinga?

Em jeito de conclusão

Do conjunto das percepções, parece-me importante revisitar, com algum cuidado práticas da religiosidade não só de Moçambique. Entre o sagrado e o profano, pode-se correr o risco de tornar profano aquilo que para as comunidades é sagrado e sacralizar aquilo que para as comunidades é profano. Segundo Mircea Eliade , pode se comparar o abismo que separa as duas modalidades de experiência – sagrada e profana – lendo-se as descrições concernentes ao espaço sagrado e à construção ritual da morada humana, ou às diversas experiências religiosas do Tempo, ou às relações do homem religioso com a Natureza e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria vida humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas funções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.).

Para a consciência moderna, um acto fisiológico – a alimentação, a sexualidade etc. – não é, em suma, mais do que uni fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas regras (…) que interdiz um comportamento sexual que a moral social reprova. Esta visão permite perceber as discussões em torno deste acto de purificação.  

O que é tradição? Como respeitar as tradições? Que direito se tem de questionar e abolir tradições? Na perspectiva da descolonização, que perspectivas adoptar para perceber, respeitar práticas sob o olhar dos demais questionáveis e criticáveis? Que repercussões terão as críticas veementes de práticas seculares – praticadas e respeitadas – nas vidas das comunidades?

Referências

COLHER, Cardenito Mário. Cultura, em Moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas pita kufa e a prevenção do AIDS na província da Zambézia em Morrumbala, in Argumentos – Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil, 2017.

ELIADE, Mircea.O sagrado e o Profano [tradução Rogério Fernandes]. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Biografia:

Teresa Manjate é pesquisadora sênior e docente do Centro de Estudos Africanos (CEA) e da Faculdade de Letras e Ciências Sociais (FLCS), ambos na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, e doutora em Licenciatura Oral e Tradicional pela Universidade Nova Lisboa. Membro do Instituto de Estudos de Literatura Tradição – Patrimônios, Artes e culturas, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa (IELT) e da International Association of Paremiology (IAP). Faz pesquisa nas áreas de Literaturas Africanas; Literatura Oral; Conhecimento Local; Semiótica; e Cinema. É ativista em proteção dos Direitos Humanos da Criança, colaborando com a Santac (Rede da África Austral contra o Tráfico e Abuso de Crianças), e a Terre des Hommes, da Alemanha. Já colaborou também com a Organização Internacional das Migrações (OIM). Atualmente, trabalha na coleta, no registro e na catalogação de literatura oral em Moçambique, para a elaboração de um dicionário de símbolos; e no desenvolvimento de pesquisa em torno do cinema moçambicano.

Por: Eduardo Quive

Na sua primeira visita a Moçambique, na qualidade de Presidente do Camões, Instituto da Língua e da Cooperação de Portugal, Ana Paula Fernandes conheceu, no terreno, os programas desenvolvidos em parceria com instituições nacionais nas diferentes áreas. Com um plano de cooperação orçado em cerca de 170 milhões de euros, durante cinco dias, com escalas em Maputo, Sofala e Nampula, Ana Paula Fernandes vislumbrou os passos dados e o que está por realizar, nas áreas da Língua e Cultura, Educação, Infra-estruturas e Empreendedorismo.

 

 Esta visita a Moçambique, a primeira que faz desde que ocupa o cargo. Valeu pelo contacto directo com os desafios que o país enfrenta?

 

O Camões é um instituto que é responsável pela cooperação portuguesa, pela promoção da língua portuguesa no estrangeiro e também por toda a acção cultural externa. Nesse sentido, a minha visita centrou-se nesses três pilares. No primeiro dia, muito vocacionado para a questão da língua portuguesa e da cultura, porque tivemos a oportunidade de assinar, com a Universidade Eduardo Mondlane, um protocolo de colaboração que enquadra o Centro de Língua Portuguesa e também oferecemos ali um reforço da Cátedra, uma aposta também na formação para professores. Portanto, uma óptima reunião que tive com o Sr. Reitor. Também tivemos a oportunidade de inaugurar aqui a exposição dos 50 anos do 25 de Abril. Na Beira tive a oportunidade de inaugurar a mesma exposição no Centro Cultural do Camões. E foi muito importante fazermos isto, termos a capacidade de mobilizar recursos e apoio necessários para fazermos esta exposição também fora de Maputo.

Ainda na Beira, aí também estivemos a visitar o polo da Escola Portuguesa na Beira. Há vontade em podermos aumentar a capacidade de resposta para a quantidade de alunos. Neste momento, há cerca de 300 já na lista de espera e há toda a disponibilidade do nosso lado para trabalharmos no sentido de encontrarmos uma solução para aumentar a capacidade da Escola Portuguesa na Beira.
Depois fui fazer uma parte da cooperação, que é outro dos pilares do nosso trabalho.
E aí visitei todo o trabalho que estamos a fazer com as autoridades moçambicanas na Ilha de Moçambique, os vários projectos que temos nos diferentes eixos estratégicos, na área da Educação, no empreendedorismo, também na reabilitação urbana, com diferentes parceiros portugueses, como a UCCLA, a Fundação Aga Khan, a HELPO, etc. Uma grande parceria entre entidades moçambicanas e entidades portuguesas que constitui este grande desafio que é o cluster de cooperação na Ilha de Moçambique.
Mas também há actividades já desenvolvidas em Lumbo, aliás, como também foi identificado pelas autoridades moçambicanas, como uma necessidade também de criar infra-estruturas no Lumbo. E aí tivemos a oportunidade de inaugurar uma escola e também uma nova infra-estrutura no centro de saúde. Portanto, estamos a participar neste processo de crescimento e desenvolvimento de Moçambique, sempre indo ao encontro e sempre em colaboração com as autoridades moçambicanas, que são as que definem as prioridades e, obviamente, as linhas de actuação.

A inauguração do Centro de Língua Portuguesa na Universidade Eduardo Mondlane vem abrir uma nova página na cooperação? Que actividades este centro vai desenvolver?

A língua portuguesa é falada por 260 milhões de pessoas. Há a língua portuguesa falada em Portugal, há a língua portuguesa falada em Moçambique, no Brasil, em Angola, em todos os outros países da CPLP. É muito importante valorizarmos essa língua também em Moçambique, porque é efectivamente uma forma de valorizarmos o conhecimento dos escritores moçambicanos e aquilo que está escrito em Moçambique (em matéria de investigação na área da língua, o que também inclui a importante componente inerente à formação de professores). Portanto, o Centro de Língua Portuguesa tem, neste momento, a possibilidade de fazer formação de professores. A universidade é o centro de excelência para a investigação, para os estudos. Esta possibilidade de formalização do Centro de Língua Portuguesa contribuirá para que haja mais alunos a estudarem a língua portuguesa, a estudarem os escritores moçambicanos, a fazerem também as suas dissertações de mestrado e teses de doutoramento sobre esses escritores. Portanto, enriquecer, apostar e investir na cultura é também muito importante para o nosso desenvolvimento e para partilha de conhecimento entre povos. Isso é parte da cooperação. A língua, a cultura e a cooperação estão sempre interligadas.

Que acções se esperam com a renovação do protocolo para o apoio à Cátedra de Português Língua Segunda e Estrangeira, da Universidade Eduardo Mondlane?
Nós, os países da CPLP, temos investidos muito em projectos de excelência em matéria de conhecimento da língua em diferentes países. Com a Cátedra e também com o Centro de Língua Portuguesa estamos a potenciar a capacidade de conhecermos mais e de criarmos mais conhecimento sobre aquilo que também escrevem em Moçambique, a investigação e também a publicação, a crítica e os estudos feitos por moçambicanos sobre a língua portuguesa que se fala em Moçambique. É muito importante disponibilizarmos o conhecimento ao mundo, compartilharmos esse conhecimento para valorizarmos a língua. Há três componentes fundamentais para uma língua ser valorizada: ser falada e escrita, ser conhecida e estudada e ser publicada nos diferentes formatos que possam existir. Portanto, a Cátedra e o Centro de Língua estarão presentes nestas três grandes dimensões e daí a sua importância.
Temos muita honra que a Universidade Eduardo Mondlane tenha aceite este desafio no seu centro de línguas.

Tem-se dito que há uma Beira antes e uma depois do Ciclone IDAI. Estão visíveis as mudanças uma vez que visitou o Hospital Central?

Nós sempre apoiamos Moçambique nestes diferentes ciclones que tem vivido. Tivemos a oportunidade de visitar o Hospital Central da Beira, que também é um parceiro com quem temos obras, através de várias organizações que têm estado a apoiar, com o financiamento da Cooperação Portuguesa, a reabilitação pós-ciclone. O hospital foi muito afectado pelo ciclone e nós temos estado, como Cooperação Portuguesa, a responder às necessidades do hospital central, que serve cerca de 9 milhões de pessoas. Concentrámos aí muito esforço de reabilitação e de apoio à resposta.

Na província de Nampula visitou programas realizados com apoio da Cooperação Portuguesa. Que resultados está a ter o Cluster da Cooperação Portuguesa na Ilha de Moçambique?

Estamos a implementar a terceira fase de um grande projecto de cooperação que envolve uma parte do empreendedorismo, com apoio a um grupo de mulheres e associações de mulheres que produzem peças de artesanato e as artes da Ilha de Moçambique, para que elas sejam integradas. Portanto, para que crie dinâmica de valorização do património através da venda de artesanato e também de melhoria de condições de vida. Há uma parte que é feita com a UCCLA, que é uma entidade que reúne as cidades e tem toda esta valência de capacidade de planeamento urbano. Aí contemplamos a reabilitação dos bairros, a organização das comunidades nos bairros. Não só o saneamento, mas também as infra-estruturas, o acesso à água. Temos as entidades que nos apoiam na questão das bibliotecas, como um lugar para desenvolvermos a abordagem das histórias pelo conto e o conto pelas histórias. Depois visitamos a fortaleza, onde também há, neste momento, pensada a reabilitação da capela.

 

Qual será a próxima fase no projecto de cooperação para a Ilha de Moçambique?

Em termos de eixos estratégicos, vamos fazer agora a avaliação da terceira fase deste grande plano de cooperação na Ilha. Vamos avaliar o impacto das diferentes áreas e vamos nos concentrar em determinados eixos, um dos quais, desde logo, a Educação, porque temos um projecto também com a Helpo, nas escolinhas, que consiste em fortalecer toda a dinâmica educativa. Vamos reforçar o apoio aos jovens para o empreendedorismo e para a criação de emprego. Uma parte grande da cooperação tem que ver com infra-estruturas, com saneamento e com a sustentabilidade da energia e do ambiente. Será essa a próxima fase da colaboração na ilha, sempre com esta dinâmica de valorização do património, acesso aos serviços de Educação e também capacidade de gestão urbanística que permite melhorar as condições de vida das pessoas.

Numa altura que se celebra os 50 anos do 25 de Abril, que foi também importante para a independência de Moçambique, como vê os direitos humanos e as liberdades no país?

A nossa relação com Moçambique, ao longo dos anos, tem sido sempre excelente!
Portugal estará sempre presente quando necessário, obviamente, e quando solicitado.
O que é importante na história é não repetirmos os erros do passado e aprendermos com os nossos erros para construirmos um futuro, e um futuro sempre melhor. Portanto, é muito importante olharmos para os 50 anos do 25 de Abril como essa oportunidade para reflectirmos sobre o que correu mal no passado, em termos históricos, mas também para reflectirmos sobre aquilo que correu bem, no qual devemos apostar. Melhoraremos sempre e faremos sempre mais e melhor, e isso é o processo histórico. Hoje temos que pensar a liberdade e a democracia no presente e no futuro. A Educação é uma ferramenta fundamental para construirmos sociedades livres, educadas, que saibam decidir e daí a necessidade de continuarmos a apostar na educação. Penso que o governo moçambicano também está à procura de parceiros para essa área, que é uma área que considera fundamental. A Educação é fundamental em Moçambique e em Portugal. É um investimento que tem que ser diário, constante, permanente e sustentável. E temos que ir ajustando a Educação às necessidades também dos jovens e às expectativas dos jovens, para que, efectivamente, os jovens continuem a conhecer a História, o que se passou no passado para poderem valorizar o presente e construírem o futuro.
Uma sociedade que esquece o seu passado, obviamente, é uma sociedade que perde parte da sua identidade. Se nós não reconhecemos essa identidade e não construímos e investimos nessa identidade, mais dificilmente somos capazes de pensar o nosso futuro. Esse é um desafio global, é um desafio dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, muito bem colocado pelas Nações Unidas como um objectivo central do desenvolvimento, é um desafio entre sociedades como as sociedades europeias e como a sociedade portuguesa e, portanto, é um desafio para todos. E nós temos muito gosto de estarmos juntos com Moçambique para tentar encontrar as melhores soluções para continuarmos a investir na Educação desde a infância.

E porque fala em Educação, Portugal tem sido importante na oferta de bolsas para formação em várias áreas. Como é que estão esses programas e que planos tem para que cheguem a mais pessoas, tendo em conta a crescente procura e necessidade?

Temos vindo, todos os anos, a aumentar paulatinamente as bolsas em Moçambique.
Neste momento, estamos com, penso, 75 bolsas para Portugal, quando eram cerca de 50 bolsas no ano anterior. Portanto, temos vindo a crescer paulatinamente, em termos de disponibilidade. Fizemos uma alteração ao regulamento das bolsas, de forma a incluirmos, por exemplo, algo que não existia antes, que são os subsídios para habitação, porque reconhecemos a dificuldade. Por exemplo, de encontrar habitação em Portugal. Aumentamos o valor das bolsas e aumentamos o número de bolsas disponíveis. Além disso, temos também bolsas para a área da cultura, da investigação, e estamos também disponíveis para, em cooperação com as autoridades nacionais, identificar as áreas em que será necessário continuar a promover as bolsas e as áreas em que deveríamos eventualmente oferecer novas bolsas.

A cultura é uma área muito importante! O investimento em arte, cultura e música é tão importante quanto a Medicina e a Educação. O que é fundamental é que haja também condições em Moçambique para que as pessoas possam trazer benefícios aos seus estudos e, nesse sentido, as bolsas que nós denominamos bolsas internacionais são igualmente importantes como as bolsas para os estudantes moçambicanos irem estudar para Portugal, seja em licenciatura, mestrado ou doutoramento.
Em termos de volume, superamos, assim, financeiro para todos os países da CPLP. É um trabalho que temos de continuar a fazer, porque consideramos que traz muitos benefícios para quem estuda e também para a sociedade em geral.

Em geral, qual é o ponto de situação da Cooperação Portuguesa em Moçambique e do Programa Estratégico de Cooperação (PEC) de 2022-2026? Quando estamos à metade e tendo em conta as realidades que mudam, quais são as perspectiva?

Nós estamos num momento de transição, em Portugal. Tivemos, esta semana, a tomada de posse do novo governo, e, portanto, há aqui uma necessidade de falarmos com a nova tutela. Como nós dizemos, avaliar e comunicar um pouco aquilo que é o ponto de situação relativamente a essa cooperação. As linhas principais continuam a ser o investimento na Educação. Foram essas as linhas que foram acordadas no âmbito do PEC. É muito importante o investimento em património e cultura, empreendedorismo e também em toda aquela colaboração que existe em matéria de segurança e desenvolvimento, em matéria de cooperação técnico-policial. Há aqui uma série de áreas que continuam a ser uma constante da relação entre Portugal e Moçambique. O que às vezes pode ajustar é o investimento de ano para ano. Moçambique continua a ser o primeiro parceiro em termos de volume financeiro de Portugal, nesta área de cooperação para o desenvolvimento, com um PEC total de 170 milhões de euros, que foi reforçado, como sabe, até por apoio ao orçamento para efeitos também de iniciativas de implementação e também na parte humanitária, por causa dos ciclones.
Portugal tem procurado muito apoiar Moçambique na situação em Cabo Delgado. Nós contribuímos com um milhão de dólares para a OCHA, para o apoio à ajuda humanitária em Cabo Delgado, em Dezembro do ano passado. Continuaremos a fazer, sempre que necessário, esse reforço do apoio humanitário. Mas, além do apoio humanitário, estamos também com a União Europeia num projecto chamado Mais Emprego, para criarmos emprego para os jovens. Ao mesmo tempo que estamos a dar a resposta humanitária, estamos a procurar, com a União Europeia, ter uma resposta às expectativas dos jovens e à dimensão de criação da sua própria sustentabilidade financeira e económica e melhoria das suas condições de vida, para podermos dar resposta às suas expectativas, o que é muito importante em Cabo Delgado. Isso será sempre uma área, nestes próximos tempos, até que a situação, esperemos, esteja resolvida.
A minha missão desta vez não foi fazer um ponto, situação, projecto a projecto. Foi, realmente, conhecer as dinâmicas presentes. Espero vir em breve para visitar outros projectos, também noutras regiões de Moçambique, em que colaboramos com as autoridades moçambicanas para podermos, depois, fazermos essa avaliação.

José dos Remédios (de Moçambique) e Ana Bárbara Pedrosa (de Portugal) são os autores vencedores da edição de 2024 do programa de intercâmbio literário e estarão em residência, em Maio, em Lisboa, Portugal e em Outubro, em Maputo, Moçambique.

O júri, constituído pela escritora Yara Monteiro e pelos representantes do Centro Cultural Português em Maputo, Matteo Angius; e da Câmara Municipal de Lisboa, Adelaide Bernardo decidiu por unanimidade seleccionar as propostas de trabalho de José dos Remédios e Ana Bárbara Pedrosa, considerando que, no universo das candidaturas admitidas, são as que melhor se enquadram na lógica do programa de intercâmbio literário, destacando também, o impacto e benefícios destas residências e os encontros e experiências que proporcionam para a actividade literária dos candidatos vencedores e para os projectos apresentados, bem como a oportunidade de enriquecimento do seu percurso artístico.

Os dois autores juntam-se assim a Amosse Mucavele, Joana Bértolo, Eliana N’Zualo, Lúcia Vicente, Eduardo Quive, Mélio Tinga e Cláudia Lucas Chéu, escritores vencedoras das edições anteriores do programa de intercâmbio literário, criado no abrigo do protocolo de cooperação celebrado entre a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, através do Centro Cultural Português em Maputo, de incentivo e estímulo à criação literária portuguesa e moçambicana e aposta na internacionalização da cultura.

José dos Remédios será o escritor residente em Lisboa, em  Maio de 2024. Nasceu em Chamanculo, Cidade de Maputo. É Mestre em Educação/ Ensino de Português, pela Universidade Pedagógica de Maputo, licenciado em Literatura Moçambicana, pela Universidade Eduardo Mondlane, docente, ensaísta e jornalista. 

Iniciou a sua carreira de docente em 2008, o ensaio em 2012 e o jornalismo em 2014. Possui publicações na imprensa moçambicana, angolana, portuguesa, brasileira e eslovaca. Tem colaborado como consultor de feiras de livro, na edição literária e na promoção das artes e culturas com instituições africanas, europeias e americanas. 

Escreveu guiões de vídeos em homenagem a Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Ungulani ba ka Khosa, Dom Dinis Sengulane, Mia Couto, Paulina Chiziane e Luís Bernardo Honwana. Foi guionista, técnico de som e fotógrafo do documentário Maputo, a doropa, que conta histórias sobre os bairros da capital moçambicana. É autor de O horizonte e a escrita – um ensaio sobre a narrativa de Adelino Timóteo (2020) e organizou o livro José Craveirinha: a voz do nosso tempo (2022).

Ana Bárbara Pedrosa será a escritora residente na cidade de Maputo, em outubro de 2024. Romancista portuguesa. Desde 2019, escreveu e publicou três romances, com selo da Bertrand Editora: “Lisboa, chão sagrado” (2019, finalista do prémio literário Fundação Eça de Queiroz), “Palavra do Senhor” (2021) e “Amor estragado”. Este último será publicado no Brasil ainda este ano. Também para este ano está prevista a primeira publicação em literatura de não-ficção, com um volume de literatura de viagens. 

A autora escreve regularmente para vários órgãos de comunicação social, é cronista no jornal Mensagem de Lisboa, faz crítica literária no Observador e copywriting na Wook. É doutorada em Ciências Humanas, mestre em Estudos Portugueses, pós-graduada em Linguística, pós-graduada em Economia e Políticas Públicas e licenciada em Línguas Aplicadas. Atualmente, dedica-se exclusivamente à escrita.

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