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Apresentação “o ardina de sapatos gastos”

Por: Otildo Guido

 

Alerto Bia é um escritor atento ao seu tempo e ao seu espaço. Em o ardina de sapatos gastos, capta o quotidiano e invoca as imagens comuns. Os personagens deste livro são sem rostos definidos e sem massa corporal inteiramente palpável, quiçá o autor queira fazer com que todos se sintam representados nesta obra, ou queira trazer à ribalta a sociedade sem categorização em estratos sociais e fisiológicos, quiçá para atestar a hipótese de que o que existe existiu e existirá. É tudo um processo de metamorfoses sucessivas.

Confirma-se essa hipótese de leitura no texto da pág. 17, quando diz que “a pouca fome que tinha havia se esvaído. Quase sempre, acontece com todos nós, quando um tormento sacia o nosso ser”.

Fala da fome como o elemento que nos lembra a nossa humanidade, a nossa essência enquanto habitantes deste vasto universo.

Não sabemos, por exemplo, se a Açucena Ricardo Reis, filha de um português e uma negra ronga, que nasceu na Ilha de Moçambique e formou­-se na Universidade de Coimbra, é branca ou negra. Ou se é filha de um dos heterónimos de Fernando Pessoa. O único dado que o narrador nos apresenta é que era mulher fruto dessa união intercontinental.

No texto da pág. 23, Dona Rodália, que, por acaso, é o mais extenso deste livro, o autor conta-nos a estória de um casal cujo marido escreve versos e tem como musa a sua empregada, porém o Alerto não dá juízo final das desconfianças da mulher sobre esse romance. Deixa com que o leitor continue a ruminar as incertezas dela, e crie as suas próprias linhas de interpretação.

Em alguns textos, Alerto esquece-se da prosa, recupera a poesia, e divaga usando os corpos de Rachel e Constante, e, no fim do texto, introduz Sidónia, a mãe da Rachel sem nenhum antecedente ou função dentro da estória. E essa técnica vai se repetindo numerosas vezes ao longo dos textos aqui apresentados. Alerto não se prende aos personagens. Aqui neste livro são peças, o meio para um fim maior, que é o delírio, o estranhamento e a interrupção.

Alerto reflecte profundamente sobre a morte, o descanso dos corpos e se apropria de alguns contos populares moçambicanos para construir a sua linha ideológica e estética, tal como se refere o prof. Sávio “o poeta é uma instituição ideológica e estética”, quiçá por isso que Alerto coloca pontos finais em alguns textos e outros simplesmente deixa-os como uma panela destampada à espera de uma mão que a acolha.

Vê-se claramente que Alerto se despe de todas as possíveis regras linguísticas para criar um novo horizonte da sua carreira, nessa incansável busca pela novidade, pela transgressão das fronteiras.

Como havia dito, Alerto é um poeta que se experimenta em prosa.

Em Ardina, o padrasto do neto do avô da maldade, o Simonge, diz que um homem deve “nascer e escrever para ser completo”, coloca-nos aqui o percurso último da vida, como quem diz que se não escrevemos, não somos completos, neste caso só os que escrevem são completos, e os que lêem? E os que não fazem nem uma nem outra coisa?

Este livro discute o envolvimento da polícia na resolução de crimes, o seu distanciamento em certos casos de violência que se verificam no nosso quotidiano. Ele conta uma situação em que o polícia se envolve em um crime, o general da corporação se distancia desses actos, e dias seguintes ele é tido como foragido e o caso dá-se por encerrado.

Toca temáticas fortes da nossa sociedade, desse seu jeito peculiar, entre a poesia e a prosa, não necessariamente a prosa poética. Estamos perante um conjunto de microcontos e microcrónicas.

Quando Alerto escreve que “o ardina tinha os sa­patos gastos e o calcanhar à espreita”, na pág. 11, descreve as ruínas dos que trabalham sob o sol, procura transmitir a vida dos comerciantes que precisam caminhar para venderem os seus produtos. Alerto mostra-se atento às questões básicas dos movimentos dos mercados do nosso país, a luta dos comerciantes, das mulheres que vendem a beira da estrada, ou que caminham casa a casa para venderem os seus produtos, não apenas por elas, mas pelos seus filhos que sofrem a pressão económica e social da vida.

Alerto não traz os rostos dos personagens, não os caracteriza para que eles sejam quaisquer, e tenham todos os rostos comuns das pessoas que conhecemos.

Alerto morou em Niassa, norte do país, e traz essa experiência de vida no texto com o título “não era Cardoso, o menino do sonho gigante” conta-nos a estória de um jovem que queria mudar o mundo, com sonhos e perspectivas revolucionárias, a única coisa que nos deixa saber é que o rapaz apenas conseguiu vencer um prémio por juntar caricas de garrafas para constituir as partes de uma bicicleta.

Este livro pode-se ler olhando pelo menos três ângulos:

Primeiro: considerá-lo composto por dispersos e fragmentos

Segundo: considerá-lo composto por narrativas abertas; e

Terceiro: considerá-lo composto por tentativas de construção de uma narrativa que se apoia na poesia para espelhar a prosa e na prosa uma ideia.

 

BIOGRAFIA

Alerto Bia nasceu em Inharrime, Inhambane a 02 de Março de 1993. É licenciado em ELT (English Language Teaching) pela Universidade Pedagógica. Frequenta actualmente Licenciatura em Filosofia pela Universidade Save. Lecciona Inglês na E.S 4 de Outubro – Maxixe. Foi associado do CEPAN (Clube de Escritores, Poetas e Amigos do Niassa). Participa de antologias nacionais e internacionais. Escreve para jornais e revistas.

Obras publicadas:

  1. Sonhar é ressuscitar. Maputo: Livres editores, 2016 
  2. Sombras Cálidas. Brasília: Editora do Carmo, 2017.
  3. O desassossego por dentro. Belém: Editora Folheando, 2021. [Prémio Internacional Literatura e Fechadura, 2020]
  4. O ardina de sapatos gastos. Beira: Editora Fundza, 2022.

 

 

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