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A metáfora da doença em Assa Matusse e Dalida

“Je suis malade déjá”, ou seja, “Já estou doente”, é o que se ouve durante pouco mais de três minutos, na voz de Assa Matusse; incrivelmente, não é o que parece. A escolha do francês como língua principal na música Je suis malade déjàrevela-se muito inteligente e profundamente ousada.

Em cerca de três trechos ocorre algo único: a fusão de três idiomas: o francês, o português e o xangana/ronga, o que não deve ser visto apenas como algo fortuito, mas também como uma estratégia para transmitir uma mensagem universal, capaz de alcançar diferentes públicos sem perder as raízes. Mais do que isso, as transições são tão fluídas que não basta ouvir a música apenas uma vez para perceber que não se trata de uma só língua.

Contrariando a melodia, que nos faz querer sair por aí aos saltos e conquistar o mundo, a letra aponta para a direção contrária: traz à tona uma crítica a este mesmo mundo, que vai nos adoecendo gradualmente. É um exercício artístico muito bem articulado, justamente porque instiga no ouvinte a necessidade de compreender o intuito da composição.

O eu-lírico não tem gênero: é a própria humanidade em crise. Homens e mulheres que dedicam suas vidas ao sistema, vivem em prol da opinião alheia, despem-se de qualquer escrúpulo e acabam perdendo-se de si mesmos. A noção de inevitabilidade é quase dilacerante: o “já” presente no coro representa a consciência de que a doença está escrita no percurso e no destino final da humanidade.

Ao fundo, ouve-se uma batida constante e imponente, cujo som assemelha-se ao de um coração. Entretanto, esse coração não é frágil: é pulsante, resistente, quase teimoso, e acompanha cada denúncia da cantora. A batida, assim, simboliza não apenas um corpo individual, mas um corpo social esperançoso que insiste em viver, mesmo ferido.

É nessa esperança social que a luz atravessa a escuridão. A esperança nas crianças é um elemento sutil, mas poderoso, pois elas não são apenas símbolo de futuro, mas também professoras silenciosas para os adultos sobre conceitos como sinceridade, liberdade, empatia, amor e solidariedade.

Ocorre na música uma batalha tão equilibrada entre a crítica e a romantização da melodia, através da voz ancestral da cantora moçambicana, que, a priori, pode ser comparada a uma dança de salão. Ambas movem-se sobre passos excitantes aos ouvidos; juntas, são tão divergentes que tornam-se complementares, formando um jogo de xadrez que termina em um merecido empate.

Por outro lado, em Je suis malade, Dalida canta “Eu estou doente” de forma melancólica e dramática, quase como um teatro de voz. A interpretação da cantora francesa desperta a sensação de angústia e tristeza profunda através da oscilação do timbre entre fragilidade e explosão, encenando a própria instabilidade da dor.

Dentre as diversas interpretações possíveis, o eu-lírico é feminino: uma mulher carregada de tamanha sensibilidade que mantém o ouvinte em um eterno estado de empatia. E essa sensibilidade está diretamente relacionada ao fundo: é cristalino, translúcido e etéreo, como lágrimas que caem sobre uma peça de cristal.

A composição não nega o nome: retrata uma doença destruidora e avassaladora; entretanto, individual e introspectivamente triste. Nem tão pesada, mas emocionalmente dependente, ilustrada no trecho inicial: Je ne rêve plus / Je ne fume plus / Je n’ai même plus d’histoire. É, sem dúvidas, uma espécie de desfile de enumeração de perdas. Paradoxalmente, algumas dessas perdas não são necessariamente prejudiciais, mas sua ausência reforça a sensação de vazio e de transformação involuntária, uma evolução disfarçada pela dor.

O sujeito não sonha mais, o que, em certa perspectiva, pode até ser positivo, porque alguns sonhos transformam seus portadores em estátuas de sal. Acredita que não tem mais histórias para contar, mas canta uma ao público. E, acima de tudo, não fuma mais, algo incrível e tão difícil de superar quanto todo vício.

Há também uma reflexão mais profunda: focarmo-nos tanto nas perdas faz-nos perder, de facto, o caminho brilhante que ainda poderíamos trilhar, presos a uma vida de ilusões e imaginações, uma espécie de prisão perpétua ao “e se…?”. É essa tensão entre dor, reflexão e negação da possibilidade de transformação que torna a interpretação de Dalida tão potente e atemporal.

Assa Matusse e Dalida cantam sobre doenças, mas de maneiras profundamente distintas. Em Je suis malade déjà, de Assa Matusse, a doença é coletiva, inscrita no corpo social, e precisa ser enfrentada, denunciada e combatida. É uma condição inevitável, mas também um convite à resistência, que encontra esperança nas crianças e na pulsação firme do ritmo, caminhando para a regeneração.

Por outro lado, em Je suis malade, de Dalida, a doença é individual, introspectiva e quase autodiagnosticada. Ela afoga o eu-lírico em emoções devastadoras, tornando cada ausência de gesto uma evidência da fragilidade humana diante da perda amorosa. A interpretação dramática e melancólica da cantora transforma a dor em experiência estética e emocional, mantendo o ouvinte imerso no teatro da tristeza.

Apesar de nomes parecidos e do compartilhamento do idioma francês, as duas obras conduzem a condutas divergentes após o “diagnóstico”: enquanto Assa inspira ação, reflexão social e esperança coletiva, Dalida entrega-se à doença absoluta, sem resiliência, e parece sucumbir à própria ilusão.

Ambas exploram a metáfora da doença, mas com objetivos e efeitos distintos, revelando as múltiplas facetas da condição humana diante de um processo doloroso. Enquanto uma abordagem enfatiza a dimensão íntima e subjetiva, transformando a dor em espelho da vulnerabilidade individual, a outra projeta essa experiência no plano coletivo, questionando estruturas sociais e culturais que perpetuam o sofrimento. Assim, a metáfora não se limita ao corpo adoecido, mas se expande como recurso crítico e poético, capaz de iluminar tanto a fragilidade pessoal quanto as feridas históricas e sociais que atravessam o ser humano.

 

 

 

 

 

 

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