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“As substitutas” ou o teatro trágico da sobrevivência

Na peça teatral “As substitutas”, apresentada nos dias 25 e 26 de Julho, na Casa Velha, Cidade de Maputo, o que se apresenta como comédia sombria, na verdade, se revela um ritual colectivo de desconstrução do luto, como prática social, estética e económica. 

A encenação de Isabel Jorge não gira apenas em torno das quatro personagens femininas que choram por dinheiro, mas em torno de toda a sociedade que actua diante da morte. 

Em “As substitutas”, todos performam: o padre ou pastor que ora por um morto que nunca foi crente, as mulheres que contratam pranteadoras para não estragar a maquiagem, os familiares que disputam comida com os filhos de um falecido, e as próprias substitutas, que escondem traumas sob a máscara do profissionalismo. 

A peça confronta o público com uma questão incómoda: se todos representam, diante da morte, quem realmente chora? A questão é formulada num palco composto por quatro mulheres que carregam histórias de sangue, suicídio e abandono. As suas dores não são monólogos de autopiedade, mas confissões ritmadas por ironia, lucidez e fome. Elas, as personagens, sabem que a morte é um negócio, mas também sabem que chorar nunca é só um gesto, é sempre um grito, um corpo em colapso. 

A frase “a morte é um bom negócio” se repete como um refrão profano, quase como um cântico zombeteiro que ecoa a contradição central: o luto tornou-se indústria, mas continua sendo uma ferida.

O que a peça revela, com sensibilidade estética e honestidade emocional, é que os funerais são o último teatro onde todos conhecem os papéis, mas ninguém quer dizer a verdade. E é justamente por isso que as substitutas existem: não para encenar a dor dos outros (daqueles que, não podendo fingir o choro, contratam as substitutas para desempenhar tal papel, daí o título da peça), mas para escancarar a representação alheia. As substitutas não são falsas, pelo contrário, são as únicas personagens honestas dentro de um jogo consentido e generalizado. Quer dizer, as substitutas sabem que choram por um contrato, e o resto do mundo finge que não está a actuar.

O espectáculo da Companhia de Teatro M’beu distingue-se com um elenco visceral, sobretudo com a entrega de Xixel Langa e Sufaida Moyane (que mergulham num realismo performativo, onde a luz ténue, os silêncios calculados e os textos simbólicos constroem uma atmosfera ritualística), numa performance que também conta com Yolanda Fumo, Sufaida Moyane, Xixel Langa e Carmelinda Coana.

Com efeito, o público da Casa Velha não assistiu a uma peça, participou de um velório simbólico: da verdade, da ética, da dignidade.

A crítica religiosa é subtil, mas cortante. Quando o padre/pastor deseja a entrada de uma alma no céu, sem nada saber sobre o finado, expõe-se a farsa mais silenciosa de todas: a de tornar a figura de Deus uma fórmula litúrgica, feita de interesses e possibilidades materiais.

Tal como sucede com o sujeito da música “A ni famba”, de Xidiminguana, as personagens de “As substitutas” caminham com os corações feridos, ignoradas por quem as rodeia, mas afirmando, com cada lágrima vendida, que há ainda um gesto sagrado possível, dentro da dor banalizada.

“As substitutas” não é apenas uma peça sobre mulheres que choram nos funerais, no lugar de membros de uma certa família. É uma obra que desnuda o teatro social do luto, revela as fissuras morais do “último adeus” e coloca o corpo feminino no centro do ritual, não como símbolo de fraqueza, mas como última força que resta para chorar pelo mundo que se desumanizou.

 

*Texto escrito na sequência das actividades realizadas na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

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