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Constituição da República deve ser revista sempre que necessário

O antigo Presidente da República reagiu, no programa Grande Entrevista, à pretensão da revisão da Constituição da República para se evitar as eleições distritais em 2024. Para Joaquim Chissano, a mexida em si não é problema, já que “a Constituição deve estar sempre disponível para a revisão”, desde que o fim último seja adaptar a lei-mãe à realidade, como forma de evitar choques. O antigo Chefe de Estado abordou outras matérias da actualidade, e não só, que a seguir pode ler.

Estamos no mês da independência. Junho recorda-nos a celebração da independência em 1975 e agora celebramos 48 anos. O que é que se oferece a dizer em termos do que somos hoje e aquilo que sonhamos para o pós-independência?

Na avaliação, o que é que são esses 48 anos da independência dá-me vontade também de fazer a avaliação de todo o processo que nos conduziu à independência. Posso dizer que proclamamos a independência quando já estávamos um tanto ou quanto unidos como nação. Mas não nos víamos sempre como nação. A nação foi-se construindo durante a Luta de Libertação Nacional e foi fortalecida durante o Governo de transição. Aí encontramos formas de fazer com que as populações de todo o Moçambique interagissem e conhecessem a cultura um dos outros. Esse processo foi continuado depois da independência, daí que é muito comum ouvir falar das festas de cultura, dança, desporto, de todas as províncias para todas as províncias, distritos para todos os distritos. Portanto, propositadamente, nós impulsionamos essa contínua formação e consolidação da nossa nação, de várias tribos que éramos, de várias etnias que éramos. Hoje, temos orgulho de nos sentirmos moçambicanos. Eu penso que é preciso preservar os valores que cada tribo tem, que cada língua tem, mas isso há-de ser com a tal unidade na diversidade, o mosaico que torna a nossa parede, o nosso chão muito bonito e porque formamos a unidade nesta diversidade. Vamos continuar a cavar bem forte as nossas origens, as nossas culturas e os nossos valores.

Isso para dizer que sente que o que somos hoje reflecte a contento o propósito da Luta de Libertação Nacional?

Exactamente, sobretudo porque estamos a dar continuidade, não porque esteja acabado.

Como avalia os progressos económicos que alcançámos ao longo da independência? Estamos num bom caminho?

Se olharmos para o conjunto dos países africanos e seguirmos a evolução de cada um desses países, vamos ver que Moçambique percorreu caminhos longos em tempo mais curto do que os outros. São vários os países que tiveram as conturbações que tivemos, que ascenderam à independência através de uma luta armada e que a seguir tiveram perturbações por causa dos regimes fortes que provocaram violência e destruições. Um país que ficou na guerra de desestabilização durante 16 anos, numa altura em que também havia uma recessão económica, refiro-me concretamente aos quatro a cinco anos depois da independência. Esperávamos nessa altura que tivéssemos um desenvolvimento económico muito rápido. Dá-se que, na altura, o mundo se transforma. Tivemos que trabalhar com um outro mundo e tivemos que começar a rever os nossos planos, concretamente nos anos 80, até chegarmos às grandes reformas que nós fizemos, incluindo a mudança de sistemas. Já nos anos 90, quando mudámos a Constituição, afirmámos que a linha a seguir seria a abertura à economia de mercado. Foi uma nova forma de fazermos as coisas que não tínhamos previsto, porque o mundo em que nós fizemos a luta era outro, mas conseguimos adaptar-nos. Essa adaptação não foi fácil para muitos países africanos. Moçambique foi o primeiro país que teve o perdão total da dívida. Diga-se, uma dívida grande. Todos ficaram admirados. Com esse perdão da dívida, Moçambique passou a ter um desenvolvimento económico rápido em termos do Produto Interno Bruto, Produto Interno Per Capita e contávamos progressões de dois dígitos. Esse facto causou muita admiração a muita gente, por causa dos recursos que tínhamos, sobretudo os recursos humanos.

E, hoje, o país está a fazer tudo ao seu alcance para tornar mais célere essa vontade de desenvolver a nível económico?

Evidentemente, tem grandes desafios neste momento, como as calamidades naturais que nós sofremos sucessivamente durante esses anos. Não sei se este ano vai ser melhor do que os outros anos, em termos de secas, ciclones e tufões. Tudo aconteceu e estou a ver que o Governo tem estado a fazer um grande esforço para remediar tudo isso. Acresceu-se a tudo isso o terrorismo, numa altura em que já tínhamos uma grande esperança, porque teríamos grandes projectos que vinham, como de gás e grandes ambições na produção agrícola, com a utilização de novos meios de produção. Estamos a ver que há uma luta para que os jovens formados em tecnologias de produção consigam soluções enquanto não houver reformas céleres para criar empregos compatíveis com a formação das pessoas. Mas todos esses esforços são de louvar, porque Moçambique se pode comparar com todos esses países que não tiveram todas essas vicissitudes. Não começaram as suas independências com 99 por cento de analfabetismo. Nenhum país começou tão baixo como Moçambique e hoje temos mais de 40 universidades que estão a formar pessoas.

O Presidente Chissano falou da exploração do gás como uma boa janela de oportunidades para o desenvolvimento. Entretanto, se desde sempre o país conhecia as suas potencialidades em termos de recursos naturais, como o gás, entende ser este o melhor momento para apostar nesses recursos como uma das alavancas de desenvolvimento?

Conhecíamos a existência dos recursos, talvez não tivéssemos as quantidades que se revelaram mais tarde, porque, mesmo antes da independência, já se tinha descoberto o gás na província de Inhambane. Mas não era só gás, sabíamos da existência de outros recursos minerais que até hoje ainda não foram explorados. E agora conhecemos a existência de outros minerais que são de produtividade. O nosso país, como dissemos, no passado, não é pobre, é um país rico, mas empobrecido. Temos recursos, mas temos a falta de capacidade de valorizar.

Quem nos empobrece?

Quem nos empobrece é todo um historial, porque chegámos hoje sem capacidade por nós próprios podermos explorar porque não temos conhecimentos e é uma bola de neve, porque sem conhecimento não se consegue encontrar os recursos. Continuamos à procura, por isso mesmo, estava a louvar os jovens que procuram ajustar os conhecimentos que têm.

Há vozes entre académicos, analistas e políticos que entendem que a solução para o nosso desenvolvimento deve vir dos próprios moçambicanos. Quão endógenas podem ser essas soluções neste contexto do mundo globalizado?

É preciso só persistência porque vamos chegar lá. Como eu disse, já ouvimos que hoje há técnicos e cientistas que estão a juntar o seu saber e podem ir encontrando soluções e sairmos da dependência. Aliás, nós não somos um caso isolado. Este assunto deve ser resolvido em correlação com outros países africanos ou mesmo com outros países em vias de desenvolvimento. Nós, como Moçambique, estamos a fazer muito e eu tenho esperança para gerações vindouras.

Presidente Chissano, nestes 48 anos de independência, Moçambique já avançou com quatro revisões da Constituição da República. Em 1990 que, como referiu, trouxe a economia de mercado, Estado de Direito, o renascimento da segunda república, o multipartidarismo, mas também avançou com outra revisão em 1996, para a consagração das autarquias como pessoas colectivas; em 2004 e a última em 2018, que mexeu profundamente com a matéria da descentralização. Passam agora cinco anos da última revisão. Olhando para estas intenções da revisão deste instrumento, o que é que se deve considerar em termos de limites a ponderar na mexida que se pretende fazer?

Penso que a Constituição deve estar sempre disponível para a revisão, porque os tempos mudam, há progressos que se fazem e há lições que se tiram. Portanto, a revisão é sempre salutar, o que é preciso é que seja de forma abrangente e que a Constituição reflicta aquilo que é naquele momento a vontade do nosso povo. Penso ainda que a criação das autarquias está lá, o desejo de levar o poder mais próximo do povo para que as realizações correspondam às aspirações do povo. E também, se for necessário modificar qualquer coisa que seja com a participação daquele povo. Há-de chegar um momento em que vai ser necessário fazer uma análise. Agora é preciso ponderar fortemente, porque, às vezes, tomamos medidas que não se coadunam com a situação real. É por essa razão que agora se está a discutir sobre as eleições distritais, o que é que significa isso? A determinação correcta de funções das autoridades que vão compor as autoridades do distrito, da província, tudo isso merece uma atenção cuidadosa para evitar precipitações e não só ter o princípio para o princípio. Quando se vê que é um princípio que choca contra a parede teimar em aplicá-lo não é bom. Mas lá onde for possível clarificar tudo e aplicar-se o princípio numa altura e depois corrigir noutra.

Disse que, quando um princípio choca contra a parede, não há razões para aplicar esse princípio, mas também já tinha dito, no início deste ano, que não via razões para o adiamento das eleições distritais…

Talvez aí tenha sido omissa a outra parte, em que eu dizia que eu não sabia, mas que quem tem em posse todos os dados tinha que fazer a análise, mas que eu, pessoalmente, não conhecia as razões, portanto não via razões para o adiamento. Talvez tenha sido neste contexto, mas que era preciso debruçarem-se com os dados concretos que houvesse para se chegar a esta conclusão: isto é possível ou não é possível, choca contra a parede ou não choca?

Na altura, dizia que era importante ouvir-se os órgãos eleitorais para compreender de facto a possibilidade de materialização ou não, antes de se tomar um posicionamento.

Eu estou a dizer a mesma coisa.

Presidente Chissano, sobre este ponto de as altas lideranças dos partidos da oposição sentarem-se com o partido no poder e encontrarem consensos para o adiamento destas eleições, de que forma é que isso pode acontecer? Pela sua experiência de mediador-mor não só em Moçambique mas também noutras geografias, o que é que se oferece a dizer em relação a esta questão?

Nem sempre é fácil convencer as partes a terem o mesmo pensamento, porque, às vezes, a oposição pode estar convencida, mas não querer dar-se por vencida. Então, sabendo que não faz mal deixar as coisas acontecerem, mas não quer reduzir-se, dizendo “eu agora já mudo, eu aceito”. Eu posso dizer-lhe o exemplo que eu tive com o falecido Afonso Dhlakama em Roma, quando o mediador nos deu o intervalo e perguntou: “a que horas querem continuar?” Eu, com a mão, indiquei para o Afonso Dhlakama responder e ele disse que não, que devia ser eu o primeiro a responder e eu disse 16 horas, então ele disse: “Como eu sou da oposição, oponho-me”. Então perguntaram a que horas, e ele disse 16h15. Está a ver?

Para fazer jus à sua situação de oposição?

Bom, eu penso que ele estava a brincar, mas às vezes isso é feito de uma maneira séria. E quando digo oposição não estou a falar da oposição ao Governo. Também posso falar de Governo como oposição àquilo que chamamos de Governo, num debate é isso, não é? Se a proposta vem daquilo que chamamos de oposição, pode ser aquilo que chamamos de Governo a tomar a mesma atitude, e não é bom.

O Presidente esteve agora em Guiné-Bissau como chefe da Missão de Observação da União Africana e das últimas eleições legislativas e teve uma apreciação muito positiva do processo eleitoral na Guiné-Bissau. Que lições é que Moçambique pode tirar deste processo eleitoral?

Bom, quando nós chegámos à Guiné, estávamos com muito receio de que a violência pudesse começar logo de imediato, mas, apesar dessa tensão, conseguimos ver uma mudança de atitude de parte a parte e todos queriam que as eleições tivessem lugar, que nada perturbasse a realização das eleições. Essa vontade de contenção é muito importante e, apesar de que havia uma ameaça de não validar o candidato que ganhasse as eleições por parte da oposição, que é o PAI, vimos o Presidente, já quando os resultados apareceram, afirmar que iria, pela regra normal, nomear aquele que o partido ou a formação vencedora indicasse como o candidato a Primeiro-Ministro. Isso foi uma lição a aprender, e que não é porque ele é Presidente que já tinha dito uma coisa que era, talvez inspirado de campanha eleitoral, que ele havia de ter receio de trazer a coisa que é justa à tona no momento exacto. Isso é uma lição que se pode aprender. O PAI também tinha prometido que, caso não fosse aceite como Primeiro-Ministro, a pessoa indicada pelo grupo, havia de fazer uma manifestação, que, certamente, havia de fazer mal ao Governo, mas os preparativos que nós vimos foram preparativos para uma festa no fim das eleições e vimos que, nas mesas eleitorais, havia um convívio salutar entre os ficais de lista dos vários partidos, até que partilhavam os seus alimentos, discutiam para ter um consenso sobre um assunto que podia ser controverso e permitiam aos membros da mesa de voto trabalhar com uma grande tranquilidade. Cooperação com fiscais, isso também, são lições a aprender, sobretudo de um país que passou sempre de eleição para eleição com distúrbios – mortes, violência – que finalmente mostrou a sua maturidade e transformou-se num exemplo de democracia. Portanto, essa tolerância que nós vemos aí é de aprender.

O Presidente Chissano diz que testemunharam, durante o processo eleitoral, os preparativos para uma festa. Festa significa corações desarmados. Neste momento pós-eleições, o que é que se pode perspectivar em termos de boa governação, boas relações políticas e o estabelecimento desta paz entre os partidos? O que é que se pode esperar desta fase que se segue?

Eu penso que o espírito que nós deixámos lá era realmente de construir uma nova Guiné. Portanto, não é fácil, mas é possível ter-se a coabitação, porque o Presidente da República é o mesmo, agora o Primeiro-Ministro há-de ser aquele que for indicado, mas se for o mesmo que conhecemos há-de ser aquele que teve contradições fortes com o Presidente, mas a atitude tomada por ambas as partes pode garantir o começo de um bom convívio.

Mas, caso os consensos políticos não se vislumbrem, que papel é que os observadores da União Africana ainda podem desempenhar, não na qualidade de observadores, mas com legitimidade, porque acompanharam o processo?

Há organismos, em primeiro lugar, que foram para lá como observadores, mas são organismos mesmo sem serem observadores. Estou a falar da própria União Africana. Não é o grupo de observadores, mas a União Africana pode formar várias delegações de vária ordem para se ocuparem da mediação, se for o caso disso, ou nas próprias instâncias da União Africana, nas reuniões, podem-se abordar as partes, começando pelo próprio Governo da Guiné-Bissau, que é membro da União Africana. Temos a ECOWAS, dos Estados da África Ocidental, de que Guiné-Bissau faz parte. Temos a CPLP, de que Guiné-Bissau faz parte. Todos estes mandaram missões de observação, mas é diferente. Não são as missões de observação que vão prosseguir, mas as próprias organizações têm de encontrar formas de acompanhar a situação na Guiné, porque nem sempre os distúrbios vão surgir das duas partes ou daqueles que participaram nas eleições. Podem surgir de outra forma. Portanto, estas instituições devem acompanhar.

Olhando para a proximidade das eleições distritais em Moçambique e também as eleições gerais, próximo ano, e os aspectos que identificaram no processo eleitoral da Guiné-Bissau, quais são os dignos de realce que o nosso país tem de considerar já nos próximos pleitos eleitorais?

Não são muitos, é um, que é o respeito pela lei. Nem sempre gostamos daquela lei, mas enquanto aquela lei vigora, é preciso que haja respeito por essa lei, e é isso que aconteceu na Guiné-Bissau. Aliás, ali, eles tiveram de fazer uma adaptação. A oposição teve de ser tolerante e aceitar uma Comissão Nacional de Eleições que já não tinha a forma original, pelo facto de o Presidente da Comissão Eleitoral ter sido nomeado a um outro cargo e não ter podido ser substituído por o Parlamento ter sido dissolvido pelo Presidente. Essas são lições também a tirar, de que se pode encontrar uma forma de resolver problemas por consenso, através do diálogo, e assim foi.

Em Moçambique, já se vive o frenesim eleitoral. O processo está a decorrer. Houve o recenseamento eleitoral, infelizmente, manchado por muitas irregularidades e situações até gritantes. Como é que o Presidente Chissano olha para as manchas deste processo de recenseamento eleitoral e a credibilidade das nossas instituições democráticas?

Se há algo que é preciso corrigir, que seja corrigido, mas o que aconteceu não altera a estrutura principal para o processo eleitoral, e eu penso que os resultados podem ainda reflectir a vontade do povo. Isso é que é o mais importante. Portanto, temos de ver se há dados que foram totalmente alterados de tal forma que não se encontre uma forma de reflectir a vontade do povo.

O país vizinho, África do Sul, ainda esta semana, apresentou ao mundo uma notícia que merece também atenção nesta entrevista, que tem a ver com a expulsão do antigo secretário-geral, Ace Magashule por ter, de forma unilateral, suspendido o Presidente do partido no poder, que é o Presidente Cyril Ramaphosa. Como é que vê esta decisão do ANC?

Bom, eu penso que aqui se trata de uma correlação de forças dentro dos vários grupos que possam existir no ANC, portanto, a força que tomou a decisão de expulsar o Presidente da República não tinha força suficiente para o fazer e a outra tinha força suficiente para o fazer, ao expulsar o secretário-geral. Agora, é preciso encontrar qual é o processo interno que se seguiu até chegar a esta situação que não é bonita. É uma situação que traz preocupações, mas se as razões são profundas, e que levem a que a única solução para se sanar a situação de crise, como se descreve, seria o afastamento do secretário-geral, o tempo vai dizer. Pode ser que, no futuro, haja um processo de reconciliação, a não ser que o próprio secretário-geral realmente prove, no futuro, que ele próprio se sente bem fora do ANC ou ele quer voltar para o ANC. Pode, no futuro, encontrar uma forma de reconciliação, e reunir-se as forças. O que não seria desejável é que se forme um outro núcleo grande do ANC. É um partido que merecia os nomes que nós conhecemos, de Mandela, de Sisulu, esses heróis todos. O ANC foi o primeiro movimento de libertação de África. Todos nós fomos atrás desse movimento, incluindo os países mais afastados da África do Sul. Estou a dizer que na Rodésia do Sul, havia um ANC; na Rodésia do Norte, que é agora a Zâmbia, também havia ANC; no Malawi, Niassalândia, também havia o ANC; em Tanganica, também havia o ANC. Quero dizer que os países que estão mais longe foram inspirados por este ANC criado em 1912. Então, é um nome que merecia ser mantido e ser um partido que inspira a unidade nacional.

E por falar em tomar uma decisão de ânimo leve, criar problemas, o Presidente Chissano é um embondeiro da nossa história, é fundador do partido Frelimo, dirigiu o partido e actualmente é Presidente Honorário e sabe muito bem o peso da figura de um secretário-geral, ou antigo secretário-geral. Há razões para se pensar nas consequências desta decisão?

Conheço bem o peso de um secretário-geral. Mas nós tivemos casos também em que secretários-gerais saíram, no tempo da formação da Frelimo. Saíram do partido e foram formar uns grupos contra a própria luta de libertação. Os Mabundas, os Gumanes, etc. Tivemos um vice-presidente que também saiu do partido com problemas, naquela altura Frente de Libertação. Portanto, houve situações que não teve outro remédio, senão uma separação, uma separação lamentável. Foram separações que se deram logo no início, mas depois foi possível refazer. Portanto, não é porque a função é importante que vamos deixar um que corroe cada vez mais a organização. Então, se esse secretário-geral prova que não é, não estou a dizer que é o caso, eu estou a falar de um caso de fora, que nem acompanhei. Nesta semana, eu estava ausente da África Austral, não tinha notícias, só fui surpreendido com a declaração de que o secretário-geral foi expulso do partido. Também é preciso ver os detalhes da Constituição do ANC, como é que são, o que dizem os estatutos. Portanto, não podemos assim de fora dizer se fizeram mal ou fizeram bem, agiram conforme aquilo o que era bom para o partido.

O Presidente Chissano foi escolhido pelo Zimbabwe como mediador-chefe nesta missão de ajudar o país para se ver livre das sanções que já duram há mais de vinte anos. Neste momento, em que ponto estão as mediações?

Até semana passada, tínhamos chegado a um ponto em que se esperava pelas reacções das partes, quanto às matrizes que foram elaboradas, para o cumprimento de certas conclusões a que os grupos de trabalho chegaram. Há um certo consenso, mas, agora, deu-se uma evolução, em que há uma lei controversa que saiu, que foi aprovada pela Câmara Baixa e pelo Senado e que, agora, se aguarda a promulgação pelo Chefe de Estado. Eles têm uma lei que é controversa.

O que iria colocar em causa o diálogo existente?

A percepção dos parceiros externos. Dizem que esta lei é uma emulação, uma cópia das leis que vigoram noutros países, como, por exemplo, na Grã-Bretanha, a índia, e outros, em defesa da soberania do Estado. Até que ponto é que isto é verdade, não sei, até que ponto é que a cópia foi feita fielmente, que modificações é que houve, que a torna inaceitável…

Literalmente, esta proposta põe em causa o avanço da mediação?

Põe em causa o avanço porque já há países parceiros que se pronunciaram sobre isso, e nós já tínhamos mantido a troca de impressões sobre como é que as coisas deveriam andar. Com eles, temos que recomeçar, o nosso trabalho como mediador é esse. Há sempre avanços e recuos.

Qual é a ênfase da mediação? É na perspectiva de dívida pública ou de outros elementos que também ditaram a ascensão do Ocidente, como boa governação, direitos humanos?

Trabalhamos em conjunto. Somos dois, um que é Presidente do Banco Africano para o Desenvolvimento, que é o campeão desta causa, portanto, o promotor desta causa e que também me consultou se eu aceitaria esse pedido do Zimbabwe. Ele ocupa-se das questões económicas e eu ocupo-me das políticas, mas não conseguimos nunca separar as duas questões. Portanto, no que me toca, estou mais a acompanhar esta evolução das reformas, políticas legais, justiça, direitos humanos, o Estado de Direito e toda a parte política.

Em relação à expropriação de terra que aconteceu em 2000, há espaço para correcção?

Isso há e está a avançar bem. Agora, como há interregno, teremos que saber o que aconteceu esta semana, há duas semanas, quando me encontrava na Guiné, para ver se algo se alterou, mas o processo nesse aspecto estava a andar muito bem.

Então, auguraram-se as perspectivas de sucesso desta negociação para breve?

“Augurar” é uma expressão muito conclusiva. O diálogo continua. Eu estava a ver o debate no Parlamento britânico e os deputados referiram-se, sobretudo, ao requerimento do Zimbabwe em regressar à Commonwealth. E eles disseram que não iam aceitar o regresso enquanto não se realizarem os preceitos estabelecidos para um país tornar-se membro da Commonwealth. O que significa que há um processo que continua, não é que nunca vai ser.. Quando o Zimbabwe disser “olha, eu já estou nesta posição” e apresentar o trabalho que fez em todas as áreas de governação, então vai entrar. Portanto, o processo não termina ainda por isso, o Zimbabwe vai ter que demonstrar que está em progresso.

Passa agora um ano após a eleição de Moçambique ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e cinco meses de exercício. Que resultados esperar no fim do mandato?

Penso que já ganhou. Já teve ganhos porque Moçambique se tornou mais visível no mundo e a capacidade do país participar em debates sobre assuntos internacionais também foi demonstrada. O secretário-geral das Nações Unidas nomeou um moçambicano para uma missão importante na África Ocidental, na região de Sahel, depois de o mesmo ter trabalhado no processo que trouxe Moçambique ao Conselho de Segurança. Portanto, é uma visibilidade que se abriu para Moçambique e para a sua capacidade. Daqui em diante, o que o país pode aproveitar é essa credibilidade que adquiriu para ter sucesso em todos os processos. Afinal, o ser membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas não é para trabalhar para Moçambique, mas sim para o mundo.

E por ser para trabalhar para o mundo, mas com os olhos agora voltados para África, é alcançável o objectivo de o país ser a voz dos africanos na busca de soluções pacíficas?

Será uma das vozes porque não é possível que seja apenas um único país a ser voz na busca de soluções pacíficas. Mas creio que a voz de Moçambique será mais audível ou as pessoas vão ter a tendência de ouvir orientações que saem de Moçambique. Como vocês fazem em relação a mim, aqui, em Moçambique, porque eu tive sucesso algum dia, em alguma coisa, pensam que sempre eu é que tenho a razão. O que não devia ser assim, porque há muitas vozes que eu preciso para compreender a situação.

A voz da sabedoria é sempre a voz da razão.

Mas há muitos sábios aqui em Moçambique.

 

O Presidente Chissano, aquando da eleição de Moçambique para o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o país disse que tinha experiências em promover soluções para negociações para a paz. Até que ponto estamos a conseguir influenciar os outros com esta experiência de diálogo do país?

Eu creio que estamos a influenciar. A nossa voz é ouvida com muita atenção. Nem sempre tomam as atitudes que nós gostaríamos que tomassem, mas sempre ouvem com atenção quando Moçambique toma a palavra. Em todas as organizações, as Nações Unidas, a OUA, a SADC, os Não-Alinhados, em toda a parte, Pacíficos e Caraíbas, em toda a parte.

África é palco de muitos conflitos e parece ser muito difícil reduzir. Os conflitos são cada vez mais crescentes. Porquê África?

Porque África está em evolução. Resolvem-se os conflitos e surgem outros, neste processo, ao longo da marcha que África tem, e que é uma marcha que desde o princípio nunca foi num caminho totalmente desbravado e limpo. Portanto, à medida que se reconstrói África tem que ir resolvendo os problemas, saltando barreiras, superando as suas incapacidades, vão surgindo conflitos novos, às vezes resultam de dentro, mas também há conflitos que vêm de fora. Nós temos conflitos que nunca foram resolvidos na totalidade. Pegámos na Somália, por exemplo, há conflitos intermináveis. Agora é um outro tipo de conflito que está la, com o terrorismo. Há um dado passo, havia também conflitos entre potências, a propósito do território somaliano. Estou a falar de conflitos entre a União Soviética e os Estados Unidos, por causa das bases aéreas em Mogadíscio. Portanto, os conflitos vão mudando, e hoje é o El Shabab, que é o principal. Mas vamos para outros países e encontramos as mesmas formas em que os conflitos não foram e não podiam ser completamente sanados, então resultam novos conflitos. Daí que, para mim, é essencial haver uma atmosfera que permita o diálogo de forma permanente na sociedade. A busca de linhas de actuação, a busca de visões de longo termo, em que todos participem, como nós tentamos fazer aqui, ter uma visão em que todos os intervenientes possíveis participassem. Falamos de intervenientes como partidos políticos, elementos da sociedade civil, diferentes visões para se traçar uma visão comum.

Presidente Chissano, começámos esta entrevista com o mote das celebrações dos 48 anos da independência e vamos terminar também com este mote. O país vive este drama do terrorismo, mas também vive o drama unidade nacional beliscada ou fragilizada. Que mensagem para os moçambicanos, neste mês de Junho?

A mensagem é que os que estiveram nos princípios da nossa independência, que se recordem do entusiasmo que levantou toda a nação, do Rovuma a Maputo, e que transmitam esse fervor às gerações novas. E que não tomemos como garantido que todos conhecem o percurso, as dificuldades e os desejos que foram expressos. É preciso renovar essa unidade nacional, pelo conhecimento recíproco entre todas as camadas sociais, todas as etnias, tribos, expressões linguísticas, todas as culturas, para que realmente renovemos sempre a unidade nacional. Como dizíamos no princípio, para consolidarmos a nação moçambicana que construímos e continuamos a construir. Somos um exemplo de sucesso na construção da nação, porque é um país que tem muita diversidade, mas que os moçambicanos se sentem moçambicanos.                           

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