O País – A verdade como notícia

A visão do real em O Preto (Ivo Mabjaia) e Ontogénesis (JJ Nota)

Por Vassta Mandlate

O cinema moçambicano tem vindo a destacar-se como pretexto privilegiado para ecoar temas complexos, que reflectem as realidades culturais, sociais e políticas do país. As curtas-metragens O Preto, de Ivo Mabjaia, e Ontogénesis, de JJ Nota, retratam diferentes formas de opressão e resistência, usando o silêncio como elemento central para construir tensão e crítica social.

O Preto apresenta uma atmosfera carregada de tensão, centrada na dinâmica entre três personagens principais, um homem negro, um homem branco e uma mulher chinesa, que se apresentam diante de um grupo de indivíduos deitados no chão, que simbolizam o silêncio e a opressão.

Ao nível da fotografia, a opção pelo preto e branco garante um universo dramático, não obstante a limitação da expressividade visual em algumas cenas.

A intensidade das interpretações e o simbolismo presente, como a única fala existente na curta, o grito em changana “A muyive”, que significa “ladrão”, reforçam a crítica social sobre as relações de poderes. A curta destaca a violência física e psicológica, bem como a passividade das personagens diante da injustiça, temas que têm ressonância na realidade moçambicana.

Quanto ao filme Ontogénesis, destaca-se uma tensão dramática contínua, que atravessa a narrativa da protagonista Khensa, uma jornalista ecologista que luta contra a poluição ambiental, enfrentando forças que a pretendem silenciar.

A construção da protagonista, no filme de JJ Nota, é marcada por um ambiente de constante vigilância e ameaça, intensificado não só pelos elementos visuais da cena e pelo som ambiente, mas também por um recurso narrativo expressivo: o uso recorrente de uma voz audível, que diz “Khensa, foge!”. Ainda que a autora de tal voz nunca se revela, fisicamente, a mesma voz reforça a tensão psicológica da narrativa, gerando uma atmosfera de urgência e alerta constante, que acompanha o percurso da protagonista.

Ontogénesis também é uma curta a preto e branco, escolha estética que acentua a rigidez e a tensão da narrativa. O filme inicia-se com a exibição da ficha técnica acompanhada por uma chamada telefónica, na qual uma voz feminina, possivelmente amiga próxima de Khensa, tenta estabelecer um diálogo tenso que se repete ao longo do filme. A voz, que o telespectador também ouve, funciona como um prenúncio trágico e uma personificação simbólica do medo, do destino e do instinto de sobrevivência.
Ora, no final do filme, o ecrã escurece e surge a dedicatória: “In memory of Carlos Cardoso (1951-2000), um dos mais respeitados jornalistas moçambicanos, conhecido pela sua integridade e coragem na denúncia da corrupção e injustiças sociais. Cardoso foi brutalmente assassinado, em 2000, em Maputo, num crime que abalou e representou os perigos enfrentados pelos jornalista de investigação.

Ao evocar Carlos Cardoso, Ontogénesis estabelece um elo entre a luta fictícia de Khensa e a história real, conferindo ao filme uma carga sociopolítica e expressiva, posicionando-o como um tributo ao jornalismo comprometido com a verdade, mesmo sob risco de silenciamento fatal.

O Preto, de Ivo Mabjaia, e Ontogénesis, de JJ Nota, expõem diferentes vertentes do real vivido, seja através da opressão racial, traição, da luta ambiental e do silenciamento da verdade, convidado o espectador a reflectir e a questionar.

O confronto entre duas visões do real, no cinema moçambicano, é um convite para que o público conheça, discuta e valorize a produção audiovisual. A arte, neste contexto, permanece como um instrumento vital de denúncia e transformação.

 

*Texto escrito na sequência das actividades realizadas na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos