O País – A verdade como notícia

Assa Matusse e Mia Couto: um diálogo sobre valores e riqueza

“If you’re African raised in poverty
And the only one treading the path of success
You’re already born to look out for your family and communities.”

Esta é uma afirmação marcante presente na música Little Girl, do álbum Mutchangana, lançado em 2023, da artista moçambicana Assa Matusse. O excerto revela, de forma sensível, uma realidade vivida por muitos jovens africanos: a responsabilidade precoce de sustentar sonhos alheios, em detrimento da realização pessoal. Trata-se de uma espécie de transacção simbólica, na qual os projectos individuais são frequentemente substituídos por aspirações colectivas. A busca pelo sucesso deixa, assim, de ser  para benefício próprio e torna-se num meio de sustento familiar.

Em inúmeros casos, os jovens sentem-se pressionados e emocionalmente sobrecarregados por dois factores determinantes: a condição socioeconómica precária que caracteriza grande parte do continente africano, e o profundo sentimento de obrigação moral para com aqueles que, outrora, sacrificaram os próprios recursos e sonhos em prol do seu crescimento.

Segundo Matusse, “dreaming big is considered the first step towards frustration“. Tal enunciação poderá ser interpretada como reflexo da dissonância entre a magnitude dos sonhos de uma jovem africana pobre e a dureza do contexto em que estes se desenvolvem. Os sonhos revelam-se, assim, como construções fragilizadas pela realidade social que os rodeia. Neste sentido, é importante reconhecer que o acto de sonhar, em África, assume contornos substancialmente distintos dos que se verificam, por exemplo, em contextos europeus.

A composição musical evidencia que, mesmo perante cenários de adversidade, os valores da solidariedade e da empatia mantêm-se. A letra sublinha esta perspectiva nos seguintes versos:
“We don’t give because we have much 

 We learn to give just ‘cause we know 

How it feels to have nothing.”

 Temos, de um lado, a figura de uma jovem africana desfavorecida, retratada por Matusse como alguém que se move pelo desejo de cuidar da família e da comunidade. De outro lado, a crónica “Pobre dos nossos ricos”, de Mia Couto, originalmente publicada no jornal Savana, em dezembro de 2002, oferece-nos um contraponto  ao retratar, com fina ironia, a elite moçambicana contemporânea:

“O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenino: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias.”

Ao longo da crónica, torna-se evidente que os objectivos desta elite não contemplam o bem-estar colectivo, nem a criação de condições sustentáveis de desenvolvimento. O enriquecimento é orientado, quase exclusivamente, para o consumo individual e ostentatório, mesmo que isso implique o sacrifício de sonhos alheios:

“E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.”

Como sublinha o autor, estes indivíduos “podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros”, o que contrasta de forma significativa com a realidade evocada por Matusse, onde a solidariedade comunitária prevalece e o vizinho torna-se num irmão.

Apesar das suas diferenças formais e estilísticas, ambas as obras dialogam de forma subtil, estabelecendo um paralelismo em torno da centralidade do dinheiro e da busca por uma vida melhor. A jovem de Little Girl e os “novos-ricos” de Mia Couto têm em comum o anseio pela ascensão, embora os seus propósitos e meios se revelem profundamente antagónicos. Esta aproximação crítica conduz a uma interrogação pertinente: quem detém, de facto, a verdadeira riqueza, a little girl que partilha o pouco que tem ou a elite que acumula para si?

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos