Por: Edna Matavel
O campo é um lugar inescrutável, tão silencioso que gera uma reflexão não planeada da existência e do dito princípio, só com a simplicidade com que as aves entoam em conexão com as folhas das árvores e o mar a longa distância. Como é bom contemplar a plenitude da natureza, o nascer e o pôr-do-sol. Foi sempre assim até que o barulho das armas de guerra assolaram aquele mato.
Dorca, campesina, como é habitual para as mulheres do campo, levantou-se às primeiras horas de quinta-feira para colocar a mão na machamba. Curiosamente, foi a única mulher a exercer o trabalho nas plantações. As suas companheiras ficaram na aldeia.
O campo é realmente diferente, um lugar sem descrição. Tudo o quanto acontece é de conhecimento colectivo. Surdina é utopia, porque até mesmo as árvores têm ouvidos para ouvir e olhos para ver.
Era ainda muito cedo, quando ouviu gritos de disparos que saíam das bandas de sua aldeia e, imediatamente, interrompeu o trabalho. Nesse dia, ela acreditou na protecção dos ancestrais. Seria a única a escapar da morte. Eram gritos de choro e clemência, tiros de gente preparada para exterminar pessoas inúteis no desenvolvimento de um país, podemos considerar um conjunto de alcateia. No mesmo instante, ela caminhou célere de desespero em direcção à sua casinha de palha. O passo era tão célere que bem perto da aldeia teve um movimento de inércia ao ver homens armados e cadáveres no chão. Observou de longe e viu o seu marido levar um tiro na cabeça por ter envergado uma camisa vermelha, que, por sinal, para estes homens que ouso chamar de terroristas, carregava um significado.
Sem saber o que fazer, Dorca derramou lágrimas de sangue em silêncio ao ver também o seu filho nas mãos de um destes homens. Eles aguardavam o seu companheiro que foi a busca de um pilão. Enquanto isso, faziam um movimento como se o miúdo fosse uma bola de basquetebol. Depois de acharem o pilão, colocaram o menino para ser pilado tipo um milho, mas, diferente deste, não sobraram nem restos para colocar dentro de um féretro e fazer-se um enterro digno.
A aldeia parecia uma vala comum com tamanha brutalidade que afectou o emocional da Dorca ao ponto de ficar por horas inconscientes, e, quando abriu os olhos, aproximou-se e não estava mais ninguém. É como se todos tivessem sido engolidos pela terra, seus dias passaram a ser lúgubres, as árvores e poucos animais que lhe sobraram foram as únicas testemunhas do que ela viveu. Tudo murchou. É como se a natureza entendesse o massacre que houve, as folhas mudaram de forma, ao invés de verdes, ganharam a cor vermelha de sangue dos seus donos já cadáveres.
A mulher do campo carregou o luto da sua família e de tantas outras campesinas assassinadas e violentadas por estranhos sem conhecer os direitos humanos, os seus ombros carregaram dor da enxada, e a sua alma traumas.
Cicatrizada pela dureza do seu trabalho, os seus pés denunciam as longas caminhadas que se igualam aos músculos de um homem que muito cedo percorre quilómetros em busca de sustento para sua família, e as suas mãos endurecidas com trabalho árduo da enxada debaixo do sol e acompanhados pelos movimentos da corda que tiram a água do poço, foram as únicas formas de sobrevivência para sustentar o único filho que o massacre não lhe tirou do seu ventre.
Mesmo gestante, Dorca procurou o seu poder no íntimo e usou, interrompendo o sono pela reconstrução do seu lar. Um minuto de repouso era resultado de um dia de trabalho perdido. Na ausência de um marido que lhe pudesse proteger, impávida, percorreu matos lutando com serpentes enquanto pastoreava o seu gado e tirando lenha nas árvores para preparar suas humildes refeições, mostrando que no campo, o trabalho funciona com lentes de género.
Depois de muito tempo de trabalho e gestante, deu à luz o seu filho Ezequias, sendo assistida por cabritos. Passaram anos, e o menino cresceu num mundo estranho. A sua mãe pouco falava. Foram tantos anos de solidão que acabou perdendo habilidades de fala.
Num belo dia, ela decidiu sentar com o seu filho para lhe contar como tudo começou. O menino dobrou-se em lágrimas ao saber que um dia existiram homens como ele, mas que a vida lhes tirou. Hoje, é um menino crescido e com uma visão surpreendente, como se os seus antepassados lhe estivessem a distribuir o conhecimento em jeito de recompensa. Ele disse à mãe que queria lutar pelos tais direitos humanos, mas sem nem saber por onde começar naquele mato infinito. Gritou por liberdade, mas ninguém podia ouvir a não ser as aves.
No final do mês de Agosto daquele ano, as energias renovaram-se. Parece que os gritos surtiram efeito. Sem nem esperar, passou um desses transportes ferroviários, o que é bem raro. Ezequias viu a oportunidade da sua vida. Gritou bem alto e uma vez que no campo não há sigilo, logo ouviram… O transporte parou e ele foi a correr. Sabe-se lá o que terá dito. Bem de longe, viu a sua mãe na aldeia e gritou mamã Dorca. Fixou o seu olhar nele e ele levantou os braços. Num movimento de nostalgia, disse: adeus, mãe, quero a tal liberdade e justiça.
Quando finalmente conseguiu uma companhia, a vida, uma vez mais, roubou-lhe. A mulher do campo ficou sozinha, como se este fosse o seu destino. Os seus animais e as suas plantações deram-lhe abraço de força enquanto fazia preces para que o filho não tivesse o mesmo destino que o pai e o irmão tiveram.