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ARTIGOS DE OPINIÃO

Sinto que a minha alma está a sair de mim. Mas eu estarei sempre aqui, mesmo sabendo que carrego a escassez de emoções e pensamentos capazes de trazer o sorriso do mundo nas madrugadas da vida, ao som dos assobios das gaivotas.

Sinto que a consciência social se afasta do banquete que celebra a paz – onde o ritmo da música, que canta os valores esquecidos, mexe no silêncio das almas que ainda sonham com um mundo bom, sem os vícios que disfarçam as carícias da pobreza.

Sinto a minha alma a sair porque, por vezes, estou no mundo apenas a atrapalhar as vocações dos escolhidos, alimentando o muro egoísta do talento que tanto anima o meu Eu. Isolo-me da vida social, deixo de proteger o Eu do outro e esqueço de cuidar da carne que protege a minha própria alma.

Deixo de oferecer rosas aos que me cercam, de agraciar as almas com o perfume do pólen que alivia o sofrimento e protege os corações doces com as pétalas macias do bem.

Sinto que a minha alma já não anima as almas da juventude com o buquê de oxigénio que

recorda o tempo de criança. A minha alma esquece-se de dizer “sim” à vida, quando o dia traz o sol da esperança.

Sinto em mim uma alma deficiente, por não saber oferecer um enxoval de tempo que cubra o coração bom que sustenta uma alma cansada.

Mas repito, como um dia escrevi: estou aqui.

Se eu conseguir viajar, para onde quer que for, levar-te-ei comigo, ó minha alma. Onde eu estiver, acomodar-te-ei no berço de paz que descansa na esquina nobre do meu modesto coração.

Onde eu estiver, irás contar comigo as experiências belas que partilhámos, nessa matemática estranha que tenta calcular o sentido da vida social, cheia de incógnitas.

Sinto a minha alma a murmurar que a palavra “esperança” foi inventada para distrair o universo e fazer o tempo de a vida passar, sem que se questione a razão de certas emoções, satisfações ou mesmo de alguns fenómenos.

A minha alma compreende, em metáfora, que a esperança é a palavra mágica que transforma o difícil de viver no suportável de continuar. Esperança é o termo que sustenta o futuro, uma palavra que acomoda a alma. Mas as almas mais atentas percebem que “esperança” e “futuro” são talvez termos de consolo divino, que germinam paz interior e acalmam o silêncio de viver… sem olhar de ver, sem questionar o presente.

 

Há infâncias que nascem condenadas. Crescem com as asas aparadas, cercadas por muros invisíveis que proíbem o voo. Em muitos contextos africanos, incluindo o moçambicano, as crianças continuam a ser empurradas para gaiolas sociais onde os sonhos não têm espaço, onde a liberdade é um luxo negado, e onde o simples acto de imaginar pode ser visto como um desvio.

É nesta paisagem que O Caçador de Pássaros, de João Baptista, se torna mais do que uma
história de um menino que persegue pássaros, ou seja, torna-se um espelho social que reimagina a infância como espaço de voo e de libertação.

Benjamin, o menino protagonista,“vai à escola com sua sacola de sonhos. Mas não entra na
sala de aulas. Porque o menino gosta de caçar pássaros”. Com efeito, ele escapa porque as práticas educativas vigentes não lhe oferecem asas, todavia, deveriam ser o solo fértil para o florescimento das infâncias, e aqui aparecem como um ambiente incapaz de dialogar com a espontaneidade, com a criatividade e com os interesses genuínos das crianças.

“O passarinheiro ergueu uma casa na rua. Abandonou a nobreza de sua família. Transformou-se em menino de rua”.

A passagem ecoa fortemente na realidade moçambicana e africana, onde, não raras vezes, persistem métodos educativos que ainda não consideram plenamente as especificidades culturais, emocionais e sociais dos petizes, e onde, por vezes, estas são conduzidas por caminhos que limitam o seu pleno desenvolvimento e o direito de explorar o próprio voo.

A obra desdobra-se como uma metáfora sobre o direito à liberdade, especialmente o direito da criança a sonhar, a brincar, a explorar o mundo sem as correntes que em muitas realidades sociais, se manifestam sob a forma de violência, trabalho forçado ou discriminação. Em muitas comunidades, as crianças são ainda hoje subjugadas: forçadas a sustentar as suas famílias, vítimas de abandono ou alvos fáceis de abusos.

Como Benjamin, essas crianças olham para o céu e desejam voar, mas encontram ninhos vazios onde deveria haver protecção e habitação da esperança.

João Baptista constrói, com subtileza, uma história que vai além da aventura infantil. Ao mostrar que o ninho que Benjamin procura está vazio, torna-se inevitável questionar: quantos espaços criados para acolher crianças — escolas (como se vê em escolas rurais onde crianças abandonam os estudos por falta de incentivo), lares, comunidades — estão hoje vazios de afecto e responsabilidade? Como Paulo Freire alertou, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. É este vazio — de cuidado, de compromisso e de liberdade — que alimenta uma sociedade que promete, mas não entrega.

Que se diz protectora, mas permite que as crianças se percam, se cansem, se tornem adultos antes do tempo.
A amizade entre Benjamin e o pássaro Pinguim, personagem de aura mágica, oferece um respiro poético à narrativa. É Pinguim quem ensina Benjamin que nem todas as caçadas são bem-sucedidas, que há dias de vitória e de derrota, e que o voo pode nascer até da tristeza.

Através desta relação, o autor convoca-nos a olhar para as crianças como seres capazes de resiliência, entretanto, ainda assim, necessitam de redes de protecção e de contextos onde a sua imaginação e os seus direitos sejam respeitados.

As ilustrações de Walter Zand, que acompanham a obra reforçam este universo de encantamento e liberdade, permitindo que o leitor, viaje com Benjamin, voe com ele, sinta o
sabor do vento e das folhas. Este aspecto visual amplifica o impacto da narrativa, tornando-a ainda mais eficaz como ferramenta de reflexão social e educativa.

Num olhar menos convencional percebe-se que o foco quase exclusivo em Benjamin e Pinguim torna o universo da história algo solitário. Seria importante inserir personagens ou animais de traços distintos (corajoso, tímido, curioso, preguiçoso), o que poderia enriquecer a narrativa e espelhar melhor a diversidade das crianças.

Por outro lado, nota-se a falta de aspectos que permitam tirar lições possíveis de aplicar em
sua vida cotidiana — como a importância da persistência, solidariedade ou da educação. Desta forma, poderia haver uma frase ou imagem que contasse o sonho de Benjamin a um gesto concreto — por exemplo, voltando a escola ensinando outras crianças a cuidarem dos
pássaros.

Ainda assim, há na obra, esperança. E essa nasce quando entendemos que as crianças não precisam fugir para serem livres. Urge criar espaços férteis e alegres onde possam aprender, sonhar e voar. É possível substituir as gaiolas por jardins. É possível ensinar a ganhar e a perder sem violência. É possível construir um mundo onde o voo seja um direito e nunca um privilégio.

João Baptista oferece-nos, assim, uma história que é simultaneamente simples e revolucionária. Convida-nos a questionar: quantos Benjamins conhecemos? Ou então, quantas crianças foram impedidas de voar porque as suas asas foram cortadas pela pobreza, pelo preconceito, pela negligência social?

O Caçador de Pássaros, portanto, é um chamado para que as comunidades, as famílias e as instituições revisitem os seus papéis no cuidado das infâncias. Benjamin aprendeu a voar, e ao leitor, cabe a tarefa de garantir que nenhuma criança precise primeiro fugir ou chorar para descobrir as suas asas.

Como quase sempre na minha vida, tudo começa com uma história. Desta vez estava eu no cemitério (graças aos hábitos e costumes de quase maior parte das regiões moçambicanas, não se precisa de um convite para ir a um funeral), assisti com muita consternação ao enterro de um ente querido de um conhecido ao qual nutro muito carinho. O enterro ocorreu em um dos antigos cemitérios da província de Maputo. Pairava sobre o ar um ambiente de respeito, tristeza e as canções que eram entoadas iam fazendo jus à situação.

Como de costume nessas ocasiões, a cerimónia teve grande adesão. Fomos circundando o local do enterro, o que fez com que alguns de nós, ligeiramente atrasados, tivéssemos de ficar mais distantes. Isso obrigou alguns a disputarem espaço entre as campas vizinhas.

A norma por aqui é clara: não se pode pisar numa campa, pois isso constitui um grave desrespeito aos defuntos e às suas famílias. Quem o fizer incorre no risco de sofrer várias consequências, entre elas, ser assombrado pelo defunto da campa pisada.

Eu como não gosto de testar coisas cujas consequências não estaria disposto a enfrentar, evito. Fui me ajeitando entre os “corredores” das campas. Mas era difícil e desconfortável estar ali porque havia uma grande vegetação à volta e no meio das campas, muitas delas estavam mal cuidadas, em outras havia garrafas plásticas, baldes e outros objectos similares pousados ali pelos vendedores informais de água que a eles essa norma de não pisar em campas não os abrange.

Mas esse é o pão de cada dia de quem vai aos cemitérios em Maputo e, pelo que pude testemunhar pessoalmente assim como pelo que os jornais e as redes sociais reportam, é a situação que é vivida um pouco por todo o país. Cemitérios descuidados, com dificuldades de circulação interna e, inclusive, vandalizados com fins comerciais. As cruzes, os mármores, os vasos de flores, entre outros objectos que adornam as campas, parecem ter um valor comercial (não quero aqui entrar em discussões valorativas e questionar quem teria a coragem de comprar tais objectos, porque uma vez fui à casa de um conhecido meu e percebi que uma das pedras do mármore da cozinha levou muito tempo a ser fabricada. É que havia lá uma inscrição que, apesar de ter sido bem raspada, os meus curiosos olhos conseguiram decodificá-la e perceber que a produção daquele mármore iniciara a 28-03-68 e concluíra-se a 13-06-2015. Só não consegui ler o nome do artista que produziu o mármore, mas qualquer coisa do género “Eterna saudade”).

Eu pretendia me calar e guardar estes pensamentos apenas para mim, mas o que sucedeu quando nos retirávamos do cemitério foi de quebrar o coração. Uma senhora, elegante e bem pausada, logo depois da oração final, afastou-se da aglomeração quando ouviu o seu nome ser chamado numa direcção contrária à que ela seguia. Isso a fez virar o rosto para trás, pronta a atender ao chamado. Nisso, não sei ao certo por qual razão, física ou geográfica, ela se desequilibrou e colocou o pé no meio de uma campa que estava à sua esquerda. Para o nosso espanto, o seu pé afundou ligeiramente, e ela precisou do nosso apoio para se remeter em pé.

Aparentemente, a campa em questão, além de ter sido vandalizada, havia sido desfeita pela água das chuvas.

O descuidado com os cemitérios e as campas nos últimos tempos tem me gerado alguma preocupação, pois esses locais possuem um valor fundamental no processo da reconstituição das histórias e das identidades sociais colectivas. No caso das sociedades moçambicanas, sobretudo as rurais, que, pelo que se sabe até agora, não possuem registos escritos significativos sobre a história das suas famílias e dos seus ancestrais, o descuidado, e o consequente desaparecimento destes locais de memória, aceleram cada vez mais o processo de desconhecimento e desconexão com as identidades sociais desta terra.

Ou seja, as campas e os breves registos deixados nela, ajudam, por exemplo, a reconstruir a árvore genealógica de uma família e a determinar o tempo exacto de vida de um ente querido e, com isso, estabelecer conexões sociais com outros ancestrais que tenha partilhado o mesmo tempo vida. Tal conhecimento tem um valor fundamental para um indivíduo e para uma sociedade.

Ainda me é presente na memória o dia em que encontrei, algures em Paris, uma conhecida que ficou maravilhada ao saber que eu conhecia a localização exata da terra onde o meu bisavô havia sido enterrado. O máximo que ela sabia de si mesmo era que o pai tinha emigrado de forma forçada de algum país de África para o Haiti e, posteriormente, tinha ela própria, após a morte do pai, emigrado para a França. Causava-lhe confusão à cabeça não saber de qual país africano o seu pai era originário, e sentia que estava condenada a viver com esse vácuo na sua história pessoal. 

Conhecer as histórias e identidades dos ancestrais não é mero capricho, é uma necessidade social pois são essas histórias que vão contribuir para a construção da memória colectiva e das identidades de uma sociedade. Conseguimos retraçar a história dos egípcios, Gregos, Sumérios, Tsongas, Zulos, Maraves… etc. através dos símbolos esculpidos ao longo da história, permitindo assim que parte significativa de sua trajectoria fosse conhecida.

E, por outro lado, uma família ou uma sociedade que é consciente da sua história, está mais apta para tomar melhores decisões para o seu futuro e, neste quesito, dou crédito ao filósofo espanhol George Santayana que, num dos seus escritos, afirmou que “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.

Compreendo que há muitas razões que impedem que o cuidado dos cemitérios e das campas seja feito com o zelo e a frequência necessária. Desde as questões logísticas-orçamentais (familiares próximos/directos a residirem em regiões distantes o mesmo estrangeiras) crenças e valores (há quem diga que a igreja não permite que se visite as campas ou que visitar as campas é incorrer o risco de receber a maldição que terá colocado fim a vida do seu ente querido, entre outros…), contudo, independentemente das crenças de cada um, não cuidar destes locais é, de alguma forma, contribuir para o desaparecimento de partes da história da nossa sociedade.

 

Junho 2025

 

Desconhece-se o primeiro homem ou mulher que se serviu da expressão “estou com ele/ela por causa dos filhos” para tornar as suas investidas amorosas um sucesso. Mas se essa expressão tem sido usada recorrentemente por pessoas comprometidas em momentos de paquera, talvez se deva admitir que ela realmente tenha uma grande força de persuasão. Afinal de contas, os filhos são o bem primário de casamento, o melhor fruto que se pode gerar de uma relação amorosa. Na perspectiva bíblica, os filhos configuram-se a mais preciosa finalidade de uma relação conjugal, ordenando-se no Génesis 1:28 “crescei e multiplicai-vos”.

Se realmente a finalidade do casamento é de formar uma família no sentido tradicional “pai, mãe e filho” quiçá, valham a pena muitos sacrifícios para manter-se sã e salva esta estrutura familiar. E muito se
sabe sobre a importância de os filhos crescerem dentro de uma estrutura familiar estável. As vantagens incluem a maturidade emocional, habilidades sociais, autoconfiança e capacidade de eles construir relações saudáveis no futuro. E o risco de os filhos crescerem sem uma estrutura familiar é de serem propensos a comportamentos autodestrutivos como uma forma de preencher a sentida ausência do pai ou da mãe na sua vida.

É, no entanto, importante ressalvar-se que as consequências referidas não constituem uma regra geral, mas são probabilidades acompanhadas obviamente de excepções. Ou seja, de modo algum, se deve ter como uma condenação fatal de que quem cresce fora de uma estrutura familiar acabe desgraçado.

Tratam-se de probabilidades que podem ser desafiadas e revertidas, quando houver esforço para tal. No entanto, o normal das probabilidades é de compor estatísticas e regras gerais. Dois artistas moçambicanos souberam explorar esse fenómeno social nas suas músicas. No presente artigo, proponho-me a analisar as canções “Ungani suvisie” de Eugénio Mucavel e “Mutchela Usiwana” de Avelino Mondlane. São duas canções que retratam, de forma comovente, as consequências nefastas que uma separação pode causar na família: filhos desamparados.

Os dois cantores foram unânimes ao destacar a desgraça dos filhos como uma terrível consequência de os pais se separarem. O estranho é que, em momento algum, os dois cantores chegam a questionar, em toda a sua composição, a felicidade dos parceiros, como se, no casamento, a maior felicidade consistisse em o casal cuidar dos seus filhos, garantindo-lhes um crescimento saudável. Tanto para Eugénio Mucável como para Avelino Mondlane, os filhos deveriam ser os maiores bens a ser preservados no casamento. Ou seja, os cônjuges deviam viver pelo bem-estar dos filhos. Os seguintes excertos da canção “ungani suvisie” e  mutchela usiwana” denotam esse propósito matrimonial.

Phula dri hola, nkata, a lizandzu hidza tsongo
(Vai com calma, esposa, o amor ainda é tenro)
(…)
Ungani suvisie, nkata, apswô, ni tsiki ni duwala nyana
(Não me descartes, minha esposa, deixa-me envelhecer um pouco)
A vana va hina vanga sala valhupeka
(os nossos filhos podem ficar a sofrer)
Swita kula hi usiwana, swita yentxa swinyolwetana
(Vão crescer na pobreza, serão marginais)
Swi pfumala tidjondzo, swi pfumala lhayiseko.
(Não terão ensinamentos, não terão o bem-estar)
Kasi swi oni yini?
(Afinal, que culpa eles têm?)

Alweyi wa nuna aku ongaka, anga tava gweta a vana va hina
(Esse homem que te está a iludir, não vai sustentar os nossos filhos)
(…)
Avelino Mondlane
In (Ungani suvise)
_________________
Mutchela usiwana a vana va nwina
(Vocês condenam à pobreza os vossos filhos)
Vata kula hi mbinyeto, vana va nwina
(Vão crescer no sofrimento, os vossos filhos)
Nava tiva ku mbava na mamane va a mbanili
(Sabendo que papai e mamãe separaram-se)
Mo kota mutsikana, mbava na mamane
(Ousaram mesmo separar-se, pai e mãe)
Mu yaki muti mule va mbhiri
(Construiram a casa a dois)
Mu yaki muti usiwanini
(Construiram a casa na pobreza)
Muyo randzana mule va mbhiri
Fizeram juras de amor a dois
Mu dumbisana ahu ntomwini
Comprometaram-se na vida
Malembe yaku tala mule va mbhiri,
(Após longos anos juntos…)
Mu tsikanela yini, mbava na mamane?
(Porque se separarem, pai e mãe?)
(…)
Avelino Mondlane
In (Mutshela usiwana)

Da primeira canção, percebe-se que Eugénio Mucável teme unicamente pelo futuro das crianças. Pouco questiona sobre a sua felicidade individual como marido e a felicidade dela, como se lhe não importasse dentro do casamento. A sua preocupação consiste unicamente no bem-estar dos filhos. E uma preocupação tão desesperadora que ele chega a duvidar das boas intenções do amante, pressentindo que este não será capaz de cuidar dos seus filhos. Nisto, o artista reforça ainda mais a ideia de que o casamento ou uma relação conjugal só fazem sentido se forem consagrados ao bem-estar dos filhos, pouco questionando se, na segunda relação, a sua mulher será verdadeiramente feliz. E se Mucável não se faz essa questão, subentende-se que a felicidade do casal, dentro do casamento, define-se unicamente pelo bem-estar dos filhos.

figura-se-nos que para Eugénio Mucável, qualquer tipo de felicidade matrimonial, que não inclua os filhos, é simplesmente uma miragem, perdição, vaidade.

O mesmo conceito de felicidade matrimonial é partilhado por Avelino Mondlane, na sua bela canção “Mutchela Usiwana” em que antevê um futuro desolador dos filhos com a separação dos pais. Ele também não chega a questionar se a felicidade individual dos parceiros é mais importante que o bom crescimento dos filhos. Avelino assume a priori que não há maior felicidade dentro do lar, senão aquela de ver os seus filhos crescerem felizes. E a condição sin quan non de garantir o bem-estar dos filhos é a presença e apoios financeiro e moral contínuos dos pais.

Se calhar, ambos os artistas estejam certos na sua forma de conceber a felicidade matrimonial que consiste no crescimento saudável e bem-estar das crianças. É indubitável que a separação dos pais, de modo geral, impacta negativamente no crescimento das crianças. Em termos de estatística, maior parte de casamentos falhados tem gerado filhos com sérios problemas de relações intrapessoal e interpessoal, tornando-os adultos com incapacidade de construir relacionamentos saudáveis. Este era o maior perigo que os nossos cantores da velha guarda como Avelino Mondlane, Eugénio Mucável, Gabar Mabote na sua canção  Helenani” entre outros artistas nos procuravam admoestar.

Feliz ou infelizmente, estes artistas se fizeram ouvir e conseguiram influenciar casais da sua geração.

Diga-se, com franqueza, que os casamentos daquela geração comparados aos casamentos desta geração são os mais duradouros e estáveis. E não se pode ignorar o impacto que a música da velha guarda teve na construção da moral familiar. Era quase uma tradição que, aos fins-de-semana, se ouvissem dos rádios cassetes da vizinhança canções destes artistas acompanhadas de um agradável cantarolar dos pais, tios e avós. A aceitação popular deste género musical era demasiado alta, sobretudo, em zonas periféricas. E, se tivermos que lhe definir o legado, o maior de todos foi o de disciplinar e unir famílias em Moçambique.

Todavia – temos de ser honestos – o facto de os filhos daquela geração crescerem em estruturas familiares sólidas nem sempre significou harmonia e paz. Era possível, sim, registarem-se casos tóxicos como violência, infidelidade, desrespeito e autoritarismo nessas famílias. Devemos, por isso, aceitar o facto de que a música não era o único pilar que sustentava as relações duradoras. A educação para submissão feminina, a baixa escolaridade das mulheres, a pobreza e a exclusão das mulheres no mercado formal de emprego eram factores negativos que, de algum modo, obrigavam as mulheres a permanecer por mais tempo nos seus relacionamentos.

Mas, deve-se concordar que o espírito de tolerância, paciência e resiliência era tão forte que muitas famílias conseguiam superar diversas crises que ameaçavam romper o casamento. Esse espírito resiliente que fazia perdurar as relações conjugais alimentava-se, em parte, das canções moralistas da velha guarda. Mas mais do que as causas de um casamento duradouro, este artigo busca questionar o sentido do casamento. Ou seja, vale a pena suportar crises no casamento pelos filhos ou priorizar sempre a sua felicidade particular?

A resposta é complexa. A felicidade particular é importante na vida, mas ela costuma ser instável e irregular. Às vezes, confunde-se com uma paixão voluptuosa que nos leva a cometer adultério, mas que, com o tempo, se vai esvaindo. A pessoa amada pela qual abandonamos a família não deve ser tida como uma garantia eterna da nossa felicidade. Devemos levar em consideração a hipótese de, um dia, ela deixar de amar-nos, ou entediar-se de nós, zangar-se, arrepender-se, cansar-se ao ponto de desistir de nós. O amor é uma chama que, às vezes, com o tempo, perde a intensidade do seu calor ou se apaga. Abandonar, por entanto, a missão matrimonial de criar e educar os filhos dentro de uma estrutura familiar sólida por causa de uma felicidade extraconjugal afigura-se uma decisão irresponsável.

No entanto, é uma atitude estúpida permanecer numa relação tóxica que contribui negativamente no desenvolvimento biopsicossocial dos filhos e que, ainda, arrisca a sua própria integridade física e moral. Continuar no casamento pelos filhos só se torna uma decisão sensata se houver condições para um desenvolvimento saudável dos mesmos. Se estiverem estabelecidas estas condições, ainda que não perfeitas, sim, vale a pena preterir a sua felicidade particular por eles. Como progenitores, a nossa obrigação de zelar pelo-bem estar dos filhos, deve estar acima da nossa felicidade como marido e mulher. É a nossa inteira responsabilidade assumirmos o compromisso de proteger, educar e apoiar as crias que trouxemos ao mundo.

A condição de pai ou mãe solteiros não tem sido favorável para um bom crescimento das crianças. A maioria dos casos de filhos que crescem sob a custódia de pais separados tem sido uma experiência turbulenta. Uma estrutura familiar sólida sempre será o melhor estado para o desenvolvimento saudável dos filhos, desde que o ambiente não seja tóxico. Casar, formar uma família e dedicar-se ao cuidado dos filhos configura-se o melhor propósito do matrimónio – eis a mensagem que Eugénio Mucável e Avelino Mondlane insistentemente nos procuraram transmitir.

“Laye, mesmo consciente dos graves problemas que o seu

continente passava, sendo ele negro colonizado, optou em

escrever sobre sua participação nas cerimónias de iniciação,

festas na aldeia, suas férias, etc. sem mencionar a luta

antecolonial ou a violência colonial, Laye ignorou o contexto

histórico do seu continente.” Bano (2017)

 

É uma honra para mim, e, ao mesmo tempo, um desafio analisar este clássico da literatura Guineense sob o tema acima apresentado. A obra “O Menino Negro” é considerada a primeira da literatura guineense, a história da literatura desse país começou com esta obra.

Os livros clássicos são como a bíblia sagrada, devem ser analisados com todo o cuidado possível, sob pena de se escrever blasfémias contra eles.

Toda a análise solicita, imperiosamente, uma base teórica sobre o assunto que se pretende abordar, por isso, a seguir apresento conceitos-chave que me serviram de subsídio.

Olhando para o conceito e indício, Barthes citado por Reis Lopes (1996), entende que são unidades integrativas, cuja funcionalidade se situa num nível superior de descrição e análise, elas adquirem o seu valor no quadro da interpretação global da história. Os indícios têm sempre significados implícitos, e, frequentemente, só se decifram a nível da detecção dos valores conotativos de certos lexemas ou expressões.

No tocante à negritude, Goncalves (2016), diz que este movimento tinha como prosta promover um momento de tomada de conciesncia de se ser negro e de assunção dessa identidade negada no processo da colonização. Todavia, Cesaire (2010) define a negritude como sendo a tomada de consciência da diferença, como memória, como fidelidade e solidariedade, ela é um despertar de dignidade, ela é luta contra a desigualdade. 

Para Pinheiros (2015) a negritude define-se pela valorização das práticas culturais, tradicionais pela formar como essas práticas devem ser respeitadas. No entanto, Margarido (1964) estabelece pontos de articulação da negritude os quais são: o racismo antirracista o sentimento do colectivismo, a comunicação com a natureza, o culto aos antepassados, etc.

Na mesma senda, Martins (2019) diz que a negritude traz em sua identidade elementos referenciais, como vida simples e instintiva, a predominância da natureza, o culto a ancestralidade, ideia de espontaneidade, pureza e inocência inata a raça negra, o regresso a origem a musicalidade, o ritmo e a dança.

Sobre o nosso o objecto de análise, Bezerra, Lima, Secco. Freitas (2022) dizem que

a obra mais conhecida e importante de Laye é sem dúvidas “L’Enfant Noir”, onde ele narra a história de uma criança africana que vive em um meio tradicional até chegar à maturidade, passando por provas iniciáticas e rituais tradicionais, até o momento em que deixa sua terra para ir estudar na França. Entendem ainda os autores supracitados, que Laye se envolveu muito na tradição sobre a qual escreveu e que se apropria da tradição para criar sua obra.

O movimento negritudinista esteve dividido em duas partes, uma política e outra literária. É possível notar no enquadramento teórico acima, que os autores apresentam diversas abordagens sobre a negritude. As questões que ficam são: Enquanto uns escreviam livros contra o colonizador, outros não podiam escrever livros de representação das suas tradições africanas? Afinal a ideia não era lutar por África em todos os aspectos e se exaltar a cultura?

A seguir apresento uma reflexão (análise) sobre a negritudinisse de O menino negro

de Camara Laye. 

 

  1. A Valorização das práticas culturais e tradicionais

1.1. Falar com a natureza

Vimos, na base teórica que, segundo Pinheiros (2015) a negritude pode ser entendida como a valorização das práticas culturais, tradicionais. No nosso objecto de análise, notasse a comunicação com a natureza por parte de algumas personagens. Este fenômeno não constitui algo estranho nalgumas tradições africanas, o seja não estamos diante do fantástico. As religiões modernas é que marginalizaram este fenômeno, pois, desde os tempos primórdios (khokhoi, San e Bantu), comunicar-se com a natureza era visto como algo natural, porém, não era qualquer um que tinha este poder:

 

“Um dia notei uma pequena cobra negra que se dirigia a oficina/essa cobra é o gênio do teu pai/é essa cobra quem avisa de tudo, não me espanto nada/ tude me é revelado durante a noite/devo tudo a cobra, ao gênio da nossa raça” (p.17 e 19)

 

1.2. O culto aos antepassados

É uma característica daS religiões africanas invocar os antepassados, de modo que protejam e abençoem seus entes queridos. No nosso objecto de análise, encontramos episódios implícitos em que os antepassados são invocados de modo que abençoasse o protagonista da trama. Um primeiro caso é “o gênio da nossa raça, a cobra”, o pai do narrador teve-o por meio dos seus antepassados, desde o momento que entrou em contacto com ela entrava também em contacto com estas entidades sobrenaturais, seus antepassados.

 

  1. Expressões e nomes tipicamente africanos

Se para Reis e Lopes (1996) os indícios têm sempre significados implícitos, e

frequentemente, só se decifram a nível da detecção dos valores conotativos de certos lexemas ou expressões, julgamos conveniente apresentar algumas expressões utilizadas pelo autor na construção do texto, pois estes, constituem, ao nosso entender, indícios que possivelmente tenham também a função de elevar a obra ao carácter negritudinista:

 

“O Menino Negro/Cobra Negra/o gênio da nossa raça/griot/kapokier/Framager/kola/

cabelos ainda negros/quadro negro/tantã”

Estes elementos podem, simplesmente, ter uma função estética na obra, entretanto,

não descartamos a ideia de que o autor socorreu-se de elementos pertencentes a África, no caso de nomes de árvores, objectos, etc., de modo a passar ao leitor a ideia de estar diante de uma obra da lietrarura africana, são traços pequenos mais de grande relevância olhando para o tempo em que foi escrito este livros.

 

  1. A ideia de Superioridade da raça branca

Visto que a negritude visava não só o despertar e tomada de consciência de se ser

negro, mas também a luta pela igualidade, e era um movomento antirracista, retomamos o pensamento de Margarido (1964), que diz que o humanismo negro só podia legitimar-se como um convite ao conhecimento, a consciência de um nacionalismo africano que se opõe a existência de uma consciência nacional europeia, no entanto, o negro considera o branco superior apenas pelo facto de este dominar as técnicas, por ser engenheiro eletrônico ou engenheiro mecânico. Vimos no nosso objecto de análise, a ideia de que o branco é superior ao negro o que Munanga (2016), chama de mito da civilização ocidental como modelo absoluto.

 

“Mal cheguei ao Cais fui assaltado pelas lisonjas. «tu já és tão sábio como os brancos!» «tu já és realmente tão grande como os brancos »/essa foi a primeira noite que passei numa casa europeia/era uma casa confortável, com uma cama macia, muito mais macia que qualquer daquelas em que se estenderá até então/de início, a minha cubata fora como todas as outras. Depois, pouco a pouco, acabara por revestir um aspecto que a aproximava da Europa/será que o médico branco conseguiria ser bem-sucedido precisamente onde os nossos curandeiros tinhaM falhado?/ os brancos não morrem de fome/ são gente que nunca está satisfeita com nada, eles sempre querem tudo! Não podem ver uma coisa sem que queiram logo possuí-la” (p.118, 122, 141, 148, 156 e 157)

 

Nestes trechos, pode-se ver construída a ideia da superioridade do homem branco em relação ao negro. O que a negritude lutou contra, pois, toda a raça tem a sua riqueza, seu valor, como defende Pinheiros (2015). O trecho acima conota a ideia de que é verdade que os brancos tinham, naquele tempo, total superioridade em um e outro aspecto, mas também a ideia de que nós, os africanos, podíamos sonhar alto. Pessoas de igual nível de desenvolvimento não têm como ensinar um ao outro não acham?

 

  1. O distanciamento dos problemas enfrentados pelo seu continente

Numa época em que muitos países do continente africano estavam sobjugo colonial, “O Menino Negro” é publicado em 1953. Para Bano (2017), Laye mesmo consciente dos graves problemas que seu continente passava, sendo ele negro colonizado…ignorou o contexto histórico do seu continente. Entendo que o movimento da negritude já existia na altura em que Laye escreveu sua obra, prefiro achar que Laye, sendo um indivíduo culto, como diz o nosso objecto de análise (se olharmos pela análise biografista), ele teve conhecimento deste movimento tanto no âmbito político assim como literário. Não acho que sua obra, pelo facto de não tocar na questão da colonização em África distancie-se da ideologia política da negritude.

Nesta obra, Laye, como autor empírico, denuncia a brutalidade nos ritos de iniciação, denuncia as injustiças que algumas crianças passavam nas escolas do seu país, as quais ele passou. Portanto, não seria justo dizer-se que esta obra, pelo facto de não apontar o dedo ao colonialismo, não se tenha importado com o estado do seu país, do seu continente. Se quisermos criar um juízo sobre o porquê de Laye não falar do contexto histórico do seu país e do seu continente e em que medida isso pode distanciar sua obra da negritude, devemos primeiro entender qual era o principal objectivo da Negritude quando foi criada, esta resposta nos é dada por dois autores. A primeira por Pinheiros (2015) que diz que a negritude define-se pela valorização das práticas culturais, tradicionais pela forma como essas práticas devem ser respeitadas e a segunda por Goncalves (2016), que diz que a negritude tinha como proposta, promover um momento de tomada de conciesncia de ser negro e de assunção dessa identidade negada no processo da colonização. Portanto, penso que na medida em que a negritude liga-se à ideia de luta contra o colonialismo, assume o seu carácter político. Portanto, concluo que “O Menino Negro” de Camara Laye é um marco quando se fala da negritude na literatura da Guiné Konacri, quando se está a olhar na vertente de valorização da cultura e tradição da antiga Alta Guine. Na vertente de contributo na luta contra a exploração do homem pelo homem, na luta contra o racismos, contra o colonialismo, contra desigualidade social, contra o espirito de superidade do raça branca, O Menino Negro não é uma obra negritudinista, pois não apresenta nenhum indício daquele que era o objectivo da negritude nesta vertente.

 

  1. Referências Bibliográficas

Bano, Issaka Maїnassara. (2017). O Menino Negro: As Memorias de Camra Laye. Cadernos

Ceru. v.28, n.2, 2-8. Acesso em: 11 de Junho de 2025.

Bezerra, A., Lima. T., Secco. C. T. & Freitas. S. (2022). Literatura Desigualdade Ensino.

Natal: Caule de Papiro

Cesáire, Aimé. (2010). Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Nandyala

Goncalves, Dayane de Oliveira. (2016). De Volta a Negritude: das Origens a alguns

Desdobramentos. Revista Versalete. v.4, n.7, 104-120. Acesso em: 02 de Junho de 2025.

Laye, Camara. (1979). O Menino Negro. Lisboa: Edições 70.

Margarido, Alfredo. (1964). Negritude e Humanismo. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império.

Martins, Cesar Francisco. (2019). A Negritude na poesia cabo-verdiana: uma polemica.

Mariana: UFUP.

Moniz, Antônio; Paz, Olegário. (1997). Dicionário Breve de Termos Literários. Lisboa: Editorial Presença.

Pinheiros, Lizandra Barbosa Macedo. (2015). Negritude, apropriação cultura e a crise conceitual das identidades na modernidade. Lugares dos Historiadores: velhos e novos desafios. 1-14. Acesso em: 15 de Junho de 2025.

Reis, Carlos; Lopes, Ana Cristina M. (1996). Dicionário de Narratologia. 5 a ed. Coimbra: Livraria Almedina

 

A música é mais que uma forma de expressão, é uma forma de afirmação, é uma partilha de pensamentos e ideias que por vezes fluem da alma e outras vezes das ambições.

“Bem Hajam 50 anos”, é uma música moçambicana recém lançada em 2025 pelos artistas Mc Roger, Humberto Luis, Mito Chocolatinho, Juvenal e Nikel.

A música foi lançada alusiva aos 50 anos de independência de Moçambique. O vídeo da música encontra-se disponível na plataforma youtube.

Em termos de sonoridade a música sabe a um ritmo tropical ou mesmo um Zouk, o início do vídeo é caracterizado pela bandeira de Moçambique no fundo e a seguir o título da música paira ao meio do ecrã, o nome dos artistas apresenta uma disparidade de tamanhos, o nome de Humberto Luís, Mito Chocolatinho, Juvenal e Nikel aparecem em miniatura na região central inferior, e o nome do Mc Roger aparece em letras garrafais isolado no centro superior do Ecrã.

O vídeo foi gravado na praça da independência, que reflete a alusão da música aos 50 anos de independência, a vibe da música é relaxante, os cantores aparecem trajados de cachecóis de Moçambique e segurando a bandeira nacional. No vídeo também são exploradas imagens como a ponte Maputo Katembe, a chama nacional, figuras políticas como o actual e ex dirigentes de estado, a estátua de Samora Machel etc.

Porque o maior instrumento da música é a voz, vamos atentar ao conteúdo da letra:

A música é aberta por Mc Roger louvando a unidade nacional, Humberto de seguida introduz o coro intercalando com Mito Chocolatinho.

Mc Roger interpretou o que já nos habituou desde a presidência de Joaquim Chissano, a cada novo governo Mc compõe letras de ovação a figuras políticas, empresariais, até porque faz parte da sua estratégia em se manter no mercado, ovacionar os dirigentes para incrementar sua influência. Pode-se ler em sua letra versos como : “Jovens e velhos querem a tocha tocar” O que Mc Roger afirma no verso acima em relação a tocha é bastante questionável, tendo em conta que a tocha nacional passou em vários troços guarnecida pelo exército sem qualquer presença do público.

Quando diz que as universidades são fruto da independência, Mc tem razão, porém a realidade dos licenciados e mestrados após a universidade também são fruto da independência. A realidade sócio económica é que os jovens são na maioria desempregados, sem acesso a créditos, sem espaço para aplicar o que aprendem na academia, este tipo de abordagens apresentam meias verdades na medida em que não abordam os 2 lados da moeda. Os 50 anos da independência devem ser narrados com responsabilidade e não com parcialidade.

No coro com Humberto Luís e Mito temos as frases:

“Olha o povo feliz weee”

Enquanto os artistas cantam : Olha o povo feliz, no video não se vê patavina de povo feliz, vê se os artistas dançando entre si, isto torna a letra incoerente sendo que quem devia estar feliz não são apenas os artistas que também são povo, mas o povo a quem eles se referem. Este povo ainda não está feliz, Moçambique viveu desde Setembro de 2024 um periodo sombrio com tumultos, instabilidade política, marchas, revoltas contra autoridades, que por si só traduz a insatisfação social, com os termos da governação, com a qualidade de vida no geral.

O verso “Moçambique a avançar wee” carrega em si outra incoerência, pois quem o afirma não faz parte do grupo do cidadão comum, mas sim de um outro grupo com condições privilegiadas, existem avanços em Moçambique sim, mas sectores básicos como a saúde, educação, transporte ainda apresentam grandes desafios para o cidadão comum que é a maioria da população e actualmente em termos estatísticos encontra grandes barreiras nestes sectores.

Outro aspecto questionável é se a chama nacional trouxe unidade ou apenas publicidade.

O CÓDIGO SECRETO 

Nikel é um jovem rapper de Maputo, no circuito “concios rap” em português rap consciente. Rap consciente é um estilo de rap com mensagens maduras, positivas que nos fazem reflectir.

Para quem não sabe, existe um “código secreto” no Rap consciente que está implícito a quem o faz. Este código não é dito mas é seguido, rappers que fazem rap consciente, procuram abordar sobre aspectos que sejam verídicos, coerentes e justos em suas letras.

Nikel surge na colaboração, como um rapper conhecido dentro do movimento Rap, mas meio desconhecido fora dele, não se pode ignorar o desafio em termos de alinhamento de conteúdo ao colaborar com o Mc Roger um nome influente que dispensa apresentação na música moçambicana.

A sua letra foi coerente em maior parte, enaltecendo alguns ex líderes como Eduardo Mondlane e Armando Guebuza, agradecendo às classes nobres como professores e médicos e tropas do exército moçambicano, que a bem da verdade merecem tal agradecimento.

Um dos códigos secretos foi abandonado no verso: “A chama da unidade fortalece o nosso vínculo”, neste verso Nikel refere se ao vínculo do povo para povo, a pergunta chave seria de que forma o povo teve o seu vínculo fortalecido após a passagem da chama? Chama da unidade é uma forma distinta de propaganda política, que este ano obteve muito descontentamento popular devido ao seu custo elevado, além disso a chama atravessou distritos em momentos de instabilidade sem a presença popular, conclui se aqui que o rapper apresentou um verso populista mas vazio da verdade.

O segundo código abandonado foi a coerência no verso : “Tomamos conta do nosso destino apostando no ensino”, um dos sectores que mais se degradou ao longo dos anos foi o setor da educação, com baixa qualidade de ensino, livros com erros graves, professores deixando de dar aulas por estarem em greve. Torna se um paradoxo quando Nikel diz: “apostando no ensino”, quando este sector é tão frágil, a ponto de se estudar ainda por baixo das árvores, é uma antítese que coloca o rapper tendo de abdicar do seu código secreto, para um discurso mais propagandista à semelhança do Mc Roger.

Conclusão, a música seria mais coerente se os artistas optassem por uma abordagem de transmitir esperança tendo em conta a realidade, do que interpretar uma felicidade e prosperidade utópica a qual o povo não se revê nela.

 

Torna-Se inadiável fazer a discussão da eticidade nos dias em que vivemos, onde o bem e a verdade são desprezados em cada canto do mundo. Pensar em afirmar princípios e valores no seio do cidadão que esta em processo lento de construção ė uma utopia. Viabilizar a ideia de conservar a dignidade durante a temporada da vida, já não importa. Parece estarmos a viver num mundo de loucos. Afirmar a dimensão ética durante o nosso trajecto de vida já não faz parte do pensar de muitos viventes, porque a dimensão econômica sobrepôs-se a dimensão ética. Articular a dimensão ética a dimensão econômica ficou longe de ser do ser humano.

O outro aspecto que a sociedade pouco discute e pensar no valor da ética na competência profissional, seja qual for a área. A competência sem ética afasta o saber que reproduz a reflexividade dum sistema social.

O ser consciente do cidadão em contribuir na formação duma sociedade ética foi consumido pela força superior do querer pôr a dimensão ética como a última de todas dimensões. O ethos social fez desaparecer o olhar sensível e deu lugar o olhar sarcástico ao próximo. Perdemos a arte de desenhar a vida com as letras do bem e da verdade. Esquecemos que a mente humana e a parte do intelecto infinito de Deus como refere Spinoza. Muitos tem a narrativa de construir o mal, poucos pensam na fórmula que cria o equilíbrio social. A ausência da aplicação ética da nossa experiencia de vida na construção de uma sociedade mais humana, vê-se na vontade que as pessoas tem de viver alheio ao sofrimento do outro.

Poucos lançam a semente da sabedoria no coração pobre para não fortalecer a mente com o poder critico ou saber infinito. Vivemos um mundo do egoísmo onde poucos doam o amor e afeto, mas muitos oferecem o sorriso de um bom lobo. Um mundo que sabe muito dividir decepções mas que perdeu a aritmética de viver as vitorias e emoções com o próximo. Esquecemos que as competências e habilidade técnicas podem não influenciar de forma positiva nos resultados esperados, quando a dimensão ética não estiver presente em todos momentos da manifestação da competência. O vigor professional pode não ter um brilho quando não for acompanhado com eticidade. Procurar viver com dignidade, deixou ser interesse de muitos. Os valores morais vão desparecendo rapidamente sem que haja formação de correntes que evidenciem os princípios éticos da dignidade humana. Alicerçar a conduta moral na plena consciência responsável e fugir do vazio da ignorância do bem, como o discípulo do Sócrates (Platão) faz referência nas suas escritas e fundamental para quem precisa de levar a vida com dignidade. Para Platão, as ideias existem apenas quando são percebidas pela razão e, o bem ė um imperativo moral. Conhecer a verdade ética torna o mundo melhor.

Para terminar deixo para reflexão o pensamento do filosofo Baruch de Spinoza ʺ Tudo está em Deus, tudo vive e se move em Deus. Uma paixão sem razão ė cega, e uma razão sem paixão ė mortaʺ 

A cidade de Nampula, conhecida como a “capital do norte” de Moçambique, pulsa com uma força cultural que vai muito além de suas paisagens e mercados movimentados. Berço de uma rica diversidade étnica, linguística e artística, vivendo um momento de reinvenção, em que a tradição e a inovação caminham lado a lado para moldar novas formas de expressão e desenvolvimento comunitário.
As danças tradicionais makhuwa, o artesanato em macuti, as histórias contadas à sombra das mangueiras e os cantos entoados em rituais ancestrais são muito mais do que símbolos de identidade: são tecnologias culturais que preservam a memória e orientam o presente. Em muitos bairros e comunidades, a cultura continua viva no quotidiano das famílias, passada de geração em geração.

No entanto, em um mundo cada vez mais conectado e visual, manter essa herança exige mais do que celebração exige reinterpretação. E é justamente isso que começa a acontecer em Nampula, onde uma nova geração de artistas, produtores culturais vem surgindo na cidade, aliando saberes tradicionais à linguagem contemporânea. Em bairros como Namicopo e Mutauanha, jovens utilizam o teatro
comunitário para abordar temas como o ambiente, igualdade de género e cidadania.

Grupos de dança urbana misturam passos de tufo com coreografias afro-contemporâneas. Poetas falam em makhuwa e português sobre identidade e sonhos.

Mais do que entretenimento, essas manifestações são ferramentas de formação crítica, inclusão social e transformação. A inovação cultural aqui não está na negação do passado, mas na sua capacidade de dialogar com o presente, apoderando-se do poder da tecnologia como um aliado da criação cultural local.

Jovens artistas usam plataformas como TikTok, Facebook e YouTube para divulgar seus trabalhos e ganhar visibilidade além das fronteiras de Nampula. Artesãos transformam o Instagram em vitrines virtuais, enquanto músicos gravam vídeos com qualidade sem sair dos quintais.

Além disso, iniciativas como oficinas de escrita, formações em artesanato e empreendedorismo começam a ganhar espaço, abrindo caminho para um ecossistema criativo mais sustentável e profissional.
Apesar das iniciativas promissoras, os desafios são muitos: falta de financiamento, escassez de espaços culturais formais, pouca valorização institucional da arte como setor estratégico. Ainda assim, há esperança de mobilizar o sector publico, ONGs, centros culturais e o público para consolidar um ambiente fértil que permita uma inovação cultural porque Nampula tem o que precisa: Talento, criatividade e juventude.

Inovar, em Nampula, não significa copiar modelos externos. Significa criar a partir do que se é. É transformar o batuque em trilha sonora digital. É fazer da oralidade um podcast. É bordar com pixels sem esquecer a palha. É, sobretudo, reconhecer que cultura é motor de desenvolvimento, identidade e futuro.

A terra é abrigo, ventre fecundo, guarda o segredo mais velho do mundo. Onde dos quatro cantos, soa um só clamor: Preserva o ambiente com mais amor. É da necessidade de preservar o planeta e reciclar o meio ambiente que em, “CATADORES”, Tchalata, apresenta duas figuras humanas compostas por objetos variados, montados de forma tridimensional sobre uma base bidimensional.

A figura da esquerda tem uma máscara oval colorida, de boca aberta, e braço com padrões decorativos coloridos. A figura da direita tem uma máscara escura, com expressão serena, remetendo a arte africana tradicional.

Os corpos estão compostos por uma colagem de sucata mecânica e objetos do dia a dia, representando talvez uma fusão entre o humano e o tecnológico ou entre o tradicional e o moderno.

A simetria entre as duas figuras sugere um vínculo talvez familiar, afetivo ou simbólico. Há uma exploração estética do caos ordenado, cada elemento é aparentemente aleatório, mas no conjunto formam silhuetas reconhecíveis e expressivas.

Embora composta por elementos heterogéneos, a obra é equilibrada visualmente. As Máscaras tradicionais contrastam com materiais industriais, criando uma tensão entre o sagrado e o profano, o artesanal e o industrial.

A técnica utilizada é de assemblage, uma forma de colagem tridimensional típica da arte moderna e contemporânea. A reutilização de materiais como metais, chinelos usados, plásticos e restos de máquinas sugere um forte discurso crítico.

O uso de lixo urbano denuncia o consumismo desenfreado e os impactos ambientais do desperdício. Ao transformar lixo em arte, o artista subverte a lógica de valor tradicional, dando novo significado ao que é descartado.

A justaposição com peças industriais simboliza o choque entre culturas locais e a globalização, evocando reflexões sobre colonização, progresso e perda de identidade.

Esta obra se por um lado encaixa-se no movimento de artistas africanos contemporâneos que usam resíduos urbanos para expressar a crítica social, política e ecológica e Pode ser lida como uma denúncia das desigualdades globais, África como destino final de resíduos industriais produzidos no mundo.

Por outro lado, expressa afirmação de uma arte periférica, descolonizada que se apropria de materiais impostos para criar algo genuinamente local.

A obra também educa, ao mostrar como o lixo pode ganhar vida.

“CATADORES” é uma obra provocadora. A estética de materiais usados é compensada pelo humor visual, pelas cores vibrantes e pela expressividade das formas. O observador sente surpresa, inquietação e, talvez, uma chamada à ação.

Através deste quadro, o artista, Tchalata, propõe uma reflexão sobre o consumo, areciclagem e o meio ambiente. A fusão de máscaras tribais com peças tecnológicas simboliza o conflito entre a tradição e modernidade.

Avaliado em cerca de 96 mil meticais no mercado, “CATADORES ” é parte da exposição patente na Fundação Fernando Leite Couto, “GUARDIÃO DA NATUREZA: Educar para ser”, estará afixada até 28 de Junho, composta por 22 quadros.

Em “ GUARDIÃO DA NATUREZA: Educar para ser” Tchalata, celebra a diversidade cultural, com um toque de humor e criatividade no uso de materiais.

Esta obra não é apenas um exercício estético, mas uma poderosa crítica social e ambiental. Ela problematiza o consumismo, revaloriza a identidade cultural africana e promove a sustentabilidade. É uma arte que “fala”, que desafia, que envolve.

 

Título da obra: CATADORES Nome do autor: Tchalata

Dimensões: 100 cm x 205 cm.

  1. Introdução

Num mundo cada vez mais interligado, a cultura dos povos enfrenta desafios e transformações profundas. Em Moçambique, um país de vasta riqueza cultural e diversidade linguística, assiste-se a uma crescente diluição das expressões culturais autênticas em favor de modelos globais — maioritariamente de origem ocidental. Esta realidade é visível em vários domínios: desde os conteúdos televisivos e musicais até ao estuário e hábitos linguísticos da juventude.

A presente reflexão tem como objectivo analisar as influências da globalização na forma como a cultura moçambicana é representada, percebida e difundida, com especial foco na linguagem como instrumento identitário e cultural. Para tal, recorre-se a conceitos da linguística, sobretudo da linguística antropológica e da sociolinguística, para compreender de que forma a língua participa na construção simbólica do que é “ser moçambicano”.

A abordagem proposta visa construir uma ponte entre teoria e prática, articulando os discursos académicos com a realidade concreta vivida em Moçambique — particularmente nas grandes cidades, onde o impacto da globalização é mais visível. É neste cruzamento entre cultura, linguagem e poder global que se pretende refletir criticamente sobre os caminhos possíveis para uma revalorização do património cultural moçambicano.

 

  1. Conceitos da Linguística Aplicados à Cultura

A relação entre língua e cultura tem sido amplamente debatida por linguistas e

antropólogos. Na perspectiva da linguística antropológica, a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas um sistema simbólico que carrega consigo valores, crenças, práticas e visões do mundo. Isto é particularmente relevante no contexto moçambicano, onde a diversidade linguística é um reflexo directo da pluralidade cultural.

Um dos conceitos centrais neste debate é o da relatividade linguística, desenvolvido por Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, que sugere que a estrutura da língua influencia a forma como os seus falantes percebem a realidade. No nosso contexto, este princípio ajuda a compreender como as línguas bantu carregam formas específicas de ver o mundo, nomeadamente em relação à natureza, ao tempo, à família e à comunidade.

O queniano Ngũgĩ wa Thiong’o defende, no seu livro Decolonising the Mind, que a língua é o principal meio pelo qual uma cultura se mantém viva. Ele argumenta que a imposição de línguas coloniais (como o inglês ou o português) contribui para um distanciamento cultural e uma forma de alienação identitária. Este pensamento é particularmente aplicável a Moçambique, onde o português é a língua oficial, mas onde a maioria da população tem como língua materna uma das várias línguas bantu.

De forma semelhante, o moçambicano Armando Jorge Lopes tem defendido que o

multilinguismo deve ser uma riqueza valorizada e incorporada nas políticas públicas, especialmente na educação e nos media. Para Lopes, a marginalização das línguas nacionais nos espaços públicos e formais contribui para a invisibilidade das culturas associadas a essas línguas.

Outro autor relevante é Lourenço do Rosário, que tem chamado a atenção para o papel da língua na formação da identidade nacional. Para ele, a uniformização cultural promovida pela globalização ameaça não apenas as línguas locais, mas também os sistemas de conhecimento e valores enraizados na oralidade africana.

Finalmente, Kwesi Prah, num contexto mais amplo africano, defende que o verdadeiro desenvolvimento só é possível quando os povos africanos se expressam nas suas próprias línguas, argumentando que o uso exclusivo das línguas coloniais perpetua formas de dependência cultural e epistemológica.

Estes conceitos oferecem ferramentas essenciais para entender o impacto da globalização na cultura moçambicana: ao privilegiar o português (e, mais recentemente, o inglês, o chinês e outras línguas globais) e modelos culturais estrangeiros, há uma tendência para enfraquecer as formas tradicionais de expressão cultural, muitas das quais estão intrinsecamente ligadas às línguas moçambicanas.

 

  1. Cultura Moçambicana: Tradições, Línguas e Expressões Culturais

Moçambique é reconhecido pela sua vasta diversidade cultural e linguística. Com mais de 20 línguas bantu faladas em todo o território, o país é um verdadeiro mosaico de identidades, tradições e expressões culturais. Esta riqueza, no entanto, enfrenta o risco de ser ofuscada ou simplificada, num mundo cada vez mais dominado por referências globais e linguagens universais.

 

3.1. Diversidade linguística como espelho cultural

As línguas locais — como nyungwe, changana, macua, sena, ronga, entre outras — não são apenas veículos de comunicação, mas sistemas de conhecimento profundamente ligados ao modo de vida das suas comunidades. Estas línguas transportam expressões idiomáticas, provérbios, mitos, fórmulas rituais e maneiras específicas de interpretar a realidade, que dificilmente encontram tradução directa para o português.

A oralidade, por exemplo, é uma componente central da tradição moçambicana. Contadores de histórias (griots), provérbios e narrativas ancestrais desempenham um papel fundamental na transmissão intergeracional de valores, ética e sabedoria. No entanto, a hegemonia do português nas escolas e nos media tem enfraquecido esta prática.

 

3.2. Expressões culturais tradicionais

Entre as manifestações culturais mais emblemáticas de Moçambique, destacam-se:

 

A Timbila dos Chopi (província de Inhambane), um instrumento musical de percussão e melodia usado em orquestras, inscrito na lista do Património Cultural

Imaterial da Humanidade da UNESCO.

O Mapiko, dança tradicional do povo makonde (norte), que combina teatro, música e máscaras esculpidas, utilizada em cerimónias de iniciação masculina.

O Gule Wankulu, praticado por comunidades chewa, é uma dança secreta com fortes significados espirituais e sociais.

Festas tradicionais locais, como o Ngoma e rituais de iniciação Mapiko, que marcam momentos importantes do ciclo da vida e da comunidade.

Estas expressões são portadoras de uma estética própria, com vestuários, ritmos, instrumentos e linguagens corporais profundamente enraizados nas tradições locais.

Contudo, a sua visibilidade tem sido cada vez mais reduzida, nos espaços públicos, sobretudo nos media, que tendem a privilegiar conteúdos urbanos e globalizados.

 

3.3. A tensão entre tradição e modernidade

Nas zonas urbanas, especialmente em Maputo, Beira e Nampula, muitos jovens moçambicanos estão mais expostos à cultura global — desde a música pop até às redes sociais — do que às suas próprias tradições. Esta tensão cria um desafio identitário: como ser moderno sem abandonar as raízes?

Ao mesmo tempo, há movimentos que procuram revalorizar a cultura local, nomeadamente por meio da moda africana, da música tradicional reinventada (como a marrabenta, o pandza e o afro-jazz), e da valorização de línguas nacionais no rap e no spoken word.

 

  1. A Influência da Globalização

A globalização tem trazido benefícios inegáveis, como o acesso a tecnologias, circulação de informação e intercâmbio cultural. No entanto, esse fenómeno também tem contribuído para uma homogeneização cultural, que ameaça a expressão das identidades locais.

 

4.1. A linguística como ferramenta crítica

A linguística oferece instrumentos valiosos para analisar estas transformações. Quando se observa, por exemplo, a substituição das línguas locais por português ou inglês em ambientes informais, digitais e até mesmo profissionais, não se trata apenas de uma escolha funcional — trata-se, também, de um fenómeno simbólico que revela um reposicionamento identitário.

A presença (ou ausência) de uma língua em determinados domínios — televisão, educação, publicidade — revela que línguas não são neutras: são marcadores de poder, prestígio e identidade. Assim, o desuso de línguas moçambicanas em contextos públicos contribui para a sua desvalorização cultural.

 

  1. A Televisão e os Meios de Comunicação em Moçambique

A televisão desempenha um papel central na formação do imaginário colectivo moçambicano. No entanto, observa-se uma predominância de conteúdos inspirados em modelos estrangeiros, o que limita a visibilidade das expressões culturais locais e das línguas nacionais. Embora existam esforços pontuais para promover conteúdos enraizados na cultura moçambicana, estes ainda são esporádicos. A criação de políticas consistentes que valorizem as línguas e tradições nacionais nos media é essencial para uma representação mais inclusiva da identidade moçambicana.

 

5.2 Iniciativas pontuais e desafios estruturais

É importante reconhecer que existem iniciativas pontuais que tentam reverter esta tendência. Programas como Ngoma Moçambique ou concursos culturais escolares têm tentado incluir conteúdos tradicionais. Faltam, porém, políticas culturais e linguísticas coerentes, que incentivem de forma sistemática a produção e difusão de conteúdos culturalmente enraizados.

Outro desafio é a formação dos profissionais de media. Muitos jornalistas, produtores e apresentadores foram formados em ambientes urbanos e académicos que privilegiam o português e os modelos eurocêntricos, dificultando uma valorização autêntica do que é local.

 

  1. Caminhos para a Revalorização Cultural: Recuperar o que é Tipicamente Moçambicano

A revalorização da cultura moçambicana não pode ser apenas simbólica — deve ser concreta, estratégica e sistemática. Implica reconhecer, proteger e promover o que é genuinamente moçambicano, tanto nas artes, na música e no vestuário, como na linguagem, nos comportamentos e nas formas de expressão digital.

 

6.1 Reconhecer o que é “tipicamente moçambicano”

A identidade cultural moçambicana é marcada por: Pluralidade étnica e linguística: uma convivência rica entre línguas bantu e o português.

Oralidade e narrativa: o uso de provérbios, contos e histórias como instrumentos educativos.

Expressões idiomáticas: caracterizadas pelo uso criativo de onomatopeias e expressões que reproduzem elementos sonoros da natureza ou do quotidiano, conferindo à linguagem uma dimensão expressiva única.

Estética local: tecidos de capulana, penteados tradicionais, instrumentos como a timbila ou o mbira.

Rituais comunitários: cerimónias de iniciação, festas de colheita, rituais espirituais.

Humor e expressão corporal: formas de estar muito próprias, com expressão facial

e linguagem gestual rica.

Estes elementos, porém, raramente são visíveis nos conteúdos digitais e televisivos actuais.

 

6.2 Influência digital e o fenómeno da “brasileirização”

 

Nos últimos anos, tornou-se comum ver influenciadores moçambicanos — sobretudo jovens — adoptarem sotaques, gírias e expressões brasileiras, principalmente nas redes sociais como Facebook, YouTube, TikTok e Instagram. Palavras como “galera”, “tipo assim”, “cara”, “né” ou construções tipicamente cariocas aparecem com frequência. Este fenómeno revela não apenas o poder da cultura brasileira, mas também uma lacuna na construção de um discurso identitário moçambicano moderno.

Essa “brasileirização” pode parecer inofensiva, mas levanta questões sérias:

Por que razão jovens moçambicanos sentem que, para serem ouvidos, precisam parecer-se com brasileiros?

O que falta no espaço público e mediático moçambicano para tornar o falar e o ser

moçambicano algo atractivo e valorizado?

 

6.3 Propostas de acção para reverter a tendência

  1. Educação bilíngue de qualidade: promover o ensino em línguas locais no ensino primário e conteúdo multimídia em várias línguas nacionais.
  2. Criação de conteúdos digitais moçambicanos: investir em criadores de conteúdo que valorizem o sotaque, o humor, as referências culturais e linguísticas locais.
  3. Campanhas de valorização cultural: incentivar figuras públicas a usarem trajes, música e línguas tradicionais com orgulho.
  4. Quotas culturais nos media: obrigar canais televisivos e rádios a reservar uma percentagem de espaço para cultura moçambicana autêntica.
  5. Financiamento à produção cultural local: apoiar cineastas, músicos, estilistas e escritores que trabalhem com temas, línguas e estéticas moçambicanas.

 

6.4 O papel das universidades e instituições culturais

As instituições de ensino superior e centros culturais devem liderar este processo de revalorização, produzindo investigação, organizando festivais, publicando em línguas nacionais e formando profissionais capazes de integrar a cultura moçambicana nas novas tecnologias e tendências globais.

 

  1. Conclusão

Moçambique é, cultural e linguisticamente, um país extraordinariamente rico. No entanto, essa diversidade encontra-se hoje ameaçada por dinâmicas de globalização que impõem modelos culturais e linguísticos externos, frequentemente assimilados de forma acrítica. A televisão, as redes sociais e os influenciadores digitais tornaram-se vetores poderosos dessa influência, muitas vezes em detrimento da valorização do que é genuinamente moçambicano.

Contudo, a resistência cultural está longe de ser inexistente. Há artistas, educadores, comunidades e criadores de conteúdo que têm vindo a reinventar a tradição em moldes contemporâneos — seja através da música, da moda, da literatura, da pintura ou das redes sociais. Iniciativas de educação bilíngue, festivais culturais locais, o uso de línguas nacionais em projectos artísticos urbanos e o crescimento de plataformas digitais moçambicanas revelam que há caminhos possíveis, reais e já em curso.

Através da linguística — especialmente da linguística antropológica e da sociolinguística — compreendemos que a língua é mais do que um código: é um espelho da cultura, um marcador de identidade, e um campo de disputa simbólica. Quando os jovens valorizam as suas línguas e modos de ser, estão também a construir um futuro culturalmente soberano.

Para consolidar esta tendência positiva, é necessário um esforço colectivo: políticas

públicas consistentes, investimento na produção cultural nacional, e, sobretudo, uma mudança de mentalidade que valorize o que é “nosso” como sendo moderno, criativo e relevante.

A cultura moçambicana não precisa de competir com o mundo — ela já faz parte dele. O que precisa é de se afirmar nele, com confiança, inovação e autenticidade.

 

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Na gíria popular moçambicana, há uma expressão amplamente utilizada para afirmar que, sem esforço, não há sustento: “Quem não trabalha, não manduca”. Trata-se de uma frase carregada de um significado profundo, que exclui os preguiçosos do direito à alimentação. Esta máxima remete-nos a discursos dos antepassados do território de Mussampili, onde se proclamava com firmeza: “Não há lugar para os preguiçosos”. 

Naquele tempo, o trabalho era visto como o alicerce da evolução. Vale lembrar trechos emblemáticos desses discursos: “Vamos ser implacáveis com os indisciplinados, os incompetentes, os preguiçosos, os negligentes, os corruptos, os que praticam o burocratismo, os que cultivam a inércia, os que se acomodam à rotina, os que desprezam o povo, os que esbanjam os bens do povo”. 

Com o passar do tempo, no entanto, surgiu uma sociedade sustentada pelo bajulismo e pela adulação. Uma sociedade em que vicejam a fofoca, a intriga e, por vezes, a incompetência de certos indivíduos que, ao que se dizia, se apoderaram de tudo quanto era necessário para o progresso comum. 

Desde o início, percebeu-se tratar-se de um verdadeiro espectáculo de sombras, dançando ao som de uma ilusão colectiva. Vestindo a máscara da sabedoria, encenavam erudição, simulavam grandeza. Mas, nos bastidores, reinava um imenso vazio. Fingiam ser uma sociedade instruída, repleta de mentes brilhantes, quando, na verdade, apenas representavam o conhecimento. E o mais grave: fingiam não perceber que estavam à deriva.

Infelizmente, viviam como abelhas — apenas sobrevivia quem fosse o primeiro a poisar na colmeia. Um mel, por vezes doce, por vezes amargamente indigesto. E a colmeia? Ninguém antes se preocupara em protegê-la ou em garantir a partilha justa do seu néctar. 

Será mesmo que vamos continuar a viver assim? Nkani mim…

Neste chamado ao trabalho, não há lugar nem canto para bajulação ou adulação. Preocupa-nos, sim, o facto de que muitos, durante anos, se fizeram passar por estafetas da bajulação, lambendo até as marraspas…

 

Estimad@s!

Ao celebrarmos hoje, 22 de Junho, o Dia Nacional do Geólogo, partilho esta breve reflexão sobre o que poderá significar fazer geologia no futuro.

Se, por um lado, os recursos minerais “fáceis de descobrir e explorar” se vão tornando escassos para uma população mundial crescente e fortemente dependente desses recursos, por outro, somos desafiados a acelerar o passo com que analisamos as incertezas associadas às nossas actividades de pesquisa, numa área de capital intensivo que enfrenta dois principais obstáculos:

  1. a) os desafios associados à transição energética;
  2. b) os desafios associados à mobilização de investimentos para a concretização de projectos de pesquisa.

Apesar desta realidade desafiante, o factor humano e o crescimento exponencial da Inteligência Artificial (IA — sigla inglesa: AI) parecem estar a nosso favor, na medida em que a sua aplicação combinada contribui significativamente para uma abordagem que minimiza os riscos associados às actividades de pesquisa geológica. Para responder a esta realidade, somos chamados a adoptar o conceito de geólogo “híbrido”. A realidade actual mostra-nos que já não basta fazer geologia: é necessário acrescentar duas dimensões. A primeira está ligada à programação; a segunda, ao pensamento estratégico, que pode, ou não, estar relacionado com a primeira. O motor desta visão reside na necessidade de dar uma resposta atempada aos desafios energéticos globais e às alterações climáticas, o que exige um pensamento integrado e interligado, promovendo uma visão flexível para os profissionais do futuro.

É importante ter sempre presente que “a Inteligência Artificial ainda comete erros, cria soluções incompletas e, muitas vezes, reproduz padrões limitados pelos dados que recebe”. É precisamente aqui que a sensibilidade humana e o pensamento crítico se tornam fundamentais. Num momento em que o mundo avança numa corrida desenfreada pelos minerais do futuro, com o olhar virado para a transição e eficiência energéticas, os profissionais “híbridos” das geociências farão a diferença: um especialista em GIS com domínio de programação, um geofísico com inclinação para o desenvolvimento de algoritmos de processamento, um geólogo com bases sólidas em desenvolvimento estratégico.

Porque  no futuro da geologia, a integração entre o conhecimento técnico, visão crítica e inovação será não apenas desejável. Será indispensável.

 

De que será que aquele senhor se está a rir?

Será que é por eu ser negra? Está a praticar racismo contra mim?

Fiz-me este inquérito mental, não porque me importe com racismo verbal. A mamã ensinou-me a ser “mais eu”, não ofendendo nem humilhando o outro. Ensinou-me a  conhecer o meu papel e lugar no mundo, e que todos somos importantes.

Porém, o senhor não parava de rir. Já parecia gargalhada de sarcasmo. Por pouco me esqueci da lição da mamã. É que ele já me estava a irritar. Quase me aproximei dele, mas contive-me. Depois, quase voltei a explodir, porque a senhora que estava com aquele senhor perto da velhice, de muletas, estava a esticar os lábios juntos com ele, uma sintonia de dar inveja até ao falecido Beethoven.

Afinal, o que se passa aqui?

Como vou saber? Ninguém fala inglês aqui. Só estão a apontar-me enquanto mostram os dentes já “amarelecidos” pela vida.

Santa paciência da lição da mamã!

Eh! Agora já estão a ir ter com outro senhor, não, um jovem de farda preta – deve ser o “cinzentinho” da China. Desvio o olhar para disfarçar, mas sei que o assunto sou eu. Só espero que não seja no tom “aquela preta escura o que faz de frente do Xinjiang Kanlun Hotel? Tirem-na dali”.

De qualquer forma, estava pronta para me defender. Sou jornalista e sou importante no meu país e no mundo. Sei que sou. Enquanto eu pensava, eles começaram a dar passos em minha direcção. Fraquejei, já não tinha tanta coragem, sou um peixe fora d’água, afinal é o país deles, mas ninguém iria saber que transpirei um pouco.

Ergui os ombros e endireitei a postura, pronta para tudo, mostrar o cartão do hotel e certificar que estou na área VIP e só saí para apreciar a rua depois de dois dias aquartelada na suíte. Os dois quase velhos continuavam a sorrir.

Mais perto, começaram a falar mandarim tradicional, uma língua que não nos ia permitir  conversar. No entanto, estavam calmos. O suposto polícia não tinha tom de autoridade de quem vai prender ou repreender alguém.

Afinal, o que eles querem? Tomei emprestada a famosa frase.

Ouvi de raspão um “biurifull”. Será? E, de novo, ouvi um “piktchure”…

Ah! Afinal, só queriam uma foto. Com a responsabilidade de quem carrega um continente, consenti e foram quatro fotos no seu e no meu telemóvel. O fotógrafo foi um chinês a quem a vida roubou parte do braço e toda a mão esquerda. Usou a direita, apoiou os telefones, um de cada vez, ao que lhe sobrava do outro braço e com o inteiro manejou os aparelhos, ficou de pé e agachou-se. Fez as melhores fotografias do mundo. Como eu, ele também conhece o seu lugar no mundo e não deixa que nada, nem ninguém o intimide por ter um braço a menos.

Naquela cidade, muitos chineses, quase todos, não falam inglês, mas falam sorrisos. Talvez não seja o dinheiro que fala todas línguas, mas o sorriso.

Na China, descobri que o idioma oficial não é exactamente o mandarim. Tampouco o inglês. É o sorriso.

A China pode não falar inglês, mas comunica com algo mais poderoso: empatia. Ali, a conexão não passa pelo idioma, mas pelo desejo genuíno de entender e acolher. No fim das contas, aprendi: há lugares onde o coração traduz melhor que qualquer aplicação. E a China é um deles.

Regina Ernesto, Xinjiang, China 2025.

Por Sara Laisse & Lucílio Manjate

 

A celebração dos vinte anos de carreira de Sangare Okapi ficará marcada pela reedição dos seus dois primeiros livros, que resultou na obra Poemas de Revisitação do corpo Seguido de Apoteose do Nada (2025). E, fará sentido celebrar estes 20 anos do poeta do Bairro do Aeroporto também com uma brevíssima incursão às obras publicadas em 2011 e 2018, Mafonematográfico Também Círculo Abstracto e Os Poros da Concha, respectivamente. 

Uma das marcas da poesia de Sangare Okapi é a sua diversidade formal e temática. Do ponto de vista formal, e pela novidade que, de uma forma geral, representa na literatura moçambicana, importa destacar a sua incursão pela poesia experimental (poesia experimental para os portugueses e poesia concreta para os brasileiros), por ser um dos poucos casos de escritores moçambicanos a explorar os aspectos grafemáticos da linguagem verbal, de onde resulta a natureza icónica dessa poesia. Referimo-nos à poesia visual como uma das manifestações do experimentalismo. Outro poeta da sua geração que explora este tipo de poesia é Dinis Muhai, que publicou Rascunhos para uma comunicação improvável (AEMO, 2008). Sangare Okapi e Dinis Muhai foram colaboradores da revista literária Oásis – Jovens pela Literatura.

A poesia visual e a poesia concreta 

A poesia visual apela a um olhar atento ao que é dito ou sugerido, de modo a aferir o seu sentido, a sua representação e construir o seu significado, a sua interpretação. Ela tem, comumente, sido grafada por imagens ou por caligramas. Sangare fá-lo em formato de caligramas: as palavras propagam-se na folha em branco, sugerindo que o leitor construa uma imagem desse mapa e associe essa imagem com os sentidos e significados das palavras que a compõem. A este tipo de poesia se designa, de forma mais específica, poesia concreta, que é uma variação da poesia visual. Mais do que ser escutada ou ouvida, a poesia concreta deve ser vista. Mafonematográfico […], livro publicado em 2011, é, sob este ponto de vista, um exemplo paradigmático:

Como se depreende, a poesia concreta exige que o seu autor realize um jogo de palavras que recorda um exercício de carpintaria. Neste sentido, é sugestivo o aviso colocado no pórtico da obra, onde se diz o seguinte: “ninguém sabe, mas ali sua-se”. Isso alerta-nos, de facto, para o trabalho oficinal representado pelo concretismo. No poema da página 25, essa oficina sugere que os caracteres do texto se esvoaçam ou se propagam, recordando o vento aludido. Leia-se, ainda, o poema da página 36, que se referindo ao mar e a barcos, parte dele está representado em formato de uma onda. Vejam-se ainda os poemas da página 38 e 39.

Por outro lado, do ponto de vista temático, destaque-se que grande parte do trabalho de Sangare Okapi é caracterizada pelo tratamento das seguintes questões: a memória e a metapoesia, o vazio, o absurdo, o erotismo. Ao celebrarmos os seus 20 anos de produção poética, decidimos aflorar sobretudo as suas manifestações temáticas, por serem estas as que, de forma simbólica, remeteram e remeterão os seus leitores para as questões existenciais, num mundo de “declarada” falência de utopias individuais e colectivas.

A memória (literária) moçambicana 

Mais do que serem textos pejados de simbolismo, os poemas de Sangare homenageiam, muitas das vezes, os seus gurus literários: José Craveirinha, Luís Carlos Patraquim, Filimone Meigos, Eduardo White, Rui Knopfli, Francisco Guita Jr., Heliodoro Baptista, Gulamo Khan, entre outros. Aliás, a poesia de Sangare é dos poucos exemplos moçambicanos que não disfarça uma espécie de compromisso em estabelecer um diálogo obsessivo com a memória literária moçambicana, como se pode ler no poema “Patraquimmiana” (p. 41), onde se ouvem, fundidas na sua voz, as vozes de Craveirinha e Patraquim (mas também a de Fonseca Amaral, entre outras menos explícitas). Neste sentido, a sua obra consegue ser esteticamente engajada no fortalecimento e consolidação de uma imagem de moçambicanidade literária.

Patraquimmiana

Para J.C

“Longe embora cidade paráclita

a língua se nos cola ao céu da boca

se vier o olvido.”

Fonseca Amaral. Exílio.

 

Não sei com que estranha miragem. Confesso.

Meu lírico cartomante das noitadas pela Mafalala!

Sim, agora que o medo já não puxa lustro na cidade. Velho Zé,

livre e limpo da morte, regressas pelos carris da memória,

mãos aninhadas nos bolsos rotos. A mesma cartola preta,

amarrada ao vento e um pássaro que já não cabe no verso

preso no nembo da língua, desmentem o teu estatuto

de cidadão do futuro e regressas, velho Zé!

Nenhuma epopeia trazida dos escombros se levanta do rosto,

nenhuma elegia brota do coração, nenhuma!

E regressas, velho Zé, poeta em todas as latitudes!…

                                                                                                              (p. 41)

A metapoesia

A poesia de Sangare é alegoricamente autorreflexiva: o poeta ou a poesia, através de uma associação com outras “realidades” pensa, questiona a sua própria natureza. A linguagem, para além de ser o campo da manifestação de sentimentos, emoções e ideias de um mundo que é interiorizado, transforma-se num processo de busca dos seus próprios fundamentos estéticos, do processo de transformação dos materiais da língua em arte. Simbolicamente, não deixa de ser, este exercício, um desafio que se propõe ao leitor, no sentido de buscar, ele também enquanto produto de diversas linguagens, enquanto matéria que é linguagem, a sua própria idiossincrasia. Leiam-se ainda sobre esta questão, nesta antologia, os poemas das páginas 26, e 29.

Transpiro nos dedos

        simples materiais

                           de carne

para a navegação

 

Mar     azul,

branco é o papel

sem a margem

do teu busto

 

Lanço as redes,

que são as letras,

no arremesso

do papel a cabeceira

                         começo.

 

Transporto outro poema

para o oriente do corpo.

                                        (p. 20)

 

O absurdo

A estética do absurdo, na óptica dos teóricos Carlos Ceia e Harry Shaw, aborda ou questiona o sentido da existência, ignora ou deforma as suas convenções tradicionais, revela o contra-senso, o incoerente, a inversão da lógica, do que resulta, muitas vezes, a representação da solidão e do isolamento. 

Azar! Azar é ter mil asas por vocação e não possuir uma para voar.

                                                                                                           (p. 75)

Quantas distopias caberão neste poema? Num ano em que países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe celebram os seus 50 anos de Interdependência, quantas evocações podem ser feitas, a partir dessas asas que não voam, para reparar os absurdos das nossas Histórias nacionais? Para compreender esta temática na presente antologia, podem ser lidos também os poemas às páginas 28, 34, 37.

O vazio

Wolfgang Iser advoga que a estética do vazio consisti no preenchimento, pelo leitor, de espaços em branco constantes de uma obra literária. Neste sentido, a obra se realiza no processo de leitura e em função da enciclopédia do leitor. Isto é passível de ser verificado na leitura de qualquer texto. Grande parte da obra de Sangare Okapi carece desse preenchimento de espaços, através do reconhecimento de algumas palavras que recordem um determinado contexto social, histórico ou cultural. A este propósito, em Mafonematográfico […] (p. 24), o poeta faz referência a “cinco elefantes africanos”, com recurso às iniciais dos seus nomes, a saber: EM, MC, JC, LH, UK. Estas entidades são caracterizadas como os “big five”. Conhecendo o contexto de escrita de Sangare, essas iniciais são reconstituíveis em Eduardo Mondlane, Mia Couto, José Craveirinha, Lindo Hlongo e Ungulani Ba ka Khosa. Pensando no que seriam os “big five” da História e da Cultura de Moçambique é que se descodifica os nomes e se preenchem os vazios da dedicatória e, por extensão, do que o livro vai sugerir. Entretanto, num contexto diferente (de quem desconheça esses “big five”), apenas entenderia a colagem de letras como manifestações do concretismo já referido anteriormente. Um outro exemplo desse deste tipo de vazio pode ser encontrado no poema da página 38.

Entretanto, de acordo com Carlos Ceia, a noção do vazio é extensível ao conteúdo do não ser, o que nos reenvia para questões e dilemas existenciais. São, portanto, duas componentes que podem caracterizar a compreensão do vazio literário. Quanto ao não ser, veja-se o exemplo seguinte:

Repara: a minha casa é um deserto certo e aberto. Tenho as portas por comportas e os braços em jeito de crucifixo que neles gostava que as mais humildes aves pousassem com todas as flores na boca. Eu, que sou vazio e singular sobre a pedra angular do destino. Como não? Mal me nasce uma garça na garganta pela aurora toda a desgraça sou: definitivamente, antes vale um Deus no verso que no Universo.

                                                                                                                                                  (p. 59)

Como expressão também do absurdo que reenvia para a solidão ou para o isolamento, o vazio em Sangare Okapi se manifesta sobretudo nas suas primeiras obras, a saber: Inventário de angústias ou apoteose do nada (2005) e Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo (2007). Leiam-se também os poemas das páginas 19, 23, 30.

 

A sensualidade

Na poesia de Sangare, os alertas para a abordagem do erotismo vêm desde a sua primeira obra, como se pode verificar no exemplo seguinte:

Amêijoa minha nocturna

tua é a cápsula aberta,

como na flor apta a corola

para a acepção do pólen.

                                                     (p. 11)

 

Há, entretanto, uma viragem para uma sensualidade mais acutilante, no livro Os Poros da Concha (alusão à uma concha já perfurada, portanto, nem tanto fechada). O livro é cheio de enigmas que carecem de conhecimento advindo da área cultural, para o descortinar. Logo desde o início, somos avisados, a partir dos paratextos, que a temática abordada é referente a representações do corpo. 

A abordagem desse tema é realizada de modo contido, mesmo em casos nos quais o léxico remeta directamente ao objecto representado. Enfim, trata-se de uma obra hermética.

No Ronga, língua do sul de Moçambique, a concha é designada, em linguagem corrente, por mbatsana. Em sentido figurado, a mesma palavra é utilizada para designar a vulva. Desse modo, para quem possa transitar entre o Português e o Ronga, constata, logo a partir da capa, a menção ao referido tema. O poema da página 53 desse livro é gritante para a explicação do título do livro. Daúde Amade, escritor moçambicano, faz, também, uma leitura na mesma linha, ao referir que Os Poros da Concha remetem às “aberturas do feminino”. Diz o poema:

 

jamais retornarás estes ínvios atalhos

como um notívago tropeçando o sonho

pois há no teu corpo um casulo com olhos

velando irremediavelmente em ti o canhu

 

chama-se casa e com ela uma vela piscando

                                                                                (p. 53)

O canhu é, na verdade, um fruto afrodisíaco. Esse fruto e a vela, referidos no poema, caracterizam, por extrapolação, dentro da cultura ronga, a viscosidade e a protuberância, respectivamente, susceptíveis de serem encontradas no interior da vulva. Os restantes poemas, alguns dos quais envoltos em jogos de palavras, são todos eróticos. Vejam-se, entre outros, os poemas das páginas 16, 17, 18, 20, 48.

Finalmente, cultivando a sensualidade, o vazio, o absurdo, a metapoesia, a memória ou o concretismo, a poesia de Sangare Okapi é eminentemente sonora. Isto significa que o poeta não dispensa o laborioso trabalho com a língua. A palavra é a chave mestra com que Sangare abre em nós universos de experiências individuais e colectivas.

Antes estar só era casual. Agora estar só é um ritual.

                                                                                             (p. 66)

É isto, e muito mais que fica por dizer, que faz de Sangare Okapi um poeta cuja preocupação com o simbólico é tutelar. Está de parabéns o poeta.

No passado dia 10 de junho, celebrou-se o primeiro Dia Internacional do Diálogo entre Civilizações das Nações Unidas. Em 15 de março de 2023, Xi Jinping, Secretário-Geral do Comité Central do Partido Comunista da China (PCCh) e Presidente da República Popular da China (RPC), apresentou a Iniciativa para a Civilização Global pela primeira vez ao mundo. Em 2024, com base na proposta de 83 países, a 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas adotou por unânime a designação de 10 de junho como o Dia Internacional do Diálogo entre Civilizações.

Em 10 de Junho, por ocasião do primeiro Dia Internacional do Diálogo entre Civilizações, S.E. Wang Yi, membro do Birô Político do Comité Central do PCCh e Ministro dos Negócios Estrangeiros da China proferiu um discurso salientou que, enfrentando o grande impato provocado pelas grandes mudanças nunca vistas em um século, o valor da civilização nunca foi tão proeminente. A interação entre as civilizações é crucial e o diálogo entre as civilizações é oportuno. O diálogo entre civilizações é um laço de paz, uma força motriz para o desenvolvimento e uma ponte de amizade. A China propôs que cada país deve ser um defensor da igualdade das civilizações, respeitando o caminho de desenvolvimento e o sistema social escolhidos de forma independente pelos povos de todos os países. Deve ser um praticante dos intercâmbios civilizacionais, reforçando os intercâmbios e a aprendizagem mútua e absorvendo sabedoria para resolver as questões globais através do diálogo civilizacional. Deve ser um promotor do progresso das civilizações, construindo uma comunidade com o futuro compartilhado que engloba diferentes civilizações.

O diálogo entre civilizações é um requisito inelutável para consolidar a confiança mútua política China—Moçambique.

No mundo atual, os múltiplos desafios e crises estão interligados e sobrepõem-se, a economia mundial está a lutar para recuperar, o fosso de desenvolvimento tem aumentado e a mentalidade da guerra fria está em prevalência. A sociedade humana encontra mais uma vez na encruzilhada da história. O Secretário-Geral Xi Jinping salientou que, numa altura em que o futuro e o destino de todos os países estão intimamente ligados, a coexistência inclusiva de diferentes civilizações, bem como os intercâmbios e a aprendizagem mútua, desempenha um papel insubstituível na promoção da modernização da sociedade humana e da prosperidade do jardim civilizado do mundo. Através do diálogo das civilizações, a China e Moçambique podem continuar a construir os alicerces da confiança mútua, apoiar-se mutuamente nas questões relacionadas com os interesses fundamentais de cada um, opor-se ao unilateralismo e aos atos hegemónicos, salvaguardando conjuntamente os direitos e interesses legítimos do Sul Global.

O diálogo entre civilizações é uma via inevitável para aprofundar a cooperação pragmática China—Moçambique.

O diálogo entre civilizações é um pré-requisito e uma força motriz para o desenvolvimento. A antiga Rota da Seda testemunhou os intercâmbios e a aprendizagem recíproca entre as duas grandes civilizações da China e de África. Hoje em dia, a construção de alta qualidade da “Cinturão e Rota” tornou-se num novo elo para promover intercâmbios amigáveis entre a China e Moçambique. A apreciação mútua entre as civilizações chinesa e moçambicana promoveu os frutos da cooperação pragmática China-Moçambique. A China tornou-se atualmente o segundo maior parceiro comercial, a segunda maior fonte de importações e o segundo maior destino de exportações de Moçambique. Durante a Cimeira de Beijing do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), no ano passado, a China anunciou tratamento tarifa zero a 100 por cento dos produtos moçambicanos exportados para a China, o que promoverá vigorosamente o desenvolvimento socio-económico de Moçambique e beneficiará efetivamente os povos dos dois países. Além disso, uma série de infraestruturas emblemáticas de assistência chinesa, tal como o Centro Cultural Moçambique-China, simboliza a apreciação mútua das civilizações entre a China e Moçambique e da amizade eterna dos dois países.

O diálogo entre civilizações é uma forma necessária para intensificar o entendimento dos povos China—Moçambique. Com a compreensão interpessoal, os povos podem expressar as suas opiniões e ser beneficiados. A ligação entre corações do povos contituem o canal mais básico, sólido e duradouro para o desenvolvimento sustentável da parceria de cooperação estratégica global entre os dois países. Já há mais de 600 anos, o navegador Zheng He realizou sete expedições marítimas de longa distância, tendo chegado até à atual Província de Sofala, em Moçambique, o que abriu o prefácio dos intercâmbios interpessoais entre a China e Moçambique. Desde o século XIX, o primeiro grupo dos chinesas embarcou na Ilha de Moçambique como trabalhadores, têm-se integrado na sociedade local, contribuindo para o desenvolvimento socio-económico de Moçambique. O ano corrente marca o 80º aniversário da vitória na guerra mundial antifascista. A amizade entre os povos da China e de Moçambique foi forjada na luta contra o imperialismo e o colonialismo e pela libertação política de Moçambique, tem sido consolidada no processo de construção dos respetivos países, e será certamente aprofundada na coexistência inclusiva e aprendizagem mútua entre as civilizações da China e de Moçambique.

Todo o passado é um prelúdio do futuro promissor. A China está disposta a aproveitar o primeiro Dia Internacional do Diálogo entre Civilizações e o 50º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas entre China-Moçambique como uma oportunidade para trabalhar com a parte moçambicana no sentido de reforçar os intercâmbios e as cooperações interpessoais, bem como construir uma rede de diálogo entre civilizações China-Moçambique, fazendo com que o diálogo das civilizações se torne numa ponte para reforçar a amizade China-Moçambique, e que as flores das civilizações sino-moçambicanas floresçam no jardim das civilizações mundiais.

Os temas sobre a nossa África estiveram sempre no centro das elucubrações, umas estreitamente numa perspectiva filosófica, outras de carácter mais socioantropológico. Maio é o mês de África e sempre vale a pena pensar na nossa querida casa, no nosso berço. É difícil estabelecer fronteiras disciplinares quando o pensamento está engajado por uma reflexão histórica da nossa liberdade.

Como diz o Professor Severino Ngoenha, na sua obra Pensamento Engajado, nós africanos entramos na dita história universal como escravos, colonizados e em fim como objectos e não sujeitos e fazedores da nossa história.

Celebramos este ano o sexagésimo segundo aniversário da Organização da Unidade Africana (OUA) e o vigésimo terceiro aniversário da União africana (UA); esta organização foi criada com o objectivo de lutar contra o colonialismo e neocolonialismo, promover a unidade, solidariedade e cooperação entre os Estados africanos, bem como defender a soberania e a integridade territorial do continente.

É importante mantermos a memória e a celebração em torno de nomes mais importantes que se destacaram nas duras lutas revolucionárias em diversos países africanos como Samora Machel, Nelson Mandela, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, Léopold Sédar Senghor, Agostinho Neto, Steve Biko, Cheikh Anta  Diop. 

Conquistadas as independências, o que justifica os anos de escuridão em que nos encontramos metidos como africanos, anos que não nos unem e nem facilitam o nosso entendimento mesmo usando o mesmo idioma e linguagem; o que justifica hoje pegarmos em armas e entrarmos nas “matas” largando o doce sabor das independências e fazendo alianças estranhas?

Hoje temos uma nova vaga a chegar às terras africanas em busca de recursos supostamente descobertos ou redescobertos no solo e subsolo dos países do continente africano: minerais, pedras preciosas, gás liquefeito, carvão, plantas medicinais (Castiano). Na verdade, trata-se de uma nova forma da colonização, de cariz financeiro e capitalista que rompe com as fronteiras físicas dos países que não conhecem a soberania das nações. Sabemos que a África vai tornar-se, em breve, um trecho, um continente trecho, um continente para todos os que querem cá vir alojar-se. 

Somos um continente que viverá uma grande mobilidade interna e externa; se assim quisermos, um continente de grandes migrações internas e externas. Mas para tal a África deve superar as vicissitudes da exclusão e pensar na inclusão, no combate à corrupção, pensar na estabilidade política e social, numa educação de qualidade, na saúde, na agricultura e na liberdade total das instituições políticas.

Quanto mais cedo a criança e o adolescente entram em contacto com o livro, melhor. As poucas escolas públicas (primárias e secundárias) que têm bibliotecas têm livros nas prateleiras? Têm livros de géneros literários? 

Defendo, incansavelmente, a ideia de que privar as crianças, adolescentes e jovens do direito à literatura é também um neocolonialismo. O livro e a refeição não têm diferença na vida de um ser humano. Como é que se pretende moldar jovens pensadores se não se dá a eles esta fundamental ferramentas? (o livro). Sirvo-me das palavras de António Cândido para elucidar esta ideia de que é imperioso que se dê livros às crianças nas escolas e aos jovens para a vida.   

“A literatura é uma necessidade universal, é um complemento da vida, ajuda a compreender melhor o mundo, enriquece a forma de pensar. A literatura melhora muito o ser humano, ensina-o de alguma maneira. Não se pode privar ao Homem do direito de ler, do direito de literatura. A literatura é o próprio Homem, porque transmite toda área de sentimentos, toda área mais humanizada.” 

Talvez eu seja a pessoa  menos indicada para abordar este assunto,  que tal se eu fizesse uma retomar ipis verbis das palavras dos professores: Nataniel Ngomane “Leiam! Leiam tudo”  e Lucílio Manjate “porque só a leitura é que salvará o mundo.” Um individuo que tem a capacidade de ler  interpretar temáticas abordadas e conotadas em obras literárias pode, também, compreender o mundo e tudo quanto nele acontece, até por que: 

“Existe uma outra leitura que não é a dos livros. São as primeiras leituras que fazemos do mundo que nos cerca, quando se reconhece o ambiente em que se vive, os elementos que o compõem, as pessoas com quem convivemos.” (FREIRE, 1994)

Olhando para a crise de obras literárias moçambicanas e de bibliotecas nas escolas públicas, pode se levantar a seguinte questão: se boa parte das nossas escolas estão em condições não boas, não seria um desperdício investir-se na construção e apetrechamento de bibliotecas ao invés de salas e carteiras?  Vou responder de forma objectiva: os sem tecto não têm o direito de se alimentar? 

“Ensino e biblioteca não se excluem, completam-se, uma escola sem biblioteca é um instrumento imperfeito. A biblioteca sem ensino, sem a tentativa de estimular, coordenar e organizar a leitura será um instrumento vago e incerto.” SILVA (1986)

Se não se pode construir bibliotecas para que os alunos possam ler livros, que se entregue livros aos professores, de modo que leiam para e com os seu alunos. Mia Couto disse que “o professor deve ser um contador de histórias”, portanto, ele, o professor, será a biblioteca. Um aluno que cultiva o hábito de leitura, será sempre diferente dos demais, porque segundo ANTUNES (1993), saber ler, gostar de ler, ter o hábito da leitura permite avançar, viver mais, são novos conhecimentos, novas experiências, novos mundos.

Para as poucas escolas que têm as bibliotecas activas, se quiserem formar pensadores, amantes da cultura e identidade moçambicana desde a fase escolar, entreguem os livros (especialmente de literatura moçambicana) às crianças, adolescentes e jovens. Uma geração de não leitores é uma geração falhada.  

São vários os meios de se construir o Homem, um deles, também mais importante, é o livro. A leitura de livros permite que o ser humano ganhe ferramentas para poder ler a vida, tudo e todos que o rodeiam. Porque o livro molda comportamentos, educa. Hão-de ver que o jovem que lê entende mais a vida e o mundo  do que o outro. 

Penso que o professor do ensino primário e secundário é a principal figura neste processo de formação de leitores e aspirantes a entendedores. Em contrapartida, é notória a dificuldade na leitura que os estudantes universitários apresentam logo nos prémios dois anos.  Mas porquê?

 

Bibliografia 

ANTUNES, Walda. (1993). Bibliotecas escolares. Brasília: CORBI.

FREIRE, Paulo. (1994). A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez.

SILVA, Ezequiel. (1986). Leitura e realidade brasileira. Porto Alegre: Mercado aberto.

Nas tardes em que o sol de Maputo parece repousar, cansado, sobre os telhados da nossa envelhecida cidade capital, é impossível não revisitar o quadro que ainda te consagra como um dos mais prestigiados ensaístas da praça – nesse teu jeito sereno de observar Mecanhelas, Quelimane, Moçambique, África e o mundo, como quem mastiga as palavras antes de as oferecer aos outros, já doces e deliciosas  de tanta sabedoria e prazeres de edição.

Escrevo-te, em meio a tantos ruídos e nuances dos tempos, como quem se dirige a um velho companheiro de caminhada, mas não numa caminhada qualquer, nem de destinos indefinidos. A nossa travessia é feita de livros, de ideias, de silêncios cúmplices, de ironias partilhadas nos corredores das universidades e das memórias que se demoram mais do que o tempo consente. Não tenho plena certeza se te quero exaltar ou celebrar; talvez apenas olhar para a nossa história, o nosso percurso, as tuas literaturas, nacionais e africanas, para que não sejam tomadas como obra do acaso ou como descontinuidades, mas sim como o mais grandioso projecto edificado no pós-independência. A literatura tem oferecido personalidade e voz a este país, bem mais do que qualquer outro projecto ou programa.

Agora que caminhas para os 65 anos de travessia pela estrada da vida, emprestei minha memória a algumas lembranças. Um convívio esporádico, sim, mas uma atenção sempre presente. Fui seguindo os teus passos e devaneios. Nesta amizade, curioso, nunca te chamei de Jojó. Evitei reduzir a tua personalidade a metades. O convite que me endereçaste para apresentar o teu livro Leituras Ensaiadas foi uma armadilha, ratoeira com drible de Maradona e remate de Eusébio. Na época, o mote oscilava entre o prazer da edição e a incerteza da leitura. Curioso: passaram-se tantos anos e, se a edição de livros parece não ter mãos a medir, a leitura, por sua vez, deixa tudo a desejar. Convenhamos, regredimos muitos furos. O que parece contar, de fato, são as cerimónias de lançamento de livros. Temos para todos os gostos e feitios. Terminou o debate sobre ser ou não ser, essa crise existencial de Shakespeare.

Um bom presente para te honrar e rememorar os teus 65 anos poderia consistir na selecção dos teus 65 livros e autores preferidos; as obras que moldaram a tua personalidade e a tua aptidão para as literaturas africanas, que são a tua especialidade. Aqueles clássicos que te tocaram fundo no âmago e transformaram os teus ideais e as tuas lutas. A selecção seria uma esplêndida lista para muitos ensaístas e leitores. Então, nesse teu jeito meio sério e muito a brincar, abririam-se as frestas da memória para indagar o que ainda nos atormenta na literatura nacional e, sobretudo, os destinos pelos quais a nossa literatura seguirá nos próximos tempos.

Leituras Ensaiadas pareceria a sentença de um risco calculado: na República das Letras, prevalecia o debate sobre os eleitos e o termómetro da criação literária. Dizias bem que o aparato conceptual erguido precisava incorporar outros espaços universitários que nos surpreendessem com a riqueza dessa miscigenação. Foi precisamente isso que complicou a minha apresentação na época. Abordar esse mosaico cultural, como o definias, com os Bantu, os árabes (ou melhor, os islamizados), e os europeus descendentes de Camões, afigurava-se como diálogo para muitas horas.

A minha apresentação foi atabalhoada e plena de ziguezagues. Ainda bem que, mais tarde, alguém nos recordou que os livros não carecem de apresentações. Carecemos, certamente, de fazer ensaios, sem rodeios, como forma de assegurar a venda do livro. Driblar o mercantilismo livreiro revestido de pele literária.

Nessa época, repetias muitas vezes o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, citando o provérbio: “Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento; mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” Era uma crítica suave à tendência de culpar as consequências de um sistema opressivo, o rio, em vez de analisar as causas que o impõem, ou seja, as margens. Repeti essa frase vezes sem conta, e muitas delas te atribuí a autoria. A honra de ter um amigo inventor de provérbios.

Curioso que continuamos a criticar tantas águas desse mesmo rio, como se ele não tivesse uma localização geográfica, um país inocente e inominado. Eu acrescentava, sempre, ou quase sempre, que o tempo coloca cada rei no seu trono e cada palhaço no seu circo. Para cada um de nós, esta seria a implacável justiça do tempo. Será, amigo Almiro, que andamos equivocados nos resíduos do tempo por tanto tempo?

No lançamento da obra Os Bichos Têm Dono, pior que têm mesmo, quer seja metáfora ou qualquer outra forma de estilo, comovemo-nos com a forma como iniciaste a tua intervenção: “Não vos posso ver, mas sinto cada um de vós no meu coração.” Aquele longo silêncio na sala fez-nos pensar na condição humana. Sabemos que, contigo, não existe fronteira entre ficção e realidade. Essa é a linha descontínua que te foi típica ao longo dos anos.

As tuas palavras provaram, mais uma vez, como és ostensivamente inteligente e, simultaneamente, poeticamente surpreendente e desconcertante. Não deixas de ser aquele colega e amigo provocador e, tanto na oralidade como na escrita, instigas sempre uma boa provocação e, com ela, a reflexão. 

Recordo, com a nitidez que só a amizade sabe devolver, o dia em que me falaste da ideia de O Berlinde com Eusébio Lá Dentro. Eu queria saber da polémica com o Benfica; tu querias falar sobre literatura, como se a polémica não tivesse qualquer impacto nos teus dias e noites. Literatura não gera conflitos. Muito pelo contrário: aproxima povos, pessoas e sonhos.

Seguimos conversando sobre um pedido especial da Isabel Ferrão Tiemroth. Serias a melhor pessoa para regressar ao vale do Zambeze e rever Kalizamimba. Aquele prefácio foi curto e directo. Com mestria e ligeireza exuberante, em estilo romântico, a autora resgata, das marcas do tempo dos prazos da Coroa no século XVIII, os testemunhos de resistência à penetração colonial por parte dos reinos ali estabelecidos, o papel dos Achicunda e sua organização militar. Era uma forma de afirmação da identidade cultural de um povo e de povos que passaram por eloquentes formas de miscigenação e apropriação de identidades culturais significativas.

O berlinde era, então, a segunda parte desse prefácio ao livro da Isabel. Tratava-se das narrativas e dos testemunhos dos últimos anos do tempo colonial e do período pós-independência de Moçambique. Aquilo que havias vivenciado em lugares tão diversos e tão diferentes entre si. Naturalmente, eu tinha todo o interesse em conhecer algumas dessas histórias, pois conheço alguns desses locais, porém, com outras narrativas e memórias. Chinde, Mocubela, Maputo, Mepanhira, Quelimane e Lisboa.

São histórias da nossa geração, que cada um de nós partilha com os mais jovens e com suas famílias. Episódios que evocam o esforço, as angústias e os sonhos dessa reconstrução nacional, tão distante dos ideais do pós-independência. Algumas vicissitudes dos jovens do 8 de Março, essa geração de Samora Machel e Graça Machel, que, com o melhor do seu talento, também ajudou a fazer a revolução, e a abrir caminhos para a educação, a cultura, a economia e, enfim, para um novo país com nova bandeira.

Foi notável, durante a nossa conversa, como tinhas os olhos acesos, como faróis de pesca nocturna, e contavas que, dentro daquele berlinde, “não era de vidro, Jorge, era feito dos tempos que nos abraçam e dos quais também fomos protagonistas”, encerravas pedaços inteiros de uma infância atravessada por soldados, por balas perdidas e por sonhos que cabiam numa caixa de fósforos. Falavas do Eusébio como quem fala de um irmão mais velho, alguém que te inspirou a ser rápido, não com os pés, mas com o pensamento. Vendo bem, nem sequer fomos de tantos futebóis.

Eusébio, esse nome gigante, que foi sementeira em tantos corações africanos, tornou-se, então, em teu livro, não apenas personagem, mas verdadeiro espelho. Convenhamos: um pretexto para contar e recontar Moçambique e suas peripécias; para chorar e rir da infância colonizada; para fazer da escrita uma pá e uma enxada. Enfim, querias muito que eu entendesse que continuas a cultivar memórias como quem lavra o futuro.

A bem da verdade, pelas tuas páginas e livros, sabemos, e somos testemunhas, que continuas exímio e incomparável nessa e noutras descrições. Teus livros têm sido muito do percurso deste país que ainda procura se reencontrar e se afirmar.

Voltemos à história e ao berlinde de Eusébio.

Por isso, quando o Sport Lisboa e Benfica decidiu, com a leveza de uma censura mal disfarçada, proibir a venda do teu livro, perguntei-me: em que berlinde é que o Benfica meteu a cabeça? O autor do livro O Berlinde com Eusébio Lá Dentro foi acusado, pelo grupo de advogados do Benfica, eventualmente por qualquer desinformação, de estar a utilizar indevidamente a imagem de Eusébio na obra. Para a capa do livro, pediste ao fotógrafo que captasse uma imagem do teu filho, de 18 anos, a jogar à bola. Portanto, desde logo, ficou provado que a imagem da capa do livro não era de Eusébio da Silva Ferreira, com quem Almiro jamais privou em vida, mas sim do seu próprio filho.

Os teus berlindes não carregaram apenas Eusébio no seu interior. Foram milhões de sonhos e vidas que se afirmaram e reescreveram as histórias e os limites deste jovem país, com novas narrativas, novas palavras, novos mundos possíveis. Não saberão que o pós-independência não se joga apenas em campos relvados, mas também nas livrarias, nos cafés, nos bairros onde a memória se faz verbo? Como é possível que um clube que foi símbolo de resistência e sonho para tantos dos nossos, agora recuse espaço à literatura que ousa reinterpretar os heróis, os mitos e os silêncios do império?

Neste ano em que comemoramos 50 anos da independência nacional, as tuas crónicas e livros não poderiam ser mais oportunos nem mais necessários. São um libelo contra o esquecimento, contra a desmemória, contra o vexame do alheamento. A tua mais recente colectânea, Memórias Marginais, é uma forma imponente de te posicionares contra a indignidade do desconhecimento e da omissão. Memórias Marginais ou, por outras palavras, o degelo, o estalar do gelo espesso, para quebrar um longuíssimo silêncio de quase cinco décadas. Uma desmemória de uma geração que viveu e testemunhou as aventuras e dilemas, as contradições e obrigatoriedades, o sonho azul vivido por adolescentes que, nalguns casos com apenas 17, 18, 19, 20 anos, assumiram responsabilidades imensas para fazer um país. Um país que, ao destruir o aparelho de Estado colonial, tentava refazer o sonho de Eduardo Mondlane, de Samora Machel e de tantos outros.

Para a história fica o registo: ao partilhar textos escritos de forma simples, sem a pretensão de um critério rigoroso, as experiências dos Oitomarcistas provam, com clareza, que Almiro Lobo não apenas se preocupa em enriquecer a consciência histórica de Moçambique, como rebusca nas consciências dos colegas aquilo que ainda resta de memórias cansadas, e agora aposentadas. Estes são os marcos de um Moçambique feito de rascunhos e reescritas, onde o passado ainda espreita nas esquinas, e o futuro tropeça nos mesmos buracos do ontem.

Almiro Lobo será sempre a casa onde os que vieram antes podem entrar de pés descalços e sentar-se sem cerimónia, porque sabem que ali, na tua escrita, há lugar para todos. Se me pedissem para dizer quem és, eu diria apenas: um jardineiro de memórias. Um homem que soube plantar livros onde antes só havia silêncio. Um amigo que, aos 65 anos, ainda joga berlindes com os miúdos da palavra.

Que este texto não te chegue embrulhado em papel, mas com as metáforas que nos ensinaste a usar e abusar, com o verbo com que os bons escritores embrulham os sentimentos. 

Quando a experiência humana atinge o limiar do inexplicável, a literatura torna-se um instrumento de sobrevivência diante do abismo. “O Epitáfio do Josemar Araújo e outros ateus do criador”, de Ernestino Maute, move-se nesse vértice de tensão, onde a loucura e a morte transcendem a função temática para operar como chaves hermenêuticas do colapso.

Nas entranhas da psique, onde a razão se dissolve e as reverberações do viver soam em ritmos que jamais se encontram, Maute impele o leitor a uma incursão audaciosa, rompendo o formato tradicional de livro de contos e propondo uma experiência literária intensa, na qual o absurdo e o trágico se entrelaçam como resposta à severidade do real. Tal como propôs Albert Camus em “O Mito de Sísifo”, “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo”, e é precisamente nesse encontro que a obra encontra a sua potência, expondo o desalinho entre o desejo e a realidade.

Cada narrativa é atravessada por metáforas de alto teor que abordam temas como fome, guerra, prostituição e o insólito, não como assuntos isolados, mas como sintomas de uma crise ontológica.

No conto que dá o título à obra, o gesto de Josemar, ao tentar registrar um jumento como filho, expõe a impotência das instituições e a tentativa de dar sentido à realidade num cenário de completo desamparo. Passagens, como a mulher que “se contorce em dores de luz” ou o epitáfio “escrito com tinta de óleo num pedaço de madeira”, materializam o sofrimento.

Maute constrói, assim, um espaço narrativo onde o trágico e o absurdo se encontram, configurando uma resistência poética que desafia as explicações satisfatórias. A sua obra confere subjectividades em permanente deslocamento, articulando elementos que moldam a experiência dos personagens e tensionam as normas sociais vigentes.

Em “O Louco Vitalício”, a figura do tio, que “persiste em tecer com palha o tempo”, desloca-se da patologia para uma espécie de lucidez alternativa, que confronta os códigos de normalidade. Aqui, ressoa a afirmação de Michel Foucault em História da Loucura, de que “a loucura, longe de ser uma anomalia, pode ser a resposta mais lúcida ao insuportável”, pois a obra parece reivindicar, através dessa personagem, a capacidade de enxergar o mundo com olhos que recusam a lógica instituída.

Já em “Os Enterros do Meu Pai”, a morte não actua apenas como fim biológico, entretanto como ruptura na continuidade temporal, afectando a percepção do narrador — como sugerem as “lágrimas que ensoparam a Bíblia Sagrada”. A memória aqui não se oferece como registro fiel, no entanto como movimento sinuoso, contaminado pela dor e pela tentativa de reconstrução. Nessa fluidez, Maute explora as zonas nebulosas da consciência, convocando o leitor a escutar o que resiste no íntimo.

Entre os méritos mais marcantes da obra destaca-se a criação de personagens singulares que revelam com agudeza as múltiplas faces da existência. A expressão “Desde que se conhece como pessoa, nunca foi gente…”, encapsula o vazio que habita aqueles que vivem a margem esboçando com lirismo quem nunca teve lugar no mundo.

Embora a escrita do autor evidencie um domínio expressivo notável, por vezes a metáfora parece mais arquitectada do que sentida, emergindo como efeito de estilo dissociado da experiência emocional dos personagens. Essa tensão entre forma e vivência também se manifesta na construção das vozes narrativas, cuja homogeneidade compromete a intensidade e subjectiva que a obra propõe explorar.

Ainda assim, é justamente nesse esforço de empurrar os limites da linguagem e de tensionar as convenções do enredo que o autor contribui para um exercício literário ousado e instigante no panorama moçambicano.

No fim, o que a obra de Ernestino Maute recorda é que a literatura não apaga o abismo, entretanto, mostra que é possível habitá-lo sem perder a consciência. E, talvez por isso, como o autor afirma, “é difícil lapidar uma pátria na luz”, porque há na escrita o gesto de quem resiste, fazendo da palavra uma arma contra o silêncio. Portanto, o Epitáfio é mais do que o último gesto sobre a morte, ou seja, é a primeira denúncia contra tudo que matou antes do fim: a fome, o abandono, o vício, a loucura institucionalizada. Com isso não se escreve para lembrar quem morre, mas sim para questionar quem deixou de morrer.

O Vitorino Ubisse Oliveira, porque os mistérios do criar são indagáveis, não inventa histórias, ou, pelo menos, não parece que o faça. Ele escuta-as, sim, com a paciência que os anjos hão de ter para com os humanos; recolhe-as na vizinhança, nas praças, nas conversas que se atropelam ao crepúsculo, um pouco à maneira Lília Momplé, que também tem o dom de ouvir o mundo para depois o desenhar em palavras, sem grande vanglória, sem fogos de artifício, que a verdade, essa, não precisa de muito brilho para ser vista.

O espaço onde se desenrolam os dramas de “Mataram o nosso Chefe”, dramas pequenos e grandes, é quase sempre o rural, o campo, as casas de alvenaria, talvez as mais sólidas, as que resistem ao tempo e às intempéries da vida, onde os camponeses, ou diria, a sociedade tradicional, no sentido mais clássico, aquele que é caro a Émile Durkheim, vive e se desdobra em toda a sua complexidade. Assim, as narrativas acontecem em locais como Macuacuá, Chenapamimba, Mbonguene, Magumbela e a Vila Sede da Gorongosa, nomes que parecem respirar a terra, a autenticidade.

Há que reconhecer, contudo, algumas excepções, por via de um acaso ou de uma necessidade da narrativa: os contos “E Finiosse ficou por lá” e “A minha filha não casa com um pagão” ousaram aventurar-se pelas cidades, uma delas (indeterminada) na Alemanha, quem sabe se para provar que a estupidez humana e os corações perdidos não têm geografia, e a outra, a Beira, em Sofala, onde, coincidentemente, nasceu o autor.

As personagens de “Mataram o nosso Chefe”, por seu turno, são um mosaico humano complexo. Oscilam entre os instruídos, que talvez saibam mais do que convém para o seu próprio sossego, e os não escolarizados, que, por vezes, sabem mais da vida do que os instruídos. Entre funcionários de ministérios que assinam papéis e que talvez se julguem importantes, e executivos que movem mundos de dinheiro e de aparências, e militares que defendem o que nem sempre se entende. Uma tipologia vasta, para que ninguém se sinta esquecido no grande palco da vida, onde todos desempenhamos o nosso papel.

A temática dos oito contos é um mergulho (“étnico”, centro e sul) no campo cultural moçambicano, nas veias do interior, nas suas veias mais profundas, nos costumes e hábitos que tecem o quotidiano. E se alguns insistem em afirmar que se trata somente do local, que o façam, mas que não se esqueçam que as paixões, os amores, as traições, esses são universais. O amor, por exemplo, trespassa também as oito narrativas como um fio invisível, ou um pano de fundo que nunca nos abandona.

No conto “E Finiosse ficou por lá”, para além do contraste evidente entre as cidades, uma daqui, a outra de além-fronteiras, o amor é o pretexto para que Finiosse se perca na Alemanha, abandonando a família à pobreza, não por maldade, mas por conta de uma doença inventada que, por vezes, nos empurra para onde não queremos ir. “A Ira do Homem”, por sua vez, não hesita em tocar nas feridas da poligamia e da infidelidade, assuntos que inquietam, ainda hoje, as almas mais puritanas. “Pitamybyade” trata dos ritos de iniciação/purificação, tema que Carlos Paradona Roque Rufino também soube explorar em “Pitakufa”, e com ele os conflitos culturais que se sucedem. “Ligossi” e os restantes contos andam à volta da cultura como fonte de conflitos, pois a cultura que nos une é, por vezes, a mesma que nos divide. “A Ira do Homem”, “Pitamybyade”, “Mataram o Nosso Chefe”, “Duplo Lobolo” e “Capitão Mponha” debruçam-se sobre as infidelidades e as suas consequências multifacetadas, revelando as dores e as ironias da vida afectiva, que, muitas vezes, é mais labirinto que caminho.

Mas há algo mais em “Mataram o nosso Chefe”, algo que nos faz sorrir com um riso um pouco céptico, talvez, um riso que não é negro nem satírico, mas de um humor ingénuo, quase fotográfico, como se a máquina captasse o absurdo da condição humana, o humor que nasce da cultura de cada um. Vejam, por exemplo, a tirada das personagens do primeiro conto, ao acharem uma tamanha estupidez deixar Moçambique, terra de tantos rios, para ir ver (como turistas) um riacho na Alemanha; ou os múltiplos e curiosos desejos da Zinha, a grávida do terceiro conto, que em plena Maputo pensava em comer mbewas (ratito da machamba), como se o corpo soubesse mais que a razão e o desejo fosse uma fome insaciável que não se aplaca com iguarias de supermercado; ou o Jonasse, aquele que acha que o xitique foi invenção do diabo para desviar os dízimos da igreja. Por último, o Vovô Rele, que num acesso de fúria deserdou o neto Madalito (“madala” significa velho), por este ousar comer os testículos de cabrito, iguaria que por norma pertencia ao ancião, uma lição de hierarquia e de sabor que muitos de nós talvez nunca compreendamos.

O narrador de Ubisse em “Mataram o nosso Chefe” é a cereja no topo do bolo; trata-se de um narrador-personagem com um tom proverbial, que nos acompanha ao longo dos oito textos, como um amigo que nos conta histórias curiosas e trágicas numa mesa do bar. Ao longo da obra, não são raras as vezes que ele, o narrador-personagem, nos presenteia com uma máxima, um provérbio, uma verdade inconveniente ou um conselho disfarçado que nos faz parar e pensar sobre a suposta sabedoria do mundo: “A maioria é que vence” (1), “O preço da traição é alto” (2), “É uma fase da vida. Tudo passa” (3), “O ópio é do povo” (4), “Ninguém será tentado acima do que pode suportar” (5), “As mães sabem de tudo” (6), “O trabalho dignifica o homem” (7), “Onde morre um rei, fica um rei” (8), e muitas outras (“bíblicas”). São máximas que nos fazem questionar quem afinal inventou essas verdades e quem as segue cegamente.

E sim, já o havia dito antes, mas é bom repetir para não restarem dúvidas: as narrativas de “Mataram o nosso Chefe” são muito locais, a despeito de alguns quantos rasgos de “globalidade” que tentam fazer a ponte com o resto do mundo, o desenvolvimento ou a tecnologia (algumas personagens usam o WhatsApp e o Facebook). Ubisse não se assemelha a Mia Couto, que aportuguesa as línguas maternas e os pensamentos locais, tornando-as quase universais para consumo externo; nem a Suleimane Cassamo, n’ “O Regresso do Morto” (quem o conhece, sabe do que falo). Ubisse fá-lo com a inserção repetitiva, sem a necessidade de um glossário, de palavras locais: nomes de bebidas, de alimentos, de ritos, de status sociais, convidando-nos a adentrar no texto sem guia nem tradutor. Uma coragem ou uma teimosia, quem saberá dizer?

Há, contudo, um pormenor, uma particularidade que me deixou um amargo de boca: a introdução, no último conto, da mítica figura “Maria Zamuribodzi” (Maria uma Mama), que, reza a lenda, durante a Guerra Civil, amedrontou as tropas governamentais. Um potencial imenso, que infelizmente se revelou raso, quase um esboço que desapareceu sem deixar grandes vestígios na história.

Em suma, a obra “Mataram o nosso Chefe”, do Ubisse, é um espelho, ou diria, uma fotografia nítida da nossa cultura, das peripécias da nossa sociedade tradicional (e moderna), das suas doenças, sim, as suas doenças, as quais são muitas: a ignorância, a educação deficitária e desigual, o lado sombrio dos rituais de passagem e purificação, a intolerância social-cultural-religiosa, a pobreza e a guerra. É um retrato sem retoques, quase uma crítica social (quase!). Creio eu que, com mais maturidade e o tempo que a tudo transforma, Ubisse poderá ser um escritor, no sentido etnográfico ou sociológico, muito importante para a literatura nacional, um cronista da moçambicanidade, aquele que nos recorda quem somos e o que podemos ser.

Sobre, o tempo das narrativas, preferi não falar, afinal, é sobre o nosso tempo que escreve o autor. E sobre o chefe morto, esse que, felizmente, não é o camarada chefe das ancas salientes do Sérgio Raimundo, comprem o livro, leiam e descubram por vós mesmos como ocorreu o assassinato. 

Afinal, a verdade é, também, um prato que se serve frio e a curiosidade é o primeiro passo para a sabedoria, não é mesmo?

Muito obrigado por vossa paciência e atenção. Que o chefe que faleceu descanse em paz e que o Vitorino Ubisse Oliveira continue escrever as nossas histórias, por a literatura ser isso mesmo, um convite a ver o mundo com outros olhos e a questionar o que nunca havíamos ousado questionar. 

 

*Texto de apresentação do livro, Maputo, 3 de Junho de 2025

 

Através da direcção  de campanha da lista de candidatura de “escritores unidos pela literatura”, nesta nota coordenada pelo seu Director de Campanha, o escritor Izidro Dimande, reafirmamos o nosso comprometimento de participação no próximo pleito eleitoral da AEMO,  guiados pela inabalável visão de uma Associação dos Escritores  Moçambicanos  autossustentável, com uma clara distinção administrativa entre os poderes do Secretário-geral e do Secretário-geral Adjunto, que promove e pratica a responsabilização nas actividades; uma AEMO  livre de exclusão e subalternização do escritor pelo escritor; valorizar o literário sobre o extraliterário, desencorajando o clientelismo e o paternalismo; que respeita a diversidade de ideias e opiniões e que pratica boas relações com agremiações congêneres e fundações de cariz artístico-cultural e não só,  na base do princípio do mútuo benefício.

 

REFORMA INSTITUCIONAL DA ASSOCIAÇÃO DOS ESCRITORES MOÇAMBICANOS

Liderados por um candidato focado na busca de soluções reais e  dotado de um profundo conhecimento das potencialidades e fragilidades da AEMO, o escritor Aurélio Furdela,  somos realmente uma candidatura de escritores unidos  pela literatura,  pretendendo conduzir uma profunda reforma institucional, que começa pela elaboração e aprovação nos primeiros  três meses do mandato, de um Regulamento Interno,  capaz de, em primeiro  lugar, levar efetivamente à limitação dos poderes  do secretário-geral, garantindo deste modo o pleno exercício de funções  administrativas ao Secretário-geral Adjunto, facto que contribuirá para conferir melhor desempenho à estrutura administrativa da AEMO. E de modo a desconcentrar das mãos do Secretário-geral a gestão das oportunidades de participação em eventos no exterior, incluindo através de convites destinados  à colectividade,  o Regulamento Interno deverá condicionar qualquer despacho a  emissão do parecer do Vogal de Programas, entre outros aspectos como  a obrigatoriedade de alocar parte das receitas institucionais a acções que  beneficiem directamente aos membros. Neste ponto em particular, por exemplo, pelo menos três meses da renda advinda do Centro Social devem garantir a participação moçambicana na Feira do Livro de Lisboa, com despesas suportadas integralmente pela AEMO. Por outro lado, devemos alargar a base de receitas, envolvendo os membros em actividades de empreendedorismo literário,  através de um braço económico da AEMO que actuará a nível das PME’s,  prestando ao mercado serviços de produção de conteúdos e realização de eventos. Abandonando essa velha chaga de que a literatura não gera dinheiro, a AEMO se tornará autossustentável. Temos que garantir ainda uma acção social inclusiva e sustentável a favor dos membros, algo que no nosso manifesto tratamos com maior propriedade e que por razões estratégicas não podemos por ora avançar como faremos.

 

RECONFIGURAÇÃO DO PANORAMA LITERÁRIO MOÇAMBICANO

A nossa candidatura propõe-se, entre outras medidas,  incentivar a prática regular da crítica literária, a nível da imprensa e da academia, de modo a garantir a avaliação qualitativa das obras literárias. Deste modo, a AEMO deve também encorajar o exercício regular da crítica à crítica literária, de modo a garantir  rigor acadêmico  e da honestidade intelectual, inclusive a nível da crítica jornalística. Se somos uma associação de escritores, temos que estimular o debate de ideias, ao mesmo tempo que promovemos e valorizamos os escritores moçambicanos em função da obra literária  e nunca  de aspectos extraliterários alheios à própria literatura. O escritor  deve ser valorizado pelo texto que produz, pelo    activismo literário que pratica e  reconhecido pelo impacto da sua obra  na sociedade.

 

DEVOLVER A AEMO AO SEU LUGAR DE PROA NA REALIZAÇÃO DE EVENTOS LITERÁRIOS

Candidatamo-nos para assegurar o lançamento interprovincial dos livros lançados pelos membros da AEMO, de modo a garantir a circulação do livro no país. Relançar a realização das jornadas literárias, de modo a incentivar o exercício da escrita no seio dos jovens das províncias e distritos. Devolver a realização de eventos literários à biblioteca da AEMO, caso da “Biblioteca Viva”, de modo a incentivar a participação das camadas infantis nos eventos da agremiação. Recuperar a realização de lançamentos glamorosos de livros de autores moçambicanos no espaço físico da AEMO.

 

ACTIVIDADE EDITORIAL A FAVOR DA JUVENTUDE

 Em Moçambique verifica-se um crescente interesse pelo exercício da criação literária, com maior enfoque para os jovens, todavia não têm tido acesso à possibilidade de publicação do primeiro livro pelas editoras nacionais, enfrentando ainda dificuldades para aceder a revisores experientes, e acesso ao patrocínio para efeitos de impressão gráfica. Candidatamo-nos deste modo para   fomentar a publicação do primeiro livro de autores sem obra publicada em livro,  com qualidade desejável, através da reactivação da “Coleção Início” da AEMO que deverá contar com o suporte do Gabinete técnico da AEMO, que é nossa prioridade reativá-lo. Instituir os seguintes  prémios de  revelação, com direito a publicação de livro e um valor pecuniário de cem mil meticais: Prémio Literário Regional Norte – Marcelino dos Santos; Prémio Literário Regional Centro – Heliodoro Baptista e Prémio Literário Regional Sul  – Isaac Zita. O nosso candidato tem experiência de realizar estas e muitas outras actividades na AEMO, que pretendemos hoje revigorar, contando com o apoio e confiança dos membros da agremiação.

 

12 de Maio de 2025. O norte do Burkina Faso sangra. Mais uma vez. Como sangra o norte de Moçambique, como sangrou o Ruanda, como sangra a Nigéria, o Mali, a RDC e qualquer pedaço de terra onde o cheiro do ouro, da droga ou do petróleo se misture ao sangue de jovens pobres. Dezenas de civis e militares foram executados no domingo na cidade de Djibo, cercados e abatidos como se as suas vidas fossem meros grãos de areia na vastidão da indiferença africana e internacional. Segundo às notícias que circulam e da fonte Lusa. vieram de motorizadas e viaturas, centenas deles, os chamados “extremistas islâmicos”, atacando destacamentos, esquadras e lares de famílias anónimas. Mataram homens na frente das esposas e filhos. Deixaram corpos no chão quente da terra vermelha de África. O Burkina Faso é apenas um dos palcos de uma guerra longa, suja, e que quase sempre não tem nome nem rosto. E quando tem, não são os rostos certos.

Por que África? Por que sempre aqui? Quem ganha com essa dor? E por que os nossos mortos não têm memória?

A pergunta que me atormenta não é só “por quê?” — mas por quem terrorismo em África, para quê e até quando?

A guerra invisível tem nomes. Muitos. Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI): herança das guerras sujas da Argélia nos anos 90. Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS): explosão do caos após a queda de Kadhafi.

Boko Haram, um movimento que começou denunciando a corrupção na Nigéria e terminou como mercenário religioso de guerras subterrâneas. Ora Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM) a aliança jihadista que unificou facções para dominar o Sahel. Entre outros Burkina Faso, Chade, Congo, Nigéria, Moçambique e outros.

Mas raramente contam de onde vieram, quem os ensinou a manejar as armas, quem os financia, e o mais importante: quem ganha com a sua existência. Esses grupos dizem lutar por Deus, mas alimentam-se de ouro, tráfico, miséria e abandono. Alguns começaram como movimentos locais de autodefesa. Hoje são milícias transnacionais armadas até os dentes, em motos ou pickups, com GPS, drones e metralhadoras ocidentais.

Mas a verdade é que não nasceram do nada. Foram produto de décadas de abandono, má governação, manipulação étnica e religiosa, e sobretudo da geopolítica internacional que continua a tratar África como um quintal para jogos de guerra e extração de riquezas.

Esses grupos não surgem do nada. São filhos bastardos da Guerra Fria, do fracasso dos Estados pós-coloniais e das intervenções “humanitárias” que destroem mais do que salvam. A Guerra Civil da Argélia (1990–2002) deixou desertos cheios de combatentes desempregados, que se espalharam. Quando o Mali caiu em golpe em 2012, o Sahel ficou exposto. O deserto tornou-se estrada da morte. Em 2011, a NATO destruiu a Líbia e, as armas circularam livremente. Armas pesadas, mísseis e milhares de soldados tribais dispersaram-se pelo Sahel. As fronteiras coloniais artificiais feitas a régua e compasso por franceses e britânicos facilitaram. Assim nascia o inferno onde também hoje eterniza norte de Moçambique.

A religião é só a capa. Por dentro, há ouro, urânio, petróleo, tráfico humano e cocaína vinda da América Latina. O Sahel é rota de tudo. E quem controla a rota, controla o poder.

Hoje, grupos “jihadistas” controlam zonas ricas em ouro, urânio, diamantes e tráfico de drogas, enquanto as capitais africanas fingem governar territórios onde nunca colocaram os pés.

 

Por que sempre África?

Porque África continua colonizada, mesmo sem colônia. Porque os Estados são frágeis, porque os sistemas de ensino são ruínas, porque metade da população é jovem, sem futuro, sem emprego, e a jihad aparece como única via de sentido e redenção.

As fronteiras foram desenhadas com régua por europeus. Dividiram povos, juntaram inimigos, e criaram bombas-relógio. Agora explodem.

 

África tornou-se o território perfeito para este tipo de guerra porque aqui o Estado é frágil, a educação falida, as forças armadas mal pagas e as comunidades divididas.

As potências coloniais nunca deixaram de facto os seus interesses. Mantêm-se presentes nos negócios de segurança, petróleo, mineração e consultoria militar. Precisam de zonas instáveis para justificar presenças militares e negócios opacos.

Aqui, o jovem não sonha com a universidade. Sonha com uma Kalashnikov e a promessa de salário mensal ou virgindades prometidas no paraíso. Num continente onde mais de 60% da população tem menos de 25 anos e vive sem emprego, o terrorismo floresce como planta nativa.

 

Quem financia? Quem ganha?

Por detrás das siglas jihadistas estão rotas de cocaína sul-americana para a Europa, tráfico de armas da Líbia, e mineração ilegal em zonas sem lei.

Os chamados “extremistas religiosos” controlam minas de ouro e extorquem empresários locais.

Vendem segurança onde o Estado não chega. Alguns governos africanos mantêm acordos secretos para evitar ataques a certas áreas.

Ninguém sustenta uma guerra por décadas sem dinheiro. Os financiadores vêm do tráfico de drogas, do resgate de sequestros, da mineração ilegal. Mas também de grandes silências: de Estados que fingem não ver, de multinacionais que exploram recursos em zonas de conflito, de alianças que usam os grupos armados como peões em jogos maiores.

Companhias internacionais de segurança, empresas de exploração de recursos naturais e traficantes internacionais movimentam milhões com esta instabilidade.

E, claro, países estrangeiros mantêm bases militares sob o pretexto de combater o terror — quando o verdadeiro interesse é garantir acesso estratégico a recursos e controlar rotas comerciais.

Na África a morte tem patrocinadores. A miséria tem acionistas. No fundo, este terrorismo é a versão moderna da lógica colonial: dividir para reinar, enfraquecer Estados africanos, garantir zonas de instabilidade que justificam interferência externa e impossibilitam o crescimento de governos fortes.

Essa guerra é também filosófica. Ela reatualiza o controle colonial sob nova roupagem. A miséria programada, o caos funcional, o terrorismo como estratégia de contenção populacional.

Matam-se jovens pobres para que o sistema rico sobreviva.

A religião é instrumentalizada. A identidade é manipulada. A violência torna-se o idioma das relações internacionais. E o africano comum, sem voz, é o sacrifício contínuo em nome de uma ordem que nunca o inclui.

A religião é apenas um pretexto. O verdadeiro motor desta guerra é econômico e político.

As populações locais tornam-se prisioneiras entre o exército nacional corrupto, mercenários privados e jihadistas, sem saber quem é inimigo e quem é salvador.

Nestes estados de conflitos os chefes dizem que combate o terrorismo. Mas o que se vê é militarização, censura e paises onde jornalistas e ONGs são impedidos de reportar. As mortes desaparecem dos comunicados. A dor é apagada dos discursos oficiais.

As jutas militares não são solução. São mais um sintoma. A população continua refém. Sem Estado, sem proteção, sem futuro.

 

E Se gritássemos mais alto?

Chega de silêncios. Chega de aceitar que a África seja o palco perpétuo da dor do mundo.

Precisamos de mais vozes. Precisamos de intelectuais que falem, de escritores que denunciem, de estudantes que pensem.

A maior tragédia africana não é só a violência. É o silêncio intelectual e académico cúmplice.

Universidades discutem teorias europeias enquanto aldeias desaparecem. Escritores e filósofos calam-se para não incomodar governos militares ou embaixadas financiadoras.

África precisa de uma geração que denuncie, que acuse, que escreva, que nomeie os mentores desta guerra invisível.

Que diga alto: não é guerra santa, é guerra pelo ouro, pela droga e pelo controlo geopolítico. E que convoque a filosofia, a história, a antropologia e a política para desmontar esse teatro

macabro.

A guerra invisível é real. E só deixará de existir quando a pensarmos de frente, quando a nomearmos, quando a desmontarmos. Porque o terrorismo é uma construção. E tudo o que é construído pode ser demolido.

 

Para se identificar o espírito nacionalista de uma obra literária é necessário levar em conta alguns critérios essencias, como por exemplo, o critério linguístico, que não é infalível, o critério territorial e a cor local.

A obra literária não é um espelho do seu país? Os escritores têm um compromisso social no que diz respeito à representação daquilo que os seus países têm e do quotidiano da sua nação.

Não quero com isso dizer que as obras devem sempre optar pela cor local, até porque Bernd (1992, p.13) entende que a literatura pode nutrir-se da seiva que lhe oferece a sua região, contudo, conclui que o excesso de cor local pode vir a empobrecê-la.

Antes de trazer à superfície as amostras dos elementos que representam a nossa cor local em “A mulher sobressalente”, julgo ser imperioso apresentar uma base teórica que gira em terno do conceito e ideia de cor local. Por um lado, Ziberman (2014. p.14) define cor local como sendo a produção literária baseada no conteúdo nacional. Ou seja, é o processo em que a obra literária veste-se das cores do país. A autora conclui que este é único critério para que se possa produzir uma literatura autenticamente nacional, porque é imperioso que as obras tenham toques nacionais.

Por outro lado, Cardoso (2014) diz que cor local significa uma escrita que explora o discurso, a língua, a vestimenta, que em algumas regiões, ainda não tenha sofrido o processo da globalização, os hábitos de pensamento e a topografia peculiares de uma região.

Para Matusse (1998. p.74), estudar a moçambicanidade literária, enquanto construção (de uma identidade), não significa uma total arbitrariedade na escolha de elementos pelas quais é construída. Caminhos são procurados com o intuito de firmar uma identidade, contudo, os autores moçambicanos, movidos pelo desejo de representar a sociedade moçambicana, constroem a sua imagem.

No texto “O linchamento dos dólares”, temos representado o bairro da Munhava, pertencente ao município da Beira, onde o personagem Valdemar chora as dores da pobreza, à semelhança de muitos outros (olhando para a realidade empírica). Se serve de consolo, Valdemar não pode esquecer-se de que “[…] pobre pode perder tudo menos o sonho.” (pág.9). E o grito que emerge em língua bantu-moçambicana Cindau, quando na zona do Valdemar é capturado um ladrão “Mbava…Mbava…Mbava…” (pág. 13). Praticando justiça pelas próprias mãos, como temos visto nos telejornais, os munhavenses, à semelhança de outras partes do país, lincharam o “Mbava” (ladrão). Não é essa uma das nossas realidades?

No texto a “A mulher sobressalente”, temos representada a ideia de lobolo, como um acto cultural, nisto tudo, emerge também a ideia de ser este acto, uma condenação para algumas

mulheres, em sociedade conservadoras. Vemos no texto que a personagem Quinita pagou o preço pela irmã mais velha, lobolada, que só fazia meninas, engravidando do seu cunhado que tanto queria um menino. Mesmo em prantos, o pai de Quinita, que gastara o dinheiro do lobolo, disse, firme, que é assim como manda a tradição. “Isto é tradição e pronto.” (pág.43). Surge, daqui, a ideia de que a sociedade actual tem de entender que, a tradição, quando não salva condena.

Este acto, representado nesta obra literária, levanta uma interrogação: como fazer chegar a informação às comunidades e culturas que ainda praticam este acto (e vários outros) contra a mulher (menor de idade) de que é errado, e que estamos numa nova era. Em algumas regiões (la “no mato”) deste nosso belo Moçambique não há “magezi” (energia eléctrica) para terem televisor e acompanharem as mudanças do mundo, nem jornal chega lá.

Não se pode bater o martelo contra culturas que não sabem que aquilo que fazem já é errado. Mas pode condenar-se àquele que não faz chegar a informação.

São aludidos na obra “A mulher sobressalente”, espaços físicos como Praia Nova, Grande Hotel, e usadas expressões das línguas bantu-moçambicanas, como por exemplo, para além de Mbava e lobolo, temos xitique e maheu.

É possível notar que, os contos deste livro carregam consigo a aura da moçambicanidade. Até porque, dificilmente, uma obra literária se distancia da vida e do quotidiano do autor. Se

fizéssemos uma análise biografista, veríamos que, o autor empírico desta obra, Dany Wambire, a semelhança de muitos outros, possui em sua obra traços daquilo que vê e vive no dia-a-dia…

 

Bibliografia

Bernd, Zila. (1992). Literatura e Identidade Nacional. São Paulo: Editora UFRGS

Cardoso, Eduardo. (2014) Uma nação para ser vista: Desvelando o Tempo e o Espaço Nacionais por meio da Cor Local na Historiografia Oitocentista.___

Matusse, Gilberto. (1998). A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulane Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária

Wambire, Dany. (2020). A mulher sobressalente Beira: Fundza

Ziberman, Regina. (2014). Cor Local e História da Literatura._____

 

O sangue dos nomes/é o sangue dos homens/Suga-o também se és capaz/tu que não os amas.

Craveirinha, José. In Nunca mais é sábado: antologia de poesia moçambicana (NS:APM), p. 72.

 

Fui convidada por Nelson Saúte, para intervir no seu programa “Nunca mais é sábado”, uma tertúlia com o nome homónimo da antologia que este escritor e jornalista organizou em 2004; um livro que reitera, através do seu título, um poema de Rui Knopfli.

O cartaz do programa anunciava: “Nelson Saúte conversa com Sara Jona Laisse sobre os poetas de Maio”, tendo, entretanto, no convite, o seu editor mencionado “poetas de Maio”, consagrados e da antiga geração de escritos em Moçambique; decidi, nessa sequência, ser importante acrescentar outros-novos poetas, abrindo espaço para o alargamento do convívio literário entre diferentes gerações, até porque “todos os nomes contam”, tal como o refere José Craveirinha, na epígrafe acima, que inicia o seu poema “Hino à minha terra”. Há, além disso, em vários lugares do mundo, antologias que coligem autores consagrados e não consagrados, convívio que é salutar. A diversidade é sempre uma riqueza.

Em Moçambique, durante muitos anos, ficaram conhecidos como “poetas de Maio” cinco escribas, nomeadamente: José Craveirinha (JC), Glória de Sant´ Anna, Kalungano, Sérgio Vieira e Heliodoro Baptista (HB). Provavelmente houvesse outros, mas esses pontificavam a “Casa Literária”. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, hoje, podemos incluir no grupo dos “poetas de Maio” Hirondina Joshua (HJ), Japone Arijuane, Lino Mukurruza, e Lahissane, que se estrearam nos anos 2000.  Há muitos mais, no entanto, estes foram um exemplo colocados à conversa naquele programa.

O meu trabalho de dinamização literária tem me impelido a encontrar caminhos para a análise, interpretação e compreensão de obras literárias, sobretudo, de prosa. Pouco trabalho a poesia, por esta, para mim, ser para deleite. Estudo-a em casos imperiosos, os que exijam uma reflexão que se pretenda aprofundada. Anuí ao convite à tertúlia, decidindo verificar de que modo é que os “poetas de Maio” poderiam dialogar entre si, através das suas obras, até porque, tanto o programa, quanto a antologia acima mencionada são o reiterar de interações que se podem estabelecer, através da literatura, em diferentes textos. Obviamente, anotei algumas questões estéticas relativas aos trabalhos dos poetas a que aludi.

O diálogo que me propus abordar baseou-se na ideia de explicação da técnica da intertextualidade que pode ser realizada por diferentes vias: alusão, referência ou transcrição de excertos ou fragmentos de um texto no outro, de palavras, de fragmentos ou de títulos análogos ou exactamente os mesmos, ressonância de ideias, entre outros.

 

  1. Dos antigos poetas de Maio

 Iniciei, então, a animação da tertúlia chamando a atenção à leitura do poema intitulado “Intertextualidade”, da autoria de Filimone Meigos. Esse poema encontra-se antologiado no livro Nunca mais é sábado, pp. 521-523 e consta do livro Poema Kalash in Love. Filimone Meigos é um poeta de Março, entretanto, foi citado, por ter invocado, por via da intertextualidade, no seu poema já referido, os “antigos poetas de Maio”.

Trata-se de um poema epigrafado com uma alusão a um caderno de nome “Tindzolé”, do livro karingana ua karingana, de José Craveirinha, seguido da palavra tambor, que atravessa grande parte da obra desse autor, mais a obra de Kalungano,  este último, também aludido através do seu poema “Canto do amor natural”.

O poema está escrito em português, com recurso a utilização de lexemas em línguas bantu, tal como acontece em alguns poemas de JC. No poema “Intertextualidade”, o poeta Craveirinha é refererido através dos poemas “Karingana ua karingana”, “Mampsincha”, “Poema do futuro cidadão”, “Saborosas tanjarinas d´Inhambane”, “Sia-vuma” e “Subida”. Acrescenta-se a esses poemas a menção à rua Araújo, também, cantada por Craveirinha, mais a crítica relativa ao custo de vida, manifesta no poema “subida”, ao afirmar: “Ai a passividade animal”, p. 523. Há outras alusões.

Heliodoro Baptista é rememorado, através da alusão à aceitação da diferença e de modos de pensar, com recurso à invocação de fragmentos textuais, nos quais Meigos refere: “[…] Pensar que o vermelho dá a mesma sensação a todos?/Há os que usam cores não convencionais” […] p. 523. Tratou-se, neste caso, de homenagear HB, um exímio defensor da democracia.

Sérgio Vieira é lembrado através do seu poema intitulado “Poema para Eurídice negra”, no uso que Meigos faz, quando refere: “Eurídice negra: que tal ficasses duma vez por todas às riscas?”. Ficar às riscas sugere ser uma construção de Meigos, para demonstrar as diferentes cores e tonalidades que se pode ser, no mundo. cfr. p. 523 (aspecto que dialoga com as ideias de HB). Entretanto, vale acrescentar que, no poema de Sérgio Vieira, Eurídice, a negra é enaltecida num contexto de exaltação à África, com toda a diversidade que a caracteriza, daí a utilização da expressão “às riscas”, que lembra diversidade. Vale acrescentar que o poema de Sérgio Vieira canta com amor e esperança (dias melhores), a beleza dos diferentes países africanos que poderiam ter tido um outro percurso, se não tivessem sido escravizados.

O poema “Maternidade” da autoria de Glória de Sant´Anna, em Nunca mais é sábado, (p.134), diz nos versos que seguem: “ […] dos nossos ventres altos,/os filhos que brotarem/nos chamarão com a mesma palavra” […]. Estes são os desejos do sujeito poético criado pela autora, são retomados por Meigos: em jeito de ressonância do pensamento representado no poema “Maternidade”, tal como se pode ler em “Intertextualidade”: “…se a minha mãe plantou uma árvore, essa árvore/é muita e até sempre, e se deleita a bambolear-se belecando-nos/ numa errepeemidade sui generis que seus frutos têm o sabor destas/gentes que somos nós/obreiros naïves da nossa própria existência […]. Se nos recordarmos do dito por Glória de Sant’Anna, fica a ideia de que as mães são sempre mães, iguais a si próprias e iguais a qualquer outra mãe, de qualquer lugar do mundo. De algum modo,

Com excepção de JC, os poetas mencionados têm sido homenageados, de modo escasso, em Moçambique. Entretanto, vale recordar que todos eles, à excepção de Glória de Sant´Anna, povoam a memória dos moçambicanos, a partir do trabalho que é realizado pela Escola, por serem cânone literário ou seja, por fazerem parte dos textos obrigatórios no Ensino.  De todos eles, José Craveirinha é o mais estudado e, nos dias que correm, o grupo musical constituído por D´Manyssa e outros, tem musicado os seus poemas. Refira-se que o cânone faz parte da tradição que se pretende transmitir a determinada sociedade.

 

  1. “Novos poetas de Maio” e seu diálogo com os antigos

 […] É eu poder dizer-te aquilo que sou/e não aquilo que tenho/exercício de espirito/ou maneira de estar, /consuetudinários,/ou seja costumeiros, não porque somos filhos do rei/mas porque queremos ser netos […]

Meigos, Filimone. In NS:APM p.522. (o negrito é meu).

Do conjunto dos “novos poetas de Maio”, destaco, a seguir, alguns daqueles que, à semelhança do que se pode aprender a partir da epígrafe desta parte do texto, prestam atenção à tradição literária, “são consuetudinários […] costumeiros” ou, por outra, capazes de guardar memórias literárias dos seus predecessores. São os “netos”, aqueles que antes ou durante a o seu processo de escrita, leem os que os antecederam na escrita. São eles: Hirondina Joshua, Japone Arijuane, Lino Mukurruza e Lahissane. mais haverá, certamente.

Esses poetas tiveram uma iniciação literária baseada em movimentos de dinamização literária e de oficinas de literatura. Há, neles, a preocupação com o “lapidar a palavra”, de modo criativo, mas, também, de  amplificar a cultura estética que os precede, através da técnica da Intertextualidade. Evidencio-os pelo diálogo que estabelecem com os “poetas de Maio” mencionados acima.

Começo por apresentar Hirondina Joshua, que é autora das obras: Os Ângulos da casa (2016), prefaciado por Mia Couto; Como Um Levita À Sombra dos Altares (2021), prefácio de António Cabrita e Córtex (2021), que leva o prefácio Joana Bertholo. Tem trabalhos em co-autoria nacional e estrangeira  e está antologiada no país e no estrangeiro.

Uma vez que este texto se baseia na intertextualidade, vale recordar que ao estilo do sujeito poético criado por Eduardo White, em Janela para o oriente, sujeito que vê (ou imagina) o mundo a partir da janela do seu quarto; na obra de HJ, o sujeito apreende o mundo, ao seu redor, a partir dos ângulos de uma suposta casa. Especificamente, HJ tem poemas que sugerem a leitura do interior de uma casa, depois outros que revelam a saída desse interior, para o exterior. Leiam-se os poemas “1”, “Alto Maé que mora em mim” e “Fuga em Ré Menor”. Acrescentando, leia-se o poema “2”, do caderno “os ângulos da casa”, da já referida obra:

Como se estivesse num quarto todo desarrumado, gavetas/postas ao tecto, janelas ao chão, e o chão fosse parede, e/ a roupa estivesse estendida dentro do coração, que é a/ lareira gélida. Essa porta abrirá ao abismo, mas será um/abismo do abissal, onde se vê o fundo desse quarto, antes/ de ser aquilo. H.J, p. 14.

No poema “Alegorias”, desse mesmo livro, p. 43, o eu poético dialoga com o sujeito poético em Heliodoro Baptista, no seu poema intitulado “Alegoria”, faz parte dos textos obrigatórios no Ensino Secundário Geral em Moçambique e que está integrado no livro do autor, intitulado Por Cima de Toda a Folha, p. 31. Ambos poemas falam em aves e numa suposta dor. H.J. dialoga com H.B.  Com o mesmo título “Alegoria”, existe um poema de Glória de Sant’ Anna, na p. 9 do livro Um Denso azul silêncio. Entretanto, o conteúdo do texto desta última autora não se relaciona com os anteriormente referidos.

Hirondina iniciou a sua escrita, participando em “oficinas literárias” dirigidas por  Fernanda Angius, uma literata que viveu em Moçambique.

Japone Arijuane é autor das obras Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio (2014), Literatas e Ferramentas para desmontar a noite” (2020), pela FFLC. É prémio revelação CEMD-Lisboa (Ciclo de Escritores Moçambicanos na diáspora) e menção honrosa no Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa (2019), com o romance O Homem que vivia fugindo de si. É co-fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, apoiado pelo escritor Calane da Silva, que foi fundamental para a iniciação literária desse movimento.

Esteticamente, através do livro Dentro da pedra ou metamorfoses do silêncio, Arijuane chamou-me a atenção pelo tema que abordou, sobre a pedra, homenageando-a. Dando-lhe o valor que ela tem para a humanidade: símbolo do poder, defesa de território, caça, cozinha, fogo e valor espiritual. São poucos os autores que dedicam espaço de trabalho a este objecto, na arte da alma. Dos poetas da língua portuguesa são de referir: Carlos Drummond de Andrade, Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho.

Japone Arijuane tem um poema dedicado a José Craveirinha e a Stélio. A intertextualidade entre este poema e a obra de José Craveirinha assenta no facto de haver referência à vida e à obra de José Craveirinha, nomeadamente: Mafalala (lugar de poesia e de eleição para trajecto de fruição diária e morada-de facto de JC). Diz-nos o poema de Arijuane: “Passo pela Mafalala/para que em mim fique a ideia/de pisar os trilhos/galgados um dia pelo poeta”, p. 21. Há referência ao nome Felismina, que também é título de um poema de José Craveirinha. Além disso, neste texto, encontra-se uma referência à obra Xigubo e ao amor de Maria por Craveirinha. Diz o poema: “[…] mas pela ideia de saber/Craveirinha ali/sua Maria amou”, p. 21.

Importa dizer ainda que Arijuane comunga do mesmo amor pelas palavras, com Heliodoro Baptista. Aquele, no seu poema nr. “11”, dedicado à Fernanda Angius, p. 22 afirma: […] nunca me eduquei para amar/qualquer que fosse o silêncio/senão o das palavras. Já HB, no seu poema “Ode às palavras”, afirma: […] é preciso amar muito as palavras. /As velhas, perdidas no tempo e no ar/[…], p. 45, Por cima de toda a folha.

Lino Mukurruza publicou: Vontades de partir e outros desejos (2014), pelo FUNDAC; Almas em tácitas (2015); A extinção das cinzas (2021) e O Pouso do casco (2024). Este autor está antologiado em Moçambique. Tem sido uma figura preponderante, na dinamização literária em Quelimane, após alguns anos, ter sido activista literário em Lichinga.

Do ponto de vista estético, em A Extinção das cinzas, o autor prescinde da utilização de maiúsculas no início do texto, de sinais de pontuação que são realizados pela força ilocutória (propósito do falante), técnica aceite no que a literariedade diz respeito, recurso também utilizado por Pedro Pereira Lopes e por Virgílio Sithole, em Moçambique. Nessa obra, há um poema que diz: “o rosto é o único lugar que deixa marcas de ser/outro/o umbigo/marca das mães e filhos/no nó da matéria de ser”, p. 53. Este poema faz lembrar igualdade humana (mencionada no poema “Maternidade”, de Glória de Sant´Anna, acima referido), marcada a partir das mães, no nascimento de uma criança, igualada, simbolicamente, pelo umbigo.

Lahissane publicou Pores-do-sol (2022). É dinamizador literário do grupo Xitende, em Xai-Xai e co-autor de antologias publicadas no país e fora deste. Já foi destaque literário, no Brasil e nas Honduras, pela qualidade da sua obra.

Nesta conversa entre escritores, coloco Lahissane em dialogia com Heliodoro Baptista (poema “Ode às palavras”) e com Japone Arijuane, através do poema (sem título) acima referido, que alude ao amor à palavra. No seu poema intitulado “Na mesa de um poeta”, do seu livro Pores-do-sol, Lahissane afirma: “Há sempre uma poesia/cantando na mesa de um poeta/[…]//Sim, na mesa de um poeta pode falta/pode faltar tudo:/[…] mas nunca falta um jarro de poesia […]// Na mesa de um poeta/ come-se poesia/bebe-se poesia […].

Muito mais haveria a referir, acerca dos “poetas de Maio”, entretanto, o espaço de uma tertúlia não foi suficiente para tanto. Assim, tendo aprendido que “todos os nomes contam”, a partir da epígrafe do poema “Hino à minha terra”, que encima o presente texto,  eu não os quis “sugar” os nomes que nos dizem respeito, os dos jovens “poetas de Maio”, não seria justo; daí tê-los integrado na conversa com Nelson Saúte, através da interculturalidade, que é ampliadora de tradições ou de estéticas literárias. Outros nomes, certamente, virão, em outros debates e em outras tertúlias.

 

 

*Por Sara Laisse. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

Vivemos numa época marcada pela velocidade, superficialidade e produção em massa. A tecnologia encurtou distâncias, democratizou acessos e multiplicou vozes, mas também diluiu critérios e tornou o ruído quase indistinguível da substância. Nesse cenário, a qualidade emerge não como um luxo, mas como uma urgência inadiável.

Em todos os domínios, da arte à ciência, da educação à comunicação, a qualidade permanece como critério central de legitimidade, alicerce do legado e fonte de experiências duradouras. Investir em qualidade é resistir à mediocridade generalizada e afirmar a dignidade do trabalho bem feito.

A formação artística de excelência é, por isso, uma responsabilidade cultural e ética de primeira ordem. Ela envolve não apenas a transmissão de conhecimentos técnicos, mas também o cultivo da criatividade, o estímulo ao pensamento crítico e a valorização de uma ética de produção comprometida com a preservação e renovação do património cultural. A excelência artística transcende a técnica: é também atitude, consciência histórica e responsabilidade diante do público e da cultura tradicional ou erudita.

Este artigo propõe uma reflexão crítica-construtiva sobre a persistência da mediocridade nas práticas profissionais, com foco especial na formação artística em música erudita. Embora enraizado na experiência moçambicana, o debate tem validade transnacional. Em “Who Killed Classical Music?: Maestros, Managers, and Corporate Politics” (1996), o jornalista britânico Norman Lebrecht lança um olhar contundente sobre a crise de legitimidade e sustentabilidade da música clássica, abordando, entre outros fatores, a relação entre formação, visibilidade e exploração de talentos.

A excelência profissional, longe de ser um privilégio elitista, deve ser entendida como um compromisso ético e social. Especialmente no campo da educação artística, propõe-se que professores e artistas assumam um papel activo na formação do público e na defesa intransigente da qualidade. Ao criticar o conformismo e a reprodução acrítica de padrões, defende-se a excelência como ferramenta de transformação cultural.

 

A Normalização da Mediocridade nas Práticas Profissionais

No mundo contemporâneo, orientado pela lógica da visibilidade imediata e da produção acelerada, observa-se uma preocupante substituição da profundidade pela aparência. Em diversas profissões, inclusive nas artes, proliferam padrões mínimos de desempenho que legitimam uma cultura do “suficiente”. Essa banalização da qualidade compromete talentos, empobrece produtos e desfigura processos de formação.

A mediocridade, enquanto categoria ética e estética, constitui uma ameaça silenciosa mas crescente em múltiplos campos. No caso da formação artística, seus impactos são particularmente devastadores, dada a histórica desvalorização da área. É preciso denunciar esta tendência, propondo uma reflexão crítica e construtiva sobre seus efeitos, e reafirmar a excelência como necessidade cultural e imperativo ético. Especialmente num mundo mais global aonde a apropriação das culturas, dos géneros é positivamente para todos, e cada vez mais acessível com a nossa tecnologia.

No MUSIARTE-Conservatório de Música e Arte Dramática, sustentamos que a luta contra a mediocridade não é vaidade, mas compromisso com o rigor artístico e com a formação de públicos mais instruídos, críticos e sensíveis.

 

Formação Artística: Terreno Fértil para o Conformismo?

A abundância de talentos artísticos em Moçambique é comparável à riqueza dos seus recursos naturais. No entanto, esse potencial só se concretiza plenamente por meio de uma formação adequada e exigente. Independentemente do género musical, seja erudito ou tradicional, a busca por valores artísticos, genuínos e humanos deve ser de igual importância e contínua.

Na educação artística, a mediocridade manifesta-se de diversas formas: ausência de exigência técnica, linguística, desvalorização do pensamento crítico, repetição acrítica de modelos, negligência disciplinar e desactualização docente. Alunos jovens expostos a esse tipo de formação não apenas limitam seu potencial criativo como também internalizam padrões medíocres como “norma”.

 

O Papel Ético dos Professores e Artistas

Professores de arte são, acima de tudo, formadores de sensibilidade, ética e pensamento estético crítico. A sua missão vai além da técnica: inclui inspirar, desafiar e responsabilizar os alunos pela autenticidade e rigor de seu trabalho. Do mesmo modo, o artista, enquanto figura pública, é também um educador. Sua obra influencia o gosto colectivo e contribui para a construção (ou desconstrução) de um senso estético mais elevado.

Optar pela excelência, nesse contexto, é assumir um compromisso com a dignidade da profissão e com a cultura como bem público.

 

O Público Também se Educa: Uma Via de Mão Dupla

O público não é passivo. O gosto se educa, ou se atrofia, de acordo com a oferta cultural à qual é exposto. Apresentações medíocres, superficiais ou meramente imitativas contribuem para a erosão da exigência estética colectiva, colocando em risco até mesmo tradições seculares.

Formar um público sensível e exigente é responsabilidade compartilhada por instituições, educadores e artistas. Educar para a qualidade é também educar para a cidadania cultural.

 

Conclusão

A mediocridade na formação artística é mais do que uma falha pedagógica: é uma ameaça à saúde cultural da sociedade. Combatê-la é afirmar a arte como espaço de excelência, de liberdade criativa e de sentido.

A exigência, longe de ser opressiva, é libertadora. A excelência é um projecto colectivo, e sua defesa deve mobilizar todos os que acreditam na arte como motor de transformação. A busca por qualidade na formação artística deve ser entendida não apenas como uma meta técnica, mas como uma responsabilidade ética dos profissionais da cultura.

Cada professor, cada artista, cada instituição comprometida com a arte carrega o dever de educar o público, formar novas gerações com rigor e resistir activamente à normalização da mediocridade. Mais do que técnica, trata-se de uma luta por valores, por visão e por legado.

 

Maputo, 05 de Maio 2025

 

No cenário literário moçambicano a ausência das mulheres é evidente e factual, só que isso agrava-se ainda mais quando se trata de prosa, já nem falo de romance. Conta-se a dedo mulheres que viajam nesse estilo. Não tenciono aqui fazer uma pseudo-ideia de que, geneticamente, as mulheres não podem, mas que esse facto difícil e deprimente deve-se, mesmo, às condições sociais, económicas, culturais e, quiçá, políticas.

No dia do lançamento dessa Antologia, de mulheres em prosa, no centro cultural moçambicano alemão, uma questão momentânea me foi colocada em mãos por António Magaia, questionando sobre esse facto, de pouca adesão das mulheres na prosa (e literatura no geral). Disse-lhe que, em primeiro plano, está a educação. É preciso manter a mulher na escola e dar-lhe portas para o ensino superior, daí, tudo se desenrola, o que, de certa forma, Lucílio Manjate também explicou depois de ter feito a apresentação do livro.

Numa outra oportunidade, o escritor Eduardo Quive, também organizador desta antologia, na noite literária no Ntsindya disse que o livro é coisa de burgueses. Não poderia estar mais de acordo com alguém. Só que no lugar de burgues, eu coloco elite, para não circunscrever essa discussão ao nível económico. Também não falo das elites políticas, mas académicas, financeiras e até culturais (é mais fácil o homem ter tempo para ler um livro que uma mulher vendo o seu dia a dia).

Essa é uma forma de congratular a iniciativa da catalogus pela oficina “vez das mulheres”, e que já vêem-se os frutos. Contra toda essa pesada realidade, incentivar a literatura nas mulheres é um passo grande para o futuro principalmente se olhando isso nas palavras do Malcom X que asseguram: “If you educate a man, you educate an individual, but if you educate a woman, you educate and liberate a family.”

 

Como narram as mulheres?

Se hoje me questionassem a visão que me guia sobre a literatura, seria essa: caso a literatura tenha um objecto de trabalho e estudo, esse seria a forma em vez da coisa, o caminho no lugar do destino. Como o docente Manusse disse, numa das suas aulas de Introdução aos estudos literários I, na literatura, o que interessa não é o que se diz, mas como se diz. Tudo atrás exposto é explicado nessa frase: na literatura, não nos interessa a história como tal, mas como é contada essa história. Por conta disso, presumo, o próprio Lucílio Manjate abordou a necessidade dessas oficinas de escrita como há oficinas de canto, pintura, etc., pois, acima das estórias está a técnica, os recursos de linguagem e tudo mais.

Nessa senda, Mia couto uma vez disse que todo mundo conta uma história, inventada ou não; agora imagino-o a dizer que a maneira pela qual contamos as histórias é a que definem e diferenciam um bom contador de um menos bom contador de histórias. Numa análise geral, as 14 mulheres devem passar a ter isso em mente quando rabiscarem os seus textos, tanto em prosa como verso.

 

  1. Antes de nascer o sol, de Anastácia Sigodo

Esse texto não tem nada de narrativa. Caso a intenção da autora era escrever uma narrativa, então ela excluiu feio. Apesar de o martelo pegar a pensar nisso como narrativa – isso devido ao projecto literário – a Anastácia tem um tacto para a poesia. Esse texto é uma prosa poética linda, limpa e sensorial, com um sentido imagético bem construído. “O silêncio que abraça a madrugada escura do inverno”, “O coração […] consumindo tudo o que é cor dentro de mim” (p.15).

O sentido dessa poesia é um tanto escorregadio, sempre levando-nos dentro de nós mesmos.

“Antes de nascer do sol” é uma prosa poética onde o eu lírico é acossado pela insónia durante noites “frias de junho” (p. 16), onde “derrama lágrimas cristalinas” e o coração a puxa sempre para o abismo. Nessas noites ofegantes, as letras brotam sobre esse tempo que arrasta o sono e o sorriso. É um texto melancólico, de difícil digestão por conta do terror dessas madrugadas. Essas noites lembram as noites da Dulcineia no seu poema Sem título I, “em noites como essa/ rejeito a anestesia do sono/ […] e vivo, cada segundo da agonia (…)” Repiso, caso a intenção era contar uma história então seria insatisfatório. Sendo prosa poética, então é regular.

 

  1. Afinal sou eu? De Anchura Mires

Primeiro que não entendi a relação da temática e do título. “Afinal sou eu?” é uma narrativa sobre um homem que visita o pai, ou um pai que recebe a visita do filho, depois de muito tempo num período de seca de quase um ano. O texto desenrola sobre essa temática de seca, mudanças climáticas, causas e consequências. Afinal, essa era a relação, explicada no último parágrafo:

“Buanael consentiu com preocupação ao que disse Malik e ficou o pensar, por

um momento, que teria contribuído para aquela situação de falta de água e ao

mesmo tempo parecia satisfeito ao saber que ele poderia fazer algo para

resolver o problema” (p. 22)

O sobre do texto é importante, principalmente nessa época, contudo falta técnica de suspense, onde o leitor pergunta-se o que vai acontecer depois. Na, além da vinda do filho, não vejo um evento que possa ser classificado como um conflito. A seca que dura a quase não pode ser um conflito na literatura tanto como a pobreza não é um conflito. E acontece que o conflito é, para minha opinião, o coração de um conto e outras narrativas. O conflito coloca o protagonista a agir, então um bom conflito pode dar numa boa narrativa. Numa das entrevistas de Mia couto, disse que uma história começa num conflito, se há um, inventa. Apesar disso, a o texto apresenta características de uma narrativa.

Satisfatório

 

  1. A filha do Mwene de Carina Mulieca

Um texto sobre uma filha do chefe, Emma, que foi desposada por um mercador. Um história típica de Moçambique.

Há nuances interessantes a serem levantados nesse texto. O primeiro é o mistério que sobrevoa o texto sobre o não dito que devia estar lá, mas não consta. Depois da Emma ainda entrar no mar das dúvidas sobre o ‘sim’ ou ‘não’ para o pedido/exigência do mercador que queria desposá-la, segue um momento em que tudo desaparece e acordamos, com a protagonista, dum lugar vazio, escuro e sem nada, e, no fim, parece que ela está num casamento polígamo. Se teve volição ou não, o texto não responde, deixa quieto, oculto.

Essa é uma característica do texto que grita por atenção, contudo, a ausência de tais respostas para perguntas como “como” e “quando” pode frustrar o leitor. Está claro que o sonho da protagonista não passava por casar (cedo), mas de cursar direito, o que torna esse “suposto” casamento com o mercador uma história digna de lágrimas de tristeza. Contudo, a pressa da autora em chegar onde ela “ouviu chamar o (seu) nome” (p. 26), e presumo que despertou do sono, ela engoliu-nos o desenvolvimento interessante do enredo. Como é que ela reage, se luta, tenta contradizer?

Umas outra característica do texto, e quiçá da autora, é a capacidade realmente considerável de conjugar dois momentos ou tempos numa mesma narrativa, o tempo da narração (geralmente, presente) e o tempo da história (passado).

 

  1. Tempo da narração: “Quero contar-vos uma história, a minha história”. “Gostaria de contar-vos sobre mim sem que me entristeça” (p.25)
  2. Tempo da história: “Certo dia, apareceu um homem chamado de Mercador” (p.26). “Foi então que percebi que o som vinha doutro lado da porta” (p.27).

Regular

 

  1. O valor das promessas de Deizy Joane

Um texto que é caracterizado por discursos/conversas, e menos acção, menos movimento, menos dinâmica no enredo.

Começa o conto com a protagonista, a Dalva sendo caraterizada como quem nunca gritou, nunca chorou, e parece algo estoico, mas ela sussurra para a Missava que ele, o marido, a trai.

Choque. Conflito certeiramente criado. Contudo, depois seguem-se diálogos, e promessas de alguma acção entre mulheres, mas nenhuma acção em concreto. Como é que a Dalva reage?

Pois bem, parece que até tenta, mas se resigna. A autora teria dramatizado o encontro entre a Dalva e o marido quando esse acontece e é anunciado por Missava, que sussurrou: “Você já viu que seu marido vem aí?”

A Dalva é satisfatoriamente desenvolvida. Uma mulher com sonhos grandes e um coração inocente, pobre, casada com um marido que a traiu, as outras carecem desse desenvolvimento nesse sentido. Sendo a Dalva a protagonista, não sabe quem bem são Missava, Machaka, etc.

Bem, há momentos que estão todas num casamento polígamo, mas há outros momentos que não. Isso confunde o leitor.

O narrador, às vezes, narra na primeira pessoa, outras vezes na terceira. Por si só, não é um vicio, se feito conscientemente e com a devida mestria, mas aqui há algo coisa que passou despercebido.

Começa dizendo: “Minha mãe sempre dizia que tinha dez serviçais. […] Foi o que ela me transferiu como legado” (p.31). Depois, no desenvolvimento, ela escreve: “Nenhum vizinho viu, alguma vez, Dalva a gritar, como se tomada por uma força incansável” (p. 31).

A Dalva que é mencionada por um narrador narrando na terceira pessoa é a mesma que fala sobre a sua mãe e o legado que ela a transferiu.

Satisfatório

 

  1. Flor de Lotus de Edna Aníbal

Um conto da Hira que decide entrar num lugar proibido, entre dois reinos, e, interpelada por soldados do reino rival, ela machuca-os. Depois de um tempo, o reino rival faz uma visita ao reino do seu pai, rei Artur, e a Hira encontra-se com o soldado Felipe e ela. Os dois rivais protagonizam uma luta no palácio, e, de repente, são “teletransportados” (p.44) para a floresta e lá lutam com uma bruxa, mas o seu destino “se perde na incerteza enquanto a chama das Ignis ardia com intensidade renovada no interior” (p.45). A questão, morrem ou não morrem?

A autora apresenta um alto nível de descrição consistente. Um trabalho que nos coloca dentro da luta entre a Hira os soldados. Ouve-se o ruído das espadas quando colidem no espaço, ou o sangue jorrando, e imagina-se também a agonia dos vencidos.

Contudo, o embate esperado entre Hira e Felipe começa, mas não termina. O desfecho que não acontece entre esses dois explicaria e justificaria o conflito. Não querendo isso, a autora estende muito com conversas, e surpreende com esse final, de um incêndio causado por fogo ancestral. Há quem possa gostar dessa extensão do clímax, mas cria uma agonia quando se pergunta o que acontece entre o “artista e o boisse (boss)”.

É de sugerir que a autora diferencie claramente os dois palácios para evitar confusão.

“Se ouve ao longe o cântico da Hira que decidira pela enésima vez sair do palácio para colher flores” (p. 39)

O palácio que se refere aqui é a do pai da Hira, rei Artur. Há um outro palácio que é referido no texto sem distinção nenhuma, o que pode causar esse desentendimento: “Felipe regressara ao lado dos soldados ao palácio” (p.41)

Apesar de haver uma separação entre partes, o que ocorre nos outros contos do mesmo livro, ela não é, diria, explicativa ou diretiva, no sentido de ‘está-se aqui num outro reino’.

Num contexto que nem o nosso, falar de palácios, ancestrais com nomes latinos, “Ignis”, pode não trazer muito interesse para os leitores, principalmente num momento em que há mais sede de ouvir histórias e estórias de África, não só de africanos. Essa questão não tira o mérito do texto, é só algo a se considerar. E o lado positivo disso, é que essa estória quebra a monotonia das estórias.

Regular

 

  1. A desgraça da Tsakani de Edna Matavel

Depois de terminada a leitura vem a pergunta: “O que li?” A Edna Matavel traz-nos aqui um conto episódico, que é uma construção anti-estrutura tradicional, essa que é de Freytag.

Dentro do conto seguem-se pequenos conflito e clímaces distintos. Se por uma lado isso pode ser visto como um rutura à tradição, é importante que essa rutura seja consciente e propositada porque pode ser um vício. E nisso, não estou querendo ser conservador. A originalidade é sempre bem vinda, como o Mia Couto, às vezes, no lugar de iniciar com a exposição, ele inicia com um conflito ou clímax (dependendo das pessoas) no conto quando mabata-bata explodiu. Aliada a originalidade, deve haver criatividade.

A Edna Matavel tem um alto sentido de imaginação. Ela voa, alto, e isso pode a trair, se não parar para analisar a coerência do seu texto. Nesse conto, a desgraça da Tsakani, ela narra a história de uma mulher, a Tsakani, que teve um sonho e contou para a Lurdes (que não é bem explicita a relação das duas), depois a sua avó morre sozinha, devido a doença, suponho. Só que, depois da morte da avó, seguem-se momentos e eventos que estão longe do conflito, ou que são, no mínimo, incoerentes. Uma sucessão desses eventos. No enterro da velha, a Tsakani tem inveja da Muzaya, e a enfeitiça. Essa perde o bebé que esperava e abandona o lar. Os pais procuraram médicos tradicionais e descobriram que a feiticeira é a Tsakani. Só que a Tsakani sabendo disso, também volta ao curandeiro e vai procurar um marido bom.

Então teve um namorado que trabalhava na África de Sul, mas não fluiu porque a maldição voltou contra ela. A aldeia descobriu disso, então a expulsaram, já com o pai, Malhasseia, na aldeia.

Malhasseia retornou a Africa de sul, e a Tsakani não atravessou a fronteira clandestinamente.

Foi presa. Ficou no quartel. Foi escrava sexual. Ficou gravida e teve um filho. Fugiu pelo mato deixando o filho para trás, e foi devorada pelo leão. Termina a história.

Apesar do titulo ser bem conseguido, o conto já é uma sucessão de eventos que não tem muito a ver. Um final despachado. Bem que esse texto poderia ter terminado onde a avó morre, e ela teria tentado desmistificar o segredo do sonho, que é o que ela propôs no início, mas fugiu da sua própria proposta. Escreveu só para preencher páginas.

Insatisfatório

 

  1. A sentença de Felismina Guetsa

A Merly foi sentenciada pelo médico. À que? Parece, a nunca mais ser normal. E isso acontece num ambiente difícil, calmo, mas uma calmaria de falta de esperança, naquele pensamento de “se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”. É uma atmosfera muito melancólica, onde se toma “cooktail (deveria ser cocktail) para aliviar a amargura da vida” e o outro, que nunca é identificado, mas é o narrador, se “parece uma neblina que não dura para sempre e é esquecida pelo dia” (p.59).

Esse texto está mais para prosa poética à narrativa, apesar de haver descrição movimentos, como bem o faz Álvaro Taruma. Não há um enredo como tal. Ela descreve poeticamente as coisas e os sentimentos. Seguem-se exemplos:

“[…] a morte é temida quando nos dada um infan momento de lazer” (p.58)

Se a ideia era escrever um conto, então é mau. Se a ideia era mesmo de uma prosa poética, então é satisfatório.

 

  1. Até quando de Jade Ferreira

Essa é uma história emocionante, e que permite reflexão, principalmente, na questão do amor, e as bases que a sustentam. Atenção, dinheiro, matéria, ou palavras lindas. No lugar de dar respostas sobre isso, vamos percebendo entre linhas o que importa para a narradora. Essa história, tal e qual a “filha do Mwene”, possuem um tom confessional, só que é muito mais evidente esse é mais evidente. A autora tem uma capacidade de controlar a si mesma durante

o voo reflexivo para não abrir outras gavetas que, no fim, fazem uma salada confusa na boca do leitor, como quando inicia um parágrafo novo com “De volta ao importante…” (p.63).

Esse detalhe funciona bem como rutura, uma forma de chamar de volta para o que ela quer, de facto, contar, o essencial da narrativa.

Um mesmo homem, alvo do amor da narradora, é descrito como infeliz e, ao mesmo tempo, como quem tem “lábios carnudos, corpo de atleta (…) ficava na janela do prédio a olhar para mim, como um quadro de pintura que precisava decifrar” (p. 63). Isso não é contraditório, mas a mesma pessoa que vê essas características padrão de beleza, ainda o chama infeliz. Ao mesmo tempo que ele era bom no sexo, e a “deixava satisfeita” (p.65), “tinha partes do meu corpo que ele nunca chegava (…) ele era limitado” (p.66). Essas contradições podem trazer um debate sobre parceiros bons, suficientes ou não.

Uma narrativa sem sobressaltos que chama atenção mesmo pela confissão que se sente ao ler.

Empregar a primeira pessoa tem, naturalmente, esse efeito, mas ela o faz muito bem usando termos que retratam uma energia negativa interior no que toca a essa história dela, a narradora, e o alvo de seu amor. Uma relação, diga-se, doce e azeda, muito mais azedada porque o homem apesar dos atributos não trabalhava e era sustentada por ela para comprar “cuecas” “créditos” “passagem” e mais.

Apesar disso tudo, esse texto não é um conto.

 

  1. Entre ruas de Julieta Panguene

Um conto narrado sob o ponto de vista de uma criança, ainda ficava de “neneca”, e descreve tudo nesse sentido. A história é sobre uma criança que, porque a irmã demorou chegar da escola e, na sua casa, ninguém estava para tomar conta dela, teve de ser levada pela mãe para se reunir com outras mamanas da poupança para levantarem o seu dinheiro. Só que os coordenadores dizem que os cofres foram roubados, e a confusão começou, até que a mãe da criança teve complicações e ficou inconsciente por um tempo.

Um texto diferente, muito descritivo, bem articulado. Um conflito, um clímax, onde a criança chora descontroladamente por conta da confusão na reunião, e um desfecho. Peca por não haver acções crescentes, que criam o suspense até o momento mais intenso do texto, que é o clímax. Por conta disso, o clímax até passa despercebido. Também houve menos discursos, o que enriquece uma narrativa. Os discursos/falas são uma oportunidade de outros personagens trazerem o contraditório, outra perspectiva, para que a história não seja linear. Essa história é muito linear, não emociona. O seu momento épico é a descrição do ambiente, o som dos carros, as folhas, as árvores, as ruas movimentadas, as pessoas circulando, falando ao celular.

Um conto urbano e actual. Esse nível de descrição possibilita que caminhemos com a criança e sintamos tudo que ela sente e vê. A autora tem um olhar refinado e atencioso para o dia a dia.

Num texto narrado sob o ponto de vista duma criança, tecer reflexões filosóficas sobre vida e existência pode soar não natural, um “contra naturam”. Por exemplo, “(…) em algumas partes do mundo infelizmente a vida é assim, o drama da luta pela sobrevivência é intrigante e preocupante” (p.73). Bom, isso não invalida a narrativa, que pode ser menos realista, contudo não é o que parece com essa história. Essa parece partir de um mundo real, com características próprias da realidade, e a reflexão, também, julgo, deveria, a certo nível, ter essas características.

Regular

 

  1. A viajante de dimensões de Happy Taimo

A Happy Taimo traz um conto com moral no fim, sobre o sentido da felicidade. Ela descobriu que ela está em pequenos detalhes que passam despercebidos, não somente em coisas materiais como dinheiro e ouro. A narradora-personagem faz-nos viajar num mundo onírico, o seu mundo onírico. A Maya, mesmo num lugar desconfortável, ainda consegue adormecer e sonhar ela num lugar complemente diferente da sua realidade miserável, humilhante, difícil, fatigante e outros adjectivos dessa linhagem. Sonha com um palácio, tudo feito de ouro, lugar lindo e bonito onde a pobreza não faz barulho. Come que se farta, mas nunca fica satisfeita.

Entra num quarto e vê baú de ouro, tenta o levar para a realidade, mas não é possível, e aí aparece homem, com ares de sábio, e que fala sobre os mistérios da felicidade, até que acorda para a sua dura realidade, mas com olhos diferentes. Talvez a vida ou felicidade seja só um ponto de vista, não, Happy?

Um conto bem construído. Lembra o “Sonho de um homem ridículo” (1877) do maestro Dostoevsky, em que um homem que se intitula ridículo decide matar-se, mas no momento adormece com a arma e sonha. No sonho, ele morre, e é levado para um outro planeta paralelo a terra, só que não terra. Lá encontra uma civilização boa, genuína, sem ódio, nem inveja, e ele vai contaminar com as doenças do planeta terra como inveja, ganancia, ódio e mais. Depois dele ter destruído aquele planeta, ele acorda e decide ser um humano melhor.

Também o homem ridículo de Dostoevsky como a Maya ambos são miseráveis, sonham, acordam num lugar diferente da realidade, depois voltam e decidem mudar.

A personagem Maya é bem construída e desenvolvida. Sabe-se quem é Maya, o que faz, sua condição existencial, seu estado de espírito que, no fim, depois muda. Um personagem rico, por isso redondo. Na narrativa aparece um outro personagem que a contraria. E mais aquele ladrão de frutas que a complica a vida.

A exposição é feita muito bem. Expõe-se o protagonista, o espaço (bairro de Mafalala), e o tempo. Ao de todo, é uma narrativa bem conseguida. Com aquela moral da história no final que pode ser um excesso nos tempos que correm, e em moçambique, ou um cliché.

Bom

 

  1. A Marca do arrependimento de Fernanda Hermano

A Fernanda conta-nos a história da Arminda que, casada com Adalima, homem descrito como trabalhador, vive sufocada e entediada. Conhece o John, que montaria tijoleiras na casa da Arminda, acabou conquistando-a. Levada pelo tédio, quis experimentar outras coisas, e saiu com ele para uma barraca. Beberam, e acabaram na cabana, com teto estragado um chão de areia batida, e fizeram sexo, numa casa onde a cortina era saco de arroz. Depois de feito o sexo, veio a gravidez. O marido não consegue lidar com a traição e a expulsa do lar. Ela volta para casa da mãe, tem o filho, e o mata com veneno. Acossada por remorsos, ela vai entregar-se à policia, e acaba presa.

Primeiro, esse texto dialoga com o “até quando” de Jade Ferreira. A narradora-personagem no texto da Jade queria algo mais do seu namorado (em algum momento decide ou pensa em trair o mesmo para ter alguma ajuda mas despesas porque o namorado era desempregado) e a Arminda quer se sentir viva, e trai o marido não por conta de bens materiais, até porque engravidou de homem que dormia numa cabana, o John. Há aqui duas formas de ver as coisas, onde, num jeito de provocação, acaba-se tendo em conta que nunca, de facto, se satisfaz uma mulher. Ou essas Duas estórias demonstram o quão o ser humano, no geral, aqui sendo mulheres, de dois lugares diferentes, uma de Maputo e outra de Inhambane, nunca fica satisfeito. Para coisas dessa natureza, há sempre o J. Cole que diz, “[there’s] no such as a life better than yours” (in love yours, mp3), apesar dos textos não trazerem aqui uma comparação das vidas das protagonistas e outros personagens.

Segundo que a forma como esse texto termina não satisfaz o leitor, para ser bem sincero, o texto propõe um caso de traição, teria o seu clímax no confronto entre o marido e a esposa já gravida ou quando este descobre a traição. Há esse encontro, entretanto, mas não há drama, não há aqui insultos, sangue advindo dessa colisão, desse choque. Havendo, é ligeiro que depois de termos lido, ainda vamos procurar por algo que nos s dela volta sua casa, matar o filho, e entregar-se na policia não é, ao de todo, incoerente com a proposta inicial, de traição.

Pelo contrário, são eventos que advém dela, mas, nesse caso, nesse texto, apenas prolongam o texto desnecessariamente. Também, a autora poupa falas dos outros personagens, do Adalima, por exemplo, apenas nos é dito pelo narrador, mas voz própria não possui. De igual modo, a sua mãe. Qual é a reação da mãe vendo a filha voltando do lar por conta de traição?

Quando a Arminda mata o filho, a mãe se opõe ou não? A Fernanda deveria ter dado voz a essa mãe. Não ficando por aí, num caso desses, o que a sociedade diz sobre isso?

Regular

 

  1. Comandante José de Iraneta Campos

O conto é sobre um José que ascende no dia vinte de Dezembro à comandante. Torna-se um novo líder do quartel. Por conta disso há uma festança, que acaba caindo perdendo a consciência por alguns segundos. Já coronel, ele manda matar toda população de Moamba, mas um escapa, o Nabucodonosor. Esse, sem saber o mandante, vai no quartel para relatar o ataque, mas acaba morto por comandante José.

Esse texto tem dois momentos, e ainda bem que tem porque, lendo desde o início, esse fim é um pouco deslocado. Pela ordem das coisas, o protagonista é o Comandante José, mas o texto, já na parte II, foca muito no Nabucodonosor, a sua fuga, a forma como chega no quartel, descobre que o mandante, afinal, era o comandante daquele quartel e acaba assassinado por ouvir a conversa atrás da porta. Numa narrativa mais longa como novela ou romance esse não é um problema, mas o conto é uma narrativa breve.

Por exemplo, por conta dessa troca de foco, ficamos sem saber os motivos pelos quais o comandante decidiu matar toda uma comunidade. Há um motivo por trás, qual é? Só porque é mau, como é referido ainda no início da narrativa?

Quando decide enviar pessoas para matar pessoas, uma comunidade inteira, não há quem se oponha, ache isso demasiado? Porque matar uma pessoa é uma coisa, agora uma comunidade inteira. E o que ele diz às autoridades. Provavelmente, se a autora tivesse dado mais atenção às falas, certamente teria dado muito disso. A fala/discurso num texto narrativo não é uma ornamentação, é uma oportunidade para enriquecer o texto, trazer mais vozes diferentes, contrarias, contraditórias. Tal como os personagens, não são objectos lá só para ornamentar um texto.

Essa separação de foco acaba sem dar um conflito ao Comandante, mas à comunidade e ao Nabucodonosor. Parece que a estória termina e ao Comandante José nada acontece. É elevado a comandante, mata pessoas, e fim.

Satisfatório

 

  1. Da Minha vida cuido eu de Natércia Chicane

Esse é daqueles textos que se notam que a autora preocupou-se mais com o sobre e o activismo/conscientização do que propriamente com a forma, ou e a história é contada.

Caracterizada por muitas falas. A protagonista, Flôr, acorda e vai ao mercado comprar carvão. Ao comprar carvão um senhor conservador, “negro, por dentro e por fora” (p.99) — fica no ar a questão sobre o que isso possa significar — interpela-a e a insulta por seu jeito de ser, homossexual. Ela apenas ignora o senhor e vai para casa. Lá debate-se com o chefe do quarteirão, mas acabam se entendendo. Além daquele mau estar no mercado com o senhor negro por dentro e por fora, que não dá em nada, aparentemente, não há mais nada. O texto segue até o momento em que vem o chefe de quarteirão, que não dá em nada.

Há aqui falta de suspense, de querer saber o que, de facto, de grave, conflituoso, acontece à Flôr, e acima de tudo, como é que ela reage a esse mesmo evento conflituoso. Isso é que faz um conto ser um conto, não necessariamente a história que é contada, apesar dessa história ser actual. Essa história só é capaz de ser notada e elogiada por conta de agendas meramente políticas e de activismo, e não literários. Como dizia Malangatana, quando estou na oficina, não sou deputado (ou politico) sou artista.

Insatisfatório

 

  1. Corpo de vidro de Sonisa Bavá

Um texto bastante truncado, de difícil leitura, compreensão e, um leitor comum, perde o fio facilmente. É sobre uma moça, de cerca de vinte anos (ou, há quase vinte anos que não conhece alguém como o emissor canceriano, o que pode significar outra coisa), que sendo solitária e espiritual conhece um jovem, aqui tratado como emissor canceriano (apesar de, em algum momento do texto, a moça faz o papel de emissor e o jovem de receptor). Ela acaba sentindo que esse jovem canceriano tem uma 8 Por exemplo, por g dessa troca de foco, ficamos que não sente com uma outra pessoa, e é por isso que esse jovem canceriano merece ser chamado de guru espiritual e também conselheiro.

Um pré-romance que acaba, no texto, com palavras não ditas, suspiros não feitos, e os dois fazendo chamadas sem ter, parece, coragem para ir a algo solido. Continuam assim, receptor e emissor. Essa forma de identificar os personagens faz com que se perceba a distância que existe entre os dois, que, a única coisa que lhes aproxima, são as chamadas em vídeo, graças à avanços tecnológicos.

A autora usa muito esses termos que acaba mesmo dificultando essa mensagem. Pensa-se, por vezes, que é um texto sobre tecnologia avançada, e trata a interação entre os dois como se fossem chamadas interplanetárias, mas é sobre um lance, que ainda está a começar, com aquele cuidado e estranhamento típico quando tudo ainda está a iniciar, o primeiro encontro físico caracterizado pela timidez e o medo de não dizer algo a mais.

Bom

A antologia “Todas as Coisas Visíveis” é mais do que uma colectânea de textos escritos por mulheres, é um testemunho do esforço e da ousadia de narrar em um espaço que historicamente lhes foi negado, onde as condições materiais, e culturais, não propiciam essa viagem na literatura, por isso, como uma das autoras escreveu na mini bio, só o faz em tempos livres. Apesar das lacunas narrativas e técnicas apontadas, é evidente que há um pulsar criativo que merece ser incentivado e lapidado. Este exercício crítico não visa anular o mérito das autoras, que só pelo não simples facto de terem publicado já merecem aplausos.

Mas visa abrir caminhos para que, com mais oficinas, leituras e persistência, a literatura feita por mulheres ganhe o lugar de relevância que lhe é de direito no cenário moçambicano.

 

A política africana, desde a alvorada colonial até os regimes pós-independência, especializou-se numa arte perversa: a de calar os seus profetas com convites para chá. O chá, aqui, não é bebida — é o ritual de domesticação. Um convite à mesa do poder onde, sob o pretexto de diálogo, se esvazia a rebeldia e se negocia a dignidade. E ontem, mais uma vez, Moçambique viu repetir-se este ritual secular.

Venâncio Mondlane, o homem que o povo chama de “Presidente do Povo”, voltou a sentar-se com Daniel Chapo. A mesma mesa, o mesmo silêncio, a mesma promessa reciclada nas redes sociais. A mesmíssima frase ensaiada: “Vou tratar de interesses do povo”. Um script previsível, sem uma vírgula de novidade, sem uma palavra de coragem para nomear os mortos das manifestações, os mutilados da repressão ou os órfãos da democracia fraudada.

A Frelimo, fiel ao seu manual de poder, mesmo quando perde, governa. Mesmo sem voto, toma posse. Mesmo sem povo, mantém o palácio. Deixa que o povo se manifeste, reprime, mata, amedronta. E quando a panela social ameaça explodir, oferece chá aos que gritam mais alto. Um diálogo disfarçado de reconciliação, onde o único objectivo é prolongar o controlo e legitimar o ilegítimo. Assim foi em 1992, em 2014, em 2019, 2024 e assim está a ensaiar-se para 2029.

A Frelimo, mesmo quando perde, leva. Perde nas urnas, mas leva nos tribunais. Perde nas ruas, mas leva nas balas. Perde no discurso moral, mas leva nas alianças de bastidores. É um regime que não cede lugar, apenas simula reformas. Não reconhece derrotas, apenas reconfigura a narrativa. A cada eleição, o povo vota — mas é o sistema que escolhe.

O que vemos não é democracia. É o teatro da alternância impossível. Um jogo em que o árbitro, o campo e as regras pertencem ao mesmo time. E quando o povo se cansa e decide levantar-se, como em 2023, o regime liberta a repressão: persegue, mata, aprisiona. Depois, quando sente o cansaço da massa, surge com a velha fórmula do diálogo: “Vamos conversar”, dizem. “Pelo bem da nação”, mentem.

Mas esse diálogo não é sobre reconciliação — é sobre reconfiguração do controlo. Permitir que o povo fale, para melhor silenciar. Ouvir as dores, para transformá-las em pretextos de estabilidade. Fingir abertura, para garantir mais tempo no trono. Sempre foi assim. Quando o povo está de pé, eles chamam para sentar. Quando o povo grita, eles oferecem microfones desligados. Quando o povo morre, eles escrevem comunicados de condolência e avançam com as campanhas.

O povo, esse mesmo povo que sepultou filhos sem caixão e que enterra esperança a cada ciclo eleitoral, perguntou indignado: “E nós? Onde vamos ser presidente?” “Que interesses são esses que não suportam a luz pública?” “Que diálogo é esse onde os nossos mortos não cabem na pauta?”

Nada disso foi respondido. A tradição africana é essa: quando o rebelde começa a incomodar, o palácio o convida. Quando aceita o chá, perde a rebeldia. É o método de sempre: Prometer o novo, repetir o velho. Falar em nome do povo, agir pelos interesses do palácio. Dialogar pela paz, perpetuar o controlo.

Desde os chefes tribais vendidos aos traficantes de escravos até aos líderes nacionalistas cooptados pelos colonizadores, a política africana tem sido um palco de diálogos privados que selam destinos públicos. Samora negociou com os portugueses em 1975, Mandela com De Klerk em 1990. E o povo? O povo ficou à porta.

As decisões sobre as nações africanas foram sempre feitas à sombra de palmeiras, de palácios ou de conferências internacionais onde os filhos da terra não tinham assento. Berlim 1884, Sentem o gosto amargo de Mueda, em 1960, onde o colono prometeu paz e entregou massacre.

Lembram a Paz de Roma, em 1992, que calou as armas, mas manteve os privilégios. Recordam o Acordo de Cessação das Hostilidades de 2014, assinado como segredo de Estado— os acordos mudam de lugar, os protagonistas mudam de nome, mas o método permanece. E as consequências recaem sempre sobre o mesmo: o povo.

Quando a elite política africana se senta para dialogar, raramente é pela paz dos povos. É, quase sempre, pela sobrevivência mútua das elites. Por isso, amnistiam-se assassinos, enquanto se esquecem vítimas. Aliviam-se os carrascos, enquanto se condenam as mães das vítimas a uma dor perpétua. Assim foi na Angola de 2002, no Zimbabwe de 1987, na RDC de Kabila, no Sudão de Bashir, e assim o ciclo continua. Tudo sempre entre homens de fato, atrás de portas fechadas, em nome de um povo ausente.

As amnistias na política africana não apagam o sangue derramado, apenas legalizam o esquecimento.

Venâncio Mondlane não é um político qualquer. Ele carrega o simbolismo de quem desafiou tribunais domesticados, enfrentou partidos militarizados e ousou verbalizar as dores caladas do povo. Por isso, sua aproximação ao palácio não é mero gesto político — é uma ferida aberta na confiança popular.

Ao repetir a mesma mensagem insossa, descontextualizada e sem prestação pública de contas, Mondlane reproduz o velho expediente dos que entram rebeldes e saem domesticados. A história africana sempre teve dois destinos para os insurgentes: ou são mortos, ou cooptados. Arebeldia sempre foi perigosa demais para ser deixada solta.

Mas, se a elite política africana conserva os vícios, o povo africano já não é o mesmo. Os filhos já não são obedientes. Questionam: Pai VM, por que entraste e nos deixaste cá fora? Pai VM, onde está o relatório do encontro anterior? Pai VM, e os nossos mortos, ficam onde?

Esse é o princípio da maturidade política. Um povo que já não se satisfaz com comunicados, que recusa panos quentes e exige relatórios públicos. Um povo que percebeu que quem negocia no escuro prepara traição à luz do dia.

A Frelimo sabe jogar esse jogo. Perde no voto, mas vence no controlo. Toma posse pela força, governa pelo medo. Desativa o protesto com convites. Apazigua a revolta com comissões e ensina os opositores a beber chá. Um sistema que se recusa a deixar o poder e que transforma qualquer aproximação política numa estratégia de sobrevivência. Por isso, cada vez que um líder da oposição é convidado para chá, não é sobre paz — é sobre permanência.

Mas há um elemento ainda mais perverso nesse ritual do chá: ele não serve apenas para domesticar o profeta — ele salva o regime. E em Moçambique, o regime tem nome e sobrenome: Frelimo. Um partido que perdeu a alma revolucionária, mas reteve as engrenagens do poder. Um regime que já não vence nas urnas com legitimidade, mas que continua a governar com a força da máquina.

Mas essa estratégia tem prazo. Porque a África de hoje já não é a de 1884, nem a de 1960. É uma África de órfãos que já não se contentam com amnistias para assassinos e promessas para as vítimas. Que não aceita mais lideranças messiânicas, nem figuras paternas. O povo quer dignidade, quer justiça, quer voz.

A política africana é um ofício cruel: ela não suporta vozes livres. Toda voz que se ergue ou é silenciada, ou convidada para chá. Quem aceita, invariavelmente sai com o gosto amargo da domesticação.

E Venâncio precisa entender isso. Precisa saber que quem aceita chá sem prestar contas ao povo, já não representa o povo. Quem se senta com o opressor sem exigir justiça pelos oprimidos, já não é voz — é eco. E o povo, que lhe depositou fé e esperança, hoje exige mais que palavras.

Exige posições.

Se Venâncio Mondlane quer honrar os mortos, que recuse o chá. Que convoque o povo. Que rompa o ciclo secular da política do silêncio. Se não fizer, será mais um. E o povo, cansado de ciclos viciados, saberá cobrar.

Como advertia Amílcar Cabral: as pessoas não lutam por ideias. Lutam por coisas. E o povo moçambicano luta hoje por justiça real, transparência pública e memória preservada. Se Venâncio quiser fazer história, que leia os ventos da história. Porque quem não ouve o clamor do povo, cedo ou tarde, é varrido por ele.

Esta história começa com um casamento no qual não fui convidado para a festa do salão, só fui convidado para o Xiguiane (conto isto para entenderem por que é que fui para a cerimónia já com um olhar crítico). O xiguiane foi num quintal aberto, algures na cidade da matola e, como não tinha sido convidado a festa do dia anterior no salão (acho que já tinha dito isto) cheguei cedo porque não estava cansado e isso me permitiu ver a festa desde o início, incluindo aos últimos acertos antes da chegada dos compadres, os famosos masseves nas várias línguas do sul.

Após uma ligeira espera, quando as mesas já estavam compostas, as chamussas e os rissóis já tinham sido devorados, os banhos-marias já estavam aquecidos para receber a comida, eis que os compadres decidem aparecer com a noiva. Antes da sua entrada, houve a tradicional cerimónia da troca de notas de metical penduradas no caniço (de forma breve: a família da noiva e a família do noivo devem, cada uma delas, sem combinação prévia, conseguir hastear, num pau de caniço, uma nota de metical com o mesmo valor. A família da noiva só entra na casa da família do noivo quando ambas conseguirem fazer esse acerto).

A cerimónia continuou, cortou-se o bolo, comeu-se e bebeu-se (aqui em voz baixa: descobri que algumas pessoas, que não foi o meu caso, espero que não duvidem de mim, rejubilaram por não terem sido convidadas à festa do dia anterior no salão porque, segundo as normas da religião da noiva, o álcool era totalmente proibido). De seguida chegamos a um dos momentos que me é favorito nas cerimónias de casamento e outras cerimónias comemorativas de grande envergadura social: a entrega dos presentes.

O mestre cerimónias passou pelas mesas e, com uma folha A4 ajeitada na hora, foi recolhendo os nomes dos grupos que haveriam de desfilar pelo “tapete vermelho”, que é um corredor que é montado para os grupos desfilarem enquanto se dirigem à mesa dos noivos para entregar os presentes. Diferente das cerimónias no salão, onde a entrega dos presentes é mais discreta, pois há uma mesa reservada para depositá-los, no dia de xiguiane os grupos de familiares, amigos, vizinhos, entre outros, esmeram-se entre cânticos, danças e nos detalhes na hora de realizar esta entrega. Tudo é passado a pente fino e merece um cântico, uma dança, uma mensagem especifica. 

O ralador, o pilão, a peneira, o copo, o cesto, o relógio, a mala…. Nada passa despercebido, pelo menos nas tradições do sul do país, que é de onde escrevo este texto. Há, inclusive, normas para a ordem dos grupos. Por exemplo, os pais do noivo e/ou os padrinhos, são sempre os últimos a entrar em cena.

Só de pensar neste momento tradicional e criativo que se aproximava, cheguei até a pensar que tinha sido bom não me terem convidado ao salão, porque a verdadeira festa mesmo era o xiguiane (esse era eu a tentar consolar-me por ter sido minhado no salão).

Porém, para a minha decepção, quando o primeiro grupo ia entrar, devia ser um grupo de primos ou amigos, no lugar de cantar à capela e em grupo, pediram ao DJ para tocar uma música e foram seguindo o som que emergia da coluna! Pensei que tivesse sido casual, mas a façanha repetiu-se em praticamente todos os grupos seguintes e muitas das músicas que o DJ tocou foram sendo repetidas. As vozes à capela e em grupo foram substituídas pelo som de “JBL’s”, o soprano daquela tia ou o tenor daquele tio que, a qualquer momento, podiam sempre reinventar a letra, alterar o ritmo, adicionar uma nova emoção, tudo para adptar o cântico à ocasião, fazendo sobressair a criatividade momentânea e, sobretudo, resgatar e dar vida a cânticos e ritmos tradicionais que vem (ou vinham) atravessando décadas e, se calhar, séculos. O clássico “yho yho…sê wa nguena padrinho” (Yho yho… agora já vai entrar o padrinho) perdeu-se algures entre o spotify e o youtube do DJ. Senti o toque de humanidade a se esvaziar na automatização que estava entre o aumentar e o diminuir do volume.

Não foi a primeira e nem a última cerimónia que esta substituição do “tradicional” pelo “moderno” acontece, mas tenho sentido que vem acontecendo num ritmo acelerado. Goste-se ou não, os cânticos em grupo, à capela ou ao som do batuque, da xigovia, da mbira, da guitarra, estão a desaparecer das nossas cerimónias, sobretudo nas zonas urbanas.

Mas por quê isto? Uma das razões, penso eu, é que se, num passado, os cânticos e as danças, eram comumente ensinados aos mais novos de forma muito espontânea e genérica dentro das comunidades, de uns tempos para cá, com a degradação do sentido de comunidade, sobretudo nas zonas urbanas, tal já não acontece. Chegados a um estágio sócio-histórico em que “quase ninguém” se lembra como é que se canta para, por exemplo, entregar presentes, ou, por exemplo, dirigir as cerimónias fúnebres, os cantores visionários já encontraram solução. Gravaram os sons tradicionais e os tornaram amplificáveis nas JBL’s, permitindo assim que não se esteja mais dependente do tenor daquele tio ou do soprano daquela tia, cujo papel dela nas cerimónias era exactamente esse, o de dirigir os momentos musicais.

Adicionalmente, pode haver outra hipótese que não anula a primeira: a comodidade. Vamos combinar, é mais cómodo pedir ao DJ lançar um som da Marlene ou do Mr. Bow, do que nós próprios usarmos a nossa voz ou, pior ainda, termos a obrigação de participar naqueles ensaios “chatos” que antecediam às cerimónias de grande envergadura social, como o casamento (Para pessoas como eu que tem as notas vocais tortas de nascença, esta solução é duplamente cômoda). A vida corrida da cidade não nos permite ter esse tempo de ensaiar, seja em família, na comunidade ou grupo coral da igreja.

Por outra, ainda na senda da comodidade, o tradicional está cada vez mais caro para os urbanistas.

Para quem deseja desafiar a modernização desses momentos e pretenda ter um grupo tradicional para animar a sua cerimónia, vai ter que adicionar mais uma linha no orçamento e tem de ser uma linha recheada porque estes grupos tradicionais não cobram barato, daí ser realmente mais cómodo confiar no DJ e o passado e o tradicional que entendam.

E no meio disto pergunto-me, onde está a famosa identidade africana que vamos celebrar no dia 25 de Maio? Reinventou-se ou desapareceu de vez? Ou se calhar nem interessa assim tanto pensar nela? Ou o que interessa é vestir uma peça de capulana e o resto é resto? Daqui a alguns anos teremos, por exemplo, nos ritos de iniciação no centro e norte do país, JBL’s a substituírem o grupo de mulheres e de homens que tem animado essas cerimónias porque o “moderno” ficou mais cómodo e barato em relação ao “tradicional”. E se calhar não deve faltar muito para que o “loku ni file mu nga ni rilenee… a milhoti yha nwina yhi ni pfalela tilo”, que é cantando nas cerimónias fúnebres, seja tocado na JBL. (tradução: Quando eu morrer não chorem por mim! As vossas lágrimas vão me vedar o acesso ao céu).

E agora? Estão a ver problemas que criaram por não terem me convidado ao salão?!! Evitem!.

 

O Gabinete de Candidatura a Secretário-geral da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO), encabeçado pelo escritor, crítico literário e Professor, Luís Abel dos Santos Cezerilo, torna pública a sua candidatura constituída por 98% de jovens que perfazem a lista como órgãos sociais. Uma candidatura apresentada por jovens escritores, que cientes da necessidade de criar-se uma revitalização e nova dinâmica na AEMO, unem sinergias para que, através de seu engajamento, os escritores, tenham espaço aberto para todos e a diversidade de vozes da literatura moçambicana tenha uma convivência saudável, confluência de gerações e criação de parcerias para internacionalizar a literatura moçambicana.

Pelo facto de avizinhar-se o pleito eleitoral referente a sucessão da actual direcção da AEMO, depreende-se ser necessário ter-se uma liderança que confira dignidade a esta agremiação e que aquiesça a convivência inter-geracional garantido a continuidade do legado iniciado por José Craveirinha e entre outros, como resposta a dinâmica social, política e cultural da contemporaneidade.

Este manifesto tem como pressupostos as seguintes linhas: promover o hábito da leitura, eventos e festivais, desafios literários, revisão de pares, recursos literários, plataforma online, diversidade literária, divulgação literária, fomentar a criatividade e colaboração e cooperação.

Luís Cezerilo, tem uma larga experiência na literatura, destaca-se na valorização da literatura moçambicana e no fortalecimento da identidade cultural, por via de suas publicações e estudos literários sobre a poesia de José Craveirinha, bem como, a de Eduardo White. A candidatura de Cezerilo conta com a parceria de entidades como a Editora Moderna de Angola, que manifestou recentemente a sua  total disponibilidade para estabelecer uma parceria estratégica com a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), representada por este candidato, e esta parceria consiste em estabelecer um quadro da edição, promoção e circulação de obras de autores moçambicanos, edição conjunta de autores moçambicanos, com padrões editoriais internacionais, garantindo rigor, qualidade gráfica e ampla distribuição nos mercados angolano, moçambicano e em outros países de língua portuguesa; promoção de intercâmbios culturais, através de lançamentos de obras, feiras do livro, conferências e residências literárias, aproximando os escritores de ambos os países e projectando a voz da literatura africana lusófona no mundo; concessão de prémios e distinções conjuntas, que incentivem a produção literária de qualidade e reconheçam o mérito dos escritores que promovam o diálogo cultural e a inovação estética; definição de um plano editorial bienal, onde ambas as instituições participem na escolha de autores.

“Estamos convictos de que, sob a liderança visionária de V. Exa. Sr. Luís Abel Cezerilo, este caminho de cooperação poderá ser iniciado com pragmatismo e visão estratégica, garantindo benefícios concretos para os escritores moçambicanos e o fortalecimento das nossas literaturas nacionais no contexto internacional.” Lê-se do comunicado da Editora Moderna de Angola.

Luís Cezerilo tem uma dezena de livros publicados, é patrono da Associação Casa Museu, um lugar de encontro de artistas nacionais e internacionais para a divulgação da literatura, artes plásticas e música. É Pós-Doutorado em Estudos Literários pela Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho *UNESP-Campus de Araraquara (2009); Doutor em Estudos Comparados de Literatura Africana de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) em (2005); possui graduação pela Universidade de Évora (1999), Professor Auxiliar na Universidade Eduardo Mondlane em Moçambique-Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Membro Fundador do Núcleo de Pesquisa de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Camilo Castelo Branco.

Juntos, podemos fazer da nossa AEMO um farol da excelência literária e um espaço onde todos os escritores possam florescer.

XV capítulos — quinze passos de Salomão rumo a um território onde os sonhos se desfazem e as escolhas têm gosto de sangue.

Sangue em Flecha, de Suzana Espada, vai além de ser o percurso de um jovem tragado pela vertigem do prazer e da irresponsabilidade, ou seja, é o reflexo estilhaçado de uma sociedade em que o masculino se edifica pela violência, pelo domínio e pela recusa da ternura. 

Narrado na primeira pessoa do singular, o romance permite ao leitor aproximar-se da perspectiva de Salomão, expondo, através de sua própria voz, as contradições e fragilidades.

Salomão não foge apenas da rigidez do pai, que transforma o lar num quartel, como ele próprio afirma: “A nossa casa era uma academia militar” (p. 27), mas também da responsabilidade de assumir as suas escolhas. 

Formado em Economia por imposição paterna, quando o que almeja é ser fotógrafo, Salomão parte para Mapulanguene com a câmara ao pescoço e nas costas o legado de uma masculinidade forjada na escassez de afecto e na obediência automática. É nesse ambiente rural, supostamente apaziguador, que se apaixona por Elisa, uma das mulheres do seu tio Arão.

O protagonista da história se descreve como alvo do desejo feminino, centro das atenções, mas suas relações são marcadas por superficialidade, vazio emocional e instrumentalização do outro.

Suzana Espada, com a narrativa, constrói uma crítica subtil à masculinidade tóxica, não por meio de denúncia explícita, mas sim pela exposição crua da subjectividade de um homem em colapso.

Salomão caminha entre um pai autoritário e uma mãe que “fazia as coisas ao seu gosto”, entretanto, incapaz de cortar o vínculo infantil que o imobiliza, permanece preso a uma adolescência estendida. As bofetadas dadas pelo seu pai que ainda recebe aos 30 anos, a falta de interesse no trabalho, os envolvimentos sucessivos com mulheres que não ama, tudo isso aponta para um indivíduo que não amadureceu, embora se esforce por parecer firme.

A sua ida a Mapulanguene é motivada pelo desejo de respirar longe do ambiente repressivo em que cresceu e de explorar a paixão pela fotografia em novos cenários. Enquanto trabalha como motorista para um português — o Mulungo — é surpreendido pelo seu primo Romão, que lhe propõe integrar num projecto supostamente financiado pelas Nações Unidas, em Joanesburgo. A proposta soa promissora, mas não passa de uma armadilha. Salomão acaba conduzido a uma zona isolada, onde é forçado a entrar no mundo da caça furtiva, coagido pelo medo de represálias à sua família, caso recusasse.

O mundo em que se envolve é regido por códigos perversos: ali, o silêncio é comprado com ameaças, e o dinheiro nasce do extermínio da vida selvagem. No primeiro dia, três rinocerontes são abatidos — numa sequência que mistura brutalidade e rituais: os envolvidos procuram curandeiros para tornarem-se invisíveis aos olhos da polícia sul-africana, no Kruger Park. No entanto, o que se torna realmente invisível é o valor pelos animais, como lembra John Berger, em Why Look at Animals?, “ o animal tornou-se segredo que não se partilha”. 

No romance, a caça furtiva é o espelho da degradação humana, da corrupção dos vínculos e da falência ética de uma sociedade que aprendeu a substituir afecto por lucro.

Com o “dinheiro sujo”, o protagonista compra um Mazda dupla cabine — um veículo ironicamente vendido por Romão — e regressa a Maputo. Lá, tenta preencher o vazio com prazeres imediatos: procura uma mulher na Rua Araújo, que passa a ser sua conselheira nos conflitos conjugais com Lídia.

Embora consiga se libertar da caça furtiva e, posteriormente, funde o projecto Casa da Natureza com o intuito de sensibilizar comunidades para a protecção ambiental, essa mudança não consegue apagar o rastro de destruição que deixou. É um gesto de redenção, mas tardio, talvez impulsionado mais pelo peso da culpa do que por genuína transformação interior.

Sangue em Flecha, apesar da força temática, sofre de certa previsibilidade, que acaba por enfraquecer a tensão narrativa. A linearidade dos acontecimentos, a ausência de momentos verdadeiramente desconcertantes limitam a capacidade do texto de surpreender o leitor.

Ainda assim, o livro oferece um terreno fértil para discutir temas relevantes e contemporâneos: o tráfico de animais, as masculinidades tóxicas, a juventude desencantada e as falsas promessas de ascensão.

Ao fim da leitura, é como se uma flecha também nos atravessasse — não no corpo, mas na consciência. E talvez o romance nos interpele: quantos homens, como Salomão, confundem liberdade com a ausência de responsabilidade?

 

A Associação dos Escritores Moçambicanos convocou, no passado dia 19, os seus membros para a realização da sua Assembleia-geral, acto que culminará com a eleição de novos corpos sociais. Qualquer eleição a este nível será sempre um jogo, e ao expressar “jogo” não disse “guerra”. Uma guerra ocorre entre inimigos e há morte. Um jogo ocorre entre adversários que se multiplicam em estratégias conducentes à derrota do adversário.

Uma derrota eleitoral não significa o fim último das relações entre os contendores, pelo contrário reaviva a esperança de vitória numa próxima partida. Contudo, depois da eleição passada da AEMO testemunhamos uma espécie de desaparição de escritores, o que nalgum contexto pode significar mesmo morte social, etc. Para a presente eleição decidi, instigado por alguns confrades, candidatar-me ao cargo de Secretário-geral da AEMO.

Como futuro candidato, espero uma disputa diferente, caracterizada por uma campanha eleitoral, onde impere o debate de ideias, sobre projectos apresentados pelos candidatos, condizentes ao progresso da literatura moçambicana: entro nesta disputa interessado em discutir pontos de vista e não pessoas ou supostos erros de secretariados passados.

Mora um pecado original na discussão de pessoas, este que resulta do facto de as agremiações nacionais andarem empenhadas em fazer eleger pessoas e não projectos viabilizadores de algum crescimento institucional, logo a pessoa torna-se alvo preferencial dos debates. Nesta eleição, em que os membros da AEMO têm a oportunidade de eleger o seu XII Secretário-geral, apelaria ainda ao respeito à própria capacidade de discernimento individual, de modo a não mover-se massas intelectualizadas no sentido de votar em pessoas. Nos próximos dias há risco de vermos uma “vara” de “escritores” a caminharem “like zombies” no sentido de voltar em quem um determinado mestre aponta: aquele é o nosso HOMEM. Um escritor é um ser pensante e quem pensa não sente algum incómodo em estar fora do rebanho, pelo contrário, abrirá sempre a trilha do seu próprio destino, levado pelo seu pensamento. Passo a partilhar um excerto de um poema que influencia a minha existência desde que dei conta de ser sujeito homem, “Cântico Negro”, de José Regio: .

 

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui!”

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

 

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

 

E porque estamos no campo literário, e o nosso régio, por cá, uma vez aqueceu a opinião pública ao falar, num dos debates em que participa, de “histeria das massas”. Escritores dignos de sê-lo devem também estar imunes dessa manifestação colectiva de pessoas que acreditam sofrer de uma mesma doença. As artes e a literatura em particular são um campo de rivalidades que podem catalisar a criação de magníficas obras, dada a competitividade associada. Todavia, apenas haverá rivalidade onde existam, no mínimo, dois talentos invulgares. Mas, ocorre no meio disto também a pura inveja pela capacidade criativa alheia. A pura inveja não tem capacidade de combater o talento alheio com talento, há-de sobreviver no meio artístico pela maledicência, recrutando igual mediocridade para formar um rebanho que se alimenta de irracionalidade. Um escritor não é um ser irracional e não deve ir às urnas alimentado de cegos instintos.

Ignorados cegos instintos, tenho comigo a ideia de ser de extrema falta de respeito à inteligência de outrem, nesta altura do campeonato, o desdobramento em meros pedidos de votos. Numa eleição digna da AEMO os membros devem ter a oportunidade de reflectir sobre projectos a serem apresentados por cada candidato, pois simpatia e boa vontade em si não dirigem eficazmente as instituições. Portanto, em respeito aos nossos confrades, sobretudo à capacidade individual de discernimento, de cada escritor, os candidatos que se propuserem a esta eleição, que façam uso do tempo que dista da eleição do dia 26 de Julho para apresentar ideias e projectos, para serem escalpelizadas em tempo útil, sem riscos de induzir o voto a incidir em simples listas de intenções disfarçadas em manifestos eleitorais, sem nenhuma capacidade de execução e meios.

Por uma eleição consciente!

 

“Que se calem as armas, pois o meu coração está apertado. Que vivam todos aqueles que acreditam no amor. Como viver sem celebrar a amizade? Como viver sem sonhar que, um dia, seremos todos amigos?”

Dos mais variados e assombrosos materiais e equipamentos que a humanidade ousou construir — e que o mundo consagrou como eternos —, o livro deve, seguramente, ser o mais poderoso e importante, ocupando o lugar cimeiro no ranking da criatividade. Das escrituras sagradas até ao mais fútil e desprezível dos livros, as suas páginas retractam a própria humanidade, o seu percurso e as suas maiores conquistas. Jorge Luís Borges, escritor e poeta argentino, no seu livro “Ensaio”, colocava o livro como inigualável de entre todas as invenções humanas. Todas as restantes seriam, como dizia, extensões do próprio corpo humano. O microscópio e o telescópio seriam extensões da vista, o telefone o prolongamento da voz, o arado e a espada eram as extensões do corpo.

Porém, o livro, era tudo isso e um pouco mais; era a extensão da memória e da própria imaginação. A gloriosa viagem entre o recordar de sonhos ou o revisitar de um passado mais alegre, tenebroso, memorial, retroactivo ou transacto. Se o livro é tudo isso, então, pela leitura os humanos transcrevem o tempo decorrido até a modernidade, pós-modernidade ou o futuro. Podemos, até, discordar das opiniões dos livros e dos seus autores, podem existir conceitos que o tempo prova estarem errados; ainda assim, descobrimos, em cada livro, algo de sagrado e divino, personagens, ideias, justiça e protagonismo, reflexões, os espelhos da empatia, relatos que assombram, ficção irrealizável, histórias abençoadas e, acima de tudo, o desejo de reencontrar no final da leitura a felicidade e a sabedoria.

Vem este intróito a propósito do livro “Observador de Sonhos”, escrito e lançado em 2024, fora dos holofotes e parangonas dos jornais ou das revistas de especialidade. É um livro fortemente influenciado pela oralidade e tradição africana, que combina uma linguagem moderna com recursos que evocam os ecos da tradição oral. Escrito por Bruno Morgado, jovem de múltiplos talentos e, sobretudo, com imensa sensibilidade para os desafios da vida e que reflecte esse ambiente urbano para um país que tem distintas veias e artérias, sempre tão desiguais e com sensibilidades distintas. Morgado faz um apelo, e com facilidade, mergulha em temáticas existenciais, explorando a solidão, o amor e um mergulho na modernidade e nos seus perigos e descasos.

É um livro que, convenhamos, retoma toda a teoria desenvolvida por Friedrich Schiller, poeta e filósofo alemão, na obra “A educação Estética do Homem”, que considerava que escrever corresponde a viver e sonhar, e sonhar com o prazer equivaleria a ser sábio. Schiller era apologista de que a arte de escrever deveria servir uma finalidade que transcendia a finalidade educativa e de formação do intelecto. Essa teoria ressoa e traz de volta as passagens desenhadas e pintadas pelo escritor e poeta Bruno Morgado. Com efeito, esses escritos, ainda que desinteressados e sem o intuito de entrar para o mundo da literatura, edificam essa grande obra de arte da vida. Escrever, escrever e escrever, enaltecendo a vida e o mundo.

Calane da Silva, nosso saudoso escritor que perdura em nossas memórias, conviveu com a família Morgado e sublinhou, em sua trajectória, a existência de inúmeros escritores anónimos na literatura moçambicana, cujas obras ainda carecem de leitura e apropriação por parte do grande público. Aqueles que, à boa maneira de George Orwell, sem precisarem de ser compulsivos, debruçaram-se sobre a actualidade social e política do seu tempo, num olhar implacável, tendo como trave-mestra a cosmovisão e a denúncia dos exageros e da indignação. Porém, existem aqueles que se mantêm anónimos em vida e se fazem conhecidos já na eternidade quando só podem dialogar com Deus. Escritores cuja pena lírica, de tantos anos, apenas se torna conhecida bem mais tarde. Está é a descrição que Calane prefaciou no livro “Poemetria” de Carlos Morgado, por sinal, progenitor de Bruno Morgado, que, igualmente, fartou-se de escrever em folhas A4 soltas, guardanapos de papel de restaurantes, interiores de capas de revistas, enfim, em tudo por onde era possível colocar um lápis e uma caneta.

Carlos Morgado pode ter dado o mote ao seu filho, apesar dos estilos de escrita diferenciados. Ele dedicou-se, fundamentalmente, à poesia lírica e por vezes dramática, muitas vezes didáctica, e à ode ao amor e felicidade, sem abstracções ou limitações. A sua obra veio ao grande público, e ao mundo da crítica literária, 10 anos depois de ter partido para o encontro do Redentor. Morgado pai deixou para o Moçambique essa capacidade firme de sonhar, apesar das adversidades, e a certeza de que sonhar seria uma forma de reconciliar e instigar ao próximo o sentimento e crença de que nada seria mais importante do que acreditar no país, na sua potencialidade e capacidade de oferecer ao cidadão o essencial.

“Poemetria” foi o título que Carlos Morgado nunca sonhou para o seu livro. Os outros o fizeram por ele. Os títulos não expressam a inspiração e nem sempre os tempos. Assim, Calane da Silva questionava se a poesia teria medidas, se teria tamanho e se a lírica poderia ser quantificada. Estas indagações surgiram-me de imediato quando lia e desfolhava o “Observador de Sonhos”, livro de Bruno Morgado.

A poemetria em Bruno Morgado, também ele primogénito e que carrega os segredos, os mistérios poéticos e empresariais do pai, revela-se com uma cumplicidade e tonalidade que se assemelha bem a algo congénito, apenas separados pelo tempo. Como seria, então, possível, medir e padronizar a lírica metafórica e cantada pelos dedos e pelos olhos do coração do jovem escritor Bruno Morgado, ainda na sua adolescência de escrita?

Convenhamos que Bruno Morgado entende a poesia como uma provocação do pensamento. Coloca, de forma simplista e natural, as ideias que não podem ser ditas de outra forma, esses sonhos amarrados, bem como a inquietude da lealdade e a convivência resumida a conceitos linguísticos fáceis de interpretar e tão difíceis de alcançar. Bruno apresenta-se como ostensivamente ousado e sonhador, instigador que, para gáudio dos que tiveram a oportunidade de o ler, compreende que por detrás da simplicidade e do despercebido, existe um poeta que vai trilhar por essa carreira brilhante e sem encenações. Mas, ao mesmo tempo, mostra-se suficientemente tímido para desvendar a melancolia e introspecção de uma sociedade carregada de tantos tons e dilemas existenciais.

“Se eu pudesse Lobolar o céu, entregaria o mar em troca, só para o mar saber quem manda.”

Bruno Morgado chegou à literatura e ao complicado mercado livreiro nacional com o seu primeiro livro “Caverna dos Corajosos”, uma espécie de aventura mágica sobre a família, o amor, a coragem e a união baseada numa praia algures do país. Se neste primeiro livro procurava o seu próprio norte, como se a bússola pudesse indicar outro ponto cardeal mais conveniente, no segundo livro ele se refina e reencontra algo que não conseguiu alcançar antes. Esse novo desafio parece ser já mastigado, na simbiose entre o lirismo e o místico, procurando o reencontro entre a transcendência da comunhão nessa busca pela felicidade que nos escapa por todas as esquinas, dedos e momentos políticos desta nação com a idade do escritor.

“Que vivam felizes os que tenham que viver e que esses sejam todos”.

Tal como afirmara Rainer Maria Rilke, um dos maiores poetas da língua alemã do século XX, cada escritor segue a sua geração e as suas tendências. Cada um tem de voltar-se para si mesmo, investigando o motivo que o impele a escrever, e comprovando se a sua escrita se estende até às raízes e ao ponto mais profundo do seu coração. Simultaneamente, tem de se confessar, a si mesmo, se morreria caso fosse proibido de escrever. Bruno Morgado tem seguido este conselho com alguma flexibilidade, porém, os com seus critérios, parâmetros e tempos. Esta obra tem seguido este prognóstico e Bruno Morgado, também, na crista do jubileu, idealiza a amizade como o centro do universo, com o cerne da sua poesia entretida entre essa mesma amizade e cordialidade, acreditando que valeu a pena viver a vida, só para ter a honra de temer não poder ser feliz.

Este “Observador de Sonhos” é, como descreve a nota introdutória do livro, o lugar onde poderemos ver o mundo, o real e o imaginário, o concreto e o ficcional. Um mundo sem qualquer espaço e condição para algo que não seja a amizade como denominador comum e pressuposto essencial da amizade. A propósito, Bruno Morgado regressa a Cabo Delgado, a martirizada província do norte, com uma abordagem que minimiza a descrição de senso comum, mas, ao mesmo tempo, aprofunda uma perspectiva de maldição que não augura futuro de prosperidade e bem estar para a região. Uma metáfora que começa a ser assumida por todos os locais e que traduz bem tudo o que tem sido prometido e está a acontecer aos olhos de todos.

“Estávamos no ano 2023 na vila Karibu Kinada, quando sobre aquele povoado pairou uma nuvem de um verde carregado – bastante assustador. De repente um raio fulminante deu início a uma forte chuva de dinheiro que durou sete dias. Todos que puderam, naquele país,

para ali se dirigiram. Entre agressões e tiros ninguém sobreviveu para contar a história – apenas o dono da nuvem que nem sequer ali queria ficar.”

Este pode ser o texto mais difícil de omitir, por sair do plano da maldição e se centrar na ausência de indicadores e modelos que trarão prosperidade à comunidade local. As famílias convivem entre promessas de riqueza e a violência que por lá se instalou na última década. Cabo Delgado continua sendo o mote preferido por escritores e músicos que, perplexos pela barbárie e pela incapacidade de se colocar um ponto final na situação, vai alimentando páginas de livros, artigos e canções. O autor não fica indiferente e apresenta a temática de forma indirecta, porém, com a mesma incidência e profundidade. Afinal Cabo Delgado também é Moçambique. Um slogan que os locais fazem como apelo, para que todos entendam que ninguém merece passar por tanto sofrimento e crueldade.

Um outro texto do livro que se divide em três partes, revisita os sonhos em ebulição, para além de abordar os textos do além e o quarto de histórias. Diz o autor: “Corriam rumores de que um misterioso feiticeiro tinha realizado um feitiço sobre aquele povoado e que já ninguém mais teria filhos. No mês seguinte, metade das mulheres estavam grávidas. Agora ninguém se lembra do feiticeiro.” Este poema espelha bem o testemunho de uma clarividência que está bem associada ao seu país e povo, tantas vezes, tão obscurantista, outras, trivial e crente de misticismos e futilidades. Crença e fé banalizadas até à exaustão.

Paralelamente, o livro chama a atenção pela rima métrica que, articulando ideias e assunções por parágrafos meticulosamente pequenos e sintéticos, encerra conteúdos profundos que poderiam ser ditos por frases mais longas. Uma espécie de fuga dos cânones de uma poesia mais solta e que procura colocar todas as ideias e conteúdos na mesma quadra, para que o leitor navegue na imaginação e reencontre  outras interpretações que não sejam aquelas do próprio autor.

O “Observador de Sonhos”, de Bruno Morgado, editado pela Catálogos com antologias sobre novas vozes, encontrou o espaço adequado para se apresentar como novas vozes. Esse lugar onde se pode ver o mundo e que permite que se possa sonhar sem medo de tropeçar, apesar de todos os desafios do mundo de hoje. Este mundo de muitas contradições e hesitações, que, por vezes, parece não ter espaço para as angústias e essa sensação de vazios. A Catálogos se assume como uma editora não só preocupada com o ficcional e o imaginário, mas, sobretudo, com o concreto e com um país que procura se reconciliar e prosperar.

Bruno Morgado não escolheu a Catálogos, foi a editora que abriu as portas para essas novas vozes e ela própria defende a liberdade intelectual contra os avanços dos desmandos e de algum totalitarismo que perpassa os argumentos. Não será nunca fácil para a literatura ou qualquer das artes florescer em sociedades e tempos de grandes conflitos e muita incerteza. Escritores e outros agentes artísticos são, por vezes, vistos como rebeldes, mas desempenham também o papel de educar e informar o público, assumindo a missão de substituir discursos propagandísticos por narrativas mais realistas e coerentes.

Não existe poesia desligada da política, sobretudo nesta época de medos e ódios, e as lealdades de carácter político estão na consciência de todos. Como o Morgado mesmo diz: “Impiedosa a força com que aquele povo avançava rumo a liberdade. Cânticos e odes a um futuro melhor, a um país de homens e mulheres livres e unidos em torno das causas mais nobres que há. O direito a dormir bem. Será que dormimos? Um dia o Grande Rei aboliu a escravatura mental que proibia os cidadãos de amar sem remorsos, de amar sem limites”.

“Um bom escritor não sana as dúvidas — ele as honra”, como escreveu Oliver Harden. Em tempos de respostas fáceis e opiniões ruidosas, precisamos, mais do que nunca, de uma literatura que indaga, de uma escrita que, em vez de encerrar o pensamento, o inaugura. Ipsis verbis: “O significado perguntou um dia ao significante por que se achava tão importante. O significante respondeu que não queria se tornar tão insignificante quanto o significado.” Com efeito, o escritor não tem a pretensão de responder a tudo, tampouco de esclarecer ou tornar-se porta-voz de verdades absolutas – justamente para não transformar a linguagem em instrumento de doutrinação. “Observador de Sonhos”, entre certezas e incertezas, revela um sentido profundo e educa de forma subversiva, deslocando-se da zona de conforto e das

convenções. É uma obra que instiga, mais do que resolve, e que busca envolver o leitor antes de qualquer tentativa de explicar. Por tudo isso, vale a pena lê-la – e carregá-la no bolso.

Albertino Mabunda, era um jovem sonhador de 35 anos de idade, cuja alma carregava uma tristeza latente, uma sombra que se infiltrava na essência de cada dia. Vivia numa vila esquecida pelo tempo, longe do burburinho da cidade, na casa modesta dos seus pais. A sua esposa, Alzira Uqueio, era uma jovem de beleza singular, com um corpo como se a mão tivesse sido esculpido, cabelos crespos e longos que caiam como cascatas, olhos castanhos profundos e uma pele escura que refletia a luz do sol com orgulho. Os seus dentes, alvos como pérolas, contrastavam com a sua pele, causando admiração a quem a visse.

O jovem casal tinha três filhos: Rogéria, Teresa e Alberto, a esperança e alegria que serpenteavam na rotina silenciosa daquela vida simples. Albertino, um homem de sonhos que jaziam presos num mundo que parecia cruel e indiferente, tinha-se formado em engenharia civil numa faculdade na cidade grande. Mas o destino, impiedoso, recusou-se a sorrir-lhe: não conseguiu encontrar trabalho na sua área, obrigando-o a regressar à aldeia, ao seio da sua família, onde continuava a cultivar a terra com os seus pais, numa esperança vã de dias melhores.

Dias e mais dias passaram-se num fio de esperança que torcia o coração de Albertino. Até que, finalmente, uma oportunidade surgiu numa cidade próxima, uma vaga de padeiro numa padaria recém-inaugurada que parecia uma luz no fim do túnel. Ele voltava a casa aos finais de semana, ansiando pelo calor da sua esposa e pelo riso dos seus filhos, numa rotina que durou aproximadamente dois anos, enquanto fingia acreditar que era feliz.

Porém, no fundo, o seu coração sofria. Sentia-se prisioneiro de um sonho que nunca poderia alcançar: construir grandes obras, deixar a sua marca no mundo, sentir-se útil em algo que transcendesse o pão que amassava com as próprias mãos. E, apesar de tudo, ali mesmo, naquele acto de moldar o pão, encontrava um breve consolo, uma ansiedade que o libertava por momentos da dureza da sua alma. Era como se, ao apertar a massa, tentasse esmagar também as dores que carregava, transformando a melancolia numa esperança efémera que se desfazia ao toque do trigo sob a sua mão insegura.

Num dos finais de semana, uma sombra de ansiedade e esperança pairou no ar quando Albertino decidiu confrontar a sua mulher, numa conversa carregada de emoção. Com a voz embargada, revelou-lhe que, após conversa com um colega na padaria, tinha tomado uma decisão irrevogável: sair à procura de uma vida melhor noutra cidade, longe daquela vila esquecida pelo tempo. Ouviu dizer que lá, as possibilidades eram mais promissoras, que o sorriso de esperança poderia finalmente iluminar o seu rosto carregado de frustração. Confessou, com uma mistura de tristeza e determinação que sentia-se sufocado por aquela rotina vazia, por aquela pobreza que lhe corroía a alma, e que a única saída era perseguir a verdadeira felicidade, mesmo que ela estivesse a anos-luz.

A notícia caiu sobre Alzira como uma lâmina fria. A sua alma quase partiu ao meio, ao imaginar-se sem o seu amor, sem o seu companheiro que sempre fora o seu porto de abrigo. Sabia, no fundo do seu coração, que o mundo lá fora era cruel, violento e implacável; que o risco de nunca mais ver Albertino aumentava a cada silêncio opressivo que pairava entre eles. Com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, ela implorou com toda a força que ainda tinha que ele não fosse, que encontrassem uma maneira de ficar juntos, de lutar contra a dor e a pobreza que os esmagava. Prometeu-lhe que ela própria iria procurar trabalho na cidade onde ele trabalhava na padaria — talvez como empregada doméstica, mas que, de algum modo, poderiam encontrar uma solução.

Mas o coração de Albertino, cego pela sua vontade de escapar, não quis escutar. Uma determinação desesperada flamejava nos seus olhos. Era como se uma força invisível o empurrasse, cegando-o para todo o resto, sobretudo para o amor que ainda lhe restava naquelas palavras desesperadas de Alzira.

Na manhã seguinte, com o nascer do sol a iluminar um céu carregado de incerteza, Albertino levantou-se cedo. Ainda escutava os soluços de Alzira, que não tinha conseguido dormir naquela noite de angústia. Ela tentou convencê-lo, tocou-lhe o braço, pediu-lhe que reconsiderasse, mas tudo foi em vão. Sem olhar para trás, sem uma palavra que pudesse deter a sua marcha, Albertino pegou na sua trocha e partiu rumo ao desconhecido, deixando para trás a esperança, o amor e a queixa silenciosa de uma mulher cujo coração se despedaçava a cada passo daquele caminho de despedida.

Albertino caminhou dias a fio, enfrentando o destino e a saudade, até que, por fim, avistou uma visão que lhe roubou o fôlego: Vilária. Era como um sonho feito carne, uma cidade onde o sol parecia brilhar com uma luz mais intensa, quase mágica, como se fosse uma dádiva, para quem ali habitava. As árvores, verdes vibrantes, reluziam como se estivessem cobertas de jade, e uma brisa sedutora e suave, cheia de sussurros de esperança e promessas, envolvia-o, convidando-o a permanecer naquele paraíso mortal.  

As mulheres de Vilária eram como criaturas de outra era, de uma beleza quase sobrenatural, com a pele mais clara que o albor da manhã, quase translúcida, e roupas que mal escondiam a perfeição de seus corpos, deixando entrever a suavidade das suas curvas sob tecidos finíssimos. O ar estava impregnado por aromas de comidas tentadoras, pratos que pareciam saídos de um conto de fadas — peixe dourado com especiarias raras, frutas doces como mel, e pães que derretiam na boca, com uma fartura tal que parecia uma dádiva celestial. Albertino sentiu-se como um rei, um governante de um reino de prazeres, e num coração embriagado de ilusão, decidiu que ali seria seu novo lar.  

Durante meses, viveu como sultão numa terra de deleites: as mulheres, os alimentos, os prazeres sem limites. Sentia-se, mesmo que por instantes, como alguém que conquistara o topo do mundo, envolto numa névoa de felicidade fugaz. Mas, lentamente, uma sombra começou a surgir na sua alma. A emoção inicial deu lugar a uma melancolia silenciosa, a uma sensação de vazio, uma dúvida que crescia no seu interior como uma ferida que não cessa de sangrar.  

Naqueles dias de luz fugaz, tentou se convencer de que tinha encontrado o que sempre procurara. Mas, à medida que o tempo avançava, a sua alma clamava por algo mais profundo, mais verdadeiro. A ilusão de Vilária começou a se desfazer, como uma miragem que desmancha ao toque da verdade. Com o coração pesado de uma tristeza que não podia explicar, Albertino tomou a decisão mais difícil: pegar em sua trocha, despedir-se das delícias efêmeras e partir rumo a um novo destino.  

Um mês de caminhada o conduziu até Capitalis, uma cidade imensa, onde o ouro e a glória brilhavam de forma tão intensa que parecia uma promessa de felicidade eterna — o palco perfeito para um homem que buscava realização. Lá, tudo era maior, mais imponente, como se o próprio céu tivesse sido desenhado para acolher as ambições de quem ali chegasse. Albertino, com o coração inflado de esperança renovada, acreditou, de imediato, que ali, naquela cidade luminosa, finalmente encontraria a felicidade que lhe escapara por entre os dedos em Vilária. Cada passada, cada conquista parecia afirmar que o destino lhe sorriu, que a paz, tão desejada, poderia finalmente abraçar-lhe a alma cansada.  

Depois de laboriosas semanas, conseguiu fazer o seu nome em Capitalis. As suas obras grandiosas, erguidas com dedicação e talento, tornaram-se símbolos de admiração. O nome de Albertino ressoava por toda a cidade, e todos pagavam sem hesitar para que os seus dedos pudessem moldar o destino das grandes construções. A sua fama crescia, o seu rosto tornara-se uma lenda, e por um breve momento, sentiu-se no topo do mundo, como se o sonho que sempre perseguiu estivesse finalmente ao alcance da sua mão.  

Mas, mesmo rodeado de riquezas, cercado por uma cidade que reluzia como um sonho materializado, uma sombra silenciosa começava a invadir o âmago do seu ser. Uma dúvida profunda, uma saudade que lhe cortava o coração como uma lâmina gelada. Porque, apesar de todas as riquezas e do sucesso aparente, a lembrança da sua família, de Alzira, dos seus filhos — Rogéria, Teresa e Alberto — continuava a assombrá-lo com uma intensidade dolorosa. Era como uma ferida aberta, uma lembrança de um amor que nunca conseguiu abandonar por completo, mesmo que tudo o mais parecesse perfeito. E assim, por trás de cada conquista, escondia-se o eco de uma ausência que nunca deixou de viver dentro dele, alimentando uma esperança triste e uma tristeza silenciosa que nunca se dissiparia completamente. 

Albertino, movido por uma vontade quase desesperada de preencher o vazio que o atormentava, decidiu abandonar tudo: a fama, a honra, o reconhecimento e o ouro que adquirira em Capitalis. Era como se uma força invisível o puxasse para um destino incerto, uma última tentativa de encontrar algo que nem mesmo ele sabia definir. Sem olhar para trás, seus olhos encheram-se de lágrimas não ditas, enquanto seus pés finalmente se desprendiam do chão, caminhando por dias rumo ao desconhecido, até chegar a Refúgios.

A cidade era diferente de tudo o que tinha conhecido. Não tinha a ostentação de Capitalis, nem a exuberância de Vilária. Era calma, quase silenciosa, com casas modestas e ruas silenciosas. Lá, a riqueza não reluzia, mas a simplicidade tinha uma beleza triste, quase evocativa de uma esperança esquecida. No entanto, havia algo naquele lugar que lhe encantou de imediato: as mulheres. Vestidas até aos pés, com mantos que escondiam suas curvas e um sorriso tímido nos lábios, elas pareciam guardar segredos antigos, recatadas, mas de uma beleza serena, quase misteriosa.  

Foi nesse cenário que Albertino conheceu Faira, uma jovem de olhos bilhantes que brilhavam como duas estrelas escondidas sob uma cortina de seda, com um sorriso tímido e encantador. A sua aparência delicada, quase etérea, deixou-o completamente enfeitiçado. Apaixonou-se à primeira vista, encantado com a pureza e a doçura daquela mulher que parecia proteger segredos e sonhos. Seus pais eram ricos de uma forma diferente, criadores de gado e terras vastas, e seu pai, o homem mais influente da cidade, viu na união uma oportunidade de aliança e prestígio.  

Com o tempo, Albertino casou-se com Faira, e a fama voltou a acompanhar-lhe os passos — agora como marido de uma mulher de linhagem importante. Trouxeram ao mundo um filho, a quem chamaram Gayash, uma esperança silenciosa de um amor renovado. Albertino viveu anos de uma felicidade aparente, rodeado de bens, de segurança, de uma família que parecia completa. Mas, no fundo da alma, uma inquietação persistia. Uma sensação de vazio, como uma ferida aberta, que nem mesmo as riquezas ou o amor de Faira conseguiam curar.  

Numa noite silenciosa, enquanto olhos fixos no teto, Albertino refletiu sobre toda a sua jornada. Os anos de longe, as conquistas e as perdas, as ilusões e as desilusões. Percebeu, com uma clareza sublime e dolorosa, que a verdadeira felicidade não residia nos bens materiais, nem na glória conquistada. Era o amor, aquele que se entrega de alma e coração, que preenche o vazio mais profundo de cada ser. E naqueles instantes, sentiu o peso de tudo o que deixara para trás — sua esposa, seus filhos, a essência do que realmente importava — como uma ponte que se desfez ao se aproximar do infinito.  

Decidiu então que era momento de regressar ao seu lar, mesmo sem certezas, mesmo com a saudade a dilacerar-lhe o peito. Sem olhar para trás, despediu-se de Faira e pegou sua trouxa, com um coração apertado, atravessando a noite escura. O caminho de volta era uma travessia de esperança e arrependimento, de um homem que finalmente compreendeu que, por mais que se busque o inalcançável, a felicidade verdadeira só se encontra onde o amor sempre residiu — na sua própria casa, no abraço da família que nunca deveria ter partido do seu coração.  

Albertino voltou, não mais como um conquistador, mas como um homem que, na sua melancolia, descobriu a beleza de um amor simples, que transcende riquezas e glórias, um amor que agora sabia ser a sua maior riqueza.

Depois de dias de caminhada, numa manhã de céu cinzento e passos trêmulos, finalmente avistou a sua aldeia ao longe. Cada detalhe pequeno parecia pulsar na sua memória, como se fosse a primeira vez que os via. O coração acelerava descompassado, uma mistura de esperança e medo de tudo o que poderia encontrar.  

Ao chegar à porta de casa, o silêncio era alguém que aguardava silenciosamente o seu momento, até que ouviu uma voz suave, carregada de lágrimas e esperança. Era Alzira. Ela saiu ao encontro dele, os olhos marejados, o rosto pálido de tanto esperar.  

Por um instante, o mundo pareceu parar. Albertino estendeu os braços, e ela, sem hesitar, lançou-se ao seu peito, as lágrimas caindo como chuva em ambos. Seus corpos encostaram-se num abraço apertado, profundo, como se quisessem esconder no abraço toda a dor, toda a saudade acumulada ao longo de anos separados.  

Nesse reencontro, nada mais importava — nem o tempo, nem as riquezas, nem as palavras. Tudo se resumiu ao sussurro da esperança que ainda havia no fundo dos seus corações. E, naquele instante, sob o céu de nuvens carregadas, Albertino e Alzira perceberam que o amor verdadeiro nunca se perde; apenas adormece, esperando o momento de despertar.

A história de Albertino revela uma profunda lição: por mais que busquemos o mundo e suas riquezas para preencher o vazio do coração, nada substitui o amor verdadeiro, aquele que construímos com quem realmente importa. Muitas vezes, só ao perder tudo, aprendemos que a felicidade genuína está nas pessoas que amamos e na paz de um lar que carregamos dentro de nós. Que cada um de nós nunca perca de vista a essência do que realmente importa na vida, pois, no final, são esses laços que dão sentido à nossa existência.

Elísio Miambo não escreve a partir de uma zona de conforto. A sua escrita é uma travessia inquieta por territórios híbridos da linguagem. Já na epígrafe, o autor avisa: o livro não se pretende poesia nem prosa, mas algo entre — ou além —, um “senão prosódico, expressivo e contemplativo”. É aí que começa a sua audácia: no rompimento com os géneros, na recusa em ser domesticado por formas fixas, na aposta numa escrita que se ergue sobre o ritmo, a ressonância e a musicalidade do pensamento.

A estrutura do livro organiza-se em três movimentos. O Primeiro Acto, intitulado Catarse, apresenta-nos um eu-lírico que expulsa, expõe e exorciza. É o território da crise íntima, da consciência em desassossego, do poeta que transforma a escrita em divã e sacrário. Aqui, os versos — quase sempre curtos, fragmentados ou quebrados — espelham os estados de alma de alguém que não deseja consolar nem ser consolado, mas apenas dizer a verdade no limite da linguagem.

No Segundo Acto, Kiini — palavra swahili que significa “essência” —, a travessia torna-se mais vertical: o autor mergulha na dimensão ontológica da existência africana. A escrita adquire uma densidade telúrica, marcada por ecos que vão de Senghor e Césaire a Wole Soyinka e aos tigres do Oriente. Há aqui uma crítica às idealizações ocidentais da “africanidade”, bem como uma auto-reflexão sobre os impasses do pan-africanismo. É neste núcleo que as brumas se começam a desfazer: enunciam-se as raízes, as dores herdadas, as contradições de pertença, as fendas na ideia de identidade.

A terceira parte, Epístolas, é um tratado animista em forma de cartas. Dezassete missivas dirigidas a entidades simbólicas — credos, génios, monarcas, egos, filhos, escravos e senhores.

Este caderno articula, com rara sensibilidade, um discurso ético, político e existencial. O poeta assume-se aqui como cronista do tempo: escreve com a consciência de que o presente é uma ruína líquida, onde se confundem memórias e simulacros, identidades e rótulos, realidades e espectros.

No plano das influências, Miambo é um autor de muitas vozes, se quiser, referências. A sua escrita conjuga os ecos de Fernando Pessoa e José Saramago, mas também a cadência jazzística de Erykah Badu, a sonoridade reflexiva de Lokua Kanza, a lírica urbana de Mr. Hudson e a iconoclastia do rap lisboeta. Nota-se, ao longo da obra, um diálogo constante com a filosofia africana, com o existencialismo ocidental e com a teologia da libertação. E há ainda uma herança local que pulsa: a reverência à Associação Xitende, não necessariamente no plano estético, mas como território simbólico que se inscreve na carne da sua escrita.

A linguagem de Elísio Miambo é paradoxal: barroca e límpida, opulenta no léxico, mas precisa na emoção. A sua maior ousadia talvez não seja formal, mas espiritual: escreve para se despir das clausuras — não apenas as do corpo, mas também as da linguagem, da moral, da história, da fé, da memória, da própria ideia de sujeito. A escrita, para ele, penso, não é mero gesto estético: é um acto de sobrevivência, um processo alquímico de conversão da dor em forma, do silêncio em som, do íntimo em partilha.

Importa dizer com clareza: Brumas desfeitas, clausuras desnudadas é um livro que exige do leitor uma escuta poética afiada, uma disposição para o abismo, um desejo de atravessar espelhos e opacidades. Mas é precisamente por isso que se revela um livro necessário ou talvez urgente.

Porque nele se faz da literatura o último reduto de resistência e de revelação.

 

Nota:

Texto apresentado durante a conversa com o autor no dia 03 de Maio de 2025, durante a FELGA na Biblioteca Pública Provincial de Gaza.

 

A expressão “pensar fora da caixa” significa adoptar uma perspectiva criativa e não convencional para resolver problemas ou enfrentar desafios. Implica afastar-se das soluções tradicionais ou óbvias e explorar abordagens inovadoras.

No contexto das artes, “pensar fora da caixa” significa romper com as normas tradicionais da arte, seja na forma, no conteúdo ou nos materiais utilizados para criar algo original, provocador ou inovador.

Esta colecção é um convite inesperado para os dias que correm, pois, constitui um grande desafio retratar figuras, situações que podem ser observadas no quotidiano, combinar disciplinas, sensações com narrativas diárias de uma forma inédita.

Desafiar convenções sociais através da arte, como fizeram, Albino Mahumana e Renaldo Siquisse, ao apresentarem a exposição conjunta, intitulada “pensar fora da caixa”.

Ao todo, o trabalho conjunto é composto por cerca de 30 quadros. No entanto, por se tratar de uma colecção que está aberta ao público, apenas uma tela será analisada a fim de estimular e despertar curiosidade de visitar a exposição que ficará aberta ao público até dia 31 de Maio, na Fundação Fernando Leite Couto. Neste artigo, importa apenas falar da tela intitulada “Batalhas Diárias”, quadro Acrílico s/ tela 44x50cm.

O termo “batalhas diárias” pode remeter a várias coisas, dependendo do contexto como um sacrifício, luta para obter algo, é comum em ambientes laborais e pode simbolizar trabalho, rotina, disciplina. 

É um quadro dinâmico e cheio de movimentos. As linhas anguladas e pinceladas vibrantes criam um senso de energia, esforço e talvez dor.

A técnica lembra o expressionismo, onde a emoção e a experiência subjectiva são mais importantes do que a representação fiel da realidade. Há também um certo grau de abstração na forma como os corpos e roupas são delineados. 

Quanto à composição, na tela, se pode observar uma figura central encurvada, com expressão sofrida ou tensa, um segundo rosto ou corpo sobreposto, como que emergindo da figura principal com mãos e pés alongados e em destaque, sugerindo esforço físico, os movimentos nos traços, com linhas brancas criam uma sensação de deslocamento, fadiga ou perda de energia corporal.

A imagem do bebê nas costas da mãe representa o peso das responsabilidades diárias que uma mulher, mãe, enfrenta para segurar o seu lar e ser aceite pela sociedade. Também traz consigo a metáfora de uma figura que carrega algo maior do que a si próprio, simboliza o trabalho forçado, maternidade, ou o peso da existência, uma situação idêntica é observada em “Laurinda tu vai mbunhar” um dos contos retratados em “O regresso do morto” do escritor moçambicano, Suleiman Cassamo.

“O pão rouba força nos joelhos, cega os olhos, gira o juízo da Laurinda.”

Em “Laurinda tu vai mbunhar” assim como na “Batalha diária “pode-se observar a luta pelo pão que não só simboliza a necessidade básica de sobrevivência, mas também o papel fundamental da mulher na resistência e transformação social.

“As mulheres na luta pelo pão” é uma expressão simbólica e histórica que remete à participação activa das mulheres nas lutas sociais, especialmente em momentos de crise económica, pobreza e desigualdade. Em vários contextos históricos como nas revoluções, nas greves e nos movimentos operários as mulheres estiveram na linha da frente a exigir melhores condições de vida, trabalho digno e alimento para as suas famílias.

Albino Mahumana apresenta aqui não apenas uma pintura, mas um testemunho visual da condição feminina em Moçambique, que muitas vezes é silenciada. Sua obra dialoga com temas universais como trabalho, maternidade, sacrifício e esperança, estabelecendo uma ponte entre o local e o global, o individual e o colectivo.

Na despersonalização, a forma distorcida como o autor passa as pinceladas de cor branca sugere como a identidade se desfaz no esforço diário, talvez ligado ao simbolismo das “batalhas diárias”.

A presença de duas figuras pode evocar conflitos internos, sobrecarga emocional, ou mesmo gerações.

A técnica expressionista com pinceladas cruas e cores fortes transmite angústia e sofrimento, mas também resiliência. O uso de cores quentes (vermelho, amarelo) e frias (verde, azul) pode sugerir um contraste entre dor e esperança, ou conflito e paz interior.

“Batalhas diárias” representa um comentário visual sobre a condição humana especialmente da mulher ou do trabalhador, numa sociedade que exige força e resiliência constante. Também insere-se numa linha temática que valoriza a força invisibilizada da mulher trabalhadora moçambicana. A presença do bebé acentua a dimensão intergeracional desse esforço, evocando o ciclo contínuo da vida que se renova mesmo nas condições mais adversas. É uma obra que denuncia silenciosamente, mas também homenageia com vigor as mulheres.

 

Não sei como falar deste senhor que hoje está sendo merecidamente homenageado, neste maravilhoso espaço e nesta significativa cerimónia concebida pela Elvira Viegas, pessoa que a nossa Cultura muito deve. Não sei a quem hoje devo prestar o meu tributo, se ao simples cidadão Pedro Baptista Chissano ou ao escritor Mikas Dunga, nome com o qual assinou seus textos. Ambos se confundem. Ambos se comportam como se fossem irmãos gémeos. Ambos se esforçam em serem dignos e respeitáveis: o escritor Mikas Dunga, ao inventar palavras para as suas crónicas e estórias, e o Chissano, cidadão exemplar, pai de uma prole “chissaniana” que conseguiu criar, apesar das vicissitudes da vida. Prefiro falar do escritor, com quem convivi anos à fio. O outro, o funcionário público Pedro Chissano, o chefe da família, o militante de todas as causas, esse não conheço. Esse cidadão simples, de acordo com os que muito bem o conhecem, tem uma história que merece um livro e estou convencido que um dia, alguém vai se dispor a escrevê-lo.

Quando conheci o Pedro Chissano, ele, mais o Eduardo White, o Juvenal Bucuane, o Ungulani Baka Khosa, o Hélder Muteia, o Idasse Tembe, o Tomás Vieira Mário, o Armando Artur, o Elias Khosa, estavam a preparar um barco através do qual pretendiam dar início a uma grande viagem através de um mar de sonhos, essa viagem chamava-se Charrua, uma revista literária que pontificou na década de oitenta. Todos eles, com aquela energia e exuberância que a juventude concede, estavam cheios de grandes expectativas, desejosos de alcançar o céu com as palavras que preenchiam os papeis que faziam circular, ali, nos corredores da Associação dos Escritores Moçambicanos. Foram bons tempos. Inigualáveis.

Únicos na história da literatura moçambicana. Os debates, sobretudo sobre a escrita, sucediam-se intermináveis, e Pedro Chissano, dono de um discurso invejável, esgrimia os seus argumentos, falava dos clássicos da literatura universal, introduzia-nos nos meandros do surrealismo fantástico, nessa voz pausada, cheia de palavras bem articuladas que a cerveja gelada e os petiscos da saudosa Dona Cindoca não conseguiam modificar. Estávamos perante um Pedro Chissano impecável no seu modo de ser e estar, um machangana gingão, de fala pausada e aristocrática. Mas sobretudo um gajo porreiro. É a esse Chissano que tiro o chapéu e para quem debito estas palavras que pecam por serem escassas e provavelmente incapazes de traçar o verdadeiro perfil deste homem que a todos nós prestigia. Foram bons tempos que contribuíram para crescermos por dentro. Penso que terão sido essas tertúlias que fizeram do Pedro Chissano o intelectual que é hoje, o escritor que prestigia a literatura moçambicana e, por conseguinte, merecedor desta homenagem.

Diz-se que não é a quantidade de livros que faz o escritor. Comungo dessa opinião. O Pedro nunca se preocupou em acrescentar livros no seu historial. Em quase 30 anos de careira, apenas dois livros de crónicas o sustentam: BOAS FESTAS CHIQUITO, uma colecção de 20 crónicas publicadas no jornal Notícias entre 1988-1990, e editado em 2007 pela Associação dos Escritores Moçambicanos e ALGUMAS ESTÓRIAS e BRINCADEIRAS COM B GRANDE, quando decorria o ano de 2013. Dizia que Chissano nunca fez do livro e da publicação o seu objectivo, isto é, o seu porto de ancoragem. Satisfaziam-no, isso sim, os livros dos outros e também os que habitavam a sua cabeça. Esses livros, esses best-sellers, fazia questão de mencioná-los, com o seu discurso eloquente, descrevendo interessantes capítulos, criando personagens fantásticos e desenvolvendo enredos fascinantes. Satisfaziam-no, também, as crónicas que duma forma quase religiosa escreveu para o jornal NOTICIAS e que levariam o Nelson Saúte, também ele cronista de méritos reconhecidos, a dizer, e eu cito, que “O espaço de intervenção do nosso jornalismo é comandado pela acção da crónica.

Muitas vezes pede-se a ela que assuma a vocação do jornal e sublime a ausência do jornalismo interventivo. Será que o parco fôlego o permitirá?”. E Nelson Saúte ainda acrescenta: “Confesso que estas e outras dúvidas inquietam-me. Mas, espero que o Pedro Chissano concorde comigo, se eu disser que as estórias que escrevemos nos jornais ajudam-nos a viver este tempo de urgências, neste tempo conturbado da nossa história, neste território, onde muitas vezes o insólito e, por vezes, o sórdido, sustentam conteúdos que transcendem o domínio da ficção. E é nesta contingência em que o nosso cronista (sobre) vive.” Fim da citação.

Ao que se sabe, há algum tempo que Pedro Chissano persegue uma ideia dum livro que começou a escrever, buscando sempre essa perfeição que encontrou em autores renomados, alguns dos quais, ao longo dos tempos, foram tomando conta da sua mesinha de cabeceira. O Chissano é um escritor obcecado pela perfeição. Não concebe e nem consente um livro escrito “com a pressa do vento na mudança das estações”. Um livro exige tempo, labor, criatividade. Só deste modo é que uma obra literária pode se vestir de alguma

grandeza. Mas sabe, o Pedro Chissano, que essa perfeição que ele persegue é difícil de alcançar, e talvez seja esta a razão que faz com que o escritor se busque sempre, se tente ultrapassar sempre, e que felizmente, para o bem da literatura, nunca alcança.

Pediram-me para escrever algumas palavras sobre o Pedro Chissano, confesso-vos agora, que “desconsegui”, como gostava de dizer o poeta José Craveirinha. Porque são necessárias muitas palavras e um excelente exercício de memória para falar deste machangana originário de Guijá, lá nas terras de Gaza, no distante ano de 1956, lugar donde sairia ainda jovem para Lourenço Marques, terra que o acolheu, o fez crescer e o transformou nesse ilustre cidadão que estamos, hoje, a prestar esta justa homenagem.

Passa muito tempo desde que eu e o Pedro nos conhecemos. E a medida que crescíamos a pátria também crescia e as exigências socioprofissionais tornaram-se acrescidas. Chissano se metamorfoseou em tarefas várias. Foi Secretário-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. Editor da revista cultural LUA NOVA. Membro fundador da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade. Membro do Conselho de Administração do FUNDAC. Coordenador para a Área de Cultura da Agenda 2025, dentre tantas outras ocupações ao longo dos últimos anos. Depois deste atribulado percurso decidiu escolher o seu lugar de exilio, a Matola, onde espera, entre outras coisas, continuar a viver, a cuidar dos seus, a amar quem o ama e sobretudo, ter o tempo suficiente para escrever o grande livro da sua vida.

Por tudo isto, e pelo enorme contributo que deu a nossa sociedade, a nossa Cultura e a nossa Pátria, digo: muito obrigado Pedro Chissano.

 

10 de Maio 2025

A cidade da Maxixe despontava com o vigor de sempre, como se o pulsar da vida tivesse sido meticulosamente sincronizado com o romper do dia. Sob a claridade generosa de um sol abrasador, o Mercado Tsuwula vibrava de energia. As ruas pavimentadas de paralelepípedos tornavam-se o palco de uma azáfama única: mulheres equilibravam cestos de vegetais na cabeça, homens carregavam sacos de farinha, e os vendedores anunciavam os seus produtos em vozes que competiam com o caos envolvente.

Era aqui, entre a multidão e o burburinho incessante, que Joaquim passava os seus dias. O rapaz de quinze anos era um rosto conhecido naquele mercado. Magro, com o corpo marcado pela exaustão precoce, carregava nos olhos castanhos um brilho resiliente que contradizia a sua magreza. Ele era o mais velho de sete irmãos, o sustento de uma família onde a pobreza fazia morada há gerações.

“Mamã, vou vender,” dizia Joaquim todas as manhãs, antes de sair de casa. A voz era firme, embora o cansaço das madrugadas acordadas o traísse.

“Vai, meu filho. Que Deus te acompanhe,” respondia a mãe, sempre com a mesma frase, como se o pedido divino fosse o único escudo que podia oferecer.

Joaquim saía de casa ainda sob o manto da madrugada, enquanto a cidade dormia. No SOCOPOL, uma loja famosa da Maxixe, fazia as suas compras diárias: refrigerantes, pacotes de bolachas e garrafas de água que depois revendia no mercado. Cada metical era contado com precisão matemática, como se o peso do dinheiro fosse tão real quanto o das mercadorias na mochila.

Ao chegar ao Tsuwula, a visão do mercado fervilhante enchia Joaquim de um misto de esperança e angústia. A rua principal, feita de pavê, estava repleta de bancas improvisadas e vendedores ambulantes que tentavam atrair compradores com os seus gritos persistentes. Joaquim posicionava-se num canto estratégico, perto de uma loja de eletrodomésticos que atraía bastante movimento.

“Água fresquinha! Bolachas gostosas! Quem leva?!” gritava ele, com a voz carregada de uma determinação que desafiava a sua idade.

A cada venda, sentia um pequeno triunfo, uma faísca de alívio que o mantinha em pé. Mas não podia descansar. A polícia municipal costumava aparecer sem aviso, e quando o fazia, o mercado transformava-se numa cena de fuga desesperada. Os fiscais retiravam os vendedores, confiscavam mercadorias e, às vezes, distribuíam multas que ninguém tinha como pagar.

Naquele dia, o calor era sufocante e o ar parecia parado, como se o próprio vento tivesse desistido de soprar. Joaquim já tinha vendido algumas garrafas de água e pacotes de bolachas. O dinheiro no bolso não era muito, mas suficiente para garantir algo na panela em casa. Foi então que o aviso soou:

“A polícia está a chegar!”

O mercado explodiu em movimento. Joaquim apressou-se a recolher os produtos. Com a mochila às costas, lançou-se numa corrida para escapar, seguindo outros vendedores que também fugiam. Porém, na pressa de atravessar a rua, não olhou para os lados.

O som de um autocarro a travar encheu o ar. Depois, um impacto seco.

Joaquim caiu no chão. A mochila que tanto protegera foi arremessada para longe. O sangue tingiu o pavê, enquanto a vida no mercado parecia congelar. Os gritos substituíram o barulho habitual.

“Mamã, tragam a mãe dele!”

A mãe de Joaquim chegou descalça, o rosto desfigurado pelo desespero. Ajoelhou-se no pavê quente, puxando o filho para os braços.

“Filho, fala comigo! Fala comigo, por favor!”

Joaquim abriu os olhos, mas a sua voz era um sussurro fraco.

“Mamã… eu vou, eu vou…”

“Não, meu filho! Não vais! Quem vai cuidar dos teus irmãos?!”

“Mamã… cuida deles… eu vou.”

Os olhos de Joaquim fecharam-se pela última vez, e o grito da mãe ecoou pelo mercado, um som que rasgou os corações de todos os presentes.

Nos dias que se seguiram, a ausência de Joaquim foi sentida no Mercado Tsuwula. O canto onde costumava ficar parecia vazio, mesmo no meio do caos habitual. A sua família, agora sem o seu provedor, enfrentava um futuro mais incerto do que nunca.

A história de Joaquim é a de muitos outros meninos e meninas que carregam nas costas um peso que não lhes pertence. Crianças obrigadas a trocarem a inocência por responsabilidades esmagadoras, enquanto a sociedade continua a ignorar o impacto de políticas ineficazes e da pobreza enraizada.

O Mercado Tsuwula, com as suas ruas cheias de vida, esconde tragédias que se desenrolam todos os dias. A fiscalização implacável dos vendedores informais é apenas mais um sintoma de uma sociedade que não reconhece a luta diária pela sobrevivência.

E o que dizer das crianças como Joaquim? Meninos que deviam estar nas salas de aula, mas que são empurrados para as ruas para garantir que os seus irmãos tenham algo para comer. Quem os protege? Quem lhes dá voz?

“Mamã, eu vou,” dizia Joaquim todas as manhãs. Hoje, as suas palavras ressoam como um eco de resistência e um lembrete da fragilidade humana perante as desigualdades.

O sol da Maxixe continua a brilhar com a mesma intensidade, mas para a mãe de Joaquim, cada amanhecer é uma nova batalha, onde a ausência do filho se faz sentir em cada canto da casa.

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. 

Frase emprestada por Fernando Pessoa ao general Pompeu. 

 

Era para ter sido um final de quinta-feira normal e igual a tantas outras que animam culturalmente a nossa cidade capital, até que Aurélio Ginja convidou-me a sair, para segundo ele, colocar as agendas culturais em dia, aceitei o convite e acabamos por escolher um cantinho no centro da cidade, com alguma inclinação para a gastronomia portuguesa e moçambicana, já que o chouriço, a broa e o frango a passarinho que ali é servido é de agradável degustação para serenar a mente e deixar-se levar pela fluidez do “papo da malta”.

Quando ali chegamos, deparamo-nos, surpreendentemente, com Xixel Langa e Elcides Carlos afinando os seus instrumentos para animar a noite que se apresentava meio chuvosa e agradável para culturar o amor e o abraço do encontro com Moçambique.  

Ao ver Chido Tomás chegar naquele lugar, Ginja que outrora teria me apresentado Chico António (em memória) naquela noite mágica em que Sara Laisse, por sinal, colega de escola de Aurélio Ginja, lançou _Moçambique Margem Sul_, em voz baixa e com corpo inclinado para o meu lado direito sussurrou, aquele ali em frente com a Xixel é o grande baixista moçambicano e integrou, em tempos, a banda Alambique, foi um pouco depois da independência e nessa altura eles cantaram uma música que convida sempre a fazer a ponte com um grande músico cubano, o Pablo Milanês, com Título Yolanda, e que em algum momento diz: “Esto no puede ser no más que una canción; Quisiera fuera una declaración de amor; Romántica sin reparar en formas tales; Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales_” a mesma foi escrita pelo maior poeta Cubano, Nicolás Guillén. Ah, lembrei-me Rudêncio, a música tem como título A Lirandzo, e tenho em memória que Hortêncio Langa chegou a contá-la com Maria João, a maior referência do Jazz Português, e olha que por feliz coincidência, ela nasceu em Moçambique. Enquanto o Ginja falava eu discutia comigo mesmo, não sabia se parava e registava, ou me deixava viajar nessa aula e correr o risco de perder algumas notas dessa viagem por Moçambique musical no pós-independência. A  verdade é que fiquei pelas duas e lá o show começou. 

As quintas, a cidade acorda, e desta vez, bateu a porta a mescla da voz da Xixel Langa e os chuviscos que se perdiam no dedilhar de Elcides Carlos no coração da cidade, uma espécie de namoro existencial, temperado a moda moçambicana para celebrar os vestígios de um tempo que a todos abraça na melodia dos grandes compositores da música moçambicana. 

Abraçou-me a saudade ao ouvir _Bossa Nova_, e não tardou, confidenciou-me novamente, Aurélio Ginja, que a seguir a Independência, Hortêncio Langa, Arão Litsuri, Childo Tomás, Adérito Gomati e Celso Paco, através da Banda Alambique, misturaram os ritmos da Bossa Nova e os elementos do Jazz com a nossa marrabenta, tendo, na época, marcado a revolução da música moçambicana. Daí a facilidade com a qual Xixel Langa navega nesses ritmos, uma vez que bebera da fonte desde a tenra idade e foi com o tempo decantando, ao seu estilo, a música que a veste. 

O ponto mais alto da noite apareceu quando, a convite da Xixel Langa, Chido Tomás desfez-se da cadeira e dos amigos com os quais conversava para junto da Xixel interpretarem “A Lirandzo”, pegou com delicadeza a viola baixo e como quem reajusta o cinto da calça ou penteia o cabelo e faz a barba antes de sair para o encontro da sua vida, a ajustou ao seu corpo e devolveu-nos a década 80 num tocar gingado de qualidade superior que nos convidou a navegar na música feita em Moçambique. De coração maravilhado, transformado num final de quinta-feira que parecia norma em Poesia, música, conversa. “Uma tríade sensacional. Emoldurada pela música cósmica da chuva”. Eu, simples aprendiz, que nunca tivera a oportunidade de viajar com a Xixel a Solo em sua música, guardava memórias da celebração do Massone, álbum de Carlos Gove, na qual ela participa, acabei por conhecer uma Xixel extraordinária, amiga da música no tempo, com marcas da sua passagem por Cape Town (uma das cidades da cultura africana) e do “bebedouro” sempre cheio de arte que foi a sua casa.

 

O sol de Inharrime preparava-se para se esconder, tingindo o céu com tons de laranja e dourado, quando os meus passos me levaram a um pequeno mercado de barracas de madeira. Havia algo encantador naquela vila. Era um lugar de contrastes, onde a simplicidade da vida rural coexistia com uma tristeza quase palpável, escondida nos olhares furtivos dos seus habitantes.

Foi ali, naquele final de tarde, que vi Amina pela primeira vez. Era jovem, talvez no final dos seus vinte anos, e tinha uma beleza tão delicada que parecia esculpida pela brisa que varria as margens do rio Inharrime. Mas, por mais que os traços do seu rosto fossem perfeitos, havia algo que os obscurecia: um olhar vazio, como se carregasse nos ombros todo o peso do mundo.

Ela estava sentada num banco improvisado, ao lado de uma pequena banca onde vendia frutas e legumes. Vestia uma capulana azul vibrante, mas os seus olhos traíam a cor e a vida que aquela peça de tecido parecia oferecer. Aproximei-me, não tanto pelos produtos, mas porque algo nela despertava uma inquietação que eu não conseguia ignorar.

“Boa tarde”, cumprimentei, tentando quebrar o gelo.

Ela ergueu os olhos, e por um breve instante, vi um lampejo de surpresa, talvez por alguém ter notado a sua presença.

“Boa tarde”, respondeu, com uma voz tão suave que quase se perdeu no som da brisa.

Perguntei pelos produtos e comprei algumas bananas, mas logo percebi que não era por aquilo que estava ali. Algo em mim sabia que havia uma história por detrás daqueles olhos cansados, uma história que pedia para ser contada.

“Posso sentar-me?” perguntei, apontando para o espaço ao lado dela.

Ela hesitou por um momento, mas assentiu. Assim começou uma conversa que mudaria a forma como via o mundo.

“Chamo-me Amina”, disse ela, depois de algum tempo.

O nome parecia carregar uma doçura que contrastava com a dor evidente no seu semblante. Não precisei pressioná-la muito; era como se ela quisesse desabafar, como se a dor reprimida finalmente tivesse encontrado uma brecha para escapar.

Amina era casada há sete anos. O marido, Joaquim, era um homem trabalhador, pescador, como muitos outros na vila. No início, o casamento deles foi cheio de sonhos. Planejavam ter uma família grande, crianças que corressem pelas areias e rissem sob as mangueiras. Mas os anos passaram, e os filhos nunca vieram.

“Fizemos todos os tratamentos que pudemos pagar. Fui a curandeiros, tomei chá de todas as folhas que me indicaram. Até ao hospital fui… Mas nada. O médico disse que o problema está em mim.”

As palavras saíram entrecortadas, como se fossem lâminas a rasgar-lhe o coração.

“O Joaquim era um homem paciente… No início”, continuou. “Mas a paciência dele acabou. Agora mal fala comigo. Às vezes passa dias fora de casa. E quando está em casa, não olha para mim. É como se eu fosse invisível.”

O silêncio entre nós era preenchido apenas pelo som distante de crianças a brincar e pelo murmúrio do vento.

“Na nossa cultura”, continuou ela, “uma mulher que não dá filhos ao marido não é uma mulher completa. É como se eu fosse um campo estéril, sem valor. As vizinhas cochicham, e até as crianças da aldeia olham para mim com piedade.”

Amina contou-me sobre um episódio recente, que parecia ser uma ferida aberta. Uma das vizinhas, ao saber que ela não podia ter filhos, fez questão de dizer em voz alta que “uma casa sem crianças é uma casa morta”.

“Senti-me a morrer por dentro”, confessou. “Quis desaparecer, deixar tudo para trás, mas onde iria? Não tenho para onde ir. Esta é a minha casa.”

O rosto dela tornou-se ainda mais sombrio quando mencionou a sogra, que constantemente incentivava Joaquim a arranjar outra mulher.

“Ela diz que é o direito dele. Que ele não pode envelhecer sem um filho para continuar o nome da família.”

Enquanto ela falava, não pude deixar de admirar a sua beleza. A pele escura brilhava à luz do entardecer, os olhos grandes e expressivos tinham uma profundidade que parecia conter oceanos de dor. Mas era uma beleza entristecida, marcada por uma luta constante para encontrar o seu lugar num mundo que a rejeitava por algo que ela não podia controlar.

“Às vezes, pergunto-me o que fiz para merecer isto. Será que Deus está a castigar-me por algo?”

A pergunta dela ficou suspensa no ar, ecoando no silêncio ao nosso redor. Não sabia o que responder. Como é que se explica a uma mulher que a sua dor não é um castigo, mas uma circunstância cruel da vida?

Amina ergueu-se de repente, como se tivesse dito tudo o que precisava. Olhou-me nos olhos, e naquele momento percebi que o que ela queria não era piedade. Era compreensão. Era alguém que a visse, que reconhecesse a sua existência para além da esterilidade que a sociedade tanto apontava.

“Obrigada por ouvir-me”, disse, com um sorriso frágil que não chegou aos olhos.

Enquanto a via afastar-se, o céu de Inharrime escurecia, anunciando a chegada da noite. Fiquei sentado por mais alguns minutos, tentando digerir tudo o que tinha ouvido. Amina não era apenas uma mulher estéril; era um reflexo de tantas outras mulheres que vivem sob o peso de expectativas que as esmagam.

Naquela noite, escrevi sobre ela, tentando fazer justiça à sua dor, à sua força silenciosa e à injustiça de um mundo que mede o valor de uma mulher pela sua capacidade de gerar filhos.

E, enquanto escrevia, só conseguia pensar numa coisa: Amina merecia mais. Merecia um mundo onde fosse amada pelo que era, e não pelo que não podia ser.

Conheci Ana numa tarde abafada, em Jangamo, numa casa pequena e desgastada, onde o tempo parecia ter parado. Estava sentada num canto, com as mãos sobre os joelhos, abraçando-se de forma quase desesperada. A luz que entrava pelas janelas sujas iluminava seu rosto marcado por uma tristeza profunda, mas seus olhos, aqueles olhos, pareciam conter toda a dor de um passado que ela ainda não conseguia deixar para trás. 

Era uma jovem de 18 anos, mas a sua alma parecia carregar o peso de uma vida inteira. Ana não me conhecia, mas a necessidade de partilhar sua história era tão grande que ela começou a falar antes mesmo de eu conseguir perguntar. Eu nunca tinha visto alguém com tanto sofrimento dentro de si, como se tudo aquilo tivesse sido engolido sem remédio, sem possibilidade de cura.  

“Queria ser enfermeira”, ela começou, quase sem fôlego. As palavras saíam com dificuldade, como se o ar fosse denso demais para que ela conseguisse falar. “Sonhava em ajudar as pessoas. Lembro-me de como adorava a escola, de como as aulas de ciências me fascinavam. Eu sabia que, com esforço, poderia chegar longe. Mas… a minha mãe…” A voz dela vacilou, e ela abaixou a cabeça, como se aquele nome fosse um peso impossível de carregar.  

Ela suspirou, e antes que eu pudesse perguntar o que tinha acontecido, as palavras foram saindo, uma após a outra, sem controle. “Ela tinha uma dívida com um homem, com um homem que trabalhava na África do Sul. Ele estava sempre a pedir mais dinheiro, mais dinheiro, até que um dia, ela disse que não tinha como pagar. Foi aí que ela me chamou e… entregou-me.” 

A casa onde tudo se passou era um lugar, melhorado para a realidade local, com casa de pedra, furo de água, corrente eléctrica, televisão onde poderia assistir novelas. Mas o cenário se desfazia em segundo plano. O que realmente importava era o que acontecia ali, naquele espaço onde aos 16 anos de idade, Ana foi forçada a ser nada mais do que um objeto. Não um ser humano. Não uma criança.  

“A minha mãe falou com ele. Disse que não havia outra maneira e o homem aceitou. Eu não sabia o que fazer. Ela me mandou embora, disse que tudo ia ficar bem, que eu teria uma casa e um marido, e que ele me cuidaria.” Ana parecia perdida no tempo, como se aquelas palavras estivessem sendo ditas pela sua mãe novamente, ecoando na sua memória.  

Ela descreveu o homem com um leve estremecer na voz, tentando dissociá-lo da figura de pai que ele nunca seria. Tinha 37 anos. Era alto, com uma cara dura e olhos de quem já viu demais. Tinha uma voz grossa, uma forma de falar que fazia Ana sentir-se como se fosse uma criança insignificante, sem valor. No início, o homem dizia que ela deveria ajudá-lo na casa, que tinha que aprender a ser uma boa esposa. Depois, os “ajuda-me” tornaram-se exigências. E logo, Ana entendeu que nada na vida dela seria uma escolha. Ela tinha se tornado propriedade.  

As tarefas eram intermináveis. Limpar, cozinhar, lavar, cuidar da casa. Mas não bastava isso. O homem queria algo mais. “À noite, ele vinha. Fazia coisas com o meu corpo, coisas que eu não queria fazer. Eu não sabia o que fazer. Fiquei com medo. Ele dizia que era a minha obrigação.” As palavras saíam devagar, como se ela estivesse tentando entender o que tinha acontecido consigo, mas não conseguia.  

O semblante de Ana já não tinha a juventude e a leveza de uma adolescente. Seus olhos, que antes refletiam sonhos, agora estavam embotados por uma dor que atravessava gerações. Era impossível entender como ela ainda estava ali, tão jovem, mas tão consumida pelo peso daquilo tudo.  

“Ele queria mais filhos. Disse que eu não servia para nada, que eu era só uma reprodutora. Quando fiquei grávida, ele ficou furioso porque esperava que eu tivesse mais filhos.” Ana engoliu seco, uma lágrima teimosa escorrendo pelo seu rosto. “E ninguém fez nada. Ninguém. Os pais dele sabiam. Os vizinhos sabiam. E a minha mãe…” Nesse instante, ela parou de falar e olhou para mim, como se procurasse alguma forma de compreensão, de aprovação. Mas não havia nada que eu pudesse dizer. Eu não tinha palavras. Eu não tinha nada para dar.  

O silêncio se fez pesado. A sala estava abafada, mas o calor parecia vir de dentro dela, daquilo que ela tinha vivido, de tudo o que não tinha sido capaz de viver. Ana, a menina que sonhava ser enfermeira, agora se via como um objeto, como uma mulher que nunca teve o direito de ser apenas quem era. 

“Por que você não fugiu?”, perguntei, depois de um longo silêncio. A resposta não veio imediatamente. Ela parecia pesar a pergunta, como se fosse algo tão fora do seu alcance que nem sabia por onde começar.  

“Eu não sabia para onde ir. O homem… ele me trancava. Às vezes, eu só queria desaparecer. Mas não podia. As pessoas que viam nada faziam. Diziam que era minha obrigação. Diziam que era assim que as mulheres deviam ser.”  

Foi a polícia que, por acaso, encontrou Ana. Não foi um ato de denúncia, mas um acaso, um pequeno milagre. Ela estava com o bebé no colo, visivelmente malnutrida. Alguém, alguém que ainda tinha um mínimo de humanidade, foi até as autoridades. Foi assim que ela foi retirada da casa, mas, por dentro, Ana já estava quebrada. Não havia cura para o que ela tinha vivido.  

Enquanto a ouvia, o choque se transformava numa raiva profunda. Como foi possível ninguém ter feito nada? Como foi possível que todos, na comunidade inteira, vissem e se calassem? Como foi possível que a mãe dela, a pessoa que deveria protegê-la, entregasse sua própria filha para pagar uma dívida, como se ela fosse um bem material?  

E, mais uma vez, a sociedade se faz conivente. Aceita a dor e o sofrimento, a exploração e o abuso, e cria desculpas. “É assim que as coisas são.” Mas não é assim. Não deveria ser. E, no entanto, continuamos a viver num mundo onde histórias como a de Ana se repetem, dia após dia, em silêncio.  

Quando me despedi de Ana, eu sabia que a sua história não seria apenas mais uma que se perde nas páginas de um jornal. Ela era uma voz que gritava, mas ninguém ouvia. Era uma vida roubada, um sonho esmagado, uma adolescência arrancada. E, mais do que tudo, ela era a vítima de uma sociedade que aceita a violência como se fosse algo normal, que normaliza o impossível.  

A dívida de Ana nunca foi financeira. A dívida que a sociedade tem para com ela e com tantas outras meninas é imensurável. Porque cada vez que fechamos os olhos, cada vez que calamos os gritos delas, nós estamos permitindo que mais uma Ana seja forçada a perder sua infância, seus sonhos, sua liberdade. A pergunta que fica é: até quando vamos permitir que isso aconteça? E quando seremos capazes de dar a elas a chance que tanto merecem?

Subtítulo: A repressão dos Naparamas em Moçambique levanta questões sérias sobre o papel do Estado na preservação da cultura e na escuta das realidades locais.

Num momento em que se fala tanto de “valores culturais” e “identidade nacional”, é

profundamente contraditório que Moçambique assista, silenciosamente, à repressão

violenta de um dos seus movimentos mais singulares: os Naparamas. 

Nos últimos tempos, surgiram notícias inquietantes sobre detenções e até mortes de membros deste grupo tradicional, que no passado desempenhou um papel importante na protecção de comunidades durante o conflito armado.

Importa recordar: os Naparamas não são um movimento novo, nem uma invenção de tempos recentes. Emergiram como um movimento de resistência popular e espiritual que surgiu no Norte de Moçambique durante a guerra civil (1977–1992), especialmente nas províncias da Zambézia, Nampula e Niassa. O nome “Naparama” significa literalmente “aquele que vai à guerra” em algumas línguas locais. Sem acesso a armamento moderno, organizaram-se com o que tinham: a fé, o corpo, o saber dos mais velhos e o desejo de proteger os seus. Foram, para muitos, a única barreira entre a violência armada e a sobrevivência das comunidades rurais.

Hoje, décadas depois, vê-los retratados como “ameaça à ordem pública” ou “forças de desestabilização” revela uma profunda desconexão entre o Estado e a sua própria base sociocultural. A resposta às suas manifestações não deveria ser policial ou militar.

Deveria ser académica, política e comunitária. Onde estão os sociólogos, antropólogos e estudiosos da cultura moçambicana? Onde estão os líderes políticos que tanto falam em “inclusão” e “diálogo”?

Reprimir os Naparamas não é apenas reprimir um grupo é atacar uma expressão viva da resistência cultural, espiritual e social moçambicana. A história ensina-nos que, quando o poder ignora ou reprime a tradição, está a cavar um fosso entre a nação oficial e o povo real.

Este é, pois, um momento crucial. Não se trata apenas de segurança, mas de identidade e soberania cultural. Em vez de soldados, precisamos de mediadores. Em vez de armas, precisamos de diálogo. E, acima de tudo, precisamos de reconhecer que a diversidade de formas de existir, resistir e proteger é parte da riqueza deste país.

Matar os Naparamas é, simbolicamente, matar o que ainda resta de uma memória

colectiva ancestral. É negar a possibilidade de um Moçambique plural, onde os saberes locais têm lugar ao lado do conhecimento formal.

Mais do que nunca, é tempo de escutar antes de reprimir. De compreender antes de

julgar. E de defender o que é nosso — mesmo quando nos desafia.

 

Maputo 21 de abril 2025

 

Uma pequena bola de trapos, também conhecida por xingufo em algumas regiões de Moçambique, fez parte da diplomacia do Papa Francisco, no seu pontificado. Este xingufo que elevou para os pedestais mais visíveis este país, serviu de chave mestra para lendas do futebol mundial como Eusébio e Matateu, mas, também, de tantos outros “Pelés” que o mundo conheceu.

O xingufo representa muito mais que uma bola improvisada. Essa pequena amostra do globo, algumas vezes disforme, porém, com toda a arquitectura circular, converteu-se em símbolo de resistência, criatividade e paixão pelo mundo da arte do futebol e de tantos outros desportos que apaixonam milhões, enlouquecem os obstinados e servem, simultaneamente, como a primeira actividade lúdica de milhões de crianças em todos os continentes.

Papa Francisco, esse impetuoso homem, designava por pelota, nome hispânico para bola de trapos, também na sua Argentina e na América latina, do qual foi o mais consagrado representante. Falava de forma empolgada e com paixão invulgar desta pelota, pois, também ele jogou com estas bolas com os seus amigos de infância e tantos outros. Os xingufos se converteram na expressão artística de juntar peúgas velhas, esponjas fora de uso, plásticos e outros restos de roupas usadas. 

Quando em Setembro de 2019, o Papa Francisco esteve em Moçambique, na sua primeira e última visita, coincidente com o auge de uma campanha política eleitoral, nem por isso isenta de polémica, disfuncionalidades e contestações, ele estendeu um convite para um diálogo matutino na residência do Núncio Apostólico, onde se hospedou. O xingufo foi meio que o guia da nossa conversa.

Naturalmente que sua abordagem, ainda que santificada sobre o xingufo e no primeiro dia oficial da sua visita, reservava outras temáticas. Não me recordo de alguma vez ter tornado público o teor destas conversas, porque se tratava de uma conversa reservada e que não carecia de qualquer tipo de divulgação.

A bem da verdade, eu também estava desconfortável por ter sido escolhido e convidado para uma visita privada e por ter tido a honra de o acompanhar no café matinal e com sabor a espiritual. Para além do xingufo, Papa Francisco pretendia explicar a criação da Universidade do Sentido, de que ele estava profundamente empenhado e, na circunstância, preparava uma conversa que teria lugar no Vaticano, em Maio de 2020.

No seu “portunhol”, muito mais compreensível do que o nosso português, Papa, ainda com um xingufo em suas mãos, falou sobre colocar a pessoa humana no centro do processo educativo. O foco assentava na promoção de uma educação proactiva que promovesse a escuta, a criatividade e diálogo entre diferentes culturas e gerações. Na sua visão, incentivava a busca pelo sentido da vida e das coisas. A gestão desta universidade seria feita por uma fundação por si criada, denominada Scholas Ocurrentes.

Mesmo sem muitos detalhes sobre o projecto futuro da Universidade do Sentido — idealizada para ser abrangente e aberta — a instituição foi criada em 15 de Agosto de 2023, num contexto em que a pandemia já estava praticamente erradicada, por meio de um quirógrafo. Na sua missão, essa Universidade deveria responder à crise global vivida pela humanidade. A Universidade do Sentido tem sido gerida pelo movimento internacional Scholas Occurrentes, com sede no Vaticano.

Como parte de sua estratégia operacional, a universidade adoptou um modelo descentralizado, estabelecendo micro sedes em universidades públicas e privadas já existentes ao redor do mundo. Dessa forma, a Universidade do Sentido se insere e actua dentro de um movimento global, intergeracional, multicultural e inter-religioso, promovendo a educação como instrumento de encontro, diálogo e transformação.

Moçambique, por meio da Universidade Pedagógica de Maputo, participou em diversas reuniões preparatórias, onde partilhou parte da sua experiência formativa — uma experiência marcada pela formação de jovens provenientes de diferentes famílias moçambicanas, distribuídas por todos os distritos e, em grande parte, pelas localidades do país.

Desta forma, a Universidade quebrava o dogma e o mito de que o ensino superior apenas serviria às elites e ao capitalismo emergente. A Universidade Pedagógica de Maputo se converteu, igualmente, num espaço onde famílias e moçambicanos com poucas posses e, muitas vezes, sem recursos financeiros tiveram uma oportunidade de fazer o ensino superior.

A missão de São Benedito dos Muchopes, em Manguze, província de Gaza, tem sido um bom exemplo de envolvimento social e comunitário, tendo ajudado a dinamizar a produção de bolas de trapos. Estas eram as bolas que o Papa solicitou que continuássemos a produzir e que pudessem ser enviadas para o Vaticano. Ele, pessoalmente, se encarregaria de fazer chegar às mãos de ilustres figuras e que, posteriormente, iriam contribuir para que os xingufos chegassem às mãos de pessoas beneplácitas e altruístas, que ajudariam num “fundraising” para ajudar crianças carentes.

Esta missão em Manguze é dirigida pelo pároco João Gabriel Arias, de nacionalidade argentina, que foi o responsável por juntar e enviar para Papa Francisco os primeiros exemplares de bolas de trapo de Moçambique que chagaram ao Vaticano. Papa Francisco, por sua vez, fez com que estas bolas, poucas, chegassem às mãos ou até aos pés de Leonel Messi, esse astro do futebol argentino e mundial, que simpatizou com o projecto e colocou em sua agenda a comunidade de Manguze como uma das suas prioridades e projectos favoritos. Messi enviou para a comunidade das escolas da região de Manguze uma papa fortificada, que ajuda na alimentação e redução dos índices de desnutrição crónica ou aguda.

Moçambique hospedou alguns outros importantes projectos de produção de bolas de trapo. Em 2009, com apoio do Brasil, foi lançada uma fábrica de bolas como parte do programa designado “pintando a cidadania”. Esta era a forma pragmática de produção de diversos tipos de bolas, desde as sintéticas até as de trapo, para as diferentes modalidades, mas eram, na essência, uma forma de valorizar a cultura e tradição local. É impossível esquecer a exposição que apresentou bolas de trapos e outras conhecidas como “as magias do pano” — uma verdadeira celebração de identidade, que atravessa gerações e continua viva em Moçambique, estendendo-se, de alguma forma, pelos cinco continentes.

A conversa com Papa Francisco decorreu entre sorrisos e muitos questionamentos. O Xingufo que voltamos a oferecer, ora ficava nas suas mãos, ora ia para uma mesa bem próxima — num gesto quase ritual, carregado de simbolismo. Foi um momento descontraído, porém, soberbo e muito profundo. Uma verdadeira lição sobre a escuta: como num confessionário onde se revelam pecados, mas onde não há lugar para culpa ou culpados — apenas para o perdão em abundância e um caminho aberto para a clemência e o entendimento. O verdadeiro caminho do sentido e da convergência.

Recordo esse 5 de Setembro como o diálogo mais iluminado que já vivi. Era a minha pequenez diante desse homem universal, impetuoso e sereno, cuja presença alternava entre o entusiasmo apaixonado e uma autoridade serena que não deixava ninguém indiferente. Sem que tivesse dado conta, eu estava sentado diante da própria paz que não experimentei nunca no nosso jubileu.

Nesta hora de partida, muito vai ser dito e escrito sobre a sua personalidade, sobre os seus discursos que, em tempos, pareceram controversos diante de uma igreja que permanece refém de muitas das suas ideias e crenças originais. Ele viveu nessa fronteira entre um pontificado que pretendia ajustar-se às verdades da vida, mas, que ao mesmo tempo, revelou os segredos mais incómodos pelos quais o cristianismo pode ter passado.

Nos últimos momentos, ao lado da verdade, dedicou-se com fervor à defesa dos desamparados, combatendo a pobreza, as guerras e a ganância, e se opôs ao colapso do mundo diante da vontade dos poderosos. Parte um homem que transmitiu o espírito de paz, união, harmonia, humildade e solidariedade aos mais vulneráveis Aquele que soube transmitir os valores da tolerância se junta a Deus. Nenhuma tristeza tomará nossos corações, pois ele fez o melhor que pôde em um mundo ainda governado pela maldade e pela ambição. A nossa Universidade do Sentido e este xingufo que ele tanto advogou será um legado para todo o sempre.  

Um Papa que a partir das ruas que fazem o dia a dia do nosso povo, ensinou-nos, acenando as mãos e com o rosto afável, a abraçar com os olhos, e a ser igreja caminhante, uma igreja viva e que a todos chama para sonhar juntos, sem se esquecer das nossas raízes, as bibliotecas do amor e da vida.

“Perante a crise de identidade …, talvez tenhamos que sair dos lugares importantes e solenes; temos de voltar aos lugares onde fomos chamados, onde era evidente que a iniciativa e o poder eram de Deus. Irmãos e irmãs, voltar a Nazaré, voltar à Galileia pode ser o caminho para enfrentar a crise de identidade. Depois da sua ressurreição, Jesus convida-nos a voltar à Galileia, para O encontrar. Voltar a Nazaré, à primeira chamada, voltar à Galileia para solucionar a crise de identidade, para nos renovarmos”. Papa Francisco.

Moçambique _ maningue nice, _ é como é carinhosamente tratada esta terra que, no assobio luminoso das águas do Índico, ganhou a mania de acordar sem vergar aos desafios de, aos poucos, ir consolidando-se Nação, onde cabemos todos e todos preenchemos. É Moçambique a mania nossa de ser, a certeza de que amanhã o sopro melancólico das casuarinas terão se diluído na sonoridade da timbila e dos tambores que os rasgões da alma nos ensinaram a tocar; primeiro em silêncio e sem nenhum gesto, depois, gritando e movendo o corpo, é Moçambique o sol que nos aquece as veias e nos faz nutrir a alegria de viver no “alegre canto das andorinhas” que por vezes somos quando nos deixamos ser a força do encontro.

É esse Moçambique que se moveu em 2019, no acenar das mãos do Papa Francisco e se dilatou enorme, chorou de emoção e soube, no abraço tenro do Papa, ser canção do tempo que vestiu a memória da “malta” de todas as idades que saiu à rua para viver a presença do Papa em solo moçambicano.

Quando em 2019 o Papa pisou o pavilhão do Maxaquene, um enorme frio foi ali gerado, o corpo e as vozes tremiam, gritava-se reconciliação, reconciliação, reconciliação, depois, ouviu-se em uníssono, um cantar que nos une sem limite das religiões, cantávamos e dizíamos arrepiados no caminhar lento e dócil do Papa Francisco, que somos os Jovens da Paz, que a nossa missão é a reconciliação, cantamos com alma, força e Moçambicanidade.

Quando os jovens Católicos subiram ao palco, para apresentar a sua mensagem ao Papa, num texto que viajou entre Idai, Kenneth e depois os ataques de Cabo Delgado, algo me veio a cabeça, conhecia aqueles jovens, aquelas vozes, aquele fluxo, o gesticular remetia-me aos festivais juvenis da Arquidiocese de Maputo; são bons no que fazem, têm vida e movimento. Senti que aquela apresentação era uma sutura, uma cirurgia social, e porquê não uma reconciliação com aqueles que sabem fazer bem o que fazem. A juventude não se “autodiminuiu” deu espaço aos melhores, e os melhores foram o eco da elevação de uma juventude que, no calor do Papa se faz enorme, madura e consciente, o texto vestido de alma partilhada foi escrito por jovens moçambicanos, tendo a sua representação feito o Papa Francisco, mover as mãos para um bater de palmas que nos arrefecia a alma e nos vestia de um espírito renovado, paz, esperança e reconciliação.

Quando o Papa falou, percorreu-nos de alma descalça um dos maiores exemplos da juventude, falou-nos da Lurdes Mutola, como poucos falamos sentimos e pensamos, falou da sua infância difícil, das suas conquistas e de como depois de ganhar tudo e ser referência nos 800m, não deixou de ser moçambicana e vestiu sempre as cores que corporizam o peito desta terra, o Papa elevou Lurdes ao nível de exemplo para juventude Moçambicana, e aconselhou-a a caminhar unida “juntos” sempre que pretenda chegar longe, a não desistir na primeira queda, que a juventude não perca a alegria de viver, e por fim pediu que se continuasse a rezar por Ele e que o Senhor nos abençoe.

Este foi e continuará sendo o Papa Francisco que se nos existe presente abraçando-nos a essência caminhante de uma igreja que quer sempre sonhar juntos.

Está marcada, em princípio para os próximos meses, a Assembleia-Geral da AEMO

(Associação dos Escritores Moçambicanos). É um marco importante para a agremiação, pois poderá culminar com a eleição dos novos corpos directivos, já que o actual elenco, que tem como secretário-geral Carlos Paradona, está em fim de mandato. Um ciclo que teve um primeiro mandato notável, tendo porém tido alguns problemas no segundo (foram dois mandatos), onde não teve o apoio de uma franja relevante dos membros, pela forma como o processo eleitoral foi conduzido, sem transparência, levantando clivagens internas.

A AEMO tem um histórico de eleições pacíficas desde a sua fundação. Com Rui Nogar a dar o mote, passando por Albino Magaia, Suleimane Cassamo, Lília Momplé, Armando Artur, Juvenal Bucuane, Jorge Oliveira, Ungulani Ba Ka Khosa e agora Carlos Paradona. Com este último há mudança de paradigma, ou seja, todos os outros secretários-gerais tiveram dois mandatos de dois anos cada. Porém, com a entrada do actual secretário, decidiu-se estender a vigência para três anos, e essa medida foi acordada por todos em Assembleia-geral. Pois chegou-se à conclusão de que dois anos não seriam suficientes para que se cumpra com os planos de actividades programadas.

É importante referir que o actual secretário-geral já cumpriu o seu segundo mandato de três anos. Tendo feito, como já fizemos referência, um brilhante trabalho no primeiro, mas no segundo pode ter experimentado algumas dificuldades, sobretudo na área financeira, que contribuíram no retraimento dos trabalhos da agremiação.

Ora, o que se propõe daqui para frente, contrariamente ao que vinha acontecendo – os membros votavam na pessoa do candidato – é que se vote no programa do concorrente, para que os apoiantes tenham conhecimento das linhas de orientação e evitarem-se prováveis  desenlaces durante o percurso. E pelo que se percebe a partir dos corredores, já há movimentações com os escritores a afiarem as facas com vista ao pleito. Apelando-se para que sejam realizadas eleições livres, justas e transparentes, pois as últimas não tiveram lisura. Outrossim, tomando em conta que Paradona está fora de mandato, espera-se que a demora que se verifica para a realização da Assembleia-Geral, tenha como resultado um escrutínio limpo.

A AEMO foi sempre uma instituição fervorosa, de debate e convívio. E respeito mútuo.

Então é preciso manter esse ritmo, esse modus vivendi para que a harmonia prevaleça.

Aquele que for a candidatar-se ao cargo de secretário-geral e ganhar, terá que reavivar esse equilíbrio, é isso que se espera. Mas antes cada um deverá nos dizer efectivamente o quê que vai fazer caso ganhe, para que os eleitores escolham o melhor programa. É preciso explicar aos potenciais votantes como é que vão implementar o que propõem, com que meios. E como é que vão trazer esses meios, aonde é que vão buscá-los. Não basta que os membros se simpatizem com o candidato, é preciso que o candidato lhes mostre o seu plano de forma clara e transparente.

Há uma grande expectativa e nervosismo nos corredores da AEMO, mas isso é bom. É vitalidade. O que se deseja é que a Associação retumbe e volte a brilhar. E todos os membros com quotas pagas têm o direito de se candidatar e todos eles estão de acordo que existe capacidade para trazer o comboio aos carris. Para o bem das artes e letras.

 

Esta coisa dos títulos tem das suas. Umas vezes esclarecedoras. Outras vezes desviantes.

Algumas, enfim, estão lá como a folha de louro está para alguns pratos: lá está, mas nem todos dão-se conta da sua presença ou ausência.

Dizer que os ghostwriters e os agentes literários são ausentes no nosso “sistema literário” pode-nos dividir imensamente. Por um lado, porque se se diz que estes são ausentes, por si só já denuncia que não temos um sistema. Daí o “amortecimento” do peso do termo através das aspas:

todo sistema literário que se prese tem de ter ghostwriters e agentes literários. Por outro, trata-se de uma colocação um tanto quanto acusatória, porque estas figuras existem no plano material, mas se escondem ou assumem outra identificação à semelhança dos críticos literários que se assumem como ensaístas e, por que não (?), dos escritores que se assumem como contadores de histórias. “Ya, são maningue cenas!”

Penso nestas figuras pelo bem que as mesmas fariam aos nossos escritores, quer emergentes, quer consagrados. São poucos os escritores que ganham a triste noção de que o “poço secou”, ou, na melhor das hipóteses, a água está cada vez mais escassa. É natural. É comum. Não é o fim.

Pode ser uma estação. Podem ser coisa da idade. Mas também pode ser uma sina. Cada um tem a sua, não é!? Não são raros os casos de “génios” que depois de terem produzido o seu Magnum Opus não se conseguiram superar. Rasgam os textos após duas linhas. É triste. É desolador.

Transtorna. Sobretudo quando se tem de responder à pergunta “para quando o teu próximo

livro?”

Muitos escritores (ou artistas, em geral) não têm consciência de que a criatividade é uma predisposição falível: tem momentos bons e maus. Os músicos, pela dimensão da representação do seu objecto de arte, convivem muito bem com as figuras de compositor, letrista, produtor e tantos outros que constituem uma verdadeira máquina por detrás da marca na qual o seu nome se tornou. A dúvida com a qual convivo é se os seus admiradores têm igual nível de compressão e cedência quanto a esse aspecto. É, em todo caso, matéria para outra conversa.

O nosso “sistema” em constante construção qual obra que nunca se assume como edifício acabado devido às constantes modificações, é permeado de revisitações (é o termo mais adequado que encontrei) de temáticas, de perfis de personagens, de descrições, etc., muitas vezes feitas pelo mesmo autor à semelhança de um arquitecto que faz diversos projectos no mesmo bairro e a diferença estivesse no tamanho dos compartimentos e nas escolhas dos proprietários na decoração dos edifícios.

Em situações deste género, mesmo que tal não signifique “crise de criatividade”, faz muito bem a figura de um ghostwriter ou de um agente:

  1. a) a primeira é, em muitas circunstâncias, admiradora senão seguidora do estilo de um certo autor. Estuda. Pesquisa. Imita e domina o estilo de tal autor muito melhor que o crítico literário que se dedica ao estudo de suas obras para fins académicos. É daquelas figuras que, geralmente, se for a publicar os seus próprios textos, haverá muita possibilidade de ser confundido com o autor que é objecto da sua imitação. Voltando à música, são vários “rumores” de artistas que cederam ao ímpeto de fazer a própria carreira para trabalhar nos bastidores de outro que já era uma marca. Bem analisada a questão, é uma relação contratual “win-win”. O público sai a ganhar e a “mídia cor-de-rosa” (hábito que, hoje, é coisa dos grupos de chat) perde a fofoca de “fulano é copista de fulano”.
  2. b) no caso do agente literário, além da dimensão “lobista” que este possa assumir, há um exercício de mentoria inicial que pode ser feito: nem todo livro deve ser, a priori, objecto de discussão com um editor. Este último tem um “mindset” corporativo que pode não ser o que o escritor precisa em primeira instância. Há um olhar que o agente tem que, na verdade, o editor também o tem, mas o segundo anda “contaminado” por certas pressões imediatistas que o podem impedir de dar valor a certas “aventuras” do escritor que, não raras vezes, estão adiantadas em relação ao seu tempo. E, curiosamente, é nesse tempo (presente) que o editor quer vender. Diga-se, porém, que esta disposição das funções só é válida onde há, efectivamente, um mercado.

Mas, pronto, vale a reflexão.

Em síntese e para o nosso agrado, temos estas figuras, mas ninguém as assume, conforme disse no início deste texto. Uns dizem-se revisores. Outros amigos (primeiros leitores do autor).

Alguns assumem-se como escritores experientes com amigos editores. Outros são jornalistas com lóbis nos corredores literários. Alguns, não poucos, são dinamizadores da leitura e escrita em clubes de leitura, agremiações culturais (literárias) e até professores. Com um pouco mais de interesse, organizamos o nosso dumbanengue literário e saímos todos a ganhar.

 

Resposta ao Texto “A Última Páscoa dos Moçambicanos”, de Severino Ngoenha

 

Professor Severino Ngoenha,

O seu texto é uma elegia poderosa. Uma convocação ética. Uma denúncia litúrgica.

Mas permita-me, com a devida raiva lúcida que a nossa pátria exige, ousar continuar onde o seu Domingo termina — ou talvez, onde já não há mais tempo para esperar por ele.

Uma amiga muito lúcida, Ângela Maria Serras Pires, ao ler o seu texto, sugeriu este título: “A Frelimo destruiu a alma da nação”. É um título, e ao mesmo tempo, uma frase de corte político.

Mas deixemos os títulos. Professor, li e reli o seu santo texto com muito thauma; senti gosto enorme nas entrelinhas e no seu jeito único de escrever. E, a partir disso, fiz minhas anotações anatômicas, que aqui partilho.

 

  1. “Há demasiado tempo que Moçambique vive entre a cruz e o túmulo…”

Professor, quer dizer que a nação moçambicana está presa num tempo litúrgico? Entre a Sexta-feira da crucificação e o Sábado do silêncio?

Mas será que Moçambique precisa dessa cronologia cristã para se pensar a si mesmo?

Não é essa metáfora já um cárcere simbólico? A cruz, o túmulo, o sofrimento — tudo isto não são heranças coloniais do imaginário europeu-cristão?

Penso que não vivemos entre a cruz e o túmulo. Vivemos, isso sim, num presente político morto-vivo, onde a cruz é um logotipo partidário e o túmulo é a urna eleitoral.

Aqui, não se ressuscita ninguém — nem sequer a esperança.

E se há uma “última Páscoa”, como escreve o Professor Ngoenha, então é porque todas as outras fracassaram.

Mas não basta poetizar o sofrimento, nem transformar a Sexta-feira Santa em metáfora política.

É preciso nomear o culpado. Não há redenção onde não há verdade.

 

E a verdade, professor, é esta: a Frelimo destruiu a alma da nação.

Carregamos um país crucificado, sim — mas foi crucificado pelo Estado, com a cumplicidade das igrejas.

Cristo não morreu por nós. Morreu connosco — no desemprego, na fome, no tribalismo.

E continua morrendo, todos os dias, com cada jovem assassinado no nascimento de sua consciência política.

  1. “A cultura da Sexta-feira tornou-se a estrutura invisível do nosso quotidiano.”

Será mesmo invisível? Ou estamos diante de uma estrutura escancaradamente visível, sustentada por um Estado que se alimenta do medo e da miséria?

Professor, não seria mais honesto dizer: a Sexta-feira foi institucionalizada — pelo partido, pela igreja, pela academia — e tornou-se estrutura visível, e legitimada?

Não é mais cultura do sofrimento.

É a indústria da opressão.

Professor, sua Sexta-feira é nobre, mas falta-lhe a denúncia.

Falta-lhe o nome do carrasco.

Falta-lhe o nome do deus que o povo adora enquanto é espoliado: o deus-Presidente, o deus-Pastor, o deus-General.

Essa é a cruz real.

A cruz da corrupção.

A cruz do silêncio comprado.

A cruz da esperança vencida.

  1. “Nessa Sexta-feira eterna, as crianças morrem de fome… o povo morre de silêncio.”

Mas quem é que construiu essa eternidade?

Quem sustentou os rituais do silêncio?

Quem ensinou o povo a jejuar pela salvação e votar pela opressão?

Professor, não foi a mesma igreja que abençoou as armas do colonizador, que agora abençoa os palanques da Frelimo?

 

Não foi a teologia da cruz que nos fez aceitar que o sofrimento redime?

Pois eu digo: o sofrimento embrutece, não redime.

A cruz não é metáfora — é mecanismo de dominação. E aqui professor a fé e política de um político é o sinônimo.

  1. “O Sábado é pior. Porque já não há grito — só ausência.”

E será que ainda há tempo para gritar, Professor?

O grito, aqui, tornou-se prova de crime.

Quem grita contra o sistema é terrorista.

Quem escreve contra a cruz, é herege.

Quem pensa diferente, é morto civil.

E a ausência?

Não é divina — é programada.

É a consequência da má-fé institucionalizada.

E depois… o Sábado.

Não o Sábado de espera — mas o Sábado de apatia.

Onde a religião se ajoelha ao lado do Estado para rezar pelo status quo.

Onde os intelectuais se prostituem em projectos financiados pelo Banco Mundial, FMI e os teólogos se calam por medo de perder a bênção presidencial.

A verdade é esta: a intelligentsia moçambicana perdeu a coragem de pensar fora do

sistema que a sustenta.

Peter Sloterdijk escreveu:

“Vivemos numa era de cínicos esclarecidos — sabem o que fazem, mas continuam a fazê-lo.”

 

Eis o retrato dos nossos dirigentes.

E dos nossos professores.

E dos nossos chefes religiosos.

 

É verdade, professor: vivemos um Sábado.

Mas é um Sábado sem sombra de Domingo.

Porque para ter Domingo é preciso um povo que diga basta.

E o nosso povo, cansado, jejuando por ignorância e votando por desespero, já nem distingue fé de propaganda.

  1. “Mas a história — a verdadeira história — não termina aí. Há uma outra cultura

possível: a cultura do Domingo.”

Aqui, Professor, permito-me discordar radicalmente.

A “cultura do Domingo” é uma esperança mística.

É o prolongamento da lógica cristã: após o sofrimento, a redenção.

Mas quem nos garante o Domingo?

Quem nos prometeu essa ressurreição?

Nietzsche já nos advertiu: o “Deus do Domingo” está morto.

E mais: em Moçambique, foi a Igreja que o sepultou — com dízimo, missa e a bênção presidencial.

  1. “É tempo — último tempo — de dizermos: ‘Basta!’”

Mas quem dirá esse “basta”, Professor? O povo ainda acredita.

Nos partidos.

Na igreja.

Na televisão.

No pastor.

No boletim de voto.

E quem não acredita, cala — com medo.

Então, esse “basta” só virá quando negarmos todas as estruturas que ainda sustentamos por hábito e fé.

Eu digo: não precisamos de um Domingo.

 

Precisamos de ateísmo político.

De raiva lúcida.

De ética niilista.

De um corte radical com os messianismos, tanto religiosos quanto partidários.

Nem Cristo. Nem Frelimisto. Moçambique não precisa de milagres.

Precisa de raiva lúcida. De revolta sem mística deísta nem messianismo frelimista.

De uma Páscoa sem Cristo — e sem Frelimisto. Não há redenção possível enquanto a mentira for o idioma nacional.

Páscoa significa passagem. Mas Moçambique não passa.

Está preso — Preso à nostalgia colonial, à incompetência dos “libertadores”, à ilusão infantil de que “Deus proverá”.

Mas Deus fugiu.

O Filho morreu.

E ninguém vem.

Georges Bataille disse:

“O ser humano só se realiza quando ultrapassa os seus próprios limites, na vertigem, no sacrifício, na negação de si.”

Mas aqui, ninguém ultrapassa nada.

Vivemos o mesmo ciclo, o mesmo trauma, a mesma mentira:

“Tudo vai melhorar”, dizem.

Mas não vai.

Melhorar é verbo interdito num país onde:

— pensar é crime,

— exigir justiça é terrorismo,

— falar verdade é provocação.

Não há mais espaço para profetas eleitorais.

 

Nem para messias de palanque.

A esperança morreu afogada na corrupção, e ninguém chorou o funeral.

O que temos são:

Igrejas-empresas institucionalizadas.

Partidos-seitas institucionalizados.

Pastores-vampiros institucionalizados.

É um povo anémico que confunde salvação com sobrevivência.

Que Páscoa pode haver num Estado que crucifica a juventude?

Que mata o sonho nas aldeias?

Que transforma o diploma em papel higiénico?

A nossa única esperança — se ainda existe — é a morte de todas as esperanças fáceis.

É o ateísmo político.

É o niilismo como método.

É a raiva transformada em ética.

Günther Anders disse:

“O mundo tornou-se tão monstruoso que o verdadeiro escândalo é suportá-lo.”

Pois que nos escandalizemos!

Que deixemos de aceitar!

Que sejamos heresia e incêndio — não liturgia, nem conformismo.

  1. “Se esta for a última Páscoa dos moçambicanos, que ao menos ela seja memorável…”

Pois que seja.

Mas não pelo cordeiro.

Pelo grito.

E o grito, hoje, não é oração e nem alelluia.

É confrontação.

 

É heresia.

É coragem de cuspir no altar da Frelimo e no púlpito dos vendilhões da fé.

Nietzsche matou Deus.

Mas em Moçambique professor, foi a igreja que O enterrou — com missa, incenso,

dízimo e bênção presidencial são eles que ditam as regras.

Professor, aqui a crucificação virou contrato público.

A ressurreição virou imposto.

E o inferno… é viver aqui, esperando um céu que nunca virá.

Professor Ngoenha,

O seu texto oferece um grande densidade simbólica e poética.

Mas a metáfora cristã — cruz, túmulo, sábado, domingo — já não serve como chave de leitura para uma nação que precisa, antes de tudo, descrer, decolonizar, destituir, e renascer.

Moçambique não precisa de um novo Domingo.

Precisa de um novo idioma.

Sem crucificados.

Sem redentores.

Sem Deus.

Sem partido uno.

Apenas um povo lúcido, insurgente, e sem medo.

Professor, a língua é o novo Domingo.

Se há algo que pode nos salvar — não será o Cristo, nem a Cruz e nem partidos Frelimo, Renamo, MDM, Podemos, Anamalala, Nova Democracia…

Será a língua.

Mas não essa — a língua do colonizador, da catequese, do partido.

 

Será a língua do povo. Do Shimakonde, do Kimuani, do xichangana, do echuwabo, do elomwe, do bitonga, do emakhuwa, do xindao, do xinyanja, do xisena, do ximanica, do xiyao, do xironga…Étcetera Étcetera.

Porque só se pensa com as palavras que se vivem.

E Moçambique vive em muitas línguas — mas governa-se em poucas.

A nossa salvação não está na ressurreição. Está na tradução do país para si mesmo.

Se esta for mesmo a Última Páscoa dos Moçambicanos, que ela não seja lembrada pelo cordeiro — mas pelo grito de um povo muito aturado e cansado.

Não pela fé.

Mas pela coragem de negar tudo o que nos mantém mortos.

Não pelo Domingo simbólico.

Mas pela escolha concreta de matar a mentira que nos crucifica há cinquenta anos.

A última Páscoa… talvez não precise de ressurreição.

Mas de ruptura.

O Fim da Páscoa

 

O sol ainda estava escondido no horizonte quando deixei a Vila de Inhassoro naquela madrugada fria. Eram cinco horas, e a brisa suave carregava o perfume da vegetação que cercava o pequeno cruzamento. Estávamos em missão: explorar o coração de Buchane, uma localidade quase mítica, onde o guano, o excremento de morcegos, é extraído e usado como fertilizante. Era trabalho para o programa MOZGROW, da STV, mas a viagem, como descobriríamos, era mais do que uma simples ida ao interior – era um mergulho num universo de mistérios.

Conduzia a viatura acompanhado pelo repórter cinematográfico Félix Jamisse e pelo nosso guia local. O carro cortava a estrada em silêncio, como se respeitasse a quietude daquela hora. O plano era simples: abastecer, seguir viagem e cumprir a pauta. Mas os planos têm o hábito estranho de se reinventarem.

Parei no cruzamento de Inhassoro para abastecer o carro. Era uma rotina sem surpresas: desligar o motor, encher o tanque, pagar e partir. Contudo, quando tentei ligar o carro novamente, o motor recusou-se a responder. Não fez sequer o som de tentativa.

– Parece que o carro perdeu a alma – murmurou Félix, a olhar para o painel inerte.

Liguei imediatamente para o mecânico. Do outro lado da linha, ele tentou tranquilizar-me, sugerindo que o problema fosse elétrico. A recomendação foi clara: chamar um eletricista auto. Segui o conselho e fiz a ligação. O eletricista garantiu que estaria connosco em breve. Contudo, meia hora depois, ao ligar novamente para confirmar, ele deu-me outra notícia:

– Hugo, o carro em que estou avariou. Vou ter de apanhar um Chapa 100. Peço só um pouco mais de paciência.

A paciência estava a ser testada quando o guia local, subitamente alarmado, exclamou:

– Esqueci-me de avisar o líder da comunidade!

Era um erro grave. Ele apressou-se a ligar, e algo mudou naquele instante. Enquanto desligava o telefone, Félix olhou para mim com um misto de convicção e intuição:

– Hugo, tenta ligar o carro outra vez. Algo diz-me que agora vai funcionar.

Não fazia sentido, mas fiz o que ele sugeriu. Rodei a chave, e o motor rugiu com vigor, como se nunca tivesse estado inoperante. Todos nos entreolhámos, sem explicações. Era apenas o início de uma série de acontecimentos que desafiaram a nossa compreensão.

Seguimos viagem, mas o guia trouxe-nos outro aviso, desta vez mais inquietante:

– O líder disse que devemos cobrir os espelhos do carro e não os abrir durante todo o percurso.

– Cobrir os espelhos? – perguntei, confuso.

– É tradição. Protege-nos, mas não posso explicar.

Cobri os espelhos. Durante os 30 quilómetros que se seguiram, o silêncio na viatura era quase palpável. As estradas pareciam mais longas, e o peso do desconhecido pairava sobre nós como uma nuvem densa.

Chegámos a Buchane e fomos recebidos pelo líder local, que nos conduziu até à gruta onde o guano é extraído. Enquanto Félix entrava na gruta com a câmara, fiquei do lado de fora, observando. Era um lugar de contrastes: a natureza exuberante parecia guardar um segredo antigo.

De repente, a vegetação moveu-se. Um movimento serpenteante e rápido chamou a atenção de alguns jovens locais, que murmuraram em citswa:

– Hi yona.

O coração disparou.

– O que é? – perguntei, tentando disfarçar o medo.

– É uma cobra – respondeu um deles, sorrindo. – Mas não se preocupe. Não vai fazer nada.

Eu, que sempre tive pavor de cobras, congelei. Aquele instante pareceu uma eternidade. Mas, seguindo o conselho do jovem, mantive a calma – ou pelo menos fingi. Quando Félix voltou, senti-me como se tivesse sido resgatado de um pesadelo.

Após concluirmos o trabalho, o líder local deu-nos uma orientação clara e firme:

– Não deem boleia a ninguém. Seja quem for.

Havia algo na sua voz que nos deixou sem argumentos. No regresso, passámos por várias pessoas à beira da estrada. Mães com crianças ao colo, jovens com olhares de súplica e até mulheres grávidas. Doeu-me no peito, mas obedeci. Algo maior parecia guiar aquele dia.

Quando finalmente chegámos a Inhassoro, o peso dos acontecimentos ainda pairava sobre nós. A viatura que não ligava, o aviso sobre os espelhos, a cobra e a ordem de não dar boleia – tudo isso parecia interligado de forma que a lógica não conseguia explicar.

Quando a tensão começava a dissipar-se, foi então que o guia decidiu partilhar uma história que nos arrepiou.

– A primeira vez que fui a Buchane, não recebi essa orientação. No regresso, demos boleia a uma senhora. Ela estava na parte de trás do camião de carga. Num certo ponto, o motorista olhou pelo espelho e não viu a senhora. Viu uma cobra
– O quê? – interrompeu Félix, espantado.

– Parámos imediatamente. Ligámos ao líder para contar o que aconteceu. Ele pediu que esperássemos. Poucos minutos depois, a cobra desceu do camião e desapareceu na mata. Desde então, nunca ignoramos as recomendações.

O silêncio voltou a tomar conta do ambiente. As palavras do guia ecoavam nas nossas mentes. Era difícil não ligar a história às nossas próprias experiências daquele dia – o carro que voltou a funcionar, os espelhos cobertos, os olhares de súplica ignorados na estrada

De volta à minha rotina, a história daquele dia não me abandonava. Seriam todos esses episódios mera coincidência? Ou será que há forças, crenças e tradições que transcendem o que a ciência explica?

Moçambique é um país de mistérios. Nas suas paisagens, tradições e silêncios, há verdades que não são ditas, mas vividas. Talvez, no coração de Buchane, tenhamos tocado um desses segredos – um que nos lembra que nem tudo precisa de explicação para ser real.

“A arte serve para consolar aqueles que foram quebrados pela vida.”
Vincent van Gogh

 

A imagem fotográfica é uma forma de preservação do que está condenado a desaparecer, revela-nos Roland Barthes. A verdade é que tudo está condenado a desaparecer – desde o que é físico até o que não se confina ao palpável. No final, tudo se esvai, esboroa-se. Tal como, filosoficamente, Heraclito de Éfeso (século VI a.C.) viu a vida como um rio em que “nenhum homem entra duas vezes”, as coisas não são estáticas. Ou seja, panta rhei (tudo flui) – até os nossos sentimentos, as nossas emoções, o nosso próprio “eu”, ao qual nos agarramos como se fosse algo pré-existente à nossa própria existência.

“Where do I land?” (Onde aterro? / Onde vou aterrar?) é um lugar onde se tenta preservar a efemeridade. Mas, se pararmos o tempo, nota-se a profundidade de tudo aquilo que passa depressa, que flui sem se perceber. Esta é a primeira exposição individual de Lillian Benny, e ela aproveita o espaço para interpelar o destino sobre o próprio destino: “Where do I land?”. A confusão é compreensível – o destino aqui não é geográfico, mas interno. São cidades mentais, sempre em dissolução, onde tudo, de facto, flui.

A beleza da exposição reside no que nos causa estranheza. Mas talvez isso seja o mais natural: tudo o que é reflexo da alma há-de causar espanto, porque a alma é como o espaço sideral – pouco se sabe dele e raramente se empreendem viagens de descoberta. Aos poucos, reconsidero o espaço do estranho na arte, porque parece que pode ser – e talvez deva ser – a sua essência.

“As legendas conferem direcção moral à imagem. São um meio de impor um significado, de canalizar a interpretação.” (Sontag, On Photography, 1977) A interpretação das fotografias foi, por momentos, difícil, pois os títulos das obras estão maioritariamente em inglês. Assim, a “interpretação” teve uma canalização algo apertada. Esta limitação interpretativa trouxe, no entanto, um certo requinte e elegância à exposição. O que certos títulos perdem na facilitação de leitura e imposição de sentido, ganham-no no sublime, no estético e no poético que emerge do misterioso e do estranho – como em “De nobilis ipsi silenums”, “Siegfried” ou mesmo “Erasure”.

É em “Erasure” que, mais do que ver ou traçar linhas interpretativas – porventura tortuosas –, sentimos a imensidão da vida. Quando se é criança, a vida parece caber toda na palma da mão.

Mas, à medida que crescemos, a vida cresce também – e fá-lo numa proporção muito superior à nossa. E o que nos resta? “São maningue cenas” parece ser a única forma possível de explicar o peso desta imensidão.

“Erasure” é um retrato da vida repleta de muitas vidas. O coqueiro representa a vida não orgânica – aquela que se desenvolve na convivência entre nós e os outros, misturada com sentimentos, emoções, lutas e corridas. Essa vida, embora fruto da nossa própria criação, cresce tanto que ganha vida própria, erguendo-se para além de nós. E nesse momento, instala-se a contrariedade:

já ninguém sabe o que fazer com essa vida que se impõe, pressiona (socialmente) e exige ser aceite. Tudo isto gira como uma bola de nove que rola montanha abaixo – ninguém a segura.

Esta vida cresce até se tornar um coqueiro, e vemo-nos, por vezes, desesperadamente pequenos – tal como o personagem na fotografia.

A vida, quanto mais cresce, mais nos torna pequenos e ínfimos. Esmaga-nos esta discrepância entre a sua robustez e a nossa fragilidade. E, assim, sentimo-nos cada vez mais diminuídos, mais apagados.

Outro aspecto relevante: toda a exposição é monocromática. Preto e branco – apenas – em todas as fotografias, o que adensa a atmosfera e intensifica a melancolia de quem observa. É um ambiente denso e profundo, que favorece a reflexão e a introspecção. Na fotografia em questão, a coloração cinzenta harmoniza-se com o céu nublado, remetendo para os meses que antecedem Junho, o prefácio do frio. A estação da vida que pede agasalho, recolhimento e, talvez, um abraço É algo digno de nota: em todas as fotografias há apenas uma figura humana e paisagens (muitas delas interiores), sugerindo uma viagem solitária em direcção ao destino. A obra “Erasure” segue essa mesma linha sugestiva. Aqui, ao contrário das outras, a fotógrafa parece querer dizer-nos que cada um, singularmente, sente o peso da vida. Ou que há viagens, na vida, cujo bilhete é só de ida e apenas para um. Como escreveu Dostoiévski, “Todos somos fadados a ser solitários, e passamos a vida a tentar não o ser.” (in Notas do Subsolo) A fotografia “Erasure” Integra a exposição “Where do I land?”, a estreia individual de Lillian Benny, patente até 30 de Maio. Nela, mergulhamos nas profundezas da alma humana – nesse lado escuro, no porão da casa, onde tudo está desorganizado e paira o cheiro a poeira.

 

Que desastre!

A Natureza pode estar doente e os ciclones, a seca extrema, inundações que têm assolado o nosso país, ceifando vidas e destruindo a esperança das comunidades podem ser sinais e sintomas que resultam desta doença, chamada mudanças climáticas. Este problema mexe não só com os moçambicanos, mas com todos e exige uma resposta à altura. Não se trata de quem polui menos ou mais, não se trata de ser um país desenvolvimento ou em desenvolvimento, o problema é de todo o planeta.

Com recurso à escrita, imaginação e criatividade, os autores de Crónicas de Desastres unem-se para despertar a consciência de todos nós sobre as mudanças climáticas, transmitindo o seu ponto de vista, bem como apresentando estratégias ou acções concretas como forma a mitigar os problemas que surgem em consequência dos desastres naturais, um mal que frequentemente têm assolado o país.  

Moçambique tem mais de três meses para se preparar para época chuvosa, porém, durante esse tempo, o Governo fica invisível, nada faz e nada fala. E quando a época chuvosa chega, o Governo só aparece 48 horas depois do desastre ter acontecido e, mesmo assim, nada faz, a não ser desfilar a sua classe e apreciar o cenário para, depois, falar com a imprensa. Quem socorre a população são os voluntários.

Na primeira crónica do livro, “Crepúsculo Sombrio”, o Governo é convidado a reflectir sobre o seu papel na redução dos impactos dos riscos causados pelos desastres naturais. Exige-se desse mesmo Governo, que cobra impostos à população, a construção de infra-estruturas resilientes de forma antecipada, bem como ter uma intervenção activa, sobretudo no apoia às vítimas das enxurradas que vêem as suas casas, machambas, animais e outros bens a serem engolidas pelas águas da chuva. 

Enquanto uns reclamam da chuva, outros choram por conta da seca causada pelas mudanças climáticas. Os rios e lagos secam por falta de chuva, o gado fica esqueleto pois a fúria do sol queima o capim. Tudo mudou com as mudanças climáticas e nem podemos contar com a ajuda do Pangolim, que antigamente, tinha a missão de trazer de volta a chuva (esse mamífero tem sido raro nos dias de hoje). 

Por isso, na crónica “Sequestrador da Chuva”, a ciência é vista como uma ferramenta a ser usada para resolver os problemas que afectam as comunidades, e todos nós somos chamados a envolvermo-nos em campanhas ecológicas de adaptação e resiliência climática, a plantar árvores e outras plantas imunes ao sal, à volta da costa para que a terra não seja engolida pelo mar, evitar caçar, usando fogo que destrói a floresta e empobrece o solo. 

Deve-se buscar uma harmonia entre a humanidade e o clima. A força e coragem de um povo moçambicano não são suficientes para lidar com a magnitude das mudanças climáticas. Todos temos que caminhar em direcção à redução das emissões de gases de efeito estufa e implementar estratégias de adaptação. 

É com a crónica “Dança do Clima” que somos lembrados da necessidade do mundo unir-se para salvar a nossa biodiversidade, conservar o ecossistema para evitar a degradação da camada do ozono, e a garantir um futuro sustentável para as gerações vindouras antes que a vida se torne insustentável na terra.

O problema do planeta terra não só afecta o ser humano, os animais também sofrem a cada abate de árvore, que transforma a sua casa e o seu  alimento, num simples troco para o fabrico de objecto para o Homem, sem sequer se importar com a vida do animal e da própria árvore. 

“A Sombra Derrubada” mostra-nos que a falta de consciência ambiental e priorização do lucro, em detrimento do bem-estar do planeta, faz com que a humanidade explore de forma irresponsável os recursos naturais, visando apenas benefícios financeiros sem levar em consideração possíveis impactos das suas acções para o ambiente. 

O abate indiscriminado de árvores sem substituição, assim como as queimadas descontroladas associadas à caça, leva ao desflorestamento, reduzindo deste modo, tudo a deserto. Sem as árvores, sem a chuva, e o sol intenso, só resistem dúzia de árvores, com destaque para embondeiros e arbustos. 

Na crónica “Seca em Kanhemba” e “As cheias em Ndziluene”, este cenário cria a necessidade de se traçarem medidas para o reflorestamento, a reposição das espécies de árvores em extinção, mostrando, deste modo, a importância do Homem cuidar bem das florestas e a caçar de forma racional. A construção de casas em zonas baixas, nos cursos de drenagem da água de chuva, é também uma outra realidade apresentada ainda naquela crónica. De forma a evitar a perda de bens, a crónica faz-nos repensar a possibilidade de habitar em zonas altas e seguras, longe dos cursos de drenagem da água de chuva.

Sobre as drenagens, que quase não existem, em “Para a água Desalgemanda”, o Governo  é convocado a assumir o seu papel em projectos ambientais, assim como nas construções de reservas de águas das chuvas que inundam as casas, machambas e arrastam o gados todos os anos, por não terem um caminho por onde passar. Assim como são feitas estradas para os carros circularem, devem ser construídas estradas (valas) para as águas passarem. 

O nosso mau hábito de deitar frequentemente o lixo em qualquer lugar, faz com que o lixo também se apoderam dos caminhos das águas, constituindo um obstáculo para a sua passagem. 

Em “Lixotoleles”, o maluco da lixeira de Hulene chama atenção aos estudos e letrados para a gestão dos resíduos sólidos, sendo que, a falta da gestão do lixo acumulado à beira da estrada, chega a parecer uma autêntica biblioteca, com plásticos, papel, vidro ou até mesmo chega a parecer um supermercado de ratos, moscas e cães vadios.

Na crónica “Pensem Comigo”, vemos que o ser humano é a maior fonte de desgraça que assola o meio onde ele mesmo vive. O seu desrespeito e a sua negligência com o meio onde vivemos faz-lhe  poluir onde vive. Precisamos de criar uma cultura de protecção do meio, o que implica cuidar e respeitar o meio ambiente. Não é por falta de leis ambientais que os país têm ficado mais doente e mais sensível e quase nada se faz para o curar. Em Moçambique, as leis ambientais apenas servem para minimizar os estragos. 

A necessidade de deixar a Natureza respirar, e não substituir os lugares verdes, o habitat do mangal pelos prédios de betão, é também invocada em “Memória de um sonho”, quando o homem, usando a sua coragem, invade uma zona que não lhe pertence e retira o mangal do seu habitat para, em seu lugar, erguer casas, sem pensar no impacto desta acção. 

Tempos depois, a água invade a casa que o homem considera como proprietário em busca do que lhe pertence por natureza, e, consequentemente, ventos fortes, chuvas, ciclones são respostas da Natureza aos actos cometidos pelo próprio homem. A conservação do mangal não é apenas uma questão ambiental, mas uma questão de sobrevivência para variedade de espécies marinhas, aves e muitas comunidades costeiras. Para além de serem essenciais para combater as mudanças climáticas. 

A ambição do Homem levou-o ao abate de árvores, para fornecer matéria-prima às indústrias nacionais e estrangeiras que poluem o ambiente, mas isso não bastou, o seu egoísmo o levou à extração de recursos naturais, até de areias pesadas. Todas essas acções têm impacto, são casas, estradas destruídas por terramoto, ciclone, tsunamis, aquecimento global, chuvas intensas e erosão. 

“A Esposa Corajosa” convida-nos a pensar sobre a preservação da vegetação, respeitar as zonas impróprias para a exploração, incentivando o plantio de árvores. 

A ganância do ser humano transcende também para a exploração de gás, levando ao enriquecimento do Homem, deixando o alto mar poluído. Vemos essa narrativa em “O Ngoza Tombou”, onde o Homem tem a sua vida facilitada, mas a emissão de gases nocivos que lesionam a camada de ozono é maior, com o uso de máquinas que funcionam dos motores a combustível. E como forma de vingança, o mar cospe de volta o lixo depositado nele, com as suas ondas engole os barcos e navios no alto mar, e a terra estremece causando a ocorrência dos ciclones.  

Em nome do desenvolvimento e da melhoria da vida humana, o Homem violenta a terra até ao extremo. 

A crónica “E Depois de Marte?” revela que a liberdade do Homem mostra a sua irresponsabilidade para com a terra. Uma vez que o Homem, a partir de actividades industriais,  faz a libertação de gases tóxicos à terra e envenena o ambiente com os resíduos industriais, tudo isso contamina o solo, causando aquecimentos globais, ciclones, vulcões e sismos. 

Apesar de estamos no século dominado pela tecnologia, a terra não pode ser restaurada como um smartphone, mas pode-se melhorar o que lhe resta.  E há necessidade de se resgatar no Homem o espírito do ECO 92, COP 27 e o cumprimento da agenda-2030, pois as cicatrizes deixadas pelas mudanças climáticas são muitas.

Ainda vivenciamos catástrofes naturais e doenças. Os desastres naturais ocorrem com maior incidência em África e a sua economia não é tão robusta como a dos países desenvolvidos, mas isso é um ponto de partida, pois, neste mundo onde tudo se resume em negócio,  os países desenvolvidos aproveitam-se disso e, de forma camuflada, mostram solidariedade aos países em desenvolvimento, como Moçambique.

Em  “Redução de Riscos de Desastres”, somos alertados sobre a solidariedade dos países em desenvolvimento, o que sai muito caro aos países em desenvolvimento, pois os investidores encontram meios de explorar as riquezas dos países em desenvolvimento, e, de seguida, dão migalhas em nome de ajuda às populações. Em contrapartida, as suas fábricas de plásticos destroem a natureza. Os mecanismos de gestão dos desastres naturais são uma vantagem para os líderes encherem os seus bolsos. 

Os eventos climáticos extremos continuaram a acontecer, mas temos que ter sabedoria e acção rápida em prol da redução dos riscos de desastres naturais, se quisermos vivenciar “O renascer da cidade de Idai”. Não devemos nos acomodar, temos que buscar novas soluções, pois a natureza é dinâmica e imprevisível, e a resiliência exige constante aprimoramento. A solidariedade e a união são pilares fundamentais na busca pela resiliência.

A redução dos riscos de desastre não se limita apenas aos aspectos técnicos. Todos, desde  o Governo, engenheiros, arquitectos, líderes comunitários e a população em geral, somos chamados, na crónica “O renascer da cidade de Idai”, ao compromisso com a resiliência e sustentabilidade, para actuar em situação de emergência. Para isso, há necessidade de criação de sistemas de alerta precoce sobre a incidência de alguns desastres naturais.

“A ortotanásia da pureza de Muhira” também retrata a necessidade de a comunidade abandonar as suas casas em zonas baixas e pedir abrigo em casas seguras e situadas em altitudes. Isso só é possível quando os ciclones são anunciados antecipadamente. Ter conhecimento da ocorrência de desastres naturais com antecedência, dá tempo às pessoas para se prepararem. Com a informação as  pessoas saberão o que devem e o que não devem fazer. É certo que os ventos arrastam os pertences das famílias, mas as suas vidas estarão salvas.

Muitas vezes, a falta de informação sobre as zonas propensas a inundações faz-nos sofrer. Abandonamos os locais inseguros à procura de melhores condições e acabamos por nos abrir novamente em zonas com as mesmas características. Uma Situação retratada em  “Sofrimento por ignorância”, onde somos convidados a procurar junto com um especialista por zonas seguras e fazer construções resilientes. 

E que tal se fizermos o mapeamento das áreas de risco susceptíveis a ciclones, cheias e outros desastres e transformá-las em parques e reservas naturais de modo que não sejam ocupadas inadequadamente? A transformação não acontece de noite para o dia, mas, com o tempo, com a perseverança e crença de que a acção contribui para a construção de um futuro onde a convivência com a Natureza é harmônica e segura. 

Ainda há muito trabalho a ser feito para alcançar um futuro sustentável.  A biodiversidade foi afectada e até a saúde da população foi comprometida, pois com as temperaturas elevadas cada vez mais preocupantes, as doenças tropicais aumentaram. Enfrentar os obstáculos impostos pela resistência do sector económico sobre o ambiente, assim como superar obstáculos políticos e burocráticos, é a missão de todos nós.

Por isso, em  “A Guardiã do Clima” somos atribuídos a missão de proteger o meio ambiente dos desequilíbrios causados pelas mudanças climáticas, assim como, consciencializados a  tomar medidas de reflorestamento, protecção do ecossistema, investimento em energias renováveis para redução da emissão de gases de efeito estufa.

A preservação da vegetação, assim com o respeito às zonas impróprias para a exploração, incentivando o plantio de árvores, são também apontados em “A esposa corajosa”, onde, através de uma narrativa, reparamos que a ambição do Homem levou-o ao abate de árvores, para fornecer matéria-prima às indústrias nacionais e internacionais que poluem o ambiente, mas isso não bastou, o seu egoísmo levou-o à extracção de recursos naturais, até de areias pesadas. 

Com essas acções, a Natureza se zanga, e para mostrar o quão grandiosa e majestosa é, causa   terremoto, ciclone, tsunamis, chuvas intensas, erosão e invoca a camada de ozono para queimar o ser humano com o sol, aquecimento global.

As mudanças de temperaturas fazem parecer que Deus está zangado com o planeta e estamos no fim do mundo. Se não aquece de forma excessiva, faz frio, se não é ciclone, são terramotos ou cheia. Há sempre algo complicado a acontecer. É com  “Deus não fritou o mundo”, que percebemos que Deus não é culpado por isso, o Homem é que é o causador das queimadas descontroladas, emissão de gases produzido pelas fábricas e queimadura de plásticos, é que é o diabo da Natureza, o inimigo da Natureza.

O desastre, na maioria das vezes, é causado por nós próprios. Para acabar com o desabamento, cheias e outros desastres naturais, a população é convidada, na crónica “O renascimento da minha terra”, a assinar um acordo de paz com a natureza, pois um depende do outro para a sua sobrevivência. A natureza acompanha-nos até à morte e nós devemos cuidar dela para que ela nos dê o que tem de melhor. 

É importante que o Homem cuide da Natureza. Para isso, é fundamental que ele tenha conhecimento sobre as mudanças climáticas. 

A crónica “E se soubéssemos” faz-nos reflectir em torno da prevenção, planeamento, preparação, alerta, resposta, resiliência, sustentabilidade, mitigação e educação ambiental, para lidar com as mudanças climáticas e o aumento de ocorrências dos desastres naturais.

Com esta viagem que acontece dentro das 115 páginas e vinte crónicas, conduzida por 20 estudantes de vários pontos do país, o leitor é convidado a uma reflexão sobre a importância da redução dos riscos causados pelos desastres naturais. 

A colectânea “Crónicas de Desastres” mostra ainda que precisamos aprender com os erros e buscar novas soluções, porque a jornada da redução dos riscos de desastre não tem fim, mas um começo.

* Texto escrito na sequência da apresentação do livro “Crónicas de Desastres”, no Instituto Guimarães Rosa, em Maputo. 

Nascem de um projecto, Boa Coisa, uma associação sem fins lucrativos que promove a arte e cultura moçambicana, e afirmam-se como parte das recomendações do governo no sector da cultura em Moçambique, que é transformar a cultura em actividades de renda e auto-sustento para os artistas e as comunidades moçambicanas.

Quiosques artesanais, patentes na Feira de Artesanato, Flores e Gastronomia de Maputo, inaugurados na presença da Secretária das Artes e Cultura, contém um espaço palco para eventos músicas, teatro, conversas, com uma cobertura ao céu, arquitectónica em madeira pinus, dando passagem do ar para o alívio dos fumadores e do público. 

Um design de construção que voltou a transformar a FEIMA, o projecto vem mostrando e oferecendo aos munícipes, mas um espaço de lazer e divulgação cultural.  Matilde Muocha ficou impressionada com o projecto tento reforçado que o mesmo deve ser abrangente e divulgado aos demais fazedores culturais, como um espaço aberto para a utilização de todos.

Um espaço aos custos projectado pela associação, é possível à venda de diversos produtos artesanais, de pintura, bijuteria, alimentares. Para os amantes da moda, o espaço dá este privilégio a um desfile encantador das marcas de roupa, de alta costura a iniciantes. Dentro da cidade das acácias, os quiosques artesanais são uma realidade, não emprestam o cenário elitista, mas sim de divulgação cultural. É um espaço aberto ao turismo.

São quiosques simples. Mas com adornos. São artesanais porque foram feitos com recursos a técnicas industriais, com atenção aos detalhes, valorização da qualidade e autenticidade, usaram-se contentores para os fabricar, mas os detalhes das pinturas, dos embelezamentos tem toques da nossa forma de viver entre os povos e culturas, com uma ode à arte, inspira, degusta-se metaforicamente os nossos apetites de transcendermos.

 

A estrada que silenciou sonhos

Naquela tarde quente de domingo em novembro de 2020, o sol brilhava com uma intensidade quase abençoada. Em Malova, distrito de Massinga, Nomsa e Sílvina,

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